Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
174/20.4T8PDL.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: DIREITO À IMAGEM
PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS
REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) A imagem vídeo de uma pessoa constitui dado pessoal.
II) A relação de comissão para os efeitos da responsabilidade civil extra-contratual, verifica-se, em círculos concêntricos alternativos de maior densidade relacional, quando: 1. exista uma relação de subordinação do comissário em relação ao comitente no exercício da actividade: 2. se verifique uma repercussão directa e exclusiva da actividade do comitente na esfera jurídica do comissário; ou 3. os resultados se repercutam directamente na esfera jurídica do comitente e a actividade não corresponda a uma função autonomamente exercida pelo comissário.
III) Provando-se apenas que a Recorrente encomendou a promoção dos seus produtos/marca/actividade comercial através de um vídeo e da gestão das suas redes pessoais, não se encontram demonstrados factos suficientes a integrar a relação de comissão.
IV) A utilização pela Recorrente, na promoção da sua actividade empresarial, do vídeo com a imagem do Autor enquadra-se na noção de tratamento de dados pessoais a que aludem os artigos 3.º, alínea b) , da lei 67/98, e o artigo 4.º, n.º 2 , do RGPD.
V) A utilização com aquela indicada finalidade, tendo esta sido contratada com a co-Ré, constitui a Recorrente na responsabilidade pelo tratamento dos dados pessoais contidos no vídeo difundido em seu nome e para sua promoção.
VI) A qualidade de responsável pelo tratamento investe a Recorrente em obrigações de cuidado que se encontravam expressas no artigo 14.º da ALPD e actualmente no artigo 24.º, n.º 1, do RGPD.
VII) A omissão deste dever de cuidado constitui a Recorrente em responsabilidade civil pela reparação dos danos que a divulgação da imagem do Autor causou, nos termos do artigo 486.º, n.º 1, do Código Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO
S…, menor de idade, com os demais sinais dos autos, representado por sua mãe, R..., veio instaurar a presente acção declarativa com processo comum contra H…, UNIPESSOAL, LDA., L…, LD.ª, e J…, todos com os sinais dos autos, pedindo a condenação solidária dos Réus a:
a) Omitirem do vídeo promocional em questão a imagem do Autor, em todas as plataformas de informação em que o mesmo se encontre actualmente em divulgação;
b) Pagarem indemnização ao Autor no valor de 10.000,00 € (dez mil euros), acrescida de juros de mora contabilizados à taxa legal desde a data da respectiva citação até ao efectivo e integral cumprimento da obrigação em falta.
Alegou para tanto, em síntese, que a primeira Ré encomendou a promoção da sua marca à segunda Ré, de quem o terceiro Réu é sócio gerente, promoção que incluía a realização de um vídeo e a gestão das redes sociais da primeira Ré pela segunda, constando do vídeo a imagem do Autor quando se encontrava numa praia dos Açores, sem que a captação da imagem, feita pelo terceiro Réu, ou a sua divulgação, tivessem sido objecto de autorização. Mais alegou que a violação do direito à imagem, causadora de danos, justifica a indemnização e a supressão das imagens ilicitamente captadas e divulgadas.
 Apenas a primeira Ré apresentou contestação na qual excepcionou a excepção de erro na forma de processo, defendendo ser adequada a forma prevista nos artigos 878.º a 880.º, do Código de Processo Civil, e de ilegitimidade activa, invocando a este título a irregularidade de representação do Autor apenas por sua mãe, por entender que a intervenção principal do pai, requerida na petição, não era o meio adequado a obter a sua autorização para a instauração da acção.
A Ré contestou também por impugnação, alegando que só com a citação teve conhecimento dos factos invocados, os quais foram praticados pelos seus co-Réus sem conhecimento, autorização ou comissão sua, tendo-se limitado a encomendar à segunda Ré serviços de marketing para activação de marca com vídeo, os quais incluíam a divulgação do vídeo, também feita pela segunda Ré (e que a contestante não pode reverter ou alterar), em nada beneficiando com a publicação da imagem do menor, a qual era irrelevante a esse título, já que o público alvo da referida acção era o público adulto. Mais alegou que o menor aparece em escassos segundo, sem singularização, surge numa gravação com muitas outras pessoas e num contexto público, o da praia onde decorria um evento patrocinado pela Ré, devidamente anunciado, tendo o terceiro Réu comunicado que ia recolher imagens. Por fim, invoca que da própria petição consta que a angústia e sofrimento causados não o foram ao Autor, mas às pessoas do seu ambiente familiar.
Foi citado o pai do Autor, G…, e decidido que nada dizendo, como não disse, se encontrava regularizada a representação.
Foi ordenada a notificação do Autor para responder às excepções, o que fez, pronunciando-se pela improcedência.
Foi proferido despacho dispensando a audiência prévia e julgando improcedentes as excepções de erro na forma de processo e de ilegitimidade activa.
Cumprido o demais legal, houve audiência de julgamento.
Após o encerramento da audiência, o Réu J…. informou ter retirado o vídeo promocional em causa, a pedido da primeira Ré, embora sem reconhecer a identidade do menor nesse vídeo.
Foi ordenada a notificação das demais partes para se pronunciarem.
O Autor pronunciou-se salientando a facilidade com que a retirada do vídeo ocorreu o que, defende, evidencia a insensibilidade para os seus pedidos anteriores nesse sentido, destacando ainda que a omissão do vídeo em nada invalida ou obsta ao dano verificado, e pedido b) da Petição Inicial.
A primeira Ré pronunciou-se no sentido da inutilidade superveniente da lide.
Sem mais, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, decidindo nos termos que se transcrevem:
Face ao exposto, e atentas as disposições legais supra citadas, julgo a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, condeno solidariamente:
a) os RR. …..a eliminar do vídeo promocional a imagem do A. …., o que terá de acontecer em todas as plataformas de informação em que o mesmo se encontre em divulgação;
b) os RR. no pagamento ao A. S… da quantia de €1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação e até ao integral e efectivo pagamento.
A Ré interpôs o presente recurso dessa sentença e, alegando, concluiu como segue as suas alegações:
1.° - Quanto à al. a) da decisão recorrida, não pode a ora recorrente ser condenada na eliminação do vídeo porque a conduta (de divulgação do vídeo) só pode ser imputada à 2.ª R.: foi a 2.ª R. e é a 2.ª R. que, nos serviços de marketing contratados, gere as redes sociais da 1.ª R., como resulta dos factos provados e da respetiva fundamentação;
2.° - No que se refere à al. b), não estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, em especial o facto voluntário do agente e o nexo de causalidade;
3.º - O único facto que se imputa proceder de conduta da ora recorrente é ter contratado à 2.ª R. a prestação de serviços na área do marketing (factos 4 e 5);
4.º - Relativamente a todos os demais factos provados, a i.a R. não pode exercer domínio sobre a sua vontade, pelo que nenhuma conduta lhe pode ser imputada em termos de responsabilidade civil, a não ser ter contratado a 2.ª R.
5.º - E tão pouco existe qualquer nexo de causalidade adequada entre as condutas praticadas pela ora recorrente e o alegado dano em termos de gerar a sua responsabilização, porque, como se disse, o único que se imputa à ora R. é ter contratado a 2.ª R. Lim9 e esse facto nenhum dano gerou ao A..
6.º - Para que ocorra a responsabilidade solidária, é necessário que o mesmo dano derive de diversas acções de vários sujeitos responsáveis, conjuntamente concorrentes para a sua produção, o que neste caso inexiste.
7.º - Sem prescindir, o valor fixado a título de danos patrimoniais é exagerado.
8.° - A sentença recorrida viola os artigos 70.º, 79.º, 483.º e 497.º, do Cód. Civil. 
Termos em que, nos melhores de Direito, deve ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que, julgando procedente esta apelação, absolva a R. dos pedidos, por assim ser de Direito e JUSTIÇA!
Foram apresentadas contra-alegações defendendo o julgado.
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, nomeadamente a questão da admissibilidade do recurso diferida para acórdão por despacho da Relatora.
II) OBJECTO DO RECURSO
Tendo em atenção as conclusões da Recorrente - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre apreciar as seguintes questões:
1. Da admissibilidade do recurso
2. Do mérito da apelação, a saber, da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil da Recorrente.
III) FUNDAMENTAÇÃO
1. QUESTÃO PRÉVIA
Entende o Recorrido que o recurso não é admissível por se reportar a decisão que condenou a Recorrente a pagar uma indemnização no valor de €1.250,00, valor que é inferior a metade da alçada do tribunal recorrido.
Defende a Recorrente que foi condenada a pagar essa indemnização e, também, a omitir do vídeo promocional as imagens do Autor, devendo considerar-se que tal determina que o decaimento não seja inferior à alçada de primeira instância.
Apreciando se antecipa que entendemos ter razão a Recorrente.
Se é certo que o decaimento quanto à indemnização é inferior a metade da alçada do tribunal recorrido – de € 5.000,00, nos termos do artigo 44.º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ) -, não é menos certo que a Recorrente foi ainda condenada a omitir a imagem do Autor do vídeo promocional, como resulta da sentença que. aliás, acima transcrevemos.
Não está determinado nos autos o valor específico deste pedido, o que determina fundada dúvida quanto ao valor da sucumbência, caso em que a lei manda atender apenas ao valor da causa na apreciação da admissibilidade do recurso quanto ao valor, como resulta do artigo 629.º, n.º 1, in fine.
Assim, foi bem admitido o recurso, o que decidimos.
2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Estão assentes os seguintes factos constantes da decisão de primeira instância, na ausência de impugnação procedente ou reapreciação oficiosa:
1. O A. … nasceu a 31 de Março de 2011, na freguesia de São Sebastião, concelho de Ponta Delgada, e é filho de ….
2. Em Dezembro de 2017, a mãe do A. tomou conhecimento da existência de um vídeo promocional divulgado nas redes sociais (que tem a duração de 2:45 minutos), do qual consta a imagem captada deste.
3. A imagem da criança surge ao 8.º segundo do 2.º minuto, captada na praia das……., concelho de Ponta Delgada, sendo visível o perfil do S….de fato-de-banho a brincar, saltando da zona da plataforma do nadador-salvador para o areal da praia, não tendo, para o efeito, sido dado o respectivo consentimento.
4. Desde o ano de 2016 que a 2.ª R. Lim9, representada pelo 3.º R., presta à 1.ª R.  serviços na área da consultoria e marketing, em especial a gestão das suas redes sociais, e à elaboração de campanhas promocionais.
5. As imagens foram captadas para a 2.ª R. que prestou o serviço de marketing respeitante à “activação de marca com vídeo” contratado pela 1.ª R. , que se dedica à actividade de depilação, a adultos, a laser e a luz pulsada.
6. O serviço referido em 5. foi facturado pela 2.ª R.à 1.ª R., e teve o custo de €2.729,18.
7. A 2.ª R.  procedeu à divulgação do vídeo referido em 3. no canal youtube, encontrando-se, em 10 de Fevereiro de 2021 (mormente à hora em que foi realizada a audiência final), acessível ao público no link: https://www.youtube.com/watch?v=UxtmEPiRJNE.
8. O 3.º R. J…a veio, pelas 13:53 horas do dia 10 de Fevereiro de 2021, informar que o vídeo foi “retirado do ar”.
3. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. O Autor pediu a condenação dos Réus a ressarci-lo dos danos sofridos em consequência de violação do seu direito à imagem, no caso interessando a que respeita à Recorrente.
A Recorrente defende que nenhuma acção sua foi alegada como determinando aqueles danos, uma vez que a única que lhe é imputada é a de ter contratado a segunda Ré para acção de marketing e de gestão das suas redes comerciais.
A respeito, consta da petição, o seguinte:
25. As imagens em questão foram captadas por  (3.º Réu);
26. Que o fez para a entidade  (2.ª Ré), da qual é sócio-gerente.
27. Entidade esta que, por sua vez, comercializou o vídeo e imagens do menor, actualmente pertencentes à entidade ª (1.ª Ré).
28. A captação da imagem do menor
 visou o mero fim de aproveitamento económico e lucrativo em favor de todos os Réus.
Provou-se o seguinte:
4. Desde o ano de 2016 que a 2.ª R. representada pelo 3.º R. a, presta à 1.ª R.  serviços na área da consultoria e marketing, em especial a gestão das suas redes sociais, e à elaboração de campanhas promocionais.
5. As imagens foram captadas para a 2.ª R. que prestou o serviço de marketing respeitante à “activação de marca com vídeo” contratado pela 1.ª R. , que se dedica à actividade de depilação, a adultos, a laser e a luz pulsada.
6. O serviço referido em 5. foi facturado pela 2.ª R.  1.ª R., e teve o custo de €2.729,18.
7. A 2.ª R. procedeu à divulgação do vídeo referido em 3. no canal youtube, encontrando-se, em 10 de Fevereiro de 2021 (mormente à hora em que foi realizada a audiência final), acessível ao público no link: https://www.youtube.com/watch?v=UxtmEPiRJNE.
2. Na relação entre o Autor e os Réus não está em causa qualquer dimensão contratual, encontrando-se, em consequência, excluída a ponderação de responsabilidade com fonte contratual. A questão coloca-se, por isso e como é pacífico nos autos, em sede de responsabilidade extra-contratual.
3. O regime geral da responsabilidade civil extra-contratual tem como pressupostos a ocorrência de um facto ilícito e culposo, a sua imputação ao agente, como acção ou omissão, a ocorrência de danos indemnizáveis e a relação de causalidade entre o facto e os danos.
É o que resulta do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil: aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
4. O facto ilícito imputado no caso concreto consiste na captação da imagem do Autor e na sua utilização num vídeo promocional, sem consentimento.
O artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República, consagra o direito de cada pessoa à imagem como um direito pessoal, consagração que encontra protecção ao nível legal no artigo 79.º, n.º 1, do Código Civil.
O direito à  imagem  tem  duas  vertentes - a captação  e a  difusão  da  imagem -, na expressão do Tribunal Constitucional[1]: o direito ao controlo da recolha e utilização do retrato (à "autodeterminação" em relação à informação pessoal em que consiste a imagem).
Enquanto direito pessoal relacionado com a autonomia e a identidade, os direitos à palavra e à imagem incluem o direito a que não sejam registadas ou divulgadas palavras ou imagens da pessoa sem o seu consentimento, conferindo assim um direito à “reserva” e à “transitoriedade” da palavra falada e da imagem pessoal[2].
No caso não se verifica nenhuma situação de facto passível de integrar a previsão do artigo 79.º, n.º 2, do Código Civil.
O regime do Código Civil é congruente com o das posteriores leis de protecção de dados vigentes à data dos factos. Estes tiveram início pelo menos em Dezembro de 2017 (altura em que a vídeo foi visto pela mãe do Autor) e prolongaram-se até 10 de Fevereiro de 2021, data da audiência de julgamento.
Tendo em atenção este lapso temporal, há que considerar o regime da Lei Lei 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Protecção de Dados Pessoais – doravante ALPDP), o da Lei 58/2019, de 8 de Agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais – doravante NLPDP), que revogou a primeira, e o do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016 (doravante RGPD), aplicável a partir de 25 de maio de 2018 (artigo 99.º, n.º 2).
A imagem constitui dado pessoal, conforme resulta do Código Civil como dissemos, e, também, de qualquer um destes regimes.
A ALPDP refere-o no artigo 3.º, alínea a)[3], e o mesmo sentido se pode extrair do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016 (doravante RGPD), quando define o que deve entender-se por dado pessoal, no artigo 4.º, n.º 1[4], a que a NLPDP deu execução.
Nenhuma das situações de licitude estabelecidas nestes diplomas se verifica no caso, como resulta do artigo 6.º da ALPDP[5] ou do artigo 6.º do RGHPD[6] as situações de licitude do tratamento, entre as quais se não enquadra a situação dos autos.
Verifica-se assim o requisito facto ilícito, o que a Recorrente verdadeiramente reconhece.
5. O que a Recorrente não reconhece é que esse facto lhe possa ser imputado em termos geradores de responsabilidade civil.
A respeito sublinha que tanto a captação como a divulgação da imagem foram praticadas pelos seus co-Réus, por ter estabelecido um acordo com a segunda Ré (de que o Réu é gerente), no sentido de lhe prestar serviços de gestão das suas redes sociais e de elaboração de campanhas promocionais, entre as quais se inseria a que deu causa à demanda. Ora, a captação foi feita através do Réu em nome da segunda Ré e a utilização da imagem foi feita pela segunda Ré no contexto da relação contratual com a Recorrente, a ela sendo imputável a colocação do vídeo em canal youtube.
Conforme resulta do confronto com os factos provados, maxime com os que acima se transcreveram, é essa a situação fáctica definida nos autos, face à qual importa dilucidar da imputabilidade do facto à Recorrente.
A Recorrente não captou nem difundiu a imagem do Autor, do que se provou. Não se provou também que, antes desta acção, tivesse conhecimento de que a imagem havia sido captada, ou de que o havia sido sem consentimento, ou de que era difundida sem esse consentimento.
Ora, a ilicitude da captação e da divulgação resulta no caso tão somente da inexistência de consentimento, não sendo patente da visualização das meras imagens.
A imputação enquanto acção à Recorrente apenas pode ser indirecta, através da imputação a algum título da actuação dos seus co-Réus ao captarem e difundirem aquela imagem para a acção promocional que a Autora com eles contratara.
6. Tal poderia resultar de se considerar que a segunda Ré agia enquanto comissária da Autora na actividade de captação e difusão da imagem, em termos de lhe ser imputável a actuação dos co-Réus nos termos do artigo 500.º, n.º 1, do Código Civil: aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia a obrigação de indemnizar.
A lei não define o que deva entender-se por comissão fora do caso não transponível da lei comercial.
A respeito da responsabilidade civil extracontratual a lei não define o que deve entender-se por comissão. Se esta figura encontra expressa previsão noutros diplomas, como ocorre em matéria de direito comercial, o certo é que os seus limites se mantêm formalmente indefinidos para efeitos de imputação da responsabilidade civil extracontratual[7].
A esse respeito, dizem Pires de Lima e Antunes Varela[8] que o termo comissão não tem aqui o sentido técnico, preciso, que reveste nos artigos 266.º e seguintes do Código Comercial, mas o sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo essa actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função dureadoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, etc..
Como indica o acórdão citado, existem outras perspectivas, quiçá menos exigentes, quanto à verificação de uma relação de comissão, referindo-se à indicada pelo Professor Menezes Leitão[9]:
Não parece, porém, que qualquer destas características [liberdade de escolha do comissário e nexo de subordinação] seja legalmente exigida para caracterizar o conceito de comissão. (…) quanto ao nexo de subordinação [a exigência] faria sentido se a concepção da responsabilidade do comitente se baseasse na doutrina do risco da autoridade. Ora, é manifesto que não é essa a solução do nosso direito, já que a responsabilidade do comitente se mantém mesmo que o comissário desrespeite as suas instruções ou actue intencionalmente (art.º 500.º, n.º 2), bastando que esteja no exercício da função.
Excluindo este Autor a liberdade de escolha e o nexo de subordinação como critérios da comissão, pela positiva, encontra-os em os actos nela compreendidos serem praticados exclusivamente no seu interesse e por conta sua, ou seja, suportando ele as despesas e os ganhos dessa actividade. Essa situação acontecerá no âmbito do contrato de trabalho (art. 1152.º), mas também no contrato de mandato (art.º 1157.º) e noutras situações em que os resultados da função confiada ao comissário se repercutem directamente na esfera do comitente[10].
E continua, excluindo de tal relação de comissão as situações em que, apesar de ser encomendado um serviço a outrem, esse serviço corresponda a uma função autonomamente exercida pelo devedor, a qual não lhe é por isso delegada por um comitente[11], incluindo as prestações de serviços como o depósito, a empreitada ou o transporte.
A relação de comissão para os efeitos da responsabilidade civil extra-contratual, verifica-se, em círculos concêntricos alternativos de maior densidade relacional, quando:
1. exista uma relação de subordinação do comissário em relação ao comitente no exercício da actividade:
2. se verifique uma repercussão directa e exclusiva da actividade do comitente na esfera jurídica do comissário;
ou
3. os resultados se repercutam directamente na esfera jurídica do comitente e a actividade não corresponda a uma função autonomamente exercida pelo comissário.
 Voltando ao caso concreto, há ou não há comissão? Não há, antecipamos a resposta, porque não resultaram provados (não foram sequer alegados) quaisquer factos que permitam concluir pela comissão em alguma das dimensões indicadas.
A única factualidade alegada foi a encomenda do serviço e a sua realização com benefício da Recorrente consistente na promoção dos seus produtos/marca/actividade comercial.
Não foi alegado nenhum facto relativo ao, mesmo que mínimo, domínio do facto pela Ré no que se reporta à opção pela captação e difusão da imagem do Autor sem o consentimento necessário.
Ora, a factualidade relativa à existência de uma relação de comissão assume a natureza de constitutiva do direto do Autor a quem incumbe a sua alegação e prova – artigos 342.º, n.º 1, do Código Civil, e 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
7. Poderá a imputação ocorrer enquanto omissão do comportamento de verificação do modo como as imagens pessoais eram captadas e difundidas pelas pessoas com quem a Recorrente contratou?
O disposto no artigo 386.º do Código Civil impõe que a imputação da eventual omissão apenas possa decorrer do dever de praticar o acto omitido, resultando esse dever da lei ou do negócio jurídico.
Não está em causa negócio jurídico que possa impor tal dever de se assegurar da licitude da captação e difusão da imagem do Autor.
8. Quanto à lei, argumenta o Recorrido com o disposto no artigo 7.º, n.º 2, alínea e), do Decreto-Lei 330/90, de 23 de Outubro (Código da Publicidade). A norma dispõe como segue:
Artigo 7.º
Princípio da licitude
1 - É proibida a publicidade que, pela sua forma, objecto ou fim, ofenda os valores, princípios e instituições fundamentais constitucionalmente consagrados.
2 - É proibida, nomeadamente, a publicidade que:
e) Utilize, sem autorização da própria, a imagem ou as palavras de alguma pessoa;
(…)
Na verdade, a norma não se ocupa do nexo de imputação do facto ao agente, a título de acção ou de omissão, mas da afirmação de proibição da publicidade que não respeite o direito à imagem. Não vemos que dela possa decorrer o dever de cuidado que funda a responsabilidade civil em face de conduta omissiva.
9. Outro lugar normativo pode ser ponderado como fonte do dever de cuidado: o das normas de protecção de dados pessoais que resultam dos regimes já indicados da ALPDP e do RGPD/NLPDP.
A questão é a de saber se destes regimes se pode extrair a vinculação da Recorrente a assegurar-se da licitude do tratamento da imagem do Autor difundida nas redes sociais em promoção da sua actividade empresarial.
Retomemos os factos para sublinhar que se encontra provado que a Recorrente utilizou na promoção da sua actividade empresarial a imagem do Autor, utilização que se manteve entre Dezembro de 2017 e Fevereiro de 2021.
Esta utilização enquadra-se na noção de tratamento de dados pessoais a que aludem os artigos 3.º, alínea b)[12], da ALPDP, e o artigo 4.º, n.º 2[13], do RGPD. Entendemos que, assim sendo, a utilização com aquela indicada finalidade, tendo esta sido contratada com a co-Ré, constitui a Recorrente na responsabilidade pelo tratamento dos dados pessoais que não pode ignorar estarem contidos no vídeo difundido em seu nome e para sua promoção.
É o que decorre do artigo 3.º, alínea d), da ALPDP[14], e do artigo 4.º, n.º 7, do RGPD[15].
A qualidade de responsável pelo tratamento investe a Recorrente em obrigações de cuidado que se encontravam expressas no artigo 14.º da ALPD:
Artigo 14.º
Segurança do tratamento
1 - O responsável pelo tratamento deve pôr em prática as medidas técnicas e organizativas adequadas para proteger os dados pessoais contra a destruição, acidental ou ilícita, a perda acidental, a alteração, a difusão ou o acesso não autorizados, nomeadamente quando o tratamento implicar a sua transmissão por rede, e contra qualquer outra forma de tratamento ilícito; estas medidas devem assegurar, atendendo aos conhecimentos técnicos disponíveis e aos custos resultantes da sua aplicação, um nível de segurança adequado em relação aos riscos que o tratamento apresenta e à natureza dos dados a proteger (nosso sublinhado).
E, posteriormente, pelo artigo 24.º, n.º 1, do RGPD:
Artigo 24.º
Responsabilidade do responsável pelo tratamento
1. Tendo em conta a natureza, o âmbito, o contexto e as finalidades do tratamento dos dados, bem como os riscos para os direitos e liberdades das pessoas singulares, cuja probabilidade e gravidade podem ser variáveis, o responsável pelo tratamento aplica as medidas técnicas e organizativas que forem adequadas para assegurar e poder comprovar que o tratamento é realizado em conformidade com o presente regulamento. Essas medidas são revistas e atualizadas consoante as necessidades (nosso sublinhado).
Destas normas resulta que a Recorrente na sua qualidade de responsável pelo tratamento tinha, no regime da ALPDP, e tem, no regime do RGPD/NLPDP, um dever de se assegurar da protecção dos dados pessoais que utiliza, dever a que o RGPDP acrescenta o de ter os meios de comprovar que tomou essas necessárias medidas.
Conclui-se que, nesta medida, é imputável à Recorrente a omissão deste dever de cuidado e a responsabilidade civil pela reparação dos danos que a divulgação da imagem do Autor causou.
10. Pretende a Recorrente que, mesmo a considerar-se responsável, como consideramos, o Autor não sofreu na realidade quaisquer danos na medida em que foram as pessoas que o rodeavam que os experimentaram, uma vez que a sua jovem idade não lhe permitiu sentir qualquer desgosto com a divulgação não autorizada da sua imagem.
Nada mais longe do regime jurídico que nos governa. Pelo contrário, as normas de protecção de dados pessoais atribuem um carácter reforçado à protecção de dados de pessoas de menor idade, sendo que a produção de danos pela divulgação da imagem não se limita aos sentimentos que quanto a ela possa experimentar a pessoa visada. Não são os sentimentos que são protegidos, mas o direito a não ver a sua imagem aproveitada por terceiros, sendo que a própria utilização nessas condições provoca em si mesma o dano.
11. Finalmente, defende a Recorrente que não pode ser condenada a retirar o vídeo pela simples razão de não ter os meios para o fazer, uma vez que quem os detém são os co-Réus, os quais, aliás, retiraram o vídeo após a audiência de julgamento.
Ora, está demonstrado que o vídeo foi retirado pelo terceiro Réu no dia da audiência de julgamento. Não está é provado que a Recorrente não tivesse os meios para o fazer.
O facto de o vídeo ter sido retirado não obsta à condenação, uma vez que a mesma assegura a coercibilidade de assim se manter a situação.
Improcede o recurso.

IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente – artigo 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Lisboa, 08-07-2020,
Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves
______________________________________________________
[1] Acórdão 81/2007, de 6 de Fevereiro de 2007.
[2] Assim, Jorge Miranda e Rui Medeiros in Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 289.
[3] a) 'Dados pessoais': qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável ('titular dos dados'); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social.
[4] «Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular.
[5] O tratamento de dados pessoais só pode ser efectuado se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento ou se o tratamento for necessário para:
a) Execução de contrato ou contratos em que o titular dos dados seja parte ou de diligências prévias à formação do contrato ou declaração da vontade negocial efectuadas a seu pedido;
b) Cumprimento de obrigação legal a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito;
c) Protecção de interesses vitais do titular dos dados, se este estiver física ou legalmente incapaz de dar o seu consentimento;
d) Execução de uma missão de interesse público ou no exercício de autoridade pública em que esteja investido o responsável pelo tratamento ou um terceiro a quem os dados sejam comunicados;
e) Prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados.
[6] 1.   O tratamento só é lícito se e na medida em que se verifique pelo menos uma das seguintes situações:
a)  O titular dos dados tiver dado o seu consentimento para o tratamento dos seus dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas;
b) O tratamento for necessário para a execução de um contrato no qual o titular dos dados é parte, ou para diligências pré-contratuais a pedido do titular dos dados;
c)  O tratamento for necessário para o cumprimento de uma obrigação jurídica a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito;
d) O tratamento for necessário para a defesa de interesses vitais do titular dos dados ou de outra pessoa singular;
e)  O tratamento for necessário ao exercício de funções de interesse público ou ao exercício da autoridade pública de que está investido o responsável pelo tratamento;
f) O tratamento for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros, exceto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança.
[7] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2015, proferido no processo 385/2002.E1.S1 (Abrantes Geraldes).
[8] In Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1987, p. 507.
[9] In Direito das Obrigações, Almedina, 15.ª edição,p. 368.
[10] Idem.
[11] Ibidem.
[12] 'Tratamento de dados pessoais' ('tratamento'): qualquer operação ou conjunto de operações sobre dados pessoais, efectuadas com ou sem meios automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a comunicação por transmissão, por difusão ou por qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão, bem como o bloqueio, apagamento ou destruição.
[13] «Tratamento», uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição.
[14] 'Responsável pelo tratamento': a pessoa singular ou colectiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outrem, determine as finalidades e os meios de tratamento dos dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios do tratamento sejam determinados por disposições legislativas ou regulamentares, o responsável pelo tratamento deve ser indicado na lei de organização e funcionamento ou no estatuto da entidade legal ou estatutariamente competente para tratar os dados pessoais em causa.
[15] «Responsável pelo tratamento», a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, a agência ou outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outras, determina as finalidades e os meios de tratamento de dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios desse tratamento sejam determinados pelo direito da União ou de um Estado-Membro, o responsável pelo tratamento ou os critérios específicos aplicáveis à sua nomeação podem ser previstos pelo direito da União ou de um Estado-Membro.