Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
22219/15.0T8SNT.L1-1
Relator: AFONSO HENRIQUE
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PESSOA SINGULAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O processo especial de revitalização/PER não é aplicável a pessoas singulares fora do “giro comercial”.

(Sumário elaborado pelo Relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA.



I-RELATÓRIO:



TA, devidamente identificada nos autos, instaurou processo especial de revitalização (PER) no intuito de encetar negociações visando a sua recuperação.

Alegou, em suma, exercer a actividade de gestora de projecto na "LS", auferir cerca de €1900 de retribuição, não possuir qualquer empresa em seu nome ter contraído diversas dívidas cujo pagamento não consegue satisfazer, por não ter património e a sua retribuição mensal ser insuficiente para o efeito.

Foi exarado despacho liminar do seguinte teor:
“-…-

Apreciando:

A instituição do PER ocorreu por via da Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, num contexto de acentuada crise de mercado e visou sobretudo a regeneração do tecido económico empresarial, conferindo ao CIRE uma actuação do princípio da recuperação que aparentemente teria sido menosprezada com a redacção inicial do CIRE (2004), cujo acento tónico residia na declaração de insolvência e gerava nos agentes económicos a ela sujeitos um estigma que a aprovação de um plano de insolvência tornava difícil de eliminar e dificultava a manutenção da confiança no giro comercial, essencial na vida de qualquer empresa.

Na própria exposição de motivos subjacente à Lei acima identificada é realçado que o propósito do PER reside na promoção da manutenção do devedor no giro comercial quando tal se afigure viável, e que "a presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas".

Pode dizer-se sem grande sobressalto que existe nesta solução um interesse da própria economia em propiciar soluções de continuidade na sobrevivência de agentes económicos capazes, com o auxílio dos credores, de continuar a contribuir para a criação de riqueza para o país.

Parece assim, das considerações expostas, que os destinatários da instituição do PER são os devedores que constituam empresas ou pessoas singulares que sejam titulares de empresas enquanto unidades produtivas que têm por objectivo a prossecução do lucro.
Ademais, como refere a doutrina, seria incoerente e representaria um desperdício intolerável de meios o colocar à disposição das pessoas singulares o acesso a um procedimento de revitalização, com todos os custos envolvidos, quando o CIRE prevê expressamente um meio específico para os devedores singulares (não empresários) obterem a sua recuperação com a anuência dos credores - o plano de pagamentos previsto no art.251º e ss, do CIRE - vide ainda a este propósito Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in, CIRE Anotado, 3a edição, Quid Juris, pág. 140.
Também a jurisprudência dos tribunais superiores, ainda que não seja de forma unânime, vem acolhendo o entendimento restritivo do alcance do art.17°-A, n.º 2, do CIRE, por forma a abranger unicamente a empresa ou o devedor empresário - vide Ac. do TRE, de 09-07-2015, proferido no proc. n.º 718/15.3 TBSTR.E1, e Ac. do TRE, de 19-09-2015, proferido no proc. n.º 531/15.8 T8STR.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Em suma, com os fundamentos acima descritos, deve o art.17°-A, n.º 2 ser interpretado de forma restritiva, para que a qualidade de devedor ali referida se reporte a uma empresa ou pessoa singular que seja titular de empresa (empresário) - art.9°, n.º 1, do CC.

No caso em apreço, o PER foi requerido por devedor que é uma pessoa singular não titular de empresa e, por isso, destituída de legitimidade para o efeito.

Pelo exposto, indefere-se liminarmente a abertura de processo especial de revitalização requerida por TA.
Custas a cargo da requerente - art.527°, do CPC.
Valor tributário: € 63.000,00 - arts.301° e 15°, do CIRE.
-…-”

Desta decisão veio a requerente recorrer, recurso esse que foi admitido com sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

E fundamentou o respectivo recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

I.Vem o presente recurso interposto do Douto Despacho proferido nos autos supra referidos em 08.1.2015, que decidiu indeferir liminarmente o pedido de abertura de processo especial de revitalização (art.º 17 e seguintes do CIRE) da requerente, pelo facto desta ser uma pessoa singular.
II.A questão é só uma e reveste simplicidade, o mecanismo "Plano Especial de Revitalização" (vulgarmente conhecido como PER) legalmente introduzido em 2012 no CIRE pode, ou não, ser usado pelas pessoas singulares que pretendam, através dele, recuperar-se do ponto de vista económico? 
III.No caso do PER (artigos 17- A a art.º 17- I do CIRE) em momento algum o legislador inviabiliza a aplicação daquele normativo às pessoas singulares.
IV.Logo no art.º 17 - A n.º 1 diz que “O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente” acrescentando depois no n.º 2 desse artigo que “O processo referido no número anterior pode ser utilizado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação”.
V.Da leitura do art.º 2 do CIRE o legislador, na mesma alínea a), diz que podem ser objecto de processo de insolvência: “Quaisquer pessoas singulares ou colectivas”; criando o legislador, logo no início do código, que salvo situações que decorrem da própria natureza do ente insolvente, a convicção de que o procedimento processual da insolvência é o mesmo para as pessoas colectivas e pessoas singulares.
VI.No próprio PER existe um normativo que claramente se refere à possibilidade de outro devedor que não uma pessoa colectiva, efectivamente, no art.º 17 D n.º 11 a lei diz que “O devedor, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso daquele ser uma pessoa colectiva, são solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores”.
VII.De forma clara é referido que os devedores, sendo ou não pessoa colectivas, os seus administradores de direito ou de facto podem ser responsabilizados por prejuízos causados aos credores no caso de prestarem informações falsas ou incorrectas no âmbito da negociação do PER.
VIII.Outro fundamento defendido pelo Tribunal, reconhecido na doutrina portuguesa é o de que o PER não deve ser aplicado às pessoas singulares pelo simples facto de que o CIRE, na parte especial que se refere apenas às pessoas singulares, contempla a possibilidade de um plano de pagamentos.
IX.Defende o tribunal a quo que a existência de um mecanismo (o PER) semelhante ao plano de pagamentos regulado nos artigos 251.° e seguintes do CIRE, de que as pessoas singulares se pudessem recorrer, determinaria a inutilidade do primeiro na medida em que se estariam a repetir actos que acarretam, obviamente, custos a todos os intervenientes processuais.
X.Mal anda o Tribunal e, porque não dizê-lo, a doutrina portuguesa, ao concluir pela inutilidade do PER quando existe a possibilidade de aprovação de um plano de pagamentos, esquecendo-se que as pessoas colectivas também têm regulado no CIRE um mecanismo semelhante, denominado Plano de Insolvência.
XI.Além de que, e não menos importante, a aprovação do plano de pagamentos previsto no art.º 249.° e ss. do CIRE implica necessariamente a declaração de insolvência das pessoas singulares nos termos do art.º 259.º n.º 1 do CIRE.
XII.E no PER, caso este seja aprovado e homologado, o devedor pessoa singular não é declarado insolvente.
XIII.O que se afigura com uma diferença a ter consideração e digna de tutela e que leva muitas pessoas singulares a recorrer ao PER evitando o plano de pagamentos no qual há uma declaração de insolvência que decorre da aprovação e homologação do plano.
XIV.Neste sentido, decidiu o Acórdão da Relação de Évora, de 09.07.2015, processo n.º 1518/14.3T8STR.E1: “O regime do PER aplica-se a qualquer devedor seja ele, pessoa singular, pessoa colectiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a qualquer dos requisitos - cfr. art°s.1º n.º 2, 2 n.º 1 e art°17°- A, n.º 1, do CIRE.”
Por todo o exposto deve a decisão ser revogada e substituída por outra que admita o processo especial de revitalização para o apelante enquanto pessoa singular.

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- Foram dispensados os vistos aos Exmos. Adjuntos.

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APRECIANDO E DECIDINDO.

Thema decidendum.

Em função das conclusões do recurso, temos que dirimir a seguinte questão:
- O mecanismo “Plano Especial de Revitalização” (vulgarmente conhecido como PER) legalmente introduzido em 2012 no CIRE pode, ou não, ser usado pelas pessoas singulares que pretendam, através dele, recuperar-se do ponto de vista económico, concretamente, no caso da requerente.

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Sabemos que o processo especial de revitalização/PER foi introduzido pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril que veio alterar o paradigma do Código de Insolvência.

Segundo o artº1º nº1 do CIRE, “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.

O escopo deste tipo de processo é o de ajudar o funcionamento da economia, designadamente, em tempo de crise, criando mecanismos, essencialmente extrajudiciais, que permitam obter consenso entre devedores e credores.

Porém, a iniciativa do processo terá que partir do próprio interessado, ou seja, do devedor, já que é esta qualidade que lhe dá legitimidade para usar tal mecanismo.

O PER tem natureza voluntária e extrajudicial, com a preocupação subjacente de proteger o devedor de processos de insolvência.

Por isso, é expectável que seja sobre o devedor que recaia o esforço de evitar a sua declaração de insolvência, tentando colaborar com os seus credores, para juntos alcançarem uma solução que a todos minimamente satisfaça.

Por outro lado, a apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial ou, existindo vícios corrigíveis, ao do respectivo suprimento – artº28º do CIRE.

Entrando na questão decidendi.

Como supra referimos ao delimitar o tema a tratar, este Tribunal de Recurso é convocado a apreciar e decidir se a requerente/devedora, enquanto pessoa singular e por se encontrar em situação económica difícil, pode, ou não, beneficiar do analisado processo de revitalização previsto no arts.17º e seguintes do CIRE.

Recorrendo ao elemento histórico de certo modo expresso na “Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30 de Dezembro de 2011”:
o principal objectivo prosseguido por esta revisão (do CIRE, introduzindo, nomeadamente o denominado PER) passa por reorientar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas/CIRE, privilegiando sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial (…); o processo/PER visa propiciar a revitalização do devedor em dificuldade, naturalmente sem pôr em causa as respectivas obrigações legais, designadamente para regularização de dívidas no âmbito das relações com a administração fiscal e a segurança social (…); pretende assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual (…) a presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao «desaparecimento» dos agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas”.

Segundo a recorrente o processo de revitalização deve ser aplicado a qualquer devedor que se encontre em situação difícil consubstanciada na impossibilidade de cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente, por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito, o que seria o caso da requerente.

Acontece que segundo a relação de credores apresentada, nos termos do artº24º nº1 b) do CIRE, os créditos em dívidas são quase na totalidade resultantes do uso de cartão de créditos e atingem o montante de €162.568,00, sendo que as prestações mensais totalizam €1.400,00.

Por sua vez, o seu património está valorizado em €63.000,00 e no exercício da sua actividade de gestora de projecto na "LS", aufere cerca de €1.900,00 de retribuição.

Entendemos, alicerçados no mencionado elemento histórico que, “o processo especial de revitalização foi construído em torno da ideia da recuperação de agentes económicos, ou seja, de comerciantes, de empresários ou de quem exerce uma actividade autónoma e por conta própria que gera receita e/ou cria emprego, não sendo aplicável a pessoas singulares que não sejam devedores empresários” – neste sentido, o recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12-10-2015 (pº1304/15.3T8STS.P1), publicitado in, www.dgsi.pt -.

Como referem Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Diniz, “o devedor pode não ter liquidez ou património para cumprir as suas obrigações, mas ainda ter viabilidade económica” – in, “PER/PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO, COMENTÁRIOS AOS ARTºS.17-A a 17-I DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E D RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS – COIMBRA EDITORA”, concretamente, em anotação ao artº17-A, pag.15.

Ora, não é isso que se verifica in casu nem, na nossa modesta opinião, o PER é aplicável a pessoas singulares fora do “giro comercial”, o que pressupõe um negócio dessa índole mesmo que irregular.

Deve, por isso, o recurso não ser atendido, embora com fundamentos não exactamente coincidentes com os explicitados na decisão objecto de recurso.

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Sumário:
- O processo especial de revitalização/PER não é aplicável a pessoas singulares fora do “giro comercial”.

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DECISÃO:

- Assim e pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Relação (1ª Secção) acordam em julgar improcedente a apelação e consequentemente, mantêm o decidido pelo Tribunal a quo.
- Custas pela apelante.


Lisboa, 24-11-2015


Relator: Afonso Henrique C. Ferreira
1º Adjunto: Rui M. Torres Vouga
2º Adjunto: Maria do Rosário P. P. Gonçalves