Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
348/16.2GGSNT.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
PRINCÍPIO DE INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – O crime de desobediência pressupõe a existência de uma ordem ou mandado formal e substancialmente legítimos, constituindo este um dos elementos objectivos do crime.
II – Num caso da previsão da al. b) do n.º 1 do art. 348.º do CPP, em que se verificava o circunstancialismo a que alude o n.º 1 do art. 250.º do CPP, in casu, ser o arguido suspeito de um crime, a ordem de identificação que lhe foi dada pela autoridade policial era legítima e dimanou de autoridade com competência para a sua emissão.
III – Mas se perante a recusa do arguido em se identificar a autoridade policial efectuou de imediato a cominação do crime de desobediência, sem antes desenvolver qualquer dos procedimentos legais previstos no art. 250.º do CPP para ultrapassar tal situação – que acabou por ser resolvida, já depois daquela cominação, precisamente com recurso ao mecanismo previsto no n.º 6 daquele preceito, que se mostrou idóneo a produzir o resultado pretendido – a ordem com a cominação do crime de desobediência não era necessária, carecendo, assim, para efeitos do preenchimento do tipo incriminador, de validade substancial à luz do princípio de intervenção mínima do direito penal, ou da necessidade da pena (art. 18.º, n.º 2, da CRP), pelo que a sua inobservância não constitui crime de desobediência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra – Juiz 2, após julgamento, no âmbito do Processo Comum Singular n.º 348/16.2GGSNT, foi o arguido MM, filho de AA e de BB, natural de ………… Sintra, nascido a ………., ……., ………, residente na Rua ………………. MM…….., absolvido da prática do crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348.º, n.ºs 1 e 2, do CP, com referência ao art. 10.º, n.º 3, da Lei n.º 63/2007 (Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana), que lhe vinha imputado.
2. Inconformado com esta decisão, interpôs o Ministério Público o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1 - Tribunal a quo absolveu o arguido da prática do crime que lhe vinha imputado, considerando, por um lado, que não foi feita prova da efectiva intenção do mesmo, se desobedecer à ordem, se qualquer outra; e, por outro lado, que os factos imputados ao referido arguido não se subsumem no crime de desobediência, p. e p. no art. 348º do Código Penal.
2 - Impugna-se a matéria de facto, pois existe erro de julgamento quanto à totalidade dos factos dados como não provados, uma vez que a prova produzida impõe que os mesmos se dêem como assentes, pois que resultou incontroverso que o arguido agiu com o propósito firmado de se furtar à ordem de identificação, que sabia legítima, porque emitida de autoridade com competência para tal, apesar de saber que, com tal conduta, incorreria na prática de um crime de desobediência.
3 - O Tribunal a quo devia ter considerado assente, desde logo, que o arguido agiu com a intenção de não se identificar, pois, apesar de ter sido advertido, reiteradamente, para o fazer, e advertido das consequências do não acatamento da ordem, não se identificou.
4 - O arguido percebeu a ordem de identificação emitida pelo militar da GNR e estava em condições de se identificar, preferindo não o fazer, o que evidencia a sua efectiva intenção - ficheiro 20180426094148_3901943_2871310.wm a - 8:40: “...documentos, eu tenho sempre, tenho sempre os documentos, não sei doutora, deu-me para ali...deu-me para ali, para não...”.
5 - O militar da GNR solicitou, por diversas vezes, ao arguido, que se identificasse, sendo que este último tinha perfeita consciência do que lhe era exigido e da obrigação de se identificar, o que recusou fazer.
ficheiro: 20180426095326_3901943_2871310.wm a
4:50:
MP: - O arguido, a pessoa que tem imediatamente atrás de si, recusou identificar-se?
Testemunha (T): - Sim, sim. Tanto no local como no posto.
MP: - E o senhor deu-lhe conta...das eventuais consequências caso mantivesse essa mesma recusa?
T: - Foi-lhe explicado logo no local. Que se não procedesse à identificação, à identificação pedida por nós, que incorria no crime de desobediência. Nunca deu qualquer tipo de identificação.
6 - A conjugação destes elementos de prova, apreciados à luz das regras da experiência, impõe que se conclua, sem margem para quaisquer dúvidas, que a efectiva intenção do arguido foi sempre a de desobedecer a uma ordem, que sabia legítima, porque emitida por autoridade com competência para tal, bem como que o mesmo sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7 – Ao absolver o arguido, a sentença recorrida fez uma errada qualificação jurídico-penal dos factos, violando, designadamente, as disposições conjugadas dos arts. 348º, n.ºs 1, al. b) e 2, do C.P., e 10º e 14º, n.º 2, da Lei n.º 63/2007, de 6 de Novembro.
8 - Nos termos do disposto no n.º 1, do art. 250º, do C.P.P., os O.P.C. podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial e sempre que sob ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes.
9 – A recusa do identificando configura, pois, o crime de desobediência qualificada.
Termos em que, deverá ser concedido provimento ao recurso e consequentemente, ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do mencionado crime.
Porém, Vossas Excelências melhor decidirão, fazendo, como sempre, a costumada JUSTIÇA!»
3. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 111 dos autos.
4. O arguido não apresentou resposta ao recurso.
5. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer, conforme consta de fls. 119, sufragando a posição assumida pelo Ministério Público na 1.ª instância e pronunciando-se pela procedência do recurso.
6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.
7. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (arts. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (arts. 403.º e 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
In casu, o recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, em cuja apreciação considera ter ocorrido erro de julgamento e que pretende ver alterada por forma a sustentar a condenação do arguido pela prática do crime de desobediência qualificada que lhe vinha imputado.
Discorda, por outro lado, da qualificação jurídico-penal dos factos efectuada pelo Tribunal recorrido.
*
2. Da decisão recorrida
Previamente à apreciação da questão suscitada pelo recorrente, vejamos qual a fundamentação de facto que consta da sentença recorrida.
«FACTOS PROVADOS
1. No dia 29/08/2016, pelas 18 horas e 10 minutos, o arguido encontrava-se na Rua da Igreja, n.° 41, em Almargem do Bispo, área da competência desta comarca.
2. Àquele local acorreu o Guarda Principal EE, uma vez que havia a informação que o arguido era suspeito da prática de factos que poderiam consubstanciar a prática de crime.
3. O militar da GNR solicitou então a identificação do arguido, o qual recusou.
4. Nessa sequência, o militar da GNR transmitiu, ainda naquele local, que caso o arguido não apresentasse a sua identificação poderia ser detido, pela prática de um crime de desobediência.
5. O arguido negou mais uma vez fornecer a sua identificação.
Outros factos com relevo para a decisão da causa:
6. O arguido aufere cerca de € 580/700.
7. Vive com a esposa, a qual se encontra desempregada e inscrita no Fundo de Desemprego.
8. Vive em casa arrendada, suportando renda mensal de cerca de € 350.
9. Tem o 4.° ano de escolaridade.
10. O arguido já sofreu as seguintes condenações:
a) Por sentença do 1.° Juízo Criminal de Sintra, de 18/02/2008, transitada em julgado a 10/03/2008, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a 17/02/2008, na pena de 100 dias de multa e 4 meses e 10 dias de pena acessória de proibição de conduzir, declaradas extintas, por prescrição, a 16/11/2014 e por cumprimento, a 21/11/2008, respectivamente (boletins ns.° 1, 4 e 5);
b) Por sentença do Juízo de Pequena Instância Criminal de Sintra – Juiz 2, de 06/01/2012, transitada em julgado a 26/01/2012, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a 15/12/2011, na pena de 3 meses de prisão, substituída por 90 horas de trabalho a favor da comunidade e sujeição a tratamento médico e 15 meses de pena acessória de proibição de conduzir, declaradas extintas, por cumprimento, a 29/01/2014 e 06/06/2013, respectivamente (boletins ns.° 2 e 3);
c) Por sentença do 2.° Juízo Criminal de Sintra, de 26/02/2009, transitada em julgado a 18/03/2009, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a 02/02/2009, na pena de 120 dias de multa e 12 meses de pena acessória de proibição de conduzir, declaradas extintas, por pagamento e cumprimento, respectivamente, a 06/05/2011 (boletins ns.° 6 e 7).
FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provou nomeadamente que:
a) No circunstancialismo referido em 1. a 5., dos factos provados, o arguido agisse de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito alcançado de subtrair-se ao cumprimento de tal ordem de exibição de identificação, em total desrespeito pelo teor dessa mesma ordem.
b) O arguido tivesse agido com o propósito de desobedecer à ordem regular e repetidamente comunicada pelo militar da GNR, apesar de ter percebido o sentido e o alcance da mesma ordem, que sabia ser legítima e da advertência de que o seu não acatamento implicaria a prática de um crime de desobediência.
c) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
Para responder à matéria de facto, o Tribunal atendeu ao apurado em sede de audiência de julgamento, analisando global e criticamente, segundo as regras da experiência e da livre convicção do Tribunal, nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal.
Atendeu-se igualmente aos documentos constantes dos autos, nomeadamente, auto de notícia e CRC.
O arguido não negou os factos imputados, referindo apenas que tudo o que sabe sobre o que se passou nesse dia, lhe foi transmitido por terceiros, nomeadamente, a esposa, atento o estado em que se encontrava – embriagado - pelo que, na presente data apresentou um pedido de desculpas ao militar que lhe foi indicado por aquela. Respondeu ainda, confrontado que foi com as condenações averbadas, já ter sido sujeito a tratamento quanto à sua dependência do álcool, na Casa de Saúde do Telhal. Igualmente referiu, questionado quanto a tal, que teria o seu documento de identificação em casa, por certo, posto que é lá que sempre o tem, justificando a sua actuação com a expressão "deu-lhe para ali".
Ouvida a testemunha EE, agente autuante, confirmou o auto de notícia elaborado, em depoimento espontâneo, ainda que sem precisão quanto a data. Igualmente referiu, questionado que foi, que se deslocaram ao local por factos relacionados com notícia de crime de violência doméstica e que a esposa do arguido se encontrava presente e não se lembrou de pedir à mesma para o identificar, razão pela qual, negando aquele identificar-se foi cominado com a prática do crime de desobediência. Referiu ainda que o mesmo se mostrava exaltado e, aparentemente alcoolizado, tendo sido conduzido ao Posto e pensa que identificado apenas com recurso às bases de dados da GNR (SIIOP) por já se encontrar referenciado. Questionado, esclareceu que talvez actualmente não cominasse o arguido por falta de identificação.
Ora, do confronto da prova produzida, resulta provada a factualidade assim assinalada, atenta a prova documental junta aos autos e depoimento da testemunha.
No que respeita às condições económicas, sociais e familiares do arguido, o Tribunal baseou-se nas declarações do próprio.
Atendeu-se ainda ao Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
Em relação aos factos não provados, tal resultou essencialmente da dúvida suscitada relativamente à efectiva intenção do arguido, posto que, encontrando-se o mesmo na presença da sua esposa, para além dos militares, bem como o aparente estado em que se encontrava, não permitem ao Tribunal concluir, com segurança que, não obstante a actuação e o "ter-lhe dado para ali" tenha subjacente uma efectiva decisão de desobedecer/obstar à sua identificação.
Ficou o Tribunal com a dúvida séria e inultrapassável do que na realidade terá ocorrido, dúvida que, de acordo com o princípio do in dubio pro reu (v. g. artigo 32.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa), implica a não prova dos factos sobre que recai, se forem desfavoráveis ao arguido e daí a fixação da factualidade negativa nos termos em que foi feita (neste sentido, Acórdão da Relação do Porto, de 24/05/2000, in www.dgsi.pt, proc. 9940486).
Uma nota final em relação aos mencionados factos relativos à presença da esposa no local e à possibilidade do arguido ter o documento em local acessível – casa – para referir que, em face da demais factualidade apurada/não apurada, se mostrou despicienda qualquer comunicação.»
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3. Da análise dos fundamentos do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, das questões relativas à matéria de direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.
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A discordância do recorrente prende-se, como já referimos, com a absolvição do arguido da prática do crime de desobediência qualificada que lhe vinha imputado, por considerar, em primeiro lugar, que o Tribunal recorrido errou na apreciação da prova produzida e que toda a matéria de facto dada como não provada deveria antes ter sido dada como assente, e, em consequência, sido proferida decisão condenatória.
No que respeita à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, cumpre, antes de mais, referir:
Em sede de recurso para o Tribunal da Relação, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: quer por arguição dos vícios a que faz referência o art. 410.º, n.º 2, do CPP (a chamada revista alargada), quer pela impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
No primeiro caso, os mencionados vícios decisórios têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum – sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo – visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova registada e produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
De acordo com este normativo, sempre que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve especificar:
- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
- as provas que devem ser renovadas;
A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação individualizada dos factos que constam da decisão recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
Por seu turno, a especificação das “concretas provas” corresponde à indicação do conteúdo específico de meio de prova ou de obtenção da prova, com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretende, dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. art. 430.º do CP).
E o n.º 4 do art. 412.º estabelece que «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação», acrescentando o seu n.º 6 que «no caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.»
Como se lê no Ac. do STJ de 12-06-2008, Proc. n.º 4375/07 - 3.ª[1], esta possibilidade de sindicância da matéria de facto sofre quatro tipos de limitações:
«- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.»
No caso, o recorrente indica – na motivação e nas subsequentes conclusões – os pontos da matéria de facto que, em seu entender, foram mal julgados, e refere os elementos que, também na sua perspectiva, impunham decisão diversa, a saber, as declarações do arguido/recorrido e o depoimento da testemunha inquirida, EE, aludindo a partes dessas declarações e depoimento e concretizando a sua localização nos suportes digitais da gravação da audiência de julgamento.
Irá, assim, este Tribunal conhecer da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Mas, como com clareza se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-03-2014[2], «O recurso com base no disposto no art. 431º do CPP poderá ter como fundamento:
- a atribuição, pelo tribunal recorrido, aos meios de prova convocados como suporte da decisão, de conteúdo diverso daquele que efectivamente têm ou daquele que foi realmente produzido em audiência; ou
- a violação de critérios legais de valoração e apreciação da prova incorporada nos autos ou produzida oralmente em audiência): - pela valoração de meios de prova ilegais ou nulos; - pela violação de critérios de apreciação da prova vinculada (vg. prova documental e pericial) - pela violação de princípios gerais de apreciação da prova, designadamente o princípio da livre apreciação previsto no art. 127º do CPP e o princípio in dubio pro reo.
A reprodução da gravação dos depoimentos, no tribunal de recurso, como instrumento de garantia/comprovação da genuinidade dos mesmos e da eventual divergência entre o conteúdo material do depoimento prestado em audiência e o pressuposto na decisão recorrida, apenas tem sentido no caso de, segundo a motivação do recurso, a decisão recorrida ter atribuído, aos depoimentos prestados oralmente em audiência, conteúdo/afirmações relevantes, materialmente diversas daquelas que foram efectivamente produzido em audiência. Afinal quando o fundamento do recurso é o de que a testemunha ou o depoente afirmou em audiência “coisa” materialmente diversa daquela que é reportada/valorada como suporte da decisão recorrida e que, como tal, inquinou a decisão, impondo, por isso, a sua correcção pelo tribunal de recurso. Pois que, como instrumento de reprodução, apenas permite corrigir erros de “audição” do tribunal recorrido.
Competindo ao recorrente, em tal situação, especificar as “passagens” que confirmam a apontada desconformidade entre aquilo que foi dito em audiência e aquilo que foi valorado pelo tribunal recorrido como suporte da decisão impugnada.
A gravação (como instrumento de garantia da genuinidade dos depoimentos) nada adiantará quando o fundamento do recurso radica na violação de critérios de valoração – não reproduzidos pela gravação. Pois que, pela sua natureza, a gravação apenas reproduz e comprova o teor dos depoimentos gravados. Nada adiantando para efeito de apreciação da obediência aos critérios (legais) de ponderação/avaliação/valoração da prova - que resultam da lei e dos princípios gerais de direito processual penal.»
É precisamente esse o caso dos autos, em que o recorrente não afirma que o Tribunal não tenha compreendido ou tenha subvertido o teor ou sentido das declarações e do depoimento a que alude, limitando-se a sustentar que tais elementos de prova deveriam ter conduzido a conclusão contrária àquela a que o tribunal chegou, levando-o a ter como verificados determinados factos que foram dados como não provados, assim pondo em questão a convicção formada pelo Tribunal, com base na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, da qual diverge.
Impõem-se, assim, antes de mais, algumas considerações no que respeita ao princípio da livre apreciação da prova.
«A liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e controlo. (…) A livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. (…) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto, capaz de impor-se aos outros»[3].
«Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis – como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.
A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..
A imediação vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.»[4]
Por outro lado, é um dado assente que a gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permite o controlo e a fiscalização, pelo tribunal superior, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência, mas não substitui a plenitude da comunicação que se estabelece na audiência pública com a discussão dos outros meios de prova, a oralidade e a imediação, no confronto dialéctico dos depoentes por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício permanente do contraditório[5].
Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1.ª instância naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja, quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 374.º, n.º 2 do CPP[6].
Exigindo-se a convicção do julgador sobre a prática dos factos da acusação para além da dúvida razoável e radicando o princípio in dubio pro reo na mesma dúvida razoável, este situa-se no âmago da livre apreciação da prova, constituindo como que o “fio da navalha” onde se move a missão de julgar. Convicção “para lá da dúvida razoável” e “dúvida razoável” legitimadora do princípio in dubio pro reo limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova de apreciação vinculada e da livre apreciação dos restantes em conformidade com o critério do art. 127.º do CPP, sujeitos ambos à mesma exigência de legalidade da prova e da sua apreciação motivada e crítica, da objectividade, racionalidade e razoabilidade dessa apreciação.
No mesmo sentido podem ver-se diversos autores, designadamente Rodrigues Bastos[7], que refere que ao juiz «…não é permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, mas antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se expressará na correspondente motivação», Cavaleiro de Ferreira[8], que escreve que «o julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no direito probatório», e ainda Germano Marques da Silva[9]: «O juízo sobre a valoração da prova faz-se em diversos níveis. Num primeiro dependente da imediação, nele intervindo elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo intervindo as declarações e induções que realiza o julgador a partir de factos probatórios, que hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios de experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”».
De entre abundante jurisprudência quanto a tal matéria, quer das Relações quer do Supremo Tribunal de Justiça, cita-se apenas, pela sua particular clareza, o proferido por este último Tribunal em 23-04-2009, no âmbito do Proc. n.º 114/09 - 5.ª[10]: «(…) a avaliação da decisão é a resposta, enquanto remédio jurídico, para incorrecções e ilegalidades concretamente assinaladas. Não um novo apuramento global do acontecido, ou a reapreciação do objecto do processo, porque a garantia do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, antes visando, apenas, a detecção e correcção de pontuais, concretos, e em regra excepcionais, erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da dita matéria de facto.
Quanto ao julgamento de facto pela Relação, uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova, e outra é detectar-se no processo de formação da convicção desse julgador, erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.
Ora, ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no art. 127.º do CPP, ou seja, assenta (fora das excepções relativas a prova legal que não interessam ao caso), na livre convicção do julgador e nas regras da experiência. Por outro lado, também não pode esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá, e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar, naquilo que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir.
Serve para dizer, que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado.»
À luz destas considerações analisemos, então, a ponderação conjugada e exame crítico das provas de que resultou a fixação da «verdade histórica» vertida no texto da decisão recorrida, com vista a apurar se, como o recorrente sustenta, ocorreu erro de julgamento[11], ou seja, se foram dados como não provados factos dos quais foi feita prova bastante.
Porque o erro de julgamento se reporta à matéria de facto, o mesmo analisa-se em momento anterior à produção do texto, a fim de verificar se existem ou não os dados objectivos que se apontam na motivação ou se foram violados os princípios para a aquisição desses mesmos dados.
Assim, procedeu-se à audição integral das declarações do arguido e do depoimento da testemunha EE, confrontando-os com a sentença recorrida e a prova documental junta aos autos, quanto aos factos e sua motivação, a fim de analisar as razões de discordância do recorrente.
O recorrente afirma que devia ser dada como provada toda a matéria de facto que foi elencada como não provada, integradora dos elementos subjectivos do crime de desobediência qualificada pelo qual o arguido vinha acusado.
E isto porque, segundo alega, o conjunto da prova constituído pelas declarações do próprio arguido e pelo depoimento da testemunha EE impunha que o Tribunal a quo tivesse, sem margem para dúvidas, dado como provados tais factos.
Adiantamos, desde já, que se nos afigura assistir razão ao recorrente.
Sendo inequívoco que a prova tem como função a demonstração da realidade dos factos (art. 341.º, n.º 1, C. Civil) ela não pressupõe, como vem afirmando a melhor jurisprudência que aqui se segue de perto, uma certeza absoluta, lógico-matemática, bastando que permita alcançar «um grau de certeza que as pessoas mais exigentes reclamariam para dar como verificado um certo facto» ou que permita afastar toda a dúvida razoável, não qualquer dúvida mas a dúvida fundada em razões adequadas.
E não é decisivo para se poder concluir pela realidade dos factos descritos na acusação que haja provas directas do seu cometimento pelo arguido, designadamente que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticá-los ou que o próprio arguido os assuma expressamente.
Condição necessária, mas também suficiente, é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa, dentro do que é lógico e normal, de que os factos se passaram da forma narrada na acusação.
Ou seja, dentro do quadro probatório global a apreciar existem, para além da prova directa, «os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349º do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».
Como é sabido, os elementos de facto relativos ao tipo subjectivo do crime, por serem factos de índole interna, do foro psicológico do agente, são, em regra, insusceptíveis de prova directa (a excepção é o caso de confissão integral em que o sujeito verbaliza essa sua interna vontade e intencionalidade), sendo necessário formar a convicção sobre os mesmos com base na análise dos objectivos factos praticados, à luz das regras da experiência comum, podendo ainda ser alcançado por presunções ligadas ao princípio da normalidade da vida e das coisas.
Estas presunções, como é evidente, não são presunções de culpa. Constituem, antes, parcelas de um processo de pensamento lógico de que o julgador não pode prescindir, sob pena de não ser a prova apreciada e valorada em toda a sua extensão.
Desde que os parâmetros da experiência comum (assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida) não sejam postos em causa e que, através de um raciocínio lógico e motivável, seja possível compreender a opção do julgador nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas.
No caso vertente, decorre da materialidade apurada que a testemunha, militar da GNR, foi chamada à residência do arguido e da sua companheira, por haver suspeita da prática de um crime por parte daquele, e lhe solicitou, por esse motivo, que se identificasse, o que o mesmo se recusou a fazer, conduta em que persistiu mesmo depois de aquele militar o ter advertido de que tal recusa poderia levar à sua detenção, pela prática do crime de desobediência.
E o arguido, em boa verdade, não negou esse comportamento, tendo-se limitado a afirmar não se recordar «praticamente de nada», por estar alcoolizado, lembrando-se de ter estado na esquadra e até de ter regressado a casa a pé, e de que o seu pai e a companheira lhe disseram posteriormente que teria recusado fornecer a sua identificação ao militar da GNR.
Questionado sobre o motivo pelo qual não se teria identificado, se porventura não teria consigo os documentos, respondeu «Eu os documentos tenho sempre, não sei Dra., deu-me para ali…».
Ora a solicitação de identificação por parte de uma autoridade policial é um comando manifestamente simples de entender por parte de qualquer cidadão, cuja compreensão não requer especial inteligência ou sequer atenção, não sendo crível que a circunstância de se encontrar sob a influência do álcool (mas num estado que não o impedia, por exemplo, de se deslocar pelo seu próprio pé e de se orientar no espaço) obstasse a essa compreensão por parte do arguido.
E no que respeita à consciência da ilicitude, a mesma fica implícita no próprio facto, desde que seja do conhecimento geral que ele é proibido e punível[12].
Como refere o recorrente na sua motivação de recurso, a própria expressão utilizada pelo arguido, «“deu-me para ali”, apenas demonstra que o mesmo sabia que existia um caminho correto (identificar-se), mas que, naquele dia, optou por um caminho diferente – desobedecer. Ele sabia, pois, que estava obrigado a executar a diligência ordenada (identificar-se), todavia “deu-lhe para desobedecer”, como poderia “ter-lhe dado para obedecer”.»
Em suma, decorre das próprias declarações do arguido, analisadas à luz das mais elementares regras da experiência comum e da normalidade da vida e das coisas que, apesar de em audiência de julgamento se escudar numa selectiva falta de memória, o mesmo entendeu o sentido das palavras que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, lhe foram dirigidas pela testemunha e, conscientemente, optou por não se identificar, bem sabendo que a tal estava obrigado por lei, como é do conhecimento generalizado dos cidadãos.
Não se configura como razoavelmente possível outro cenário fáctico, susceptível de gerar uma dúvida inultrapassável que pudesse justificar a convocação do princípio in dubio pro reo.
Porque essa avaliação global das provas, à luz das regras da lógica e da experiência comum, não podia ter conduzido o Tribunal a dar como não provada a matéria constante dos pontos a), b) e c) dos “Factos não Provados”, há que concluir que, nesta parte, incorreu em erro de julgamento.
Dispondo este Tribunal de poderes de intromissão na matéria de facto, nos termos da al. b) do art. 431.º do CPP, importará, em consequência, eliminar os factos dados como não provados, que passarão a integrar o elenco dos factos provados, modificando-se este em conformidade.
Uma vez alterada a factualidade assente nos termos determinados, será agora a essa luz que cabe enquadrar jurídico-criminalmente a conduta do arguido.
O recorrente discorda da qualificação jurídico-penal dos factos efectuada pelo Tribunal recorrido, começando por traçar um quadro geral sobre as medidas cautelares e de polícia, atentando, de seguida, no teor do art. 250.º do CPP, que consagra o regime de identificação de suspeitos, e no respectivo enquadramento histórico, e concluindo depois que o dever de identificação previsto nesse preceito surge logo aquando do pedido da respectiva identificação por parte do OPC, pelo que havendo recusa por parte do identificando o OPC deverá detê-lo em flagrante delito pelo crime de desobediência, uma vez que as demais formas de identificação ali constantes versam apenas sobre a identificação voluntária do suspeito.
E, depois de analisar os elementos objectivos e subjectivos do respectivo tipo legal, conclui que o recorrido incorreu na prática do crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348.º, n.ºs 1, al. b) e 2, do CP, conjugado com os arts. 10.º e 14.º, n.º 2, da Lei n.º 63/2007, de 06-11 (sendo certo que esta última norma não constava da acusação, tal como se observa na decisão recorrida), tendo o Tribunal recorrido violado esses preceitos legais ao proferir decisão absolutória.
Sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos apurados, na parte que ora importa[13], expendeu o Tribunal recorrido:
«Encontra-se o arguido acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência qualificada, previsto e punível pelo artigo 348.°, ns.° 1 e 2, do Código Penal, com referência ao artigo 10.°, n.° 3, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, (Lei n.° 63/2007, de 06/11), com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Dispõe o artigo 10.°, da referida Lei: "(...) 3 - Os militares da Guarda são considerados agentes da força pública e de autoridade quando lhes não deva ser atribuída qualidade superior. ".
Como resulta à saciedade, o normativo a que se pretendia fazer alusão na acusação era o artigo 14.°, da Lei, o qual dispõe sobre as medidas de polícia e meios de coerção, nos seguintes termos: "1 - No âmbito das suas atribuições, a Guarda utiliza as medidas de polícia legalmente previstas e nas condições e termos da Constituição e da lei de segurança interna, não podendo impor restrições ou fazer uso dos meios de coerção para além do estritamente necessário.
2 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade de polícia ou agente de autoridade da Guarda, é punido com a pena legalmente prevista para a desobediência qualjficada."
No entanto, face à factualidade apurada, entendeu-se despicienda a comunicação de qualquer alteração da qualificação jurídica, à semelhança do supra aludido em relação à comunicação de eventuais alterações não substanciais de factos.
No crime de desobediência, tal como nos demais crimes contra a autoridade pública, o bem jurídico protegido é a autonomia intencional do Estado, "de uma forma particular, a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos" (conf. MONTEIRO, Cristina Líbano; - Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 350, no mesmo sentido Acórdão da Relação do Porto de 20 de Maio de 1987, CJ, XII, tomo III, pág. 225).
São elementos objectivos do tipo, verificados no caso concreto, o não cumprimento de ordem ou mandado legítimo e, na ausência de disposição legal, a autoridade ou funcionário fizerem a correspondente cominação.
Da factualidade dada como provada, com relevo para este tipo criminal, resulta que o arguido com vista à identificação pela suspeita de prática de crime e não fornecendo a mesma, foi cominado com a prática de crime de desobediência.
A norma citada, que permite a cominação da desobediência pela autoridade, é uma "norma penal em branco", visto que parte dos elementos relevantes para o preenchimento típico resultarão de um outro local que não da própria previsão incriminadora. Concretamente, tal concretização resulta da cominação efectuada pela autoridade e pelo seu desrespeito pelo agente, a que acresce (qualifica) ter provindo de militar da GNR, nos termos do preceito supra aludido - artigo 14.°, n.° 2, da Lei Orgânica da GNR (Lei n.° 63/2007, de 06/11)
No entanto, a validade da cominação depende, antes de mais, da sua legitimidade material para o efeito e das circunstâncias concretas em que foi proferida.
Neste âmbito, importa ainda chamar à colação o princípio da intervenção mínima por que se rege o direito penal (artigo 18°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa), de acordo com o qual ao direito penal é reservada uma função residual, de última linha da política social.
Acrescem os mecanismos legais que permitem e garantem a identificação de suspeitos, previstos no artigo 250.°, do Código de Processo Penal, isto é, perante falta de identificação e/ou recusa a tal, os órgãos de polícia criminal poderão, em última linha, conduzir o suspeito ao posto policial.
Em termos jurisprudenciais (v.g. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29/05/2008 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18/09/2013) e a título meramente exemplificativo, temos que, diverso poderia ser o entendimento, caso em causa estivesse, não a prática de um crime, mas antes a prática de uma contra-ordenação, posto que, neste último caso, não se mostra possível aos agentes de autoridade socorrerem-se do disposto no aludido artigo 250.°, do Código de Processo Penal, que dispõe: "1 - Os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público  aberto ao público ou sujeito a vjgiláncia policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção. (...) 3 - O suspeito pode identificar-se mediante a apresentação de um dos seguintes documentos:
a) Bilhete de identidade ou passaporte, no caso de ser cidadão português;
b) Título de residência, bilhete de identidade, passaporte ou documento que substitua o passaporte, no caso de ser cidadão estrangeiro.
4 - Na impossibilidade de apresentação de um dos documentos referidos no número anterior, o suspeito pode identificar-se mediante a apresentação de documento original, ou cópia autenticada, que contenha o seu nome completo, a sua assinatura e a sua fotografia.
5 - Se não for portador de nenhum documento de identificação, o suspeito pode identificar-se por um dos seguintes meios:
a) Comunicação com uma pessoa que apresente os seus documentos de identificação;
b) Deslocação, acompanhado pelos órgãos de polícia criminal, ao lugar onde se encontram os seus documentos de identificação;
c) Reconhecimento da sua identidade por uma pessoa identificada nos termos do n.° 3 ou do n.° 4 que garanta a veracidade dos dados pessoais indicados pelo identificando.
6 - Na impossibilidade de identificação nos termos dos ns.° 3, 4 e 5, os órgãos de  polícia criminal podem conduzir o suspeito ao posto policial mais próximo e compeli-lo a  permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas, realizando, em caso de necessidade, provas dactiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga e convidando o identificando a indicar residência onde possa ser encontrado e receber comunicações. (...)." (sublinhado meu).
Com efeito, para além de em causa estar a suspeita da prática de um crime, igualmente resultou apurado que, conforme motivação supra – sem necessidade de qualquer comunicação, atenta a decisão final a proferir – se encontrava presente no local, nomeadamente, a esposa do arguido, que poderia tê-lo identificado, sendo assim desnecessária a cominação efectuada, porquanto não podendo ser impostas restrições ou fazer uso dos meios de coerção para além do estritamente necessário, in casu, para identificar o referido suspeito e uma vez que, nos termos do aludido artigo 250.°, n.° 5, alínea c), do Código de Processo Penal, tal identificação se mostrava possível de obter, sem recurso a qualquer cominação – como acabou por suceder, não obstante a condução ao Posto.
Deste modo e à luz do que se deixou dito, entendo que existindo mecanismos legais para assegurar determinado efeito, não poderá a norma penal ínsita no artigo 348.°, do Código Penal ser utilizada, aliás, conforme resulta do n.° 1, do artigo 14.°, da referida Lei Orgânica, quando dispõe que no âmbito das suas atribuições, a Guarda utiliza as medidas de polícia legalmente previstas e nas condições e termos da Constituição e da lei de segurança interna, não podendo impor restrições ou fazer uso dos meios de coerção para além do estritamente necessário.
Pelo exposto, entendo não estarmos perante factos subsumíveis a um crime de desobediência, nos termos imputados.»
Adiantamos desde já que subscrevemos, no essencial, a apreciação levada a cabo pelo Tribunal recorrido.
Na verdade, apesar do esforço argumentativo do recorrente, não acompanhamos o seu entendimento de que havendo recusa por parte do identificando aquando do pedido da respectiva identificação por parte do OPC, deverá ser de imediato detido «em flagrante delito pelo crime de desobediência», uma vez que as demais formas de identificação ali constantes versam apenas sobre a identificação voluntária do suspeito.
Vejamos porquê.
Como explica Lopes da Mota[14], o crime de desobediência p. e p. pelo art. 348.º do CP tem como elementos objectivos do tipo (a) a existência de ordem ou mandado de autoridade ou funcionário, na acepção do art. 386.º do CP, impondo uma determinada conduta, um dever de acção ou omissão; (b) a sua legalidade material e formal; (c) a competência de quem a emite; (d) a comunicação regular da ordem ao destinatário; e (e) incumprimento da ordem ou mandado.
Este tipo legal exige ainda que o dever de obediência incumprido radique numa disposição legal que comine, no caso, a sua punição (al. a) do seu n.º 1) ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou funcionário a que se refere a al. b) daquele n.º 1, sendo que esta consideração da cominação pela autoridade ou funcionário como elementos do tipo (e não meras condições de punibilidade), é actualmente generalizadamente aceite (tendo sido reafirmada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2013[15]).
O que significa que a cominação de que a desobediência à ordem emitida é punida com a pena prevista para o crime de desobediência é necessária para o preenchimento do tipo objectivo do crime e, concomitantemente, deve ser abarcada pelo dolo do agente, mas não que toda a ordem emitida com esta cominação por autoridade ou funcionário implique necessariamente o preenchimento do tipo.
A ordem deve ser abrangida pela competência da autoridade ou funcionário que a emite e deve ser legítima, o que implica que a ordem ou mandado deve ser formal e materialmente legal, mas também, em princípio, que o legislador não tenha previsto em termos normativos as consequências da conduta inadimplente e que no contexto em que é proferida a ordem, o seu incumprimento atinja a dignidade penal e necessidade de pena pressupostas no art. 348.º do C P.
Sem estas, pode a ordem mostrar-se funcionalmente adequada, nada obstando, portanto, à sua emissão e ao seu acatamento pelo destinatário do ponto de vista da prossecução do interesse público subjacente, mas o seu incumprimento não fará incorrer na prática do crime de desobediência p. e p. pela al. b) do n.º 1 do art. 348.º do CP.
Conforme se refere no mencionado AFJ, «O respeito pelo princípio da legalidade, na vertente nullum crimen sine lege certa, ou uma razoável determinação da conduta ao nível da tipicidade, ou ainda o “tipo de garantia”, reclamam um conjunto de exigências que a doutrina e jurisprudência têm feito, para que, no fundo, e como diz Figueiredo Dias, “a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos.”[31][16]
Acresce que o princípio de intervenção mínima do direito penal, ou da necessidade da pena, que se extrai do n.º 2 do art. 18.º da CR (supra 4.1.1.), e portanto da proporcionalidade entre a danosidade social da conduta e a reação, tudo isto aponta, no caso do art. 348.º, para uma tarefa interpretativa em que se tenha muito presente a conformidade à CR.
A aferição do respeito pelo princípio da necessidade da pena parece ficar transferida, com a existência de uma cominação consagrada numa outra disposição legal, por razões de política criminal, para essa outra disposição legal (al. a) do n.º 1 do art, 348.º). É portanto em face da norma cominadora, que se deverá aferir da conformidade constitucional da previsão, em matéria de necessidade da pena e de legalidade[32].[17]
No caso de uma cominação ad hoc, nos termos da al. b), do n.º 1 do preceito em foco, a subsidiariedade de que atrás se falou (supra 4.1.) resulta explicitamente da lei, no sentido de que se exige a “ausência de disposição legal”, acrescentaremos nós, cominadora [33][18].
A cominação resulta de um ato de vontade individual e não normativo, pelo que só a análise de todo o circunstancialismo que rodeou a emanação da ordem poderá assegurar a conformidade com a CR da necessidade de criminalização da conduta. [34][19]
Ora, o único critério prestável para aferir dessa conformidade acaba por ser um critério fundamentalmente negativo: sempre que o legislador tenha previsto em termos normativos as consequências daquela mesma conduta, designadamente ao nível sancionatório (contraordenacional, disciplinar ou processual), deverá presumir-se, numa primeira abordagem, que rejeitou a criminalização do comportamento, e não deverá ser, pois, a autoridade ou o funcionário a substituir-se ao legislador.
No entanto, não está vedado que seja feita a cominação ad hoc do crime de desobediência, se a autoridade donde emana a ordem considerar, que a consequência prevista na lei pelo legislador, se mostra manifestamente ineficaz, face às circunstâncias do caso.
“Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos mais adequados” (art. 9.º n.º 3 do Código Civil).
Entendemos, pois, que só a ausência completa de qualquer expediente compulsivo previsto numa disposição legal, destinado a evitar as consequências perniciosas do comportamento desobediente [35][20], ou a previsão na lei de uma consequência, que se mostre na prática claramente insuficiente, autorizará a cominação ad hoc.
Resta acrescentar que, nesses casos, tais consequências terão que ter uma gravidade compatível com a criminalização, em homenagem ao princípio da proporcionalidade.
No fundo, terá sido o próprio legislador que reconheceu a eventualidade de se detetarem vazios legislativos perniciosos e introduziu, com a cominação ad hoc, uma válvula de segurança a esse nível. [36][21]»
No caso a que se reportam os autos, em que está em causa a identificação de determinada pessoa, suspeita da prática de um crime, perante um órgão de polícia criminal, militar da GNR, prevê a lei processual penal, no seu art. 250.º, um mecanismo de identificação através de documentos; na impossibilidade desta, a identificação através de um terceiro, devidamente identificado, que garanta a veracidade da identidade do suspeito, ou pela comunicação do identificando com pessoa da sua confiança que apresente os meios de identificação do suspeito, ou ainda pelo acompanhamento do identificando ao lugar onde se encontrem os seus documentos de identificação. E, esgotados todos estes procedimentos compulsórios, os OPC podem conduzir o suspeito ao posto policial mais próximo e compeli-lo a ali permanecer pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a 6 horas, de acordo com o n.º 6 do art. 250.º do CPP, podendo durante essa permanência ser realizadas provas dactiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga, com vista à identificação do suspeito.
Perante tal previsão legal, entendem alguns autores que não se configura, de todo, a possibilidade de verificação de um crime de desobediência no caso de recusa de identificação do suspeito perante um OPC[22], justificando essa recusa apenas que «se possa coercitivamente, levar o suspeito a ser sujeito a todas as diligências necessárias à sua identificação.»
Mas mesmo para quem entenda que tal recusa pode constituir crime de desobediência, tal só sucederá se a ordem com a cominação de desobediência for (também) material ou substancialmente legítima, sendo condição dessa legitimidade o prévio esgotamento dos meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil dessa mesma ordem, ou seja, a identificação do suspeito.
É este, salvo melhor opinião, o sentido em que se pronuncia o Parecer n.º 13/96 do Conselho Consultivo da PGR[23] (e vem reafirmado no Parecer n.º 28/2008[24]), quando, depois de aludir ao procedimento compulsório previsto na lei processual penal e na Lei n.º 5/95, de 21-02, refere: «Enquanto a autoridade puder lançar mão do meio compulsório referido, ele surge como substituto de uma reacção criminal por desobediência. No entanto, tal não impede, a nosso ver, que esgotados sem êxito os meios compulsórios referidos e reiterada a ordem de identificação, o indivíduo renitente não venha a cometer o crime de desobediência.»
Em suma, o crime de desobediência pressupõe a existência de uma ordem ou mandado formal e substancialmente legítimos, constituindo este um dos elementos objectivos do crime.
No caso sub judice, da previsão da al. b) do n.º 1 do art. 348.º do CPP, a ordem de identificação dada ao arguido pela autoridade policial era legítima, por se verificar o circunstancialismo a que alude o n.º 1 do art. 250.º do CPP, in casu, ser o arguido suspeito de um crime, e dimanou de autoridade com competência para a sua emissão.
Mas, perante a recusa do arguido em se identificar a autoridade policial efectuou de imediato a cominação do crime de desobediência, sem antes desenvolver qualquer dos procedimentos legais previstos no art. 250.º do CPP para ultrapassar tal situação, que acabou por ser resolvida, já depois daquela cominação, precisamente com recurso ao mecanismo previsto no n.º 6 daquele preceito, que se mostrou idóneo a produzir o resultado pretendido.
A ordem com a cominação do crime de desobediência não era necessária, carecendo, assim, para efeitos do preenchimento do tipo incriminador, de validade substancial à luz do princípio de intervenção mínima do direito penal, ou da necessidade da pena (art. 18.º, n.º 2, da CRP), pelo que a sua inobservância não constitui crime de desobediência.
Assim, apesar da alteração acima introduzida na matéria de facto provada, na parte relativa aos elementos subjectivos do ilícito, porque não se mostram verificados os respectivos elementos objectivos a decisão absolutória terá de manter-se, improcedendo o recurso.
*
III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em
a) eliminar do elenco dos “Factos não provados” os seus pontos a), b) e c), que passarão a constar do elenco dos “Factos Provados”»;
b) negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem tributação.
Notifique.
*
(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
*
Lisboa, 21 de Maio de 2020
Cristina Branco
Filipa Costa Lourenço
_______________________________________________________
[1] In www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[2] Proferido no Proc. n.º 811/12.4JACBR.C1, in www.dgsi.pt.
[3] Cf. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, vol. I, pág. 202.
[4] Cf. Ac. do TC n.º 198/2004, de 24-03-2004, in www.tribunalconstitucional.pt.
[5] Cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, págs. 233-234.
[6] Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, págs. 126-127, que, por sua vez, cita o Prof. Figueiredo Dias.
[7] In Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 221.
[8] In Curso de Processo Penal, vol. I, Reimpressão da Universidade Católica.
[9] In Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, págs. 126-127.
[10] In www.dgsi.pt.
[11] «O erro de julgamento existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem que ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP», lê-se no Acórdão do STJ de 12-03-2009, Proc. n.º 3781/08 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[12] Cf. o Acórdão do STJ de 14-10-1992, proferido no Proc. n.º 42.918, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Relação de Guimarães de 22-11-2004, Proc. n.º 1121/04-1, in www.dgsi.pt.
[13] O Tribunal recorrido debruçou-se também sobre a questão da não verificação dos elementos subjectivos do tipo legal de crime em causa, excerto da decisão que se torna despiciendo transcrever, dada a alteração acima introduzida na matéria de facto provada.
[14] In Crimes Contra a Autoridade Pública, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, II, Lisboa 1998, págs. 428-429.
[15] Proferido pelo STJ em 21-12-2012 no Proc. n.º 146/11.0GCGMR-A.G1-A.S1, in www.dre.pt e www.dgsi.pt.
[16] 31 In op. cit. na nota 18, pág. 186.
[17] 32 Numa perspetiva de legalidade formal, já se defendeu, também, que a norma cominadora deverá respeitar, também ela, o princípio da reserva de lei. “Uma disposição legal ” da al. a) do n.º 1 do art. 348.º será pois uma norma incriminadora, com tudo o que tal acarreta. Assim, Francisco Borges inop. cit. pág. 75, ou C. Líbano Monteiro inop. cit. pág. 353 e 354.
[18] 33 Não assim C. Líbano Monteiro, para quem esta expressão tem o sentido de “qualquer disposição legal”, diferente portanto do sentido que lhe cabe na al. a), do n.º 1, do art. 348.º do CP. Cf. op. cit. pág. 354.
A nosso ver, não se justificará atribuir dois sentidos diferentes à mesma expressão, usada no mesmo artigo, pelas razões que adiante se verá.
[19] 34 C. Líbano Monteiro e Francisco Borges apontam no entanto para a inconstitucionalidade do preceito. Cf.,op. cit. respetivamente a pág. 351, e 79 e 80.
[20] 35 Cf. o Acórdão para Fixação de Jurisprudência do STJ nº 5/2009, de 18/2/2009, em que se estabelece a necessidade de incriminação pelo crime do nº 1 al. b) do art. 348.º do CP, do depositário que faça transitar na via pública veículo apreendido por falta de seguro obrigatório. Cf. Diário da República, 1ª Série, nº 55, de 19 de março de 2009.
[21] 36 O CP brasileiro prevê no seu art. 330.º um crime de desobediência pura, punindo com a pena de 15 dias a 6 meses e multa quem “desobedecer a ordem legal de funcionário público”. A jurisprudência brasileira tem já defendido que “havendo sanção administrativa ou processual sem qualquer ressalva à possibilidade de punir pelo crime de desobediência, não se configura este”.
Paralelamente, regista-se jurisprudência, segundo a qual, pode ter lugar o crime de desobediência face ao “descumprimento de ordem judicial que determinou apreensão e entrega de veículo sob expressa cominação das penas da desobediência”. Cf. G. Sousa Nucci, in “Código Penal Comentado”, 7ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2007, pág. 1038
[22] Assim, Raul Gonçalves Taborda, Da Identificação do Suspeito e Consequências da Recusa de Identificação, in Revista da Ordem dos Advogados, Julho-Set., Lisboa, 2009, págs. 943-964.
[23] In www.dgsi.pt.
[24] Ibidem.