Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3631/18.9T8LSB.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
DIREITO DE REGRESSO
CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DE PRODUTOS ESTUPEFACIENTES
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGAR PROVIMENTO A AMBOS OS RECURSOS
Sumário: I - Requerida a comparência dos peritos na audiência final ou, no caso de peritos de estabelecimentos, laboratórios ou serviços oficiais, a sua audição por teleconferência, nos termos do art. 486.º do CPC, não se está perante um requerimento probatório, nem perante um ato que apenas possa ser determinado pelo Tribunal na sequência de reclamações contra o relatório pericial.
II - Quando deva ter lugar a audição do perito nos termos desse preceito legal, sendo indeferida por despacho do juiz, verifica-se a omissão de ato previsto na lei, uma irregularidade que, caso possa influir no exame ou na decisão a causa, constitui uma nulidade processual a “coberto de decisão judicial” - cf. art. 195.º do CPC.
III - Tendo a ora autora, companhia de seguros, em ação anterior intentada pelo sinistrado, requerido a intervenção acessória da ora Ré, é seguro afirmar, atento o disposto no art. 321.º do CPC, que o fez invocando o direito à ação de regresso contra esta (para ser indemnizada do prejuízo que lhe causaria a condenação), pelo que não atua com abuso do direito ao demandá-la em ação de regresso.
IV - Para o exercício do direito de regresso previsto no 27.º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08, a seguradora não carece de provar a existência de nexo causal entre o consumo de estupefacientes que o condutor acusou e o facto ilícito-culposo praticado por este que ocasionou o acidente.
V - À Ré incumbia ter alegado e provado, na ação anterior, em que foi interveniente acessória, que a causa do acidente nada teve a ver com o facto de ter acusado o consumo de estupefacientes e conduzir sob o efeito destes, não podendo já tal matéria ser discutida nos presentes autos, conforme decorre do disposto no art. 323.º, n.º 4, do CPC.
VI - Não tendo a Ré, nem sequer na presente ação, alegado uma versão alternativa da dinâmica do acidente que permitisse afastar o juízo imputacional que advém de ter violado a proibição de conduzir sob a influência de substâncias psicotrópicas (cf. art. 81.º do Código da Estrada), sendo irrelevante para o reconhecimento do direito de regresso a questão de saber se a concreta atuação da Ré (a condução descuidada por força da qual incorreu em responsabilidade subjetiva por facto ilícito) se deveu causalmente à circunstância de ter consumido estupefacientes conforme acusou, é inútil apreciar no recurso a impugnação da decisão da matéria de facto desenvolvida a este respeito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
RS… interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou procedente a ação declarativa de condenação que, sob a forma de processo comum, contra si foi intentada por Seguradoras Unidas, S.A., mais recorrendo do despacho de 28-02-2019 proferido neste processo.
Na Petição Inicial, a Autora pediu que a Ré fosse condenada no pagamento da quantia de 27.810,53 €, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos desde a data da entrada em juízo da Petição e até integral pagamento, alegando, em síntese, que:
- No dia 05-10-2011, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente um veículo seu segurado, então conduzido pela Ré, vindo a apurar-se, no processo n.º …/…TBFAL da Instância Local de Ferreira do Alentejo, no qual a Ré foi interveniente acessória, a responsabilidade desta pela produção do acidente;
- Nesses autos, foi a aqui Autora condenada a pagar ao lesado (ali Autor) a quantia de 23.217,70 €, a título de capital, acrescida de juros vencidos e vincendos até integral pagamento, mais tendo sido reconhecido que tinha direito de regresso sobre a aqui Ré, nos termos do artigo 27.º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto;
- A aqui Autora, em cumprimento da referida decisão judicial, procedeu ao pagamento da quantia de 26.743,71 € ao sinistrado; e solicitou a restituição de tal quantia à Ré, mediante carta que lhe remeteu em 27-02-2017, pelo que pretende ser ressarcida do referido montante.
A Ré contestou, defendendo-se por impugnação de facto e de direito, sustentando não estar demonstrada a existência de causalidade entre o sinistro e o consumo de substâncias estupefacientes, indispensável para o reconhecimento da existência de direito de regresso, concluindo no sentido da improcedência da ação e da sua absolvição do pedido. Para comprovar que no processo de inquérito n.º …/…GJBJA dos Serviços do Ministério Público de Ferreira do Alentejo “não se apurou qualquer responsabilidade da aqui R. na causa do acidente”, juntou: como doc. 1, cópia do despacho de arquivamento e suspensão provisória do referido processo, pelo qual foram impostas injunções à aí arguida (ora Ré) por ter cometido um crime de condução de veículo sob o efeito de estupefacientes p. e p. nos termos do artigo 292.º, n.º 2, e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal; como doc. 2, cópia do relatório de exame toxicológico de fls. 5 a 7 desses autos, referido nesse despacho (cf. fls. 86-v. e 87-v), relatório datado de 16-11-2011, no qual, com referência às colheitas de sangue da ora Ré aí indicadas, uma das quais efetuada em 05-10-2011, se refere que acusou a presença de 1,5 ng/ml de 11-Hidroxi-D9-tetrahidrocanabiol (11-OH-THC), 33 ng/ml de 11-Nor-9-carboxi D9-tetrahidrocanabiol (THC-COOH), e 2,7 ng/ml de D-9 tetrahidrocanabiol (THC).
Realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, bem como despacho de identificação do objeto do litígio [verificação dos pressupostos de facto e de direito para a procedência para o pedido de condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia de €27.810,53 (…), acrescida dos juros a vencer desde a data de entrada da petição inicial e até efectivo e integral pagamento, com todas as consequências legais] e enunciação dos temas da prova [saber se o consumo de estupefacientes seria em abstrato susceptível de determinar a perda de faculdades que determinaram a produção do acidente].
Foi determinada a realização de perícia singular por despacho de 20-09-2018, nos seguintes termos:
“Determino a realização de perícia singular, como requerido pela R.
Objecto da Perícia: o constante dos quesitos apresentados pela R, nos pontos 1) a 4) infra indicados:
1) Se a presença de substâncias psicotrópicas no corpo da condutora era perturbadora da sua aptidão física mental ou psicológica para a condução?
2) Se essa perturbação da Ré era suficiente para originar o acidente de viação destes autos?
3) Se atenta à quantidade de substâncias psicotrópicas no sangue é possível determinar com rigor quando esse consumo terá ocorrido?
4) Se poderíamos determinar estar perante vestígios de consumo mediato?
No mais, não se admite como objecto de perícia os pontos vertidos em 5) a 7) na exacta medida em que se tratam de questões relativas a interpretação jurídica, a qual não admite ponderação em sede de instrução dos autos para julgamento. Assim, por se tratarem de questões inadmissíveis em sede de realização de perícia, indefiro, nesta parte, o pedido (cfr. art. 476.º, n.º2 do Código de Processo Civil).
Oficie ao IML, solicitando a realização de perícia, se possível, a realizar pelo Exmo. Senhor Perito indicado no douto requerimento probatório da R, a saber, pelo Senhor Director do Serviço de Toxicologia Forense, Dr. MD…, por ter sido responsável pela elaboração do relatório já constante dos autos, de que se remeterá cópia.
Prazo: 30 dias”.
O relatório pericial foi junto aos autos em 02-11-2018 e notificado às partes em 19-12-2018.
Em 29-01-2019, foi proferido despacho que designou, com o acordo dos mandatários das partes, o dia 15-03-2019 para realização da audiência final de julgamento.
Em 30-01-2019, foram notificados dessa data os mandatários das partes e as testemunhas (cuja notificação havia sido requerida).
Em 19-02-2019, a Ré veio requerer a sua notificação para comparecer na audiência de julgamento, uma vez que requereu a prestação de declarações de parte, bem como a notificação das testemunhas que tinha aditado ao rol na audiência prévia, o que foi deferido por despacho de 25-02-2019 (por se ter admitido, quanto às testemunhas, que a ilustre mandatária tivesse presumido que não tinha que fazer a menção a que alude o n.º 2 do art. 507.º do CPC aquando do aditamento).
Em 26-02-2019, foram efetuadas notificações em cumprimento desse despacho.
Em 26-02-2019, a Ré requereu que fosse ordenada “a notificação do Sr. Perito do INML, Dr. (…), responsável pelo relatório de peritagem junto a estes autos, para comparecer na audiência final a fim de prestar esclarecimentos sobre aquele relatório”, ao abrigo do art. 486.º do CPC.
Em 27-02-2019, foi ainda notificada uma testemunha para comparecer na audiência final e informado o Tribunal de Beja do agendamento da audiência, por estar prevista inquirição de uma testemunha por videoconferência.
Em 28-02-2019, foi proferido o seguinte despacho (recorrido):
“Ref.ª 31682792:
Indefere-se o requerido, por intempestivo, uma vez que decorreu, há muito, o prazo para formulação dos requerimentos probatórios, conforme artigo 598.º, n.º1 do Código de Processo Civil”.
Em 01-03-2019, a Ré veio requerer que o Tribunal informasse se mantinha a decisão.
O Tribunal determinou que os autos aguardassem a data designada para julgamento.
Em 14-03-2019, a Ré veio interpor recurso do despacho de 28-02-2019, concluindo a sua alegação recursória nos seguintes termos:
1. A ora recorrente requereu ao Tribunal recorrido, a notificação do Sr. Perito responsável pelo relatório pericial junto a estes autos, para prestar esclarecimentos em audiência de discussão e julgamento, o que fez ao abrigo do disposto no art.º 486 do CPCivil.
2. O Tribunal recorrido decidiu indeferir esse direito à requerente, com fundamento em alegada intempestividade, uma vez que em seu entender, há muito que decorreu o prazo para formulação de requerimentos probatórios.
3. Sucede que, se por um lado, não se trata de um novo requerimento probatório, como, certamente por lapso, é referido pelo Tribunal recorrido, por outro, ao contrário do que também refere aquele Tribunal, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 486 do CPCivil “Quando alguma das partes o requeira ou o juiz o ordene, os peritos comparecem na audiência final, a fim de prestarem, sob juramento, os esclarecimentos que lhes sejam pedidos”.
4. Não diz, a supra referida normal legal, que esse requerimento tem de ser efetuado neste, ou, naquele prazo, presumindo-se, assim, que o legislador pretendeu que essa possibilidade ficasse ao alcance das partes até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento.
5. Ao decidir de modo contrário à Lei, o Tribunal à quo violou, salvo melhor opinião, entre outras disposições legais, o disposto no n.º 1 do art.º 486 do CPCivil.
Conclui pedindo que seja “dado provimento ao presente recurso e, consequentemente revogar-se o despacho recorrido, substituindo-se essa decisão por outra que determine a notificação do Sr. Perito para prestar esclarecimentos em sede de audiência de discussão e julgamento, mesmo que, por teleconferência, com todas as demais consequências legais”.
Procedeu-se ao julgamento, tendo sido ouvidas duas testemunhas (uma arrolada pela Autora e outra pela Ré), tendo ainda a Ré prestado declarações.
De seguida, foi proferida a sentença recorrida, cujo dispositivo tem o seguinte teor:
Nos termos expostos, julgo a presente acção procedente, por provada e, em consequência, condeno a R, a pagar à A a quantia de 26.743,71€ (vinte e seis mil setecentos e quarenta e três euros e setenta e um cêntimos) acrescida de juros de mora, vencidos desde 27.02.2017 e vincendos até integral pagamento.
Valor da causa: o fixado em Saneador.
Custas pela R.
Também inconformada com esta decisão, veio a Ré interpor recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1. Pese embora a recorrida Seguradoras Unidas, S.A, tenha mantido uma posição processual como se estivesse em claro litisconsórcio com a aqui recorrente, defendendo a sua inocência até à decisão final proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do processo que correu seus termos sob o n.º …/…TBFAL na Instância Local de Ferreira do Alentejo, onde veio a ser determinada a sua responsabilidade pela produção de acidente de viação, ocorrido no dia 05/10/2011, no qual foi interveniente um veículo seu segurado, então conduzido pela aqui recorrente, a recorrida, não tendo (também) tido sucesso na sua defesa, uma vez que a tese que defendeu, segundo a qual a aqui recorrente não tinha qualquer culpa pelo acidente, não foi considerada, tendo antes tido provimento a tese que imputava à recorrente a culpa pelo acidente de viação, como que, dando o dito, por não dito, vem agora exercer o direito de regresso sobre a recorrente, unicamente porque aquela decisão do Tribunal da Relação de Évora, lhe reconheceu esse direito, nos termos do artigo 27.º, n.º1, al. c) do DL 291/2007, de 21 de Agosto.
2. Efetivamente, tal facto constitui “venire contra factum próprio”, uma vez que, a recorrida manifestou e defendeu sempre que a aqui recorrente deveria ser absolvida, e que não tinha qualquer responsabilidade pela produção daquele acidente, sendo que, face à condenação da aqui recorrente como responsável por aquele sinistro, vem AGORA através desta ação exercer o direito de regresso contra o que ela própria defendeu!
3. A proibição do comportamento contraditório configura atualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (art.º 334 do Código Civil), nessa medida sendo de conhecimento oficioso.
4. Estamos na presença de uma exceção perentória, de conhecimento oficioso, que o Tribunal não podia deixar de conhecer. Não o tendo feito, violou, entre outras, a norma do art.º 334 do Código Civil.
5. Encontra-se pendente para decisão, um recurso interlocutório interposto pela aqui recorrente do despacho do Tribunal recorrido que lhe indeferiu o pedido/requerimento para a notificação do Sr. Perito responsável pelo exame toxicológico junto aos autos, para comparecer na audiência final, a fim de prestar esclarecimentos sobre aquele exame, e sobre as respostas dadas ao Tribunal, uma vez que, foram levantadas várias questões que a recorrente queria ver esclarecidas, das quais, apenas parte foi remetida ao Sr. Perito para responder (as questões 5 a 7 colocadas pela aqui recorrente, não foram admitidos como objeto de perícia, por o Tribunal recorrido ter entendido que se tratava de interpretação jurídica)!
6. Tendo sido elaborado relatório donde constam as respostas às questões que o Tribunal decidiu submeter-lhe, entendeu a aqui recorrente que não haveria lugar a qualquer reclamação, mas antes, se verificava a necessidade de requerer que fossem prestados esclarecimentos em audiência de discussão e julgamento, sobre pelo menos uma das respostas que foi dada pelo Sr. Perito, e que, na sua opinião, podia ser decisiva para uma boa e justa decisão da causa.
7. Esclarecimentos esses que, se impunha serem prestados presencialmente, ou por teleconferência, por se tratar de matéria complexa, e cuja letra do texto pode levar a erros de interpretação.
8. O próprio Tribunal recorrido, no despacho saneador, já tinha (também) acautelado essa possibilidade de depoimento presencial do Sr. Perito em audiência de discussão e julgamento (cfr. pág. 5 da Ata de Audiência Prévia).
9. No caso concreto, encontrando-se marcada a audiência de discussão e julgamento para o dia 15/03/2019, a ora recorrente, em 26/02/2019 – Ref.ª:22032374 (quase um mês antes) ao abrigo do disposto no art.º 486 do CPCivil requereu ao Tribunal recorrido, a notificação do Sr. Perito para prestar esclarecimentos em audiência de discussão e julgamento
10. Para espanto da aqui recorrente, o Tribunal recorrido, por despacho de 28/02/2019, notificado à recorrente em 01/03/2019 (Ref.ª:384711584) decidiu indeferir esse direito à requerente, com fundamento em alegada intempestividade, uma vez que em seu entender, há muito que decorreu o prazo para formulação de requerimentos probatórios!
11. Tendo em consideração os factos dados como provados pelo Tribunal recorrido, somos forçados a concluir que, este Tribunal, confunde a culpa no acidente que consubstancia estes autos, e que, efetivamente o Tribunal da Relação de Évora deu como provada ser da aqui recorrente, não cumprindo, pois, agora, no âmbito desta ação discutir essa matéria novamente, com o nexo de causalidade que seria exigível para concluir pelo direito de regresso da recorrida.
12. Acontece que, uma coisa, é a culpa do acidente, e outra bem diferente, é o nexo de causalidade entre o consumo de estupefaciente e o acidente!
13. Quer isto dizer que, não foi pelo facto de a aqui recorrente ter sido declarada culpada do acidente de viação, que se pode concluir que, de acordo com a decisão do Tribunal da Relação de Évora (transitada em julgado) a aqui recorrida tem direito de regresso sobre a recorrente, pois, não foi minimamente provado que esse acidente tivesse ocorrido em consequência dela ter acusado consumo de estupefaciente, mas antes, de toda a dinâmica do acidente.
14. O que legitima a aqui recorrida a peticionar o direito de regresso contra a recorrente foi o consumo de produto estupefaciente, e não a culpa pelo acidente, nos termos em que foi decidido pelo Tribunal da Relação de Évora. O que significa que, a recorrida teria que fazer prova nestes autos, de que o consumo de produto estupefaciente que a recorrente efetivamente acusou, era suficiente para lhe causar perturbação na condução, ao ponto de colocar em causa a segurança rodoviária, e tivesse contribuído para o acidente, prova essa que, definitivamente, não fez, sendo certo que, o Tribunal não inverteu o ónus da prova!
15. A essa ausência de prova, há que juntar a circunstância do relatório pericial requerido pela recorrente, ser inconclusivo relativamente a essa matéria, e, bem assim, a circunstância de que, esse relatório, desacompanhado de um exame prévio de rastreio, e em caso de resultado positivo, um exame de confirmação, nada pode provar, como seguidamente se demonstrará.
16. Com efeito, já a versão original do Código da Estrada, DL 114/94, de 03 de maio, no art.º 87 previa e punia a “condução sob o efeito do álcool ou de estupefacientes”, embora remetendo para diploma próprio, a regulamentação do que era conduzir naqueles termos. Também agora, e no que respeita a esta matéria, temos de recorrer a diplomas próprios donde se possa retirar se o condutor se encontra sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, e, se está em condições de exercer a condução com segurança ou não, mais concretamente, a Lei 18/2007, de 17 de maio, que aprova o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas e, a Portaria 902-B/2007, de 13 de agosto, que regula o material a utilizar na recolha e transporte de amostras biológicas destinadas a determinar a presença de substâncias psicotrópicas e os procedimentos a aplicar na realização das análises e os tipos de exames médicos a efetuar para deteção dos estados de influenciado por álcool ou por substância psicotrópica.
17. A Lei 18/2007, nos art.ºs 10 a 13, inseridos no capítulo «avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas», prevê um exame prévio de rastreio, e em caso de resultado positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação. E a Portaria 902-B/2007, de 13 de agosto, no Capitulo II regulamenta a avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas.
18. O exame de confirmação considera-se positivo sempre que revele a presença de qualquer substância psicotrópica prevista no quadro 1 do anexo V, ou qualquer outra com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor em segurança. Efetuado o exame nos termos definidos na secção III da referida Portaria, o médico deve preencher o relatório do exame modelo do anexo VII, respondendo aos itens de: Observação geral; Estado mental; Provas de equilíbrio; Coordenação dos movimentos; Provas oculares; Reflexos; Sensibilidade e quaisquer outros dados que possam ter interesse para comprovar o estado do observado.
19. Só o relatório médico com esses itens preenchidos, permitirá ao Tribunal concluir se o examinado estava em condições de fazer o exercício da condução em segurança.
20. Sucede que, no caso concreto, não foi avaliado o estado de influenciado por substâncias psicotrópicas da aqui recorrente, referido no n.º 1 do artigo 13.º do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, a que se refere a Secção III, do capitulo II da supra referida Portaria. E consequentemente, NÃO É POSSÍVEL determinar se os vestígios de substancia psicotrópica identificados no respetivo exame toxicológico, significavam que a recorrente estava sob qualquer influência que lhe perturbasse a capacidade de conduzir o veículo automóvel interveniente no acidente.
21. E, portanto, não basta a ocorrência do acidente, para podermos concluir pela inexistência de condições para exercer a condução. Talvez fosse por essa razão que, o Tribunal de 1.ª instância, na sua decisão/sentença, e depois, o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão que a confirmou, sobre esta matéria, apenas tenham concluído, e dado como provado, que a aqui recorrente “conduzia sob efeito de produto estupefaciente” (cfr. n.º 8 do factos provados – doc. 3 junto pela recorrida com a sua PI, a págs. 120 a 129 desse articulado).
22. Acontece que, em bom rigor, esta conclusão tem de se considerar desprovida de qualquer fundamento, pois, uma coisa é considerar-se que a recorrente acusou no respetivo exame toxicológico, o consumo de substâncias estupefacientes, e outra, bem diferente, é dizer-se que conduzia sob esse efeito, e/ou que esse efeito era suficiente para fazer perigar essa condução!
23. A sentença dos autos que correram seus termos na Instância Local de Ferreira do Alentejo, com o n.º …/…TBFAL, é TOTALMENTE omissa quanto à FUNDAMENTAÇÃO DESSE FACTO, e designadamente quanto à influencia desses estupefacientes na condução, “empurrando” claramente essa avaliação para o inquérito crime que estava em curso nos Serviços do Ministério Público junto do mesmo Tribunal, com o n.º …/…GJBJA, e que, apesar de ser MUITO anterior à ação cível (cerca de 2 anos), ainda não tinha encerrado, apesar do exame toxicológico se encontrar junto ao mesmo desde novembro de 2011. Acontece que, NUNCA se equacionou, nem considerou, na ação que serve de fundamento à pretensão da recorrida, que a aqui recorrente “não estava em condições de conduzir em segurança”!
24. O exercício da condução sem condições de segurança tem de constituir um facto apurado e, por conseguinte, constar da matéria de facto dada como provada. Ou seja, tinha de ter resultado provado que a presença de produto psicotrópico no corpo da condutora/aqui recorrente, era “perturbador da sua aptidão física, mental ou psicológica” para a condução. Nada se tendo apurado sobre tal facto, apenas fica demonstrado que a aqui recorrente acusou vestígios do produto estupefaciente no exame ao sangue que lhe foi efetuado, o que apenas releva para efeitos de contraordenação ao disposto no art.º 81 do Código da Estrada, NADA MAIS!
25. Não ficou demonstrado que, apesar da presença desses vestígios de produto estupefaciente, a aqui recorrente não estivesse em condições de conduzir em segurança o seu automóvel, razão aliás, pela qual foi absolvida de qualquer tipo de crime.
26. O Tribunal recorrido faz uma interpretação errada do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 27 do DL 291/2007, de 21 de agosto, concluindo que o simples facto da recorrente ter acusado um consumo de estupefaciente (que aliás, não se sabe quando ocorreu) por si só, é suficiente para a sua condenação nestes autos, independentemente da TOTAL AUSÊNCIA de nexo de casualidade entre esse facto e o dano. É que, além do mais, se nessa norma, o legislador, quando se refere ao álcool, se reporta a uma taxa superior à legalmente admitida, por maioria de razão, no que respeita a condução sob efeito de estupefacientes, não tendo sido fixado qualquer limite para se determinar se a condutora estava, ou não, em condições de conduzir em segurança, sempre teria de ser observado o preenchimento do Anexo VII da Portaria 902-B/2007, de 13 de agosto, para se concluir se estava sob influência de estupefacientes. Isto é, seria necessário que se tivesse apurado que aquelas substâncias que em concreto foram encontradas no corpo da recorrente eram suficientes para constituir um impedimento da condução de veículos automóveis em segurança, o que, definitivamente, não aconteceu.
27. Ora, no caso concreto, como supra se expôs, no que tange ao consumo de estupefacientes, para além de não estar definido qualquer limite quantitativo, o exame toxicológico em que o Tribunal se fundou para dar como provado que a aqui recorrente conduzia sob efeito de estupefacientes, não foi efetuado em respeito pelo que se encontra disciplinado na Portaria 902-B/2007, de 13 de agosto, uma vez que não foi efetuado exame médico destinado à deteção do estado de influenciado por substância psicotrópica, que permitiria concluir estar ou não ultrapassado o limite a partir do qual, vingando a tese da “desconsideração” do nexo da causalidade, se poderia concluir pela sua desnecessidade!
28. Acresce que, o Tribunal recorrido faz uma errada interpretação da resposta dada pelo Sr. Perito médico que elaborou o exame toxicológico à recorrente, dando como provado que “não tendo sido realizado exame clínico à R, aquando da colheita de sangue, para efeito de análise toxicológica, conclui-se que 2,7 ng/ml de D-tetrahidrocanabiol (THC) pode constituir um factor de risco de acidente e de “impairment” que põe em causa a segurança para conduzir (cfr. 9.º dos factos provados).
29. Acontece que, se por um lado, o Tribunal recorrido indeferiu a notificação do Sr. Perito responsável por aquele relatório pericial, para prestar esclarecimentos em audiência de discussão e julgamento, o que fez, em clara violação ao disposto no art.º 486 do CPCivil, não permitindo assim que este explicasse as respostas que dirigiu ao Tribunal, por outro lado, o Tribunal recorrido fez uma errada interpretação do que se refere na referida resposta que transportou para 9.º dos factos provados! Efetivamente, quando se diz que “...2,7 ng/ml de D-tetrahidrocanabiol (THC) pode constituir um factor de risco de acidente e de “impairment” que põe em causa a segurança para conduzir”, não se quer com isso dizer que, constitui um fator de risco!
30. Há uma grande diferença entre o poder e o ser! O facto de poder constituir um fator de risco, não significa, nem nunca poderia significar, que no caso concreto assim tivesse acontecido!
31. Acresce que, como resulta dos demais factos dados como provados, pode concluir-se, sem qualquer dúvida, que a recorrida NENHUMA prova fez para além daquela que o Tribunal recorrido extraiu das decisões proferidas no âmbito dos outros processos!
32. Assim, porque a recorrida nenhuma prova fez de que foi o consumo de estupefaciente que esteve na origem do acidente que consubstancia o seu pedido, não podia o Tribunal recorrido ter condenado a recorrente no pedido, tanto mais que, ainda lhe indeferiu a prestação de esclarecimentos por parte do perito que concluiu que “... 2,7 ng/ml de D-tetrahidrocanabiol (THC) pode constituir um factor de risco de acidente...”.
Conclui, pedindo que seja revogada a sentença recorrida e ordenada a repetição do julgamento, com a intervenção do perito responsável pela elaboração do exame toxicológico.
Foi apresentada pela Autora-Apelada alegação de resposta, em que pugna pela confirmação da sentença recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrevemos a parte útil):
A) Do reconhecimento do direito de regresso da Recorrida por Acórdão já transitado em julgado
1. Pretende a Recorrente com o recurso interposto que este Tribunal da Relação revogue a decisão constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20.10.2016, dando por não assente o que está assente por decisão transitada em julgado e considerando que afinal não assiste à Recorrida qualquer direito de regresso...
(…) 5. A haver errada interpretação – no que não se concede – a mesma não é feita pelo Tribunal Recorrido mas sim pelo Tribunal de Ferreira do Alentejo e pelo Tribunal da Relação de Évora: o Tribunal recorrido limita-se a não violar o caso julgado material que se produziu naqueles autos, com efeitos e aplicação nos presentes.
(…) 7. Conforme decorre do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido na acção que deu causa à presente, apenas foi alterado o montante da condenação, mantendo-se a sentença proferida quanto ao restante, nomeadamente, quanto ao reconhecimento do direito de regresso da Recorrida sobre a Recorrente!!
(…) 9. O caso julgado visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica, fun-dando-se a protecção a essa segurança jurídica, relativamente a actos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido.
(…) 11. Ninguém põe em causa que o caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão: logo, decidindo-se em processo anterior que a Recorrida tem direito de regresso sobre a Recorrente, jamais poderia a Recorrente pretender obter, no presente processo, decisão que venha a concluir que este direito não existe... No entanto, é o que verdadeiramente pretende!
(…) 13.  A autoridade do caso julgado implica uma aceitação de uma decisão proferida numa acção anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda acção, enquanto questão prejudicial.
14. O caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior.
15. Ocorrerá a excepção de caso julgado quando a Recorrente pretenda que seja negado à Recorrida, em nova acção ou recurso, o mesmo direito que já lhe foi reconhecido por sentença proferida noutra acção. É o que sucede com o presente recurso.
16. Termos em que, por decisão contrária implicar uma violação de caso julgado, sempre teria o presente recurso de improceder, assim como qualquer diligência probatória ou outra cujo único fito seja colocar em causa um direito da Recorrida já reconhecido por decisão transitada em julgado!
B) Da alegada existência de “Venire contra Factum Proprium”
17. A acção que deu origem à presente correu seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Ferreira do Alentejo; Instância Local – Secção de Competência Genérica – J…, sob o n.º …/…TBFAL, tendo sido instaurada por NM… contra a ora Recorrida.
18. A Recorrida, nessa acção, suscitou a intervenção acessória da Recorrida, porquanto resultava do aditamento ao Auto de Ocorrência da GNR, aquando do acidente, que a Recorrente circulava sob o efeito de substâncias psicotrópicas.
(…) 21. Desde o início que a ora Recorrida mantém a mesma postura e lisura nos autos: uma vez que a condutora circulava sob o efeito de substâncias psicotrópicas, se se viesse a provar a sua culpa no acidente, pretendeu a Recorrida, de forma expressa e declarada, com o pedido de intervenção acessória, assegurar o seu  direito de regresso.
22. Apenas por o pedido ter sido formulado é que a sentença, considerando tal pedido procedente, reconheceu o direito de regresso da ora Recorrida sobre a Recorrente – reconhecimento que, aliás, transitou em julgado.
23. Desde o momento que foi chamada para intervir nos autos que deram origem ao presente que a Recorrente sabe que a posição da Recorrida é apenas uma: vindo-se a provar a sua culpa no acidente seria exercido o direito de regresso!!!!
(…) 25. Tendo a Recorrente sido chamada a intervir numa acção com o propósito declarado de contra si ser exercido o direito de regresso, não pode ter adquirido qualquer expectativa em sentido contrário!
28. Não existe como tal, qualquer conduta contraditória mas antes da confirmação da intenção expressamente declarada pela Recorrida desde que chamou a Recorrente a intervir nos autos que deram causa ao presente.
C) Do recurso interlocutório pendente
29. Em 19.12.2018, por ofício a que corresponde a referência 382533659, foi a Recorrente notificada do relatório pericial “podendo dele reclamar ou pedir esclarecimentos em dez dias”.
30. A Recorrente nada fez e apenas em 26.02.2019, ou seja, mais de dois meses após o termo do prazo e 17 dias antes da data agendada para julgamento, apresenta requerimento solicitando “a notificação do Sr. Perito do INML, Dr. MJ…, responsável elo relatório de peritagem junto a estes autos, para comparecer na audiência final, a fim de prestar esclarecimentos sobre aquele relatório.”
31. Por despacho de 28.02, foi indeferido o requerido, por intempestivo, uma vez que “decorreu, há muito, o prazo para formulação dos requerimentos probatórios, conforme artigo 598.º, n.º1 do Código de Processo Civil.”
32. Aceita-se que “a produção de prova é um direito que assiste às partes.” No entanto, tal direito está sujeito a regras, nomeadamente, às que resultam do art.º 598º do Código de Processo Civil.
33. A Recorrente poderia ter solicitado os esclarecimentos pretendidos no prazo de 10 dias que lhe foi concedido para o efeito. Não o fez, preferindo remeter-se ao silêncio. Sibi imputet.
34. Não se vê, por outro lado, que os esclarecimentos a prestar pelo perito possam ter algum relevo para a discussão da causa, quer face ao teor do relatório junto aos autos, quer porque tais “esclarecimentos” não poderão colocar em causa o direito de regresso da Recorrente.
D) Da sentença recorrida
(…) 37. Não há qualquer exigência adicional para que se chegue a esta conclusão – o direito de regresso está reconhecido!! E é precisamente pelo facto de estar reconhecido e de esse reconhecimento não poder ser colocado em causa face à autoridade do caso julgado que é indiscutível a existência do direito de regresso da Recorrida nos presentes autos.
38. Todas as restantes considerações da Recorrente são completamente infundadas e deveriam – se a Recorrente assim o entendesse – ter sido discutidas na primeira acção... Não o foram!
(…) 40. É falso que tenha resultado da acção cível que fundamenta o pedido de regresso que a recorrente “estava em perfeitas e normais condições para conduzir o seu veículo automóvel” – o que resulta provado é que a Recorrente conduzia com imperícia, desatenção e sob efeito de estupefaciente (facto provado 8).
41. É ainda completamente falso que “por não ter ficado provado que, apesar da presença desses vestígios de produto estupefaciente, a recorrente não estivesse em condições de conduzir em segurança o seu automóvel”, a mesma “foi absolvida de qualquer tipo de crime”!!!!
42. Na verdade, conforme resulta dos elementos juntos aos autos, a Recorrente – então arguida – foi absolvida da prática do crime de condução perigosa e do crime de ofensa à integridade física por negligência, mas não foi absolvida da prática do crime de condução de veículo sob o efeito de estupefacientes.
43. Quanto a este o Ministério Público requereu a aplicação do mecanismo de suspensão provisória do processo, afirmando-se expressamente que a Arguida cometeu um crime de condução de veículo sob o efeito de estupefacientes e que o confessou!!!!
44. Por isso mesmo foram-lhe impostas injunções, entre as quais, a proibição de conduzir pelo período de três meses!!!
45. Não se vê que da sentença proferida resulte que o Tribunal faça uma qualquer interpretação errada do relatório de peritagem junto aos autos. Pelo contrário, o mesmo é correctamente interpretado...
46. Face a tudo o que se deixou exposto, resulta claro que a Recorrida não tinha de efectuar neste processo qualquer prova quanto a um alegado nexo de causalidade entre o consumo de estupefacientes e a “culpa pelo acidente”.
47. Mesmo que o direito de regresso não estivesse já reconhecido – e está – a lei é clara a este respeito e também a jurisprudência: o art.º 81.º do Código da Estrada estabelece a proibição de condução sob influência de substâncias psicotrópicas e nos termos do 27.º n.º1 c) do D.L. n.º 291/2007, de 21 de Agosto, (…)
48. Resulta provado que (i) a recorrente foi a única responsável pelo acidente, a este tendo dado causa; (ii) a recorrente actuou com culpa, (iii) a recorrente acusou consumo de estupefacientes, factos objectivos que a constituem na obrigação de indemnizar a recorrida, conforme já expressamente reconhecido.
49. São ainda de salientar os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2014 ou de 04.06.2017, ou o Acórdão da Relação de Coimbra de 05.08.2012 (in www.dgsi.pt).
50. Em suma, a sentença recorrida não merece qualquer reparo, devendo ser mantida!!
Foi proferido despacho de admissão de ambos os recursos.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC).
Face ao teor das conclusões das alegações de recurso, são as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se devia ter sido determinada a intervenção do perito responsável pela elaboração do exame toxicológico para prestar esclarecimentos na audiência final e, na afirmativa, se tal omissão implica a repetição do julgamento (1.º recurso);
2.ª) Se deve ser alterada a decisão da matéria de facto;
3.ª) Se a pretensão da Autora consubstancia um abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium;
4.ª) Se para o reconhecimento do direito de regresso que a Autora se arroga lhe incumbia demonstrar a existência de nexo de causalidade entre o consumo de produto estupefaciente (que a Ré acusou) e a ocorrência do acidente, apreciando, na afirmativa, se dos factos provados resulta verificado esse nexo.
Factos provados
Na sentença, foram considerados provados os seguintes factos (ao abrigo do art. 662.º, n.º 1, do CPC, e tendo em atenção o teor do documento junto com a Petição Inicial, retificámos os lapsos materiais e acrescentámos o que consta entre parenteses retos):
1. A Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A. alterou a denominação da firma para Seguradoras Unidas S.A..
2. Nos autos que correram termos sob o n.º …/…TBFAL, [do Tribunal] da Comarca de Beja - Instância Local de Ferreira do Alentejo, Secção de Competência Genérica, J… [ação com processo comum intentada por NM… contra Companhia de Seguros Tranquilidade, ora Autora, e em que foi admitida a intervenção acessória de RS…, ora Ré] - foi decidido, por sentença transitada em julgado:
a) condenar a ali Ré e aqui Autora a proceder ao pagamento da quantia de 23.217,70 €, a título de capital, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento;
b) reconhecer à aqui Autora ter direito de regresso sobre a aqui Ré, nos termos do artigo 27.º, n.º 1, al. c) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, a título de responsabilidade civil, extracontratual, decorrente de acidente de viação (cf. fls. 59 e 63-v.) [mais precisamente, o Tribunal decidiu, por sentença de 24-07-2015, que veio a ser parcialmente revogada por acórdão da Relação de Évora, julgar:
“A ação procedente, por provada, condenando-se o réu no pagamento ao autor do valor total de € 32.388,44 acrescido de juros de mora desde a data de citação até ao efectivo e integral pagamento por conta de despesas com o sinistro ocorrido;
Nos exactos termos, tem a R contra a Interveniente acidental RS… direito de regresso nos termos do art. 27º nº 1 al c) do D.L. nº 291/2007, de 21 de Agosto”].
3. A aqui Autora cumpriu a referida decisão judicial [o acórdão da Relação] e procedeu ao pagamento da quantia de 26.743,71 € ao sinistrado (acordo e exame de fls. 64-v.)
4. A Autora solicitou à Ré o pagamento da quantia por si despendida para a regularização do sinistro, na sequência de decisão judicial [o acórdão da Relação], no montante de 26.743,71 €, mediante carta que lhe remeteu em 17-02-2017 (acordo e exame de fls. 65);
5. Nos referidos autos, resultaram provados os seguintes factos, conforme douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20-10-2016:
1. No dia 5 de Outubro de 2011, pelas 14:00 horas seguia o Autor na EN 383, no sentido Montes Velhos – Aljustrel, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros matrícula …-IZ-….
2. Nas mesmas condições de tempo e lugar, mas no sentido Aljustrel – Montes Velhos, seguia o veículo ligeiro de passageiros matrícula …-…-TQ propriedade de MC…, conduzido por RS….
3. Ao quilómetro 57,700 praticamente de fronte das instalações da Associação de Beneficiários do Roxo, e quando o veículo IZ efetuava uma ligeira curva à sua direita, atento o seu sentido de marcha, foi surpreendido pelo TQ, que vinha em travagem, obliquamente ao seu sentido de marcha.
4. O Autor ainda procurou desacelerar a marcha do IZ, mas dada a velocidade do TQ, não conseguiu evitar o embate entre os dois veículos
5. Embate que se deu na faixa de rodagem do IZ a cerca de um metro da linha divisória
6. Dada a extensão e sentido de travagem do TQ, a sua condutora deixou este ir à berma, que é de terra batida e acelerou para que o TQ voltasse ao asfalto.
7. Ao apanhar piso firme e porque vinha em aceleração, o TQ ganhou velocidade razão porque a respetiva condutora travou a fundo, não conseguindo, porém, evitar que o TQ ultrapassasse a linha divisória e invadisse a faixa de rodagem contrária.
8. A condutora do TQ conduzia com imperícia e desatenção e sob efeito de estupefacientes.
9. Encontra-se a correr termos nesta Instancia Local processo-crime pela prática de condução sob efeito de estupefacientes, com o n.º …/…GJBJA.
(...) 11. A proprietária do TQ havia transferido para a ora Ré a sua responsabilidade civil.
12. O embate entre os dois veículos deu-se entre a parte frontal dianteira do TQ e a parte frontal dianteira esquerda do IZ.
13. Como consequência do embate sofreu o IZ danos que foram orçados, segundo a própria Ré, em 29.420,74 euros.
14. O salvado foi avaliado ainda pela Ré em 3.744 € valor este que o Autor já recebeu da empresa que comprou que restou do IZ a qual foi igualmente indicada pela própria Ré.
15. A data do acidente o IZ encontrava-se praticamente novo, com pouco mais de um ano e com cerca de 22.000 kms percorridos.
16. Ainda como consequência do acidente sofreu o Autor forte impacto que lhe causou enormes dores ao nível do peito e costas, dores estas que se prolongaram por cerca de 15 dias.
(...). 18. O Autor receou pela própria vida ao ver como o TQ desgovernado, vinha direito ao IZ sem que o pudesse evitar.
19. O Autor foi assistido no Hospital Distrital de Beja.
20. Em consultas e medicamentos despendeu o Autor a quantia de 125,60 €.
21. E com o reboque despendeu a quantia de 86,10 euros.
22. O Autor reside em Montes Velhos e trabalha em Aljustrel.
23. Era no IZ que o Autor se fazia transportar de e para o trabalho, para além de utilizar o veículo sinistrado nas suas deslocações de lazer e no dia-a-dia.
24. O Autor até poder adquirir um outro veículo, teve que pedir a familiares e amigos que o transportassem de e para o emprego ou que lhe emprestassem um veículo, o que lhe causou sérios transtornos e embaraços e o deixaram deveras envergonhado por estar a depender de terceiros.
(...) o valor venal do IZ, à data do sinistro, era de 21.750 € (...).”
6. Nos referidos autos, foram proferidas as seguintes decisões judiciais, transitadas:
1 - No Tribunal da Relação [de Évora, em 20-10-2016, acórdão, cujo teor se dá por integralmente reproduzido]: “Acordam os juízes desta Relação em alterar parcialmente a decisão recorrida, condenando-se consequentemente o réu no pagamento ao autor do montante de 18.217,70 € (18.006,00 + 211,70 €) a título de danos patrimoniais e no montante de 5.000,00 € (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.”
2 - No Tribunal [da Comarca de Beja, Secção] de Competência Genérica – Instância Local de Ferreira do Alentejo, Comarca de Braga [em 24-07-2015, a sentença acima referida, cujo teor se dá por reproduzido, de cujo dispositivo consta designadamente que]: “Nos exactos termos, tem a R contra a Interveniente acidental RS… direito de regresso nos termos do art. 27.º n.º 1 al. c) do D.L. n.º 291/2007, de 21 de Agosto.”
[6.-A. No recurso em que foi proferido o referido acórdão, o Tribunal da Relação de Évora conheceu da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, tendo decidido o seguinte: “Nestes termos, julga-se improcedente a apelação, no que concerne à reformulação da factualidade apurada na 1ª instância nos termos pretendidos pelos apelantes, mantendo-se, por conseguinte, na parte que se reporta à dinâmica do acidente a factualidade dada como provada na 1ª instância, improcedendo, por conseguinte, tudo o que, em adverso, consta das alegações de recurso dos apelantes”.]
7. A Autora despendeu a quantia de 30 €, devida por uma consulta, ao sinistrado (cf. fls. 100).
8. No momento em que ocorreu o acidente, a aqui Ré conduzia o veículo com 1,5 ng/ml de 11-Hidroxi-D9-tetrahidrocanabiol (11-OH-THC), 33 ng/ml de 11-Nor-9-carboxi D9-tetrahidrocanabiol (THC-COOH), 2,7 ng/ml de D-tetrahidrocanabiol (THC), por ter consumido produto estupefaciente (cf. exame toxicológico de fls. 87).
9. Não tendo sido realizado exame clínico à Ré, aquando da colheita de sangue, para efeito de análise toxicológica, conclui-se que 2,7 ng/ml de D-tetrahidrocanabiol (THC) pode constituir um factor de risco de acidente e de “impairment” que põe em causa a segurança para conduzir. (cf. exame pericial, junto a fls. 108).
Factos não provados
Na sentença recorrida, foram considerados não provados os seguintes factos:
a) Não é possível determinar se os vestígios de substância psicotrópica identificados no respetivo exame toxicológico significavam que a Ré estava sob qualquer influência que lhe perturbasse a capacidade de conduzir o veículo automóvel interveniente no acidente.
b) Não existiu relação de causalidade entre o consumo e o acidente de viação verificado.
1.ª questão – Da não comparência do perito na audiência final
Em 28-02-2019, foi proferido despacho/decisão interlocutória que indeferiu o requerimento da Ré atinente à comparência do perito na audiência final a fim de prestar esclarecimentos, “por intempestivo, uma vez que decorreu, há muito, o prazo para formulação dos requerimentos probatórios, conforme artigo 598.º, n.º1 do Código de Processo Civil”.
Esse despacho não admitia apelação autónoma (cf. art. 644.º, n.ºs 1 e 2, do CPC a contrario sensu), mas a Apelante voltou a impugnar no recurso essa decisão interlocutória, pelo que importa conhecer a questão (cf. 644.º, n.º 3, do CPC).
No entender da Apelante, o despacho está errado, uma vez que o seu requerimento se estribava no disposto no art. 486.º do CPC, não se tratando de requerimento probatório.
A Apelada, por seu turno, sustenta que o despacho deve ser confirmado, já que a Recorrente podia ter solicitado os esclarecimentos pretendidos no prazo de 10 dias após a notificação do relatório pericial, mais dizendo não se ver que os esclarecimentos “a prestar pelo perito possam ter algum relevo para a discussão da causa, quer face ao teor do relatório junto aos autos, quer porque tais “esclarecimentos” não poderão colocar em causa o direito de regresso da Recorrente”.
Cumpre decidir.
Importa que tenhamos presente o disposto nos artigos 485.º e 486.º, ambos do CPC.
Assim, o primeiro tem o seguinte teor:
Artigo 485.º
Reclamações contra o relatório pericial
1 - A apresentação do relatório pericial é notificada às partes.
2 - Se as partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações.
3 - Se as reclamações forem atendidas, o juiz ordena que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado.
4 - O juiz pode, mesmo na falta de reclamações, determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos previstos nos números anteriores.
Já o artigo 486.º, sob a epígrafe, “Comparência dos peritos na audiência final”, preceitua:
1 - Quando alguma das partes o requeira ou o juiz o ordene, os peritos comparecem na audiência final, a fim de prestarem, sob juramento, os esclarecimentos que lhes sejam pedidos.
2 - Os peritos de estabelecimentos, laboratórios ou serviços oficiais são ouvidos por teleconferência a partir do seu local de trabalho.
Em face do teor destes preceitos e do processado acima descrito, é manifesto que não se estava perante nenhum requerimento probatório. Tão pouco nos parece que a comparência dos peritos na audiência final ou, no caso de peritos de estabelecimentos, laboratórios ou serviços oficiais, a sua audição por teleconferência, apenas possa ser determinada pelo Tribunal na sequência de reclamações contra o relatório pericial.
A respeito deste último preceito legal, explicam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo civil Anotado”, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 340, que no anterior Código de Processo Civil, antes da revisão de 1995-1996, se previa que os peritos seriam notificados para comparecer na audiência final e aí prestar todos os esclarecimentos que lhes fossem solicitados; quando se discutiu, no âmbito do Anteprojeto da Comissão Varela, que essa notificação pudesse ser deixada ao arbítrio do juiz (os peritos poderiam ser notificados), tal solução foi criticada, vindo a ser introduzida pelo Decreto-Lei n.º n.º 329-A/95 a norma que acabou por ser transposta para o atual Código: os peritos têm o dever de comparecer na audiência final (podendo ser ouvidos por teleconferência a partir do seu local de trabalho no caso de peritos de estabelecimentos, laboratórios ou serviços oficiais), mediante notificação para o efeito, quando alguma das partes o requeira ou o juiz o ordene. Adiantam ainda estes autores que: “Não se estabelecendo prazo para o requerimento da parte, é de o apresentar nos 10 dias (art. 149) posteriores à notificação do relatório pericial ou, havendo reclamação, à notificação dos esclarecimentos e aditamentos apresentados pelos peritos, embora, na falta duma disposição de onde resulte um prazo perentório para o efeito, a interpretação preferível seja a de o requerimento poder ainda ser apresentado até ao momento em que o tribunal proceda às notificações para comparência na audiência final”.
No presente processo, não obstante já tivessem sido realizadas a maior parte dessas notificações, deveria ter sido determinada a notificação do perito, embora para ser ouvido por teleconferência, face ao tema da prova enunciado e à perícia realizada, sendo certo que existia tempo útil para essa notificação, tanto assim que, no dia seguinte ao requerimento da Ré, ainda foram efetuadas as diligências em falta (atinentes à notificação de uma testemunha e à informação do Tribunal de Beja da realização de videoconferência).
Não tendo sido ouvido o perito, foi omitido um ato previsto na lei, irregularidade que, caso possa influir no exame ou na decisão a causa, consubstancia uma nulidade processual, a “coberto de decisão judicial” - cf. art. 195.º do CPC.
É sabido que o meio próprio para reagir contra as nulidades processuais cobertas por uma decisão judicial (despacho) - que ordenou, autorizou ou sancionou (ainda que só de modo implícito) o respetivo ato ou omissão - é o recurso desse despacho, como já explicava Manuel de Andrade, referindo a “doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se” (in “Noções elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 183), sendo tempestivo fazê-lo no recurso da decisão final (cf. art. 644.º, n.º 3, do CPC). Não estivesse a nulidade a coberto de decisão judicial (despacho), a mesma deveria ter sido arguida, mediante reclamação, nos termos e prazo do art. 199.º do CPC.
Porém, para que possamos concluir se a omissão em causa é ou não passível de influir no exame ou na decisão da causa, importa que passemos à apreciação das restantes questões, adiante se retomando esta questão.
2.ª) Questão – Da impugnação da decisão da matéria de facto
Importa que façamos algumas considerações prévias a respeito do quadro normativo aplicável ao recurso quando versa sobre matéria de facto.
Conforme previsto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Dispõe o artigo 640.º do CPC, sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
É conhecida a divergência jurisprudencial que existiu a respeito da aplicação deste normativo e da sua conjugação com o disposto no n.º 1 do art. 639.º do CPC, atinente ao ónus de alegar e formular conclusões, vindo o STJ a firmar jurisprudência no sentido do “conteúdo minimalista” das conclusões da alegação, conforme espelhado no acórdão do STJ de 06-12-2016 - Revista n.º 2373/11.0TBFAR.E1.S1 - 1.ª Secção, sumário citado na compilação de acórdãos do STJ, “Ónus de Impugnação da Matéria de Facto, Jurisprudência do STJ”, disponível em www.stj.pt, bem como o acórdão do STJ de 01-10-2015, no processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Nesta linha, conclui-se resultar da conjugação do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC que o ónus principal a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto.
Sempre sem perder de vista que, na decisão da matéria de facto, o Tribunal apenas pode considerar os factos essenciais que integram a causa de pedir (ou as exceções), bem como os factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa, e os factos de que tem conhecimento por via do exercício das suas funções (art. 5.º do CPC), estando-lhe vedado, por força do princípio da limitação dos atos consagrado no art. 130.º do CPC, conhecer de matéria que, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, se mostra irrelevante para a decisão de mérito. São manifestações do princípio dispositivo e do princípio da economia processual que se impõem ao juiz da 1.ª instância aquando da seleção da matéria de facto provada/não provada na sentença, mas também na 2.ª instância, no tocante à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Assim, conforme referido no acórdão da Relação de Lisboa de 27-11-2018, proferido no processo n.º 1660/14.0T8OER-E.L1, a jurisprudência dos Tribunais superiores vem reconhecendo que “a reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que sempre que se conclua que a reapreciação pretendida é inútil – seja porque a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso nos termos sustentados pelo recorrente, seja porque ainda que proceda a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesma – a reapreciação sobre matéria de facto não deve ter lugar, por constituir um ato absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º, e 138.º do CPC).” Neste sentido, além dos acórdãos aí citados - acórdãos da Relação de Guimarães de 10-09-2015, no processo 639/13.4TTBRG.G1, e 11-07-2017, no processo n.º 5527/16.0T8GMR.G1, da Relação do Porto de 01-06-2017, no processo n.º 35/16.1T8AMT-A.P1, e do STJ de 13-07-2017, no processo 442/15.7T8PVZ.P1.S1) -, veja-se ainda o acórdão do STJ de 17-05-2017, no processo n.º 4111/13.4TBBRG.G1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Ora, face ao teor das conclusões da alegação de recurso (e, em particular, à pretensão formulada a final), parece-nos que a Apelante não pretende ver alterada a decisão da matéria de facto quanto a concretos pontos de facto, tão pouco indicando a decisão que, no seu entender, devia ter sido proferida a esse respeito (por exemplo, terem sido dados como não provados factos que deviam ter sido considerados provados), muito menos especificando os concretos meios probatórios constantes do processo que impunham uma decisão diferente.
Limita-se a Apelante a fazer considerações vagas e genéricas, confundindo inclusivamente questões de facto com questões de direito, sem respeitar o disposto no art. 640.º do CPC, tudo para concluir no sentido da repetição do julgamento.
Logo, se a sua pretensão foi impugnar a decisão da matéria, não pode deixar de ser rejeitada.
Ainda que assim não se entenda, tão pouco pode ser atendida tal pretensão, pois, pelas razões de direito que adiante iremos indicar, mostra-se absolutamente inútil conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto a respeito dos factos a que se alude na alegação em apreço, mormente dos que foram considerados não provados.
Mantem-se, pois, inalterada a decisão da matéria de facto.
3.ª questão – Do abuso do direito
Defende a Apelante que a Ré, ao demandá-la na presente ação, abusa do direito, já que na ação anteriormente intentada defendeu a inocência da ora Ré.
A Apelada discorda, afirmando que sempre foi clara a sua posição no sentido de, caso viesse a ser condenada, exercer o direito de regresso, tanto assim que requereu aí a intervenção acessória da Ré.
O direito de ação está consagrado no art. 2.º, n.º 2, do CPC: a todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente. Este direito encontra arrimo constitucional no princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva - cf. art. 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Sendo o direito de ação, à semelhança de outros, exercido de forma abusiva, com ofensa do princípio geral da boa-fé, é convocado o instituto do abuso do direito consagrado no art. 334.º do CC, na conceção objetiva: basta que exista um excesso patente dos limites impostos pela boa-fé, não se tornando necessário que tenha havido a consciência de se excederem esses limites. A este respeito, na tarefa de determinar quais os limites impostos pela boa-fé ou pelos bons costumes, o julgador deverá atender às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, devendo ainda, para apurar do fim social ou económico do direito, considerar os juízos de valor positivamente consagrados na lei.
No acórdão do STJ de 21-09-1993 in CJ III - 19, que não resistimos a citar pela atualidade dessas palavras, explicava-se “a complexa figura do abuso do direito é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social (...) em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso do direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito, dito de outro modo, o abuso do direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica envolve o seu reconhecimento”.
A doutrina, em que avulta Menezes Cordeiro, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1.º Vol. 1987/88, pág. 373 e seguintes, e a jurisprudência dos tribunais superiores, vêm elaborando uma série de hipóteses típicas concretizadoras da cláusula geral da boa-fé, em que avulta precisamente a proibição de venire contra factum proprium, que visa impedir uma pretensão incompatível ou contraditória com a anterior conduta do pretendente.
De salientar ainda os ensinamentos de Baptista Machado, no estudo Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, in “Obra Dispersa”, Vol. I, págs. 415 a 418, e RLJ anos 116, 117 e 118, n.º 3735, págs. 171 e seguintes, explicando que o funcionamento do instituto depende da verificação de três pressupostos:
1.º) Uma situação de confiança, isto é, uma conduta ou omissão (simples passividade) de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura; por outras palavras, uma conduta ou omissão (inércia) que desperta na contraparte a convicção de que também no futuro se comportará, coerentemente, da mesma maneira;
2.º) Um investimento na confiança, o que significa que a contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos (não removíveis ou dificilmente removíveis a não ser com a paralisação do direito) se aquela confiança vier a ser frustrada;
3.º) A boa-fé da contraparte que confiou, ou seja, que a contraparte tenha agido tomando o cuidado e as precauções usuais no tráfego jurídico, desconhecendo uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real.
Volvendo ao caso sub judice, desde já se salienta não resultar dos factos provados se a Autora, ora Apelada, se “bateu” (ou não), na anterior ação, pela “inocência” da Ré.
Porém, tendo nesses autos deduzido o chamamento (intervenção acessória) da ora Ré, é seguro afirmar, atento o disposto no art. 321.º do CPC, que a ora Autora o fez invocando o direito à ação de regresso contra aquela (para ser indemnizada do prejuízo que lhe causaria a condenação). Portanto, é óbvio que a aqui Autora pela forma como se defendeu nesse outro processo - pugnando pela sua própria absolvição do pedido e fosse qual fosse a sua defesa -, não estava a criar uma situação de confiança, na qual a ora Ré pudesse “investir”.
Não se vislumbra nenhuma das hipóteses típicas do abuso do direito, acima descritas, designadamente o venire contra factum proprium, improcedendo, neste particular, as conclusões da alegação de recurso.
4.ª questão – Do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de estupefacientes e a ocorrência do acidente
Defende a Apelante que para o reconhecimento do direito de regresso invocado pela Autora tinha de ter resultado provado que a presença de produto psicotrópico no corpo da condutora/aqui recorrente, era “perturbador da sua aptidão física, mental ou psicológica” para a condução.
A Apelada argumenta que o direito de regresso já está reconhecido por decisão transitada em julgado, impondo-se a autoridade do caso julgado assim formado; acrescenta que, se assim não se entender, deverá igualmente concluir-se que lhe assiste um tal direito, já que o mesmo não depende do aludido nexo causal.
Na sentença recorrida, teceram-se as seguintes considerações de direito:
“A alegação e prova dos factos constitutivos do direito cujo pedido de reconhecimento é formulado em juízo incumbe ao Autor, razão pela qual a não demonstração dos pressupostos de factos e de direito em que se fundamenta a causa terá que conduzir à sua improcedência, conforme aplicação conjugada dos artigos 342.º do Código Civil e 414.º e 552.º, n.º1, al. d) do Código de Processo Civil.
Naturalmente incumbe ao Réu a alegação e prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado, nos termos do artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.
Posto isto - concretizado o critério da decisão - cumpre analisar.
Antes de mais, impõe-se salientar que a A exerceu acção de regresso contra a R, decorrente do facto de ter procedido ao pagamento de uma indemnização decorrente de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, reconhecida, por decisão transitada em julgado. E faz assentar o seu pedido, no facto de em tal acção ter sido reconhecida a responsabilidade da condutora na produção do sinistro e o consumo de substancia estupefaciente. Em suma, em tal sentença foi-lhe reconhecida a existência de direito de regresso.
A causa de pedir foi, pois, perspectivada à luz da acção de regresso.
Em rigor, está, pois, sob apreciação o pedido de pagamento de quantia despendida pela A, em cumprimento de Sentença transitado em julgado, proferida em autos nos quais a ora R teve intervenção e que, nessa medida, a vinculam quanto à existência e termos da responsabilidade.
Com efeito, o pedido de reconhecimento de direito de regresso contra a condutora, com fundamento no que dispõe expressamente a al. c) do artigo 27.° do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (Seguro Obrigatório) assenta na referida decisão e, também, na verificação do pagamento.
Assim, a procedência da acção de regresso dependia apenas da demonstração do pagamento, uma vez que se mostram provados, por decisão transitada, os factos relativos à responsabilidade e seus termos, tendo a douta sentença concluído no sentido do reconhecimento de tal direito de regresso (no exacto pressuposto da demonstração do pagamento).
Tendo a A demonstrado o pagamento, impõe-se, sem mais delongas, reconhecer o seu direito de regresso, sobre a R, uma vez que esta, ao encetar condução sob a influência de substâncias estupefacientes se colocou fora da margem de risco protegido pelo contrato de seguro.
Em suma, a acção procede, por força da demonstração de pagamento, que dá cumprimento ao decidido e, nessa medida, integra o preenchimento dos pressupostos do direito de regresso.
*
Lateralmente, sempre se dirá que não obstante o interesse da questão doutrinária suscitada quanto ao âmbito de aplicação do artigo 27.º, n.º1, al. c) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (Seguro Obrigatório), a possibilidade da sua apreciação sempre se mostraria esgotada, face ao trânsito em julgado da decisão já proferida quanto a tal matéria.
A questão de saber se sobre a Companhia de Seguros impende o ónus de demonstração da causalidade entre o consumo e a produção do acidente, como suscitada pela R, mostra-se, pois, ultrapassada, na medida em que o direito de regresso foi, já, judicialmente reconhecido.
Finalmente, e ainda que de forma lateral, impõe-se que, em face da matéria que resultou provada, o consumo verificado sempre seria causalmente adequado à produção do sinistro.
Assim, ainda que, por hipótese, se pudesse perfilhar o entendimento exposto pela R e se admitisse a possibilidade de conhecimento de tal matéria nestes autos, a oposição sempre improcederia, por não demonstrada, sob uma perspectiva factual, por não se ter provado a versão apresentada pela R.
Nestes termos, é devido o pagamento da quantia satisfeita, pela A, a título de capital (cfr. artigo 524.º do Código Civil)”.
O direito de regresso da Seguradora está legalmente consagrado no art. 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08, que aprovou o Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), prevendo designadamente que:
“1 - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
a) Contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente;
b) Contra os autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente, bem como, subsidiariamente, o condutor do veículo objecto de tais crimes que os devesse conhecer e causador do acidente;
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos;
d) Contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado; (…)”
Para o caso em apreço interessa a alínea c), que veio substituir o preceituado no art. 19.º, al. c), do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31-12 (que aprovou o Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), nos termos do qual:
“Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:
(…) c) Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado;”.
Ora, a alteração legislativa não deixa margem para dúvida sobre a desnecessidade de prova pela seguradora do nexo causal entre o consumo de estupefacientes e o facto ilícito-culposo que ocasionou o acidente. A este respeito e a título meramente exemplificativo, destacamos, ainda que a propósito da condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, o acórdão do STJ de 06-04-2017, no processo n.º 1658/14.9TBVLG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt:
“1. A alteração legislativa corporizada na art. 27º, nº1, alínea c) do DL 291/2007 (apagando a expressão agido sob influência do álcool e substituindo-a pelo - muito mais objectivado - segmento normativo conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida) teve como consequência dispensar a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta, cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução, - e que despoletou o acidente - e a situação de alcoolemia, envolvendo a normal e provável diminuição dos reflexos e capacidade reactiva do condutor alcoolizado.
2. Assim, o sentido a atribuir ao regime normativo introduzido pelo DL 291/07 é o de ter estabelecido uma presunção legal, assente nas regras ou máximas de experiência, na normalidade das situações da vida, segundo a qual o concreto erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado – e que consubstancia a responsabilidade subjectiva por facto ilícito que lhe é imputada - se deveu causalmente à taxa de alcoolemia verificada objectivamente por meios técnicos adequados – deixando naturalmente a parte beneficiada pelo estabelecimento desta presunção legal de estar onerada com a prova efectiva do facto a que conduz a presunção, nos termos do art. 350º, nº1, do CC.
3. O direito de regresso invocado pela seguradora apenas se verificará, porém, na medida em que o acidente e o evento danoso sejam de imputar a um facto culposo do condutor, não abrangendo a parcela correspondente à medida em que o agravamento dos danos é antes de imputar à concorrência de um facto culposo do próprio lesado, justificando a aplicação do regime contido no art. 570º do CC”.
Na doutrina, destacamos Mafalda Miranda Barbosa, no artigo Direito de regresso no caso de seguro automóvel obrigatório: a taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido e o problema da “causalidade”, in Cadernos de Direito Privado n.º 50 Abril/Junho 2015, págs. 22-45, debruçando-se esta autora com profundidade sobre o problema de saber se a seguradora pode exercer automaticamente o direito de regresso ou se terá de provar o nexo de causalidade entre a influência do álcool e a causação do acidente do qual resultam danos. Citamos, pelo seu interesse, algumas passagens (cf. págs. 44-45), em que esta autora conclui que a seguradora cumprirá o seu ónus probatório ao provar a existência do acidente e a taxa de alcoolémia superior ao permitido por lei. A recondução da lesão dos direitos/interesses àquela esfera de risco assim edificada (por mediação da norma) traduz-se num juízo normativo a levar a cabo pelo próprio tribunal. Para tanto, haverá que ter em conta outras esferas de risco, mas a sua comprovação em concreto não fica dependente da prova que seja oferecida pela seguradora, antes correspondendo a um ónus de contraprova do demandado na ação de regresso. (…)
Se pensarmos num caso como aquele em que A causa um acidente por conduzir em excesso de velocidade, detetando-se no sangue uma taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido, dificilmente se conseguirá provar a inevitabilidade entre a causa anterior (excesso de álcool) e a causa posterior (excesso de velocidade), de modo a qualificar a primeira como a causa próxima. Esta prova diabólica acabaria por frustrar a intencionalidade normativa do art. 27.º,n.º 1, alínea c), do DL n.º 291/2007, tornando praticamente impossível a efetivação do direito de regresso da seguradora. Por outro lado, a este nível, são mobilizadas as regras delituais e, em rigor, esta busca da causa próxima não corresponde ao sentido imputacional que preside ao mundo aquiliano. Aí, o nosso ângulo de análise não se focaliza no plano do ser, mas no plano do dever-ser, ou seja, não erigimos um juízo de inevitabilidade entre causa e consequência, mas indagamos o alcance das esferas de responsabilidade em jogo, assumindo um ponto de vista verdadeiramente imputacional.
Ora, o direito de regresso comunga de uma dupla finalidade: por um lado, ele deve ser vista como um mecanismo de salvaguarda do sentido da responsabilização do lesante, evitando a absoluta socialização do risco; por outro lado, ele deve ser entendido como um instrumento de salvaguarda do equilíbrio contratual que foi quebrado. Se tivermos em conta a primeira finalidade, concluiremos que não há justificação para uma quebra da unidade nos critérios de determinação da responsabilidade, donde o esquema imputacional esboçado deve continuar operante. Se tivermos em conta a segunda finalidade, podemos considerar que, ao conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente permitida, o condutor não só violou os deveres de segurança no tráfego em relação ao lesado, como chamou a si o risco de suportar o prejuízo. Quer isto dizer que o juízo imputacional não deve ser substituído pela procura da causa efectiva ou da causa próxima, segundo a posição de alguns autores.
Quererá isto significar que, afinal, aderimos à posição que rejeitámos ab initio, chegando, em última instância, à defesa da automaticidade do direito de regresso? O facto de se permitir ao lesante provar que a causa do acidente não foi a taxa de alcoolémia no sangue, por mais complexa que se afigure a prova negativa, leva-nos a responder negativamente a esta interrogação”.
Na sentença proferida na ação que correu termos no Tribunal da Comarca de Beja decidiu-se - bem ou mal, não importa - julgar que: “Nos exactos termos, tem a R [ora Autora] contra a Interveniente acidental RS… [ora Ré] direito de regresso nos termos do art. 27.º n.º 1 al. c) do D.L. n.º 291/2007, de 21 de Agosto.”
Tenha ou não essa sentença ido além do que era peticionado, porventura extraindo consequências que só na ação de regresso deviam ser retiradas, à luz do disposto no art. 323.º, n.º 4, do CPC, certo é que a citada decisão integra o dispositivo e não foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora (aliás, nem era objeto desse recurso).
O Tribunal recorrido considerou, por isso, que não podia discutir “os factos relativos à responsabilidade e seus termos, tendo a douta sentença concluído no sentido do reconhecimento de tal direito de regresso (no exacto pressuposto da demonstração do pagamento)”.
E a Apelada reitera isso mesmo.
Vejamos.
O n.º 4 do art. 323.º do CPC dispõe sobre os efeitos da sentença proferida na ação em relação ao interveniente acessório, estabelecendo que a sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no art. 332.º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior ação de indemnização. Como explica Salvador da Costa, in “Os Incidentes da Instância”, 2016, 8.ª edição, Almedina, págs. 116-118, resulta “assim deste normativo que o âmbito do caso julgado material em relação ao chamado se circunscreve às questões de que dependa o direito de regresso do réu chamante.
O interveniente não é condenado nesta primeira ação, apenas ficando vinculado, em regra, a aceitar os factos dos quais derivou a condenação do primitivo réu, isto e, o que implementou o chamamento. Não é condenado a cumprir qualquer obrigação decorrente de pedido do autor, mas estende-se-lhe os efeitos do caso julgado da sentença final.
(…) Este incidente permite que se estendam ao chamado os efeitos do caso julgado da sentença, de modo a que não seja possível nem necessário que na subsequente ação de indemnização proposta pelo réu contra ele se voltem a discutir as questões já decididas no anterior processo.
Assim, em regra, na nova ação de indemnização em que figure como réu o chamado à intervenção, fica este vinculado ao conteúdo da respetiva sentença como prova plena dos factos nela estabelecidos relativamente ao direito definido e no que concerne às questões de que a acão de regresso dependa.
Ele pode, porém, na nova ação impugnar os referidos factos e o direito, se alegar e provar que a atitude do autor, ou seja, que o réu na ação anterior o impediu de fazer uso de alegações ou de meios de prova influentes na decisão final, ou que desconhecia a existência de alegações ou provas suscetíveis de influir naquela decisão, e que o autor as não usou intencionalmente ou com grave negligência”. Reponderando posição anterior, defende Salvador da Costa a legitimidade recursória do interveniente acessório quanto às sentenças que, pelo seu conteúdo, direta e efetivamente o afetem, por exemplo no que concerne aos pressupostos do direito de regresso.
Por outro lado, importa que tenhamos presente o disposto no art. 619.º do CPC: “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.”
De referir ainda que, conforme previsto na primeira parte do art. 621.º do CPC, “(A) sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…)”. O que, obviamente, implica uma cuidadosa interpretação da sentença, em ordem a percecionar claramente que limites e termos são esses.
Da salientar que a força obrigatória do caso julgado material se desdobra numa dupla eficácia (ou até tripla, se consideramos o “efeito preclusivo”):
- um efeito negativo - pela exceção dilatória, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação;
- e um efeito positivo - a autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito; verifica-se quando o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial da segunda ação.
A este respeito, veja-se, por exemplo, a explicação de Rui Pinto “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias” Julgar Online, novembro de 2018, págs. 6-7:
“O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem.
O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior [8 Assim, TEIXEIRA DE SOUSA, O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual), BMJ 325, 159].
Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veritate habetur.
Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.
(…) Explicado de outro modo, enquanto com o efeito negativo um ato processual decisório anterior obsta a um ato processual decisório posterior, com o efeito positivo um ato processual decisório anterior determina (ou pode determinar) o sentido de um ato processual decisório posterior.
II. O efeito negativo tem por destinatário os tribunais e apresenta natureza processual. Traduz-se na exceção dilatória de caso julgado.
O efeito positivo tem por destinatário as partes e os tribunais e apresenta diversa natureza, em razão do objeto da decisão. Assim, nas decisões que têm por objeto a relação processual o efeito positivo é estritamente processual; já nas decisões sobre o mérito da causa o efeito positivo é material – a sentença é título bastante de efeitos materiais”.
Na jurisprudência, veja-se, por exemplo, o acórdão do STJ de 05-12-2017, proferido na Revista n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1 - 1.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt
II - Ao caso julgado material são atribuídas duas funções que, embora distintas, se complementam: uma função positiva (“autoridade do caso julgado”) e uma função negativa (“exceção do caso julgado”). 
III - A função positiva opera por via de “autoridade de caso julgado”, que pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em ação anterior e que se inscreve, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda – não possa voltar a ser discutida. 
IV - A função negativa opera por via da “exceção dilatória do caso julgado”, pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir. 
Como é sabido, a exceção de caso julgado material encontra consagração legal como exceção dilatória no art. 577.º, al. i) do CPC. Pressupõe a repetição de uma causa em dois processos distintos, sendo seu requisito, conforme dispõe o n.º 1 do art. 580.º do mesmo código, que o primeiro desses processos tenha findado por decisão que já não admita recurso ordinário, isto é, que tenha transitado em julgado.
E, conforme expressamente previsto no n.º 2 do art. 580.º, a exceção do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, compreendendo-se, pois, que seja de conhecimento oficioso – cf. art. 578.º do CPC. Nas palavras de Alberto dos Reis, “Oposta a excepção de caso julgado e julgada procedente, o juiz absolve o réu do pedido [pois, no anterior Código, na versão então em vigor, era considerada uma exceção perentória], embora não chegue a conhecer do mérito da causa; e absolve-o fundado na força e autoridade do caso julgado constituído pela sentença anterior. Desta sorte, evita-se um novo julgamento de mérito da mesma causa, obsta-se a que o tribunal ou contradiga ou reproduza a decisão contida na primeira instância.” - in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume III, pág. 92.
Haverá uma repetição de causas quando se verifique uma identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (cf. art. 581.º CPC). A exigência desta tríplice identidade fixa os limites subjetivos e objetivos do caso julgado.
Relativamente aos limites subjetivos, a identidade dos sujeitos que releva para efeito da exceção de caso julgado é, como dispõe o art. 581.º, n.º 2, do CPC, a identidade jurídica. Assim, o caso julgado forma-se relativamente aos intervenientes no processo (pessoa singular ou coletiva) e ainda quanto aos sucessores na posição jurídica substantiva das partes, os quais, por sucessão mortis causa ou transmissão inter vivos, tenham assumido a posição jurídica de quem era parte no processo (independentemente da substituição se dar no decurso da ação, quer posteriormente à prolação da sentença), e quer se trate da parte vencedora, quer da parte vencida. Neste sentido, veja-se Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, págs. 722 e seguintes.
Quanto aos limites objetivos, estes traduzem-se na identidade do pedido e da causa de pedir. Para a primeira o que importa é a obtenção pelo autor (ou réu-reconvinte, quanto aos pedidos reconvencionais) do mesmo efeito jurídico que se tentara alcançar com a propositura da primeira ação (dedução de reconvenção), tenha ou não esse objetivo sido alcançado.
A este propósito, veja-se a seguinte passagem do sumário do acórdão do STJ de 05-12-2017, proferido na Revista n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1 - 1.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt: A identidade de pedido – que integra a tríplice identidade (…) – é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional – implícita ou explícita – pretendida pelo autor, no conteúdo e objeto do direito a tutelar e nos efeitos jurídicos pretendidos.
Já a identidade de causas de pedir supõe que os factos em que se fundamenta o direito alegado pelo autor (ou réu-reconvinte) têm de ser os mesmos nas várias ações em causa (cf. art. 581.º, n.º 4, do CPC).
Assim, haverá que conjugar a decisão do tribunal relativamente à pretensão do autor ou do réu reconvinte, concretizada no pedido ou na reconvenção, e delimitada em função da respetiva causa de pedir. Nas palavras de Antunes Varela, obra citada, pág. 712, “a ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado”.
Situações há em que, não obstante esta tríplice identidade não ocorra, designadamente por não existir uma coincidência de pedidos, se impõe a autoridade ou efeito positivo do caso julgado, na medida em que a decisão da causa tem como pressuposto o julgamento feito numa anterior ação sobre determinada questão concreta. Assim, como se explica no acórdão da Relação de Évora de 06-04-2017, proferido no processo n.º 5416/16.8T8STB-B.E1, disponível em www.dgsi.pt: I. A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil, o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido. II. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da identidade de sujeitos, de pedido e da causa de pedir, prevista no artigo 581º do Código de Processo Civil.
Vem sendo discutida a problemática da extensão do caso julgado material, se abrange apenas a decisão final ou também os respetivos fundamentos, incluindo o raciocínio lógico que conduziu à mesma. Neste último sentido, encontra-se, a título exemplificativo, o acórdão da Relação de Lisboa de 15-03-2011, no processo n.º 956/10.5TVLSB-B.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, em que se considerou que o caso julgado abrange a parte decisória da sentença ou despacho, bem como os fundamentos de facto e de direito pressupostos da parte dispositiva, funcionando como exceção dilatória, quando os objetos de ambos os processos coincidem integralmente, ou como autoridade, quando existe uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois.
Parece-nos, contudo, que uma coisa é certa: não é possível retirar apenas da fundamentação (de facto e/ou de direito) de uma sentença um qualquer efeito negativo ou positivo, pois o caso julgado só se verifica em relação a questões suscitadas e apreciadas numa ação e que devam considerar-se abrangidas, ainda que de forma não expressa, nos precisos limites e termos em que julga.
Daí que, como se decidiu no acórdão do STJ de 07-03-2017, proferido na Revista n.º 740/10.6TBPRG.G1.S1 - 2.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt:
 I - Em tese geral, o caso julgado forma-se sobre a decisão proferida na acção e não sobre os fundamentos de facto da decisão. 
II - Os fundamentos de facto, isto é, as decisões proferidas sobre as concretas questões de facto colocadas numa acção não valem por si mesmas, não são vinculativas quando desligadas da respectiva decisão; valem apenas enquanto fundamentos dessa decisão e em conjunto com ela. 
III - Se a decisão proferida numa acção não constitui caso julgado impeditivo da decisão de outra, a eventual contradição entre factos provados (e não provados) numa e noutra será irrelevante e, como tal, nunca legitimará a anulação do julgamento posterior para eliminação dessa incompatibilidade factual constatada entre processos diferentes. 
E também no acórdão do STJ de 14-03-2017, na Revista n.º 3154/15.8T8PRT.S1- 1.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt:
I - A exceção dilatória do caso julgado «destina-se a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual», pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações (contendo uma delas decisão já transitada) e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir. 
II - A autoridade de caso julgado «tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica», pressupondo a vinculação de um tribunal de uma ação posterior ao decidido numa ação anterior, ou seja, que a decisão de determinada questão (proferida em ação anterior e que se inscreve, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda) não possa voltar a ser discutida.  III - Não ocorre exceção de caso julgado se não há identidade entre os pedidos formulados nas duas ações, sendo distinto o pedido de nulidade do contrato com a consequente restituição das prestações realizadas em execução do mesmo do pedido de reparação de dano em sede de responsabilidade civil. 
IV - Não se verifica a autoridade do caso julgado se na primeira ação não se mostra decidida qualquer questão que possa modificar ou desaparecer o fundamento da segunda: naquela, o direito a indemnização por eventuais danos sofridos tem por base a nulidade dos contratos; nesta, esse direito de indemnização é fundamentado em responsabilidade civil contratual, pressupondo a validade dos mesmos.   
Veja-se ainda o acórdão do STJ de 05-12-2017, proferido na Revista n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1 - 1.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt:
V - Objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado. 
(…) VII - Temporalmente, o caso julgado é limitado ao encerramento da discussão em 1.ª instância, implicando a preclusão da invocação, no processo subsequente, das questões que, apesar de anteriores àquele momento, não foram – podendo ter sido – suscitadas no processo com decisão transitada. A referência temporal do caso julgado consubstancia, deste modo, um momento preclusivo. 
A situação em apreço tem algo de inusitado, por já nos depararmos com uma decisão de reconhecimento do direito de regresso na sentença do Tribunal da Comarca de Beja, invocando a Apelada, do mesmo passo, a verificação da exceção dilatória de caso julgado e o respeito pela autoridade do caso julgado.
Não nos parece que estejamos perante uma tal exceção, até porque, obviamente, nenhum pedido foi pela ora Autora deduzido na ação que contra si foi primeiramente intentada.
A interpretação da sentença que o Tribunal recorrido fez parece-nos constituir uma solução mais acertada, aceitando a autoridade do caso julgado, considerando que “a procedência da acção de regresso dependia apenas da demonstração do pagamento, uma vez que se mostram provados, por decisão transitada, os factos relativos à responsabilidade e seus termos”.
No fundo, o Tribunal recorrido interpretou a sentença de 2015 em consonância com o efeito positivo do caso julgado e sem violar o que resulta do disposto no n.º 4 do art. 323.º do CPC, nos termos do qual a sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no art. 332.º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior ação de indemnização. Não nos merece, por isso, censura a sentença recorrida, neste particular.
Mas não deixou o Tribunal recorrido de afirmar, para o caso de assim não se entender, que, “em face da matéria que resultou provada, o consumo verificado sempre seria causalmente adequado à produção do sinistro”, não tendo a Ré logrado provar a sua versão dos factos. Ora, a este respeito, já não podemos acompanhar as considerações laterais tecidas na sentença recorrida.
Na verdade, conforme resulta das considerações que acima fizemos a respeito do preceituado pelo art. 27.º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, essa questão nem se devia colocar, pois, como defende a Apelada, esta não tinha de efectuar neste processo qualquer prova quanto a um alegado nexo de causalidade entre o consumo de estupefacientes e a “culpa pelo acidente”.
Por isso, é desprovida de sentido a argumentação da Apelante a este propósito, designadamente quando afirma que “O Tribunal recorrido faz uma interpretação errada do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 27 do DL 291/2007, de 21 de agosto, concluindo que o simples facto da recorrente ter acusado um consumo de estupefaciente (que aliás, não se sabe quando ocorreu) por si só, é suficiente para a sua condenação nestes autos, independentemente da TOTAL AUSÊNCIA de nexo de casualidade entre esse facto e o dano” (conclusão 26), insistindo nesta ideia, de forma repetitiva, ao longo das suas conclusões.
Para o reconhecimento do direito de regresso é irrelevante a questão de saber se a concreta atuação da Ré (grosso modo, a condução descuidada que fazia e que consubstancia a responsabilidade subjetiva por facto ilícito que lhe é imputada) se deveu causalmente à circunstância de ter consumido estupefacientes conforme acusou. Deparamo-nos aqui, conforme referido no acórdão do STJ de 06-04-2017 supra citado, com uma presunção legal, que a Apelante não podia ilidir.
Podia sim, mas na ação que correu termos no Tribunal da Comarca de Beja, ter feito contraprova dos factos (aí alegados pelo Autor) atinentes à dinâmica do acidente, incluindo quanto à sua condução sob o efeito de substância estupefaciente, em ordem a demonstrar que o embate dos veículos não se deveu a um facto voluntário, ilícito e culposo por ela praticado. O que, conforme resulta da matéria de facto provada (e que nos presentes autos não pode ser questionada – cf. art. 323.º, n.º 4, do CPC), não logrou fazer.
Com efeito, provou-se, além do mais, que, quando o veículo IZ (conduzido pelo ali Autor) efetuava uma ligeira curva à sua direita, atento o seu sentido de marcha, foi surpreendido pelo TQ, que, conduzido pela ora Ré com imperícia e desatenção, vinha em travagem, obliquamente ao seu sentido de marcha, dando-se o embate na faixa de rodagem do IZ a cerca de um metro da linha divisória; isto porque a sua condutora deixou o veículo ir à berma, que é de terra batida e acelerou para que o TQ voltasse ao asfalto, e, ao apanhar piso firme e porque vinha em aceleração, o TQ ganhou velocidade, razão porque a respetiva condutora travou a fundo, não conseguindo, porém, evitar que o TQ ultrapassasse a linha divisória e invadisse a faixa de rodagem contrária. Em face desta dinâmica do acidente, é manifesto que foi a condução desastrada e negligente da Ré, invadindo a faixa de rodagem contrária, que ocasionou o embate dos veículos.
Nem a Apelante diz o contrário, já que até reconhece a respeito da culpa na produção do acidente “que, efetivamente o Tribunal da Relação de Évora deu como provada ser da aqui recorrente, não cumprindo, pois, agora, no âmbito desta ação discutir essa matéria novamente”.
Insiste, todavia, na necessidade de prova pela Autora de factos irrelevantes para a decisão da causa, sustentando que aquela devia ter provado (o que não fez) “que foi o consumo de estupefaciente que esteve na origem do acidente”. Mas, na verdade, o que importa é que se provou que, à data do acidente, a ora Ré conduzia sob o efeito de estupefacientes, tendo acusado a presença das substâncias indicadas no ponto 8., sendo de salientar que a própria Ré reconhece que acusou esse consumo, designadamente quando afirma que “a recorrida teria que fazer prova nestes autos, de que o consumo de produto estupefaciente que a recorrente efetivamente acusou, era suficiente para lhe causar perturbação na condução, ao ponto de colocar em causa a segurança rodoviária, e tivesse contribuído para o acidente” (conclusão 14), bem como quando reconhece a “presença desses vestígios de produto estupefaciente” (cf. conclusão 41) ou de “vestígios de substancia psicotrópica identificados no respetivo exame toxicológico” (conclusão 20) ou ainda que “a recorrente acusou no respetivo exame toxicológico, o consumo de substâncias estupefaciente” (conclusão 22) e que “fica demonstrado que a aqui recorrente acusou vestígios do produto estupefaciente no exame ao sangue que lhe foi efetuado” (conclusões 24 e 25).
Note-se que, contrariamente ao que a Ré defende (cf. conclusões 27) é irrelevante saber se o consumo de estupefacientes aconteceu no próprio dia ou em data anterior, pois o que importa é que, à data do acidente, a Ré ainda acusou esse consumo, conduzindo sob o seu efeito. O mesmo se diga, aliás, quanto ao consumo de álcool: se um condutor tiver ingerido bebidas alcoólicas num dia e, no dia seguinte, ainda estiver embriagado, apresentando uma taxa de alcoolemia superior ao limite legal, é quanto basta.
Também é incorreto afirmar, como faz a Apelante, que o “que legitima a aqui recorrida a aqui recorrida a peticionar o direito de regresso contra a recorrente foi o consumo de produto estupefaciente, e não a culpa pelo acidente, nos termos em que foi decidido pelo Tribunal da Relação de Évora.” Na verdade, quer o consumo de produto estupefaciente que a Ré acusou, quer a sua atuação ilícita e culposa que ocasionou o acidente são o que, juntamente com o pagamento da indemnização ao lesado efetuado pela Autora, nos termos em que foi condenada, “legitima” a pretensão desta.
À Ré incumbia ter alegado e provado, na ação anterior, em que foi interveniente acessória, que a causa do acidente nada teve a ver com o facto de ter acusado o consumo de estupefacientes e conduzir sob o efeito destes, sendo certo que não o fez. Aliás, nem sequer na presente ação, a Ré alegou uma versão alternativa da dinâmica do acidente que permitisse afastar o juízo imputacional que advém de ter violado a proibição de conduzir sob a influência de substâncias psicotrópicas (cf. art. 81.º do Código da Estrada), sendo certo que foi a sua condução descuidada que, como vimos, ocasionou a ocorrência do acidente.
Ora, como também se provou (e não se discute) que a Autora pagou à Ré as quantias peticionadas, estão verificados os pressupostos do direito de regresso.
Fica, assim, prejudicado apreciar se dos factos provados resulta a verificação de um tal nexo causal entre o consumo/influência de estupefacientes e a forma como a Ré conduzia.
Em complemento do que acima referimos a respeito da 2.ª questão, cumpre acrescentar que, nada mais havendo que apurar ou podendo ser apurado (tendo em conta o disposto no art. 323.º, n.º 4, do CPC) de substantivamente relevante para a decisão da causa, sempre seria inútil conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto, improcedendo as conclusões a esse respeito, em particular as que a Apelante dedica a atacar o caso julgado material da sentença do Tribunal da Comarca de Beja, como se vê, por exemplo, nas conclusões 22, 23, 26 e 27 da sua alegação.
Se a Ré porventura pretendesse demonstrar que não conduzia sob o efeito de estupefaciente e não ter acusado o consumo do mesmo (pondo em causa os resultados do relatório do exame toxicológico acima referido), tal factualidade, porque apreciada na ação primeiramente intentada, na qual a Ré foi chamada a intervir (por via de incidente de intervenção acessória), não pode já ser discutida nos presentes autos, conforme decorre do disposto no art. 323.º, n.º 4, do CPC.
Finalmente, retomando a apreciação da 1.ª questão, conclui-se pela improcedência, parcial, das conclusões da alegação de recurso, confirmando-se, ainda que por diferente fundamentação, o despacho recorrido, já que, a perícia, sendo destinada à prova de factos irrelevantes para a decisão da causa, se mostra inútil (cf. art. 130.º do CPC), sendo também, como é óbvio, inútil ouvir o perito em esclarecimentos sobre essa matéria de facto.
Inutilidade que decorre ainda da circunstância de a decisão da matéria de facto que nela se baseou não se mostrar sequer devidamente impugnada no presente recurso, conforme acima referido.
Assim, conclui-se que deve ser negado provimento a ambos os recursos.
Vencida a Apelante, é a responsável pelo pagamento das custas do presente recurso (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). Todavia, uma vez que beneficia do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (conforme ofício junto aos autos), não será condenada no respetivo pagamento (artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, º 26.º e 29.º do Regulamento das Custas Processuais).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento a ambos os recursos e, em consequência, confirmar o despacho e a sentença recorridos.
Não se condena a Apelante no pagamento das custas do recurso atento o apoio judiciário de que beneficia.
D.N.

Lisboa, 19-12-2019
Laurinda Gemas
Gabriela Cunha Rodrigues
Arlindo Crua