Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27/18.6T8ALQ-A.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: CONTRADITA
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
ADMISSÃO
TEMPESTIVIDADE
OCORRÊNCIA POSTERIOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) A contradita não é o meio processual próprio para contrariar o conteúdo do depoimento de uma testemunha.
II) A admissão de um documento implica a verificação de dois requisitos cumulativos: pertinência e tempestividade.
III) A pertinência de um documento decorre de entre ele e os factos que constituem o objecto da instrução se estabelecer a relação funcional indicada no artigo 341.º do Código Civil: as provas têm por função a prova da realidade dos factos.
IV) Constituem objecto de instrução quaisquer factos de que o juiz possa conhecer: factos essenciais que integram a causa de pedir ou as excepções opostas, factos instrumentais que resultem da discussão da causa ou factos que resultem da instrução e que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado.
V) A tempestividade de um documento apresentado com a audiência de julgamento em curso implica a prova de que a apresentação anterior não foi possível ou de que a apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior.
VI) Constitui ocorrência posterior justificativa de apresentação de documento, fora dos tempos legalmente previstos, o depoimento que afirma um facto novo de que o juiz pode conhecer, não aquele em que a testemunha se refira a factos anteriormente alegados nos autos.
VII) Os factos instrumentais, indiciários ou probatórios o campo natural de aplicação da norma da IIª parte do artigo 423.º, n.º 3, do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO

A [ …. ESCADAS ROLANTES, SA] , autora na acção declarativa com processo comum em que é Ré B, veio interpor recurso da decisão que indeferiu a junção de um documento por si apresentado na sequência do depoimento de uma testemunha. Alegou que tal documento infirma facto indicado pela testemunha no seu depoimento, constituindo este depoimento ocorrência posterior, justificativa da junção naquele momento processual.
O tribunal de primeira instância indeferiu a junção do documento nos seguintes termos:
(…) Pretende, assim [pela apresentação do documento], contrariar o afirmado pela testemunha, demonstrando com o documento a falsidade do seu depoimento.
Sucede que a ocorrência posterior a que se reporta o n.º 3, do artigo 423.º do Código de Processo Civil, não poderá corresponder à contradita da testemunha, em que se traduz materialmente a pretensão da autora com a junção do documento, pois esta está prevista no artigo 522.º do Código de Processo Civil e obedece aos requisitos nele estabelecidos.
 (…) omissis
É assim que, por não estarem verificados os requisitos para a referida junção, se indefere, por inadmissibilidade legal, o requerido pela autora, não se admitindo o documento, que deverá ser desentranhado dos autos.
Desta decisão interpôs a Autora o presente recurso apresentando as seguintes conclusões:
1) Em face do poder-dever que para ele deriva do artigo 411.º do Código de Processo Civil, não pode o Tribunal, como o fez a Primeira Instância, recusar a junção de um documento (como o documento 9 junto aos autos a 11.3.2019) que importa à descoberta da verdade material.
2) O documento 9 junto a 11.3.2019, não o foi ao abrigo da contradita, mas sim ao abrigo do artigo 423.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, concretamente por se ter tornado necessário em razão de ocorrência posterior.
3) A ocorrência em questão foi o depoimento de Ana ... pretado a 8.3.2019, a qual declarou que vira o e-factura da Ré, aqui Apelada, e que dele não constava a referida factura, assim aportando ao acervo probatório disponível ao Tribunal a quo um atestado de não disponibilização dessa factura, que necessitava de ser contrabalançado por um documento que o infirmasse, em prol da descoberta da verdade material.
4) A circunstância de o depoimento falso de Ana ... poder ser atacado através da contradita e de que nessa sede também pudesse ter sido junto o documento 9 não invalida a junção desse documento sob a cobertura do n.º 3 do artigo 423.º do Código de Processo Civil, na medida em que essa disposição legal não refere que só se aplica em quadros em que outros institutos sejam inaplicáveis.
5) A decisão recorrida violou os artigos 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), 411.º, 423.º, 521.º e 522.º do Código de Processo Civil, cuja correcta aplicação implicaria a admissão do documento.
6) Conclui, para além dos requerimentos de instrução do apenso em separado, requerendo o provimento do recurso e a admissão do documento.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi recebido para subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, por a tal nada obstar.
II) OBJECTO DO RECURSO
Estando a pronúncia deste Tribunal delimitada pelas conclusões do Recorrente - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as exceções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC, quanto a apreciação oficiosa -, cumpre apreciar e decidir da admissibilidade da junção do aludido documento.
III) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto pertinente à decisão é a que consta do relatório supra e ainda a seguinte resultante das peças processuais juntas a este apenso e aos autos principais, bem como no teor do depoimento da testemunha que se encontra gravado:
1) O documento apresentado em 11 de Março de 2019 pela Ré é cópia intitulada “detalhe de factura” constando do que nele se encontra escrito a identificação do comerciante (com o nome da Autora) a do consumidor (com o nome da Ré), a data de 30 de Novembro de 2016 como “data de emissão”, o montante de € 10.332,oo e os elementos relativos a tributação.
2) O documento foi apresentado pela Autora com a seguinte alegação: Acresce que a última testemunha a depor na referida sessão, Ana ……, declarou que visualizara o e-factura da Ré, ou seja, a página dela no Portal das Finanças e não constava a factura junta como documento 2 à petição inicial (!). Ora essa factura foi inscrita no SAFT pela Autora aquando da sua emissão, como se extrai do extracto que se anexa como documento 9 (…) pelo que tem de constar do e-factura da Ré, impondo-se a junção desta documentação (que a Autora teve de retirar hoje da sua própria página do Portal) em face da falsidade que nesse depoimento foi dita, encaixando assim na ocorrência posterior a que se refere o n.º 3 do artigo 423.º do Código de Processo Civil, isto para além da inegável importância que reveste para a descoberta da verdade, pelo que tal extracto deve ser admitido.
3) No depoimento prestado na audiência, a testemunha Ana ….., secretária da Autora ao tempo e há mais de trinta anos, respondendo à Ilustre Mandatária da Ré, a uma pergunta sobre a recepção pela Ré de uma factura de cerca de € 10.300,00, em Novembro de 2016 ou posteriormente, disse que não se recorda de ter recebido essa factura de novembro de 2016 para a frente, que não recebemos porque temos um registo diário do correio que entra no escritório e não temos essa carta recebida, esclarecendo que não é ela quem primariamente trata do correio, mas que tal pode acontecer quando a sua colega Susana o não pode fazer.
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4) A mesma testemunha, em outro momento do seu depoimento a instâncias do Ilustre Mandatário da Autora sobre se tinha acesso ao e-factura da Ré disse que não acedia directamente mas que se a Dra. Helena …… estiver a aceder e a chamar para ver via, mais referindo que isso aconteceu porque a sra dra chamou-a para ver com ela que não tinham lá a factura e não vimos lá a factura.
5) Do artigo 5.º da petição inicial consta: A Autora emitiu a 30.11.2016 a factura YAF4 1/0321200975, no valor de 10.332,00 €, a qual se junta como documento 2 e se dá por reproduzida.
6) Do artigo 4.º da contestação consta: Quanto ao vertido no artigo 5º, a ora contestante não sabe, nem tem obrigação de saber, porquanto tal factura nunca lhe foi enviada.
7) Do artigo 16.º da contestação consta: A R., repete-se, aceitou apenas e só o acordo preliminarmente para não incomodar terceiras pessoas; mas quando a A. lhe exigiu o pagamento sem factura, recusou-se a fazê-lo e denunciou desde logo o mesmo; indignando-se até pela atitude de uma empresa de renome que lhe “exigia” a prática de um acto absolutamente ilegal; qual seja o pagamento de um serviço prestado sem factura.
8) Do artigo 39.º da contestação consta: A A. solicitou novamente o pagamento à R., pese embora lhe tenha transmitido anteriormente que tinha anulado a factura. Perante esta contradição. A R. nem queria acreditar no comportamento de uma entidade de renome como alegadamente é a A..
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9) Do artigo 40.º da contestação consta: A esta solicitação respondeu a R. por carta de 17.11.2016 – vide doc. nº 12, onde não se apercebeu sequer que entretanto a A. tinha emitido nova factura que, todavia, nunca lhe enviara.
III) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. A diferente perspectiva quanto à junção do documento em causa, cremos poder resumir-se do seguinte modo: na decisão recorrida, a Ex.ma Senhora Juiz entende que o mesmo foi apresentado em sede de incidente de contradita da testemunha Ana …., enquanto a Recorrente, nas suas alegações, defende que o mesmo foi apresentado nos termos gerais do artigo 423.º, n.º 3, do CPC, sendo tempestiva a apresentação porque determinada pela ocorrência posterior que o depoimento daquela testemunha constitui, devendo de todo o modo ser oficiosamente determinada a junção.
2. A contradita encontra-se regulada entre os incidentes da inquirição de testemunhas, ou seja, incidentes típicos do decurso de produção da prova testemunhal: impugnação, contradita e acareação.
De entre estes, apenas a acareação visa directamente o conteúdo do depoimento, em suma, a verdade ou mentira das afirmações produzidas. Pelo contrário, os restantes dois são-lhe alheios: a impugnação visa obstar a que a testemunha preste depoimento[1] e funda-se em qualquer uma das razões pelas quais o mesmo depoimento poderia ter sido recusado pelo juiz, enquanto a contradita  é o incidente desencadeado pela parte contrária (à que ofereceu a testemunha) com o fim de, partindo de circunstâncias exteriores ao depoimento abalar a credibilidade dela[2] (nosso sublinhado).
Abalar a credibilidade, colocando em causa a razão de ciência invocada ou o crédito que o depoimento merece, com fundamento em razões que afectam características de relação, carácter ou interesse da pessoa da testemunha.
Por isso que o incidente [da contradita] pode atacar a pessoa do depoente – a sua fé ou credibilidade – ou a razão de ciência por ele invocada, mas não o depoimento em si mesmo (com o fundamento, p. ex., de ser notoriamente falso ou fantasiado um dos factos referidos pelo depoente)[3] (nosso sublinhado).
A questão é pacífica na doutrina e tem sido afirmada pela jurisprudência, muitas vezes em casos similares àquele que agora nos ocupa.
Para além dos Autores citados, a sempre esclarecida lição de Alberto dos Reis refere[4]: pretende-se, pois, com este incidente fornecer ao julgador determinados elementos que o ponham de sobreaviso na apreciação da força probatória do depoimento. A alegação de quem contradita a testemunha é esta; a testemunha não merece crédito por tais e tais razões; ou então, nos casos menos graves: a força probatória do depoimento deve considerar-se diminuída e prejudicada por tais e tais razões.
Estas razões, que indicam desmerecer crédito o depoimento, não assentam na demonstração de que o mesmo não corresponde à verdade, mas antes de que quem o presta se encontra numa situação que infirma a sua ciência ou imparcialidade/isenção.
Assim o tem entendido a jurisprudência, sem discrepâncias, limitando-nos a referir os mais recentes arestos desta Relação e Secção[5]. Assim, os acórdãos de 6 de Dezembro de 2017, proferido no processo 3410-12.7TCLRS-A.L1-6 (Cristina Neves) e de 8 de Fevereiro de 2018, proferido no processo 207/14.3TVLSB-B.L1-6 (António Santos).
3. Do que vem de dizer-se, cremos resultar claro, como as palavras dos Autores citados, que a fundamentação apresentada para a apresentação do documento não deve ser qualificada como integrando dedução de incidente de contradita, soçobrando a motivação que, com esse fundamento, recusou a sua junção aos autos.
Na verdade, a Autora afirma sempre que com o documento pretende aduzir prova de facto contrário ao afirmado pela testemunha, que o mesmo é dizer, pretende atacar o conteúdo do mesmo depoimento. A matéria não é de contradita, não assistindo razão quanto a tal à decisão recorrida, com o devido respeito à apreciação que nela foi feita.
4. A qualificação da apresentação do documento como dedução do incidente de contradita, obstou a que fosse apreciada em primeira instância a admissibilidade do documento em si mesmo, prejudicada que foi pela decisão de não verificação dos pressupostos da contradita. Nestas circunstâncias, cabe ao Tribunal da Relação, dispondo dos elementos a tal necessários, analisar da admissibilidade do documento apresentado.
A admissibilidade do documento implica que (i) ele seja pertinente e (ii) a sua apresentação tempestiva.
5. A pertinência de um documento resulta da sua aptidão para demonstrar ou infirmar factos de que o Tribunal deva conhecer para decidir a causa. Em suma, da sua aptidão para fazer prova ou contra-prova de algum daqueles factos.
A pertinência é em consequência relativa à causa, devendo ser analisada no seu contexto, melhor, no contexto da sua instrução que tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova – artigo 410.º, do CPC.
O documento, qualquer meio de prova, é pertinente, quando entre ele e os factos a provar possa ser estabelecida a relação funcional indicada no artigo 341.º do Código Civil – as provas têm por função a prova da realidade dos factos.
Relação esta que é de conteúdo e não de valor probatório, o qual - em si mesmo ou concatenado com a restante prova -, é apreciado em momento ulterior, o previsto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC.
6. Importa ainda ter em atenção que a relação pode ser estabelecida com qualquer facto integrando os temas da prova enunciados ou, os factos necessitados de prova. Ao assim delimitar o objecto da instrução, o artigo 410.º integra todos os factos que ao juiz incumba conhecer, o que impõe a consideração do disposto no artigo 5.º do CPC: factos essenciais que constituem a causa de pedir ou as excepções opostas, factos instrumentais que resultem da discussão da causa e factos que resultem da instrução e que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado.
Em suma, se o documento apresentado tem relação com estes factos, não é impertinente nos autos de modo a que por tal fosse de excluir a sua admissão.
No caso o documento tem relação com a matéria em apreciação nos autos, pelo que não é impertinente.
7. Importa apreciar do requisito cumulativo da tempestividade da apresentação.
É sabido que o novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, institui um regime mais restritivo quanto à tempestividade da apresentação de documentos. Essa restrição implica a impossibilidade de apresentação de documentos a partir dos vinte dias anteriores à audiência final. Recorde-se que o regime resultante dos anteriores artigos 523.º e 524.º, do CPCivil, permitia a apresentação de documentos até ao encerramento da discussão da causa com a sanção de multa se a parte não provasse impossibilidade de apresentação com o articulado, ou em qualquer estado do processo quando a apresentação se tivesse tornado necessária por ocorrência posterior.
Nos termos do artigo 423.º e 425.º, do CPC, actualmente, a apresentação de documentos em primeira instância pode ocorrer em três momentos distintos:
1.º com o articulado em que sejam alegados os factos correspondentes.
2.º até 20 dias antes da audiência final.
3.º até ao encerramento da discussão quando a apresentação:
- não tenha sido possível até àquele momento; ou
- se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
O documento foi apresentado depois de iniciada a audiência de julgamento e foi-o com a invocação de verificação de ocorrência posterior constituída pelo depoimento da testemunha Ana …, referindo que a testemunha havia afirmado que vira o e-factura da Ré, aqui Apelada, e que dele não constava a referida factura, assim aportando ao acervo probatório disponível ao Tribunal a quo um atestado de não disponibilização dessa factura, que necessitava de ser contrabalançado por um documento que o infirmasse, em prol da descoberta da verdade material.
A lei não indica o que possa considerar-se como ocorrência posterior. Mas a ocorrência posterior não pode decorrer de mero depoimento da testemunha que se refira a factos já alegados nos autos.
Quando o facto em causa tenha já sido trazido ao processo pelos diversos articulados possíveis, será com a junção do articulado de alegação que o documento deve ser apresentado ou, com multa, até 20 dias antes da data da audiência final, como decorre do artigo 423.º, n.º 1 e 2, do CPCivil. Quando não, seriam inúteis estes preceitos pois sempre poderia dizer-se que, referindo-se a testemunha a um facto essencial alegado nos articulados, as partes estariam autorizadas a apresentar documentos sobre esses factos no decurso da audiência, frustrando o propósito disciplinador da norma do artigo 423.º, do CPCivil, que s etornatia letra morta.
Encontramos aqui uma delimitação de âmbito do que possa entender-se por necessidade em virtude de ocorrência posterior: não constitui ocorrência posterior justificativa a mera afirmação pela testemunha de facto já alegado no processo.
Por exemplo, ad absurdum, estando o réu obrigado a provar o pagamento de uma dívida que alegou ter efectuado, não constitui ocorrência posterior justificativa de apresentação do recibo de quitação a afirmação por uma testemunha de que a dívida nunca fora paga.
O depoimento, ou parte de depoimento, apto a constituir ocorrência posterior justificativa de apresentação de documento, fora dos tempos legalmente previstos, terá de ser aquele que afirma um facto novo de que o juiz pode conhecer. Como os factos essenciais têm de constar necessariamente de articulado ordinário ou extraordinário, poderá concluir-se que este facto novo será de natureza instrumental, complementar ou concretizadora.
Quanto aos factos (não alegados) que sejam complemento ou concretização dos que as partes alegaram e resultem da instrução da causa, a sua consideração pelo juiz implica o contraditório pleno - refutação e prova – nos termos do artigo  5.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
Assim sendo, a introdução de um facto com tal natureza em sede de depoimento de uma testemunha, sempre autorizaria, por esta norma, a produção de prova, v.g. documental, em momento ulterior aos previstos no artigo 523.º, n.º 1 e 2, do CPC. A excepção da IIª parte do artigo 423.º, n.º 3, do CPC, é meramente concretizadora daquele princípio no que à prova documental concerne.
Os factos instrumentais, indiciários ou probatórios, serão assim o campo natural de aplicação da norma da IIª parte do artigo 423.º, n.º 3, do CPC.
Factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção[6].
Conclui-se assim que o depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária a apresentação de um documento fora dos momentos previstos no artigo 423.º, n.º 1 e 2, do CPCivil, desde que no seu depoimento invoque factos que sejam novos no processo e não possam ser qualificados como factos essenciais[7].
A este respeito, o Acórdão de 25 de Setembro de 2018 desta Relação, proferido no processo 744/11.1TBFUN-D.L1-1 (Rijo Ferreira), no que se refere à necessidade de assegurar o direito a um processo equitativo e justo na interpretação da norma restritiva do artigo 423.º, n.º 3, do CPC. Lê-se nele:
Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a garantia de processo equitativo (‘fair trial’) coloca o tribunal sob o dever de levar a cabo um exame aprofundado dos pedidos, fundamentos e provas aduzidos pelas partes; e se se reconhece uma larga margem de apreciação aos legisladores e tribunais nacionais para estabelecerem as regras de admissibilidade e apreciação das provas, não se deixa de afirmar que as restrições à apresentação de provas não podem ser arbitrárias ou desproporcionadas, antes têm de ser consistentes com a exigência de julgamento equitativo e que sempre se deve exigir que o procedimento na sua globalidade, incluindo os aspectos relativos à admissibilidade das provas, seja equitativo. E nesse sentido haverá de interpretar-se, também, o disposto no art. 20º, nº 4, da Constituição da República por força do disposto no art.º 16º, nº 2, do mesmo diploma.
(…) Omisssis
Tratando-se as apontadas circunstâncias de excepções à regra da proibição de apresentação de documentos, sendo por conseguinte constitutivas da possibilidade dessa apresentação, têm as mesmas de ser alegadas e demonstradas pela parte que requer a junção do documento depois de ultrapassado aquele limite temporal.
A impossibilidade da prévia apresentação haverá de ser apreciada segundo critérios objectivos e de acordo com padrões de normal diligência, que será aquela para que aponta o art.º 487º do CCiv – a diligência de um bom de família em face das circunstâncias do caso.
Já a junção ter-se tornado necessária em virtude de ocorrência posterior se afigura de mais problemática definição, designadamente por ser susceptível de abranger plúrimas e diversificadas situações.
De qualquer forma essa circunstância é integrada por um elemento factual bem definido: a necessidade de apresentação deve surgir de uma circunstância posterior, ou seja, de uma circunstância que ocorra depois do vigésimo dia anterior à audiência final. O normativo em causa não é susceptível de aplicação se a necessidade de apresentação do documento já se verificava anteriormente àquela data.
(…) Omissis
A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa (relativamente a alterações factuais exteriores ao processo a forma adequada de as tornar relevantes é a dedução de articulado superveniente, não se levantando aí qualquer problemática quanto à possibilidade de com esse articulado se apresentarem os correspondentes documentos). E nesse conspecto haverá de ter em conta o regime legal relativamente ao apuramento dos factos relevantes.
9. Deste modo se alcança o objectivo disciplinador da audiência e do prolongamento dos julgamentos, confessadamente assumido como razão de ser do regime restritivo introduzido[8], sem postergar as garantias de acesso ao direito mediante a imposição de ónus ou restrições e sem ofensa do princípio da proporcionalidade:
(…) as exigências formais não podem impossibilitar ou dificultar, de modo excessivo ou intolerável, a actuação procedimental facultada ou imposta às partes.
(…) As exigências de simplificação e celeridade – assentes na necessidade de dirimição do litígio em tempo útil – terão, pois, necessariamente que implicar um delicado balanceamento ou ponderação de interesses por parte do legislador infraconstitucional – podendo nelas fundadamente basear-se o estabelecimento de certos efeitos cominatórios ou preclusivos para as partes (…), sem, todavia, aniquilar ou restringir desproporcionadamente o núcleo fundamental do direito de acesso à justiça e os princípios e garantias de um processo equitativo e contraditório que lhe estão subjacentes, como instrumentos indispensáveis à obtenção de uma decisão jurisdicional – não apenas célere – mas também justa, adequada e ponderada[9].
10. Este o enquadramento jurídico a aplicar na apreciação do caso concreto, no qual importa analisar, confrontando-os, o depoimento da testemunha Ana …. e o documento apresentado face ao facto em causa e justificação, a fim de avaliar se aquele depoimento trouxe aos autos facto novo de que o juiz possa conhecer.
A matéria referida em sede de fundamentação de facto é transparente quanto a esta questão. O facto afirmado pela testemunha foi o de que a factura não foi recebida pela Ré do que seja do seu conhecimento. Fundou o que afirma em não constar do registo de correio e em ter sido chamada pela Ré a ver o e-factura e não ter visto a factura em causa.
Isto não são factos, são afirmações contrárias aos factos que constam dos articulados como resulta da parte deles que se transcreveu.
Inexiste por isso ocorrência posterior justificativa da apresentação, pelo que, por outras razões, concluímos como a primeira instância pela intempestividade da apresentação e inadmissibilidade da junção do documento.
11. Em sede de recurso a Autora veio colocar a questão de o documento dever ter sido objecto de intervenção oficiosa do tribunal quanto à sua junção dada a sua pertinência.
No seu requerimento de 11 de Março de 2019 não colocou essa questão que é questão nova colocada em sede de recurso.
Ora, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões de  instâncias inferiores devidamente impugnadas mas não a colocar questões novas antes não apreciadas - artigo 627.º, n.º 1, do CPC.

IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida, embora por diversas razões.
Custas pela Recorrente – artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC.
Lisboa, 26 de Setembro de 2019

Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen da Silva
Cristina Neves

[1] Cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985, p. 626.
[2] Idem p. 627.
[3] Ibidem p. 627
[4] Cf. Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, IV, Coimbra, 1987, p.454.
[5] A jurisprudência citada tem como fonte as Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ.
[6] (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Setembro de 2003, proferido no processo 03B1987 (Santos Bernardino) ou, ainda, de 1 de Abril de 2019 proferido no processo 8531/14.9T8LSB.L1.S1 (Rosa Tching), Conselheiro Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, II, Almedina 1997, 135, Paula Costa e Silva, Saneamento e Condensação no novo Processo Civil: a fase da audiência preliminar in Aspectos do novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, 135
[7] À novidade destes sempre obstaria o regime de ineptidão ou insuficiência do articulado justificativas de anterior intervenção do juiz
[8] Vejam-se os Considerandos da Proposta de Lei 113/XII
[9] Conselheiro Lopes do Rego p. 835 e 855 Os Princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa Coimbra Editora, 2003-2005, vol. 1.