Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1899/19.2YRLSB-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO DE FACTO
EFEITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A evolução do entendimento do que seja decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro, implica já a ultrapassagem da dicotomia intervenção constativa ou performativa do oficial público, para exigir uma outra ordem de classificação: intervenção de oficial público com ou sem repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada.
2. No caso da escritura declaratória de união estável, a intervenção do oficial público prevista no sistema jurídico brasileiro autoriza, nomeadamente, o registo da situação de união de facto e a usufruição de direitos e privilégios atribuídos em razão dessa situação.
3. Envolvendo mais do que o mero reforço da força probatória, é susceptível de revisão por ser este o ponto específico que a revisão visa: produção de efeitos na ordem jurídica.
4. Mesmo a pressupor que a revisão solicitada tem como fito a inscrição em registo civil da situação de união de facto, entende-se que a atribuição de competência exclusiva visa apreciar a verificação dos requisitos de inscrição em registo, ao que se não destina a presente acção de revisão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO
A…, com os sinais dos autos, veio instaurar contra B, com os sinais dos autos, o que identificou como Acção de Revisão e Confirmação de Divórcio Estrangeiro, sendo que, porém, pede a revisão e confirmação de Escritura Pública Declaratória de União Estável lavrada em 15 de janeiro de 2015, no Cartório JK, 1º. Ofício de Notas e Protesto, no Distrito Federal, Comarca de Brasília, República Federativa do Brasil, pela qual foi declarada a União Estável com efeito retroativo à data de 7 de Abril de 2014, entre o Requerente e a Requerida que ainda se mantêm na mesma situação de união estável.
 Conclui pedindo a revisão e confirmação da Escritura Pública em questão, com todas as consequências legais, designadamente, as de a união de facto que a mesma decreta produzir todos os seus efeitos em Portugal.
 A Requerida veio prescindir do prazo para contestar por não o pretender fazer.
Foram juntos documentos destinados a comprovar a situação de união de facto.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de procedência do pedido de revisão.
Foi ordenada a notificação do Requerente, da Requerida e do Ministério Público para se pronunciarem sobre a possibilidade de ser não ser aplicável ao instrumento apresentado – escritura pública – a qualificação de decisão, ainda que administrativa, susceptível de revisão, indicando-se jurisprudência nesse sentido para ilustrar a questão colocada.
A Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta respondeu concluindo como no seu parecer anterior.
O Requerente e a Requerida nada disseram.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, já que a tal nada obsta.
II) SANEAMENTO
Não foram suscitadas nem se vê que existam excepções dilatórias, nulidades ou questões prévias susceptíveis de obstarem à apreciação do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Não há diligências a realizar.
A questão a decidir é a da admissibilidade da revisão do acto indicado pelo Requerente, apreciando-se previamente da delimitação dos termos do pedido.
III) QUESTÃO PRÉVIA
Vem pedida a revisão e confirmação da escritura pública em questão, com todas as consequências legais, designadamente, as de união de facto que a mesma decreta produzir todos os seus efeitos em Portugal.
A formulação do pedido deve reconduzir-se à sua formulação – revisão e confirmação da escritura para produzir efeitos em Portugal – sendo meramente exemplificativa a referência ao reconhecimento dos efeitos da união de facto, estranhos ao processo de revisão.
No entanto, como estes são indicados como exemplo do que sejam as consequências da decisão, não devem ser considerados como pedido autónomo por como tal não terem sido formulados. Aliás, sempre o pedido seria indevidamente genérico (artigo 556.º do CPC) e a forma processual em absoluto inidónea (artigo 978.º, do CPC).
IV) FUNDAMENTAÇÃO
1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Encontram-se assentes nos autos os seguintes factos, com base na escritura revidenda:
1.  Em 15 de Janeiro de 2015, em Brasília, República Federativa do Brasil, no 1.º Ofício de Notas e Protesto, perante o respectivo escrevente notarial, compareceram  ….. e C…, ambos de nacionalidade brasileira e residentes em Brasília, tendo declarado I – Que, desde o dia aos sete dias do mês de abril do ano de dois mil e quatorze (07/04/2014), mantêm entre si uma união estável, dando a esta união um carácter público, visando a constituição de uma família protegida nos termos da lei, respeitando-se mutuamente; II – Que, resolveram, de comum acordo, que o regime de bens a vigorar entre eles, em decorrência da união estável que ora mantêm, seja o da Comunhão Universal de Bens, tanto para os bens que cada um deles atualmente possuem, como para os que vierem a possuir na vigência da união, previsto no artigo 1.667, do Código Civil; III – Que, por vontade deles Declarantes, passam a ser mutuamente beneficiários de quaisque seguros, planos de saúde, pecúlio ou pensões, para os quais, eles, Declarantes, contribuam, valendo esta Declaração para todos os efeitos de inscrição nas instituições para as quais contribuem, bem como para todos os atos que dela dependam, inclusive junto a quaisquer órgãos públicos federais, estaduais, municipais, autárquicos, empresas públicas e privadas (…).
2. No acto referido em 1. o escrevente notarial fez constar ainda que os presentes são maiores e capazes, reconhecidos e identificados por mim,….., Escrevente Notarial, do que dou fé, em face dos documentos que me foram apresentados e de cujas capacidades jurídicas dou fé.   
2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
2.1. O pedido não foi impugnado, cumprindo apreciar, nos termos do artigo 978.º, do CPC, os pressupostos a que aludem as alíneas a) e f) do artigo 980.º, do CPC, e examinar o processo para verificação dos requisitos das demais alíneas.
2.2. O documento indicado para revisão não oferece dúvidas quanto à sua autenticidade e é claro o sentido do que dele consta, a saber, a declaração pelos intervenientes da existência de uma situação de união estável entre ambos e a determinação do respectivo regime.
2.3. O sistema jurídico português não prevê o instituto das parcerias registadas a que o regime de união estável será assimilável, pelo menos na sua potencialidade de registo. Pese embora, estatui efeitos para a união de facto, nomeadamente patrimoniais, integrando-se num regime jurídico mais amplo, o do Direito da União, que reconhece um instituto similar (sem ser idêntico) ao da união estável, o da parceria registada[1], e dispõe de diversos instrumentos legais que regulam o seu regime (veja-se o Regulamento (UE) 2016/1104 do Conselho, de 24 de junho de 2016).
Não se vê, assim, que o reconhecimento envolva situação incompatível com os princípios da ordem pública internacional da República Portuguesa.
2.4. A questão que se coloca, e que foi colocada às partes para pronúncia prévia à decisão do Tribunal, é a de saber se o instrumento cuja revisão é pedida se integra na previsão do artigo 978.º, n.º 1, do CPC, quando prevê a sua aplicação à revisão de decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro (n.º 1).
2.4.1. A jurisprudência dos tribunais superiores portugueses tem abordado a questão tanto a respeito das escrituras de divórcio consensual como das escrituras de união estável. No recente acórdão desta Relação, de 24 de Outubro de 2019, proferido no processo 2403/19.8YRLSB.L1-2 (Pedro Martins) é feito elenco exaustivo dos diversos arestos, dos fundamentos indicados e das decisões tomadas, que citamos com vénia sabendo que melhor não poderemos dizer:
I.– Ac. do STJ de 28/02/2019, proc. 106/18.0YRCBR.S1:
Nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o acto composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”, com a consequência de a escritura declaratória de união estável apresentada pelos requerentes não poder ser confirmada/revista.
Entre o mais, diz-se no acordão:
[…]O termo decisão sobre direitos privados deve interpretar-se em termos amplos.
Em primeiro lugar, embora se fale decisões proferidas por tribunal estrangeiro, o sentido do termo decisão deve interpretar-se em termos suficientemente amplos para abranger decisões proferidas seja por autoridades judiciais, seja por autoridades administrativas.
Em segundo lugar, embora haja uma diferença entre o sentido de uma declaração contendo um enunciado assertivo ou constativo e o sentido de uma declaração contendo um enunciado performativo - entre uma declaração, designadamente sob compromisso de honra, de que um facto é verdadeiro e uma declaração de que se quer que um efeito se produza, ou não se produza —, o sentido do termo decisão dos arts. 978 e 980 deve interpretar-se em termos de abranger, p. ex., as decisões que reconhecem uma determinada circunstância ou uma determinada qualidade.
Excluídas ficam contudo as decisões judiciais ou administrativas invocadas pelos requerentes como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal (art. 980/2 do CPC).
[...] O direito brasileiro não exige uma decisão judicial para o reconhecimento da união de facto […]
[…] O teor do art. 978/2 do CPC deixa claro que a confirmação / revisão da escritura declaratória de união estável não é necessária para que tenha eficácia em Portugal.
[…]
O alcance do termo decisão relevante para efeitos do art. 978 foi apreciado, designadamente, pelos acórdãos do STJ de 22/05/ 2013, no processo 687/12.1YRLSB.S1, e de 25/06/2013, no processo 623/12.5YRLSB.S1, concluindo-se em cada um dos acórdãos que abrange casos de “emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório”, e casos em que não há exactamente uma emissão formal de vontade — em que há, tão-só, “um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”.
Ora […] a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira [não] faz[…] com que o acto composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” — com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos requerentes não pode ser confirmada / revista.
II.–Ac. do STJ de 21/03/2019, proc. 559/18.6YRLSB.S1 (o 1º adjunto é o relator do acórdão I e III):
A declaração dos requerentes numa escritura pública declaratória de união estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que vivem, como se casados fossem, desde 15/03/1992, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 978/1 do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal.
Entre o mais diz-se no acórdão:
O acórdão do STJ de 25/06/2013 - a propósito da escritura pública prevista no artigo 1.124-A do CPC Brasileiro (Lei nº 5.869, de 11/01/1973), através da qual se pode realizar a separação consensual dos cônjuges, e prevista no art. 1.580 do CC/br -, decidiu que “os outorgantes não declaram a dissolução do vínculo conjugal. Pedem-na e o tabelião (notário) não se limita a testar as suas declarações, declara (decide) a dissolução, depois de verificados e preenchidos os requisitos legais”.
O caso dos presentes autos é diferente. Os requerentes não obtiveram na escritura uma decisão homologatória por parte do tabelião que possa servir de base à presente revisão. Apenas declararam que “vivem como se casados fossem desde 15/03/1992, convivência que se mantém duradoura, pública e contínua”.
Por conseguinte, estamos perante um simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa, ou seja, de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal, pelo que a mencionada escritura invocada pelos requerentes, fica excluída do processo de revisão de sentença estrangeira - artigo 978/2 do CPC.
III.–Ac. do STJ de 09/05/2019, proc. 828/18.5YRLSB.S1, (do mesmo colectivo do ac. do STJ de 28/02):
A escritura pública declaratória de união estável prevista pelo direito brasileiro não pode ser confirmada ou revista nos termos do art. 978 do CPC.
IV.–Ac. do TRL de 26/09/2019, proc. 1777/19.5YRLSB-2:
A escritura declaratória de união estável, prevista pelo direito brasileiro, não pode ser considerada ou revista nos termos do art. 978/1 do CPC, pois que não é “decisão” enquadrável na previsão desse preceito legal.
Este acórdão segue os três anteriores do STJ.
A este elenco soma-se o acórdão desta Relação de 17 de Outubro de 2010 (certamente ainda não publicado em bases de dados quando o que transcrevemos foi publicado), proferido no processo 1268/19.4YRLSB-8 (Teresa Prazeres Pais) que seguiu a doutrina do acórdão desta Relação de 26 de Setembro de 2019.
Em suma (que se encontra feita em detalhe no acórdão de que transcrevemos parte), encontra-se consolidada a jurisprudência no sentido de que as escrituras de divórcio consensual são assimiláveis a decisão estrangeira susceptível de revisão, com a menção incidental de que, nessas escrituras, o agente público homologa as declarações das partes.
Existem divergências na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações, nomeadamente nesta Relação de Lisboa, quanto à admissibilidade da revisão de escritura declaratória de união estável, divergências que se centram na integração da previsão do artigo 978.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Algumas decisões entendem que aquelas escrituras podem ser revistas por o seu efeito na ordem jurídica onde são realizadas ser similar ao de uma decisão judicial, outras entendem que o não devem ser, por a intervenção do oficial público se restringir à recolha das declarações das partes.
Sublinhe-se que concordamos inteiramente com o acórdão desta Relação de 24 de Outubro de 2019 quando refere que não é clara a diferença entre a intervenção do oficial público nas escrituras de divórcio consensual e nas declaratórias de união estável. Cita-se o passo sob menção:
Nestas escrituras notariais de divórcio não há qualquer intervenção do notário/tabelião, para além da elaboração da escritura. Ele não homologa nada e a escritura do divórcio serve para o registo civil do acto como se fosse uma sentença. Neste ponto concreto não se concorda com este pequeno argumento muito subsidiário dos dois acórdãos do STJ de 2013 quando sugerem que há homologação da escritura pelo notário (e note-se que também o acórdão do TS espanhol forçou a nota, falando num divórcio administrativo japonês, quando tudo indica que o divórcio era um divórcio privado japonês, porque o perfeito japonês não homologa nada). Mas, sendo assim, se realmente não há homologação nestes casos, não se pode dizer, como fazem os acórdãos do STJ de 28/02, 21/03 e 09/05/2019 que há essa diferença específica com o caso dos autos que justifique a reviravolta operada por eles. No caso das escrituras das uniões não há homologação, mas também nos casos dos divórcios em escrituras não há homologação (administrativa ou judicial). E qualquer simples leitura dessas escrituras confirma que assim é. O notário limita-se a tomar nota das declarações dos cônjuges, não as homologa.
E na verdade assim é. Importa então discernir qual o “local” onde se situa a fronteira da admissibilidade de revisão.
2.4.2. No caso dos autos o instrumento cuja revisão é pedida é uma escritura pública em que as partes declaram viver em união estável e estabelecem a tal respeito determinado regime (cf. ponto 1. dos factos assentes).
Numa primeira leitura, dir-se-ia que a escritura não tem as características de decisão proferida por tribunal estrangeiro.
Pese embora, a evolução do que deva entender-se por decisão proferida por tribunal estrangeiro tem merecido desenvolvimento concomitante com a desjudicialização de muitas áreas tradicionais de intervenção dos tribunais, mediante a atribuição a outros órgãos do Estado de funções que anteriormente lhe estavam cometidas.
Desjudicialização admitida pelo Tribunal Constitucional a propósito de diversas situações, como dá nota incidental o acórdão 123/2015, de 12 de Fevereiro de 2015:
Como ponto de partida, a Constituição não reserva em absoluto a dirimição de litígios à justiça estadual, seja pelo expresso acolhimento dos tribunais arbitrais constante do n.º 2 do artigo 209.º, seja pela previsão de poder a lei institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (artigo 202º, nº 4).
Em suma, a resposta de carácter especificamente judicial não se confunde com a intervenção a título jurisdicional, estando a primeira reservada para os tribunais e podendo a segunda ser cometida, sob determinadas circunstâncias, a outros órgãos do Estado.
Por isso que já há longo tempo vem sendo defendido que são passíveis de revisão instrumentos legais emitidos por entidades não judiciais no exercício de funções jurisdicionais. Nesse sentido a natureza de órgão jurisdicional pode caber a órgãos diferentes dos tribunais.
Quanto a este aspecto, veja-se o Regulamento (UE) 2014/1104 antes referido que, no seu artigo 3.º, estabelece as noções de acto autêntico, decisão e órgão jurisdicional.
É o seguinte o teor da norma, na parte pertinente:
Artigo 3.º
Definições
1. Para efeitos do presente regulamento, entende-se por:
a) «Parceria registada», o regime de vida em comum entre duas pessoas que é previsto por lei, cujo registo é obrigatório ao abrigo dessa lei e que satisfaz as formalidades legais exigidas por essa lei para o seu estabelecimento;
(…)
d) «Ato autêntico», um documento em matéria de efeitos patrimoniais da parceria registada que tenha sido formalmente redigido ou registado como ato autêntico num Estado-Membro e cuja autenticidade:
i) esteja associada à assinatura e ao conteúdo do ato autêntico, e
ii) tenha sido estabelecida por uma autoridade pública ou qualquer outra autoridade habilitada para o efeito pelo Estado-Membro de origem;
e) «Decisão», qualquer decisão em matéria de efeitos patrimoniais da parceria registada proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, independentemente da designação que lhe for dada, incluindo uma decisão sobre a fixação pelo secretário do órgão jurisdicional do montante das custas do processo;
(…)
2. Para efeitos do presente regulamento, a noção de «órgão jurisdicional» inclui os tribunais e todas as outras autoridades e profissionais do direito competentes em matéria de efeitos patrimoniais das parcerias registadas que exerçam funções jurisdicionais ou ajam no exercício de uma delegação de poderes conferida por um tribunal ou sob o seu controlo, desde que essas outras autoridades e profissionais do direito ofereçam garantias no que respeita à sua imparcialidade e ao direito de todas as partes a serem ouvidas, e desde que as suas decisões nos termos da lei do Estado--Membro onde estão estabelecidos:
a) Possam ser objeto de recurso perante um tribunal ou de controlo por este; e
b) Tenham força e efeitos equivalentes aos de uma decisão de um tribunal na mesma matéria.
Os Estados-Membros notificam à Comissão as outras autoridades e profissionais do direito a que se refere o primeiro parágrafo nos termos do artigo 64.º.
Independentemente da inaplicabilidade do Regulamento no caso concreto a que abaixo nos referiremos, são ilustrativas as definições a que chegou a União no que respeita a estes conceitos, operacionais no caso.
Ora, na situação sub judice não se trata de uma decisão com natureza jurisdicional emitida por um órgão não judicial, por um órgão que não é um tribunal. Trata-se de um instrumento jurídico que não é uma decisão, embora pressuponha a intervenção de uma autoridade pública.
A questão é assim a de saber qual o alcance desta intervenção da autoridade pública e, bem assim, se essa intervenção pode ser assimilada ao conceito de decisão. Na expressão do acórdão desta Relação de 24 de Outubro de 2019, na senda de arestos anteriores do Supremo Tribunal de Justiça, trata-se de saber se a intervenção constitui um mero acto de verificação ou se tem natureza performativa.
Diga-se que se entende que essa natureza performativa pode decorrer de o acto do oficial público alterar a realidade jurídica em si mesma – constituir a relação jurídica até aí inexistente – ou alterar os efeitos jurídicos da situação fáctica.
No caso, a intervenção do oficial público, do Notário, não é constitutiva da união de facto, não declara a união de facto ao mesmo título a que o oficial público declara o casamento ou o divórcio (quando o não seja por escritura pública). No primeiro caso, a união estável existe antes da intervenção do oficial público, não se constitui por esta intervenção. No segundo caso, a situação é constituída pela intervenção, o acto tem virtualidade de modificação da realidade: o casamento cessa pela declaração de divórcio.
Ou seja, o que importa é averiguar quais os efeitos da intervenção do oficial público na ordem jurídica em que essa mesma intervenção está prevista: os efeitos são de mera recepção das declarações e avaliação formal da capacidade de quem as emite ou têm repercussão externa, constituindo um plus face à mera declaração. Sendo que esse plus não pode residir na mera força probatória acrescida atribuída às declarações presenciadas pelo oficial público.
Ora, no caso da escritura declaratória de união estável, a intervenção do oficial público envolve mais do que a força probatória acrescida, uma vez que autoriza, nomeadamente, o registo da situação de união de facto e a usufruição de direitos e privilégios atribuídos em razão dessa situação.
Do mesmo modo quanto à intervenção do oficial público na escritura de divórcio consensual, uma vez que nenhuma decisão se encontra envolvida, como bem o sublinha o acórdão desta Relação de 24 de Outubro de 2019, no passo que a respeito transcrevemos e a que aderimos.
Em suma, a evolução do entendimento do que seja decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro, implica já a ultrapassagem da dicotomia intervenção constativa ou performativa do oficial público para exigir uma outra ordem de classificação: intervenção de oficial público com ou sem repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada.
Esta a fronteira a estabelecer para a admissibilidade da revisão, ultrapassada com está a da decisão judicial em sentido estrito e, bem assim, a da decisão de oficial público não tribunal.
Na verdade, a revisão de sentença estrangeira tem uma razão de ser que decorre desde logo do artigo 978.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: nenhuma decisão (…) tem eficácia em Portugal (…) sem estar revista e confirmada.
A tónica é colocada na eficácia em território português. Admitindo, como a jurisprudência portuguesa admite, o alargamento da noção de decisão judicial à decisão de órgão público caucionada nos seus efeitos pelo sistema jurídico, é esta dimensão performativa que importa – intervenção com efeitos no sistema jurídico em que é prevista e realizada. Dizendo de outro modo, a intervenção com repercussão performativa, para além do mero reforço da força probatória, é susceptível de revisão por ser este o ponto específico que a revisão visa: produção de efeitos na ordem jurídica.
A união estável é um facto e não um acto jurídico. A intervenção do oficial público prevista no sistema jurídico brasileiro é constitutiva, no sentido de produzir efeitos na ordem jurídica, nomeadamente o declarativo da verificação da situação de união estável.
Concluímos assim que a jurisprudência cunhada pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto às escrituras de divórcio consensual implica o seu alargamento às escrituras declaratórias de união estável, nos termos reconhecidos pelo acórdão daquele Tribunal de 29 de Janeiro de 2019, proferida no processo 896/18.0YRLSB.S1 (Alexandre Reis)[2] com referência justamente ao critério da produção de efeitos:
Uma vez emitida pela autoridade administrativa estrangeira legalmente competente para o efeito, uma tal escritura pública tem, no ordenamento jurídico daquele país, força igual à de um sentença que reconheça uma «união estável homoafetiva» e, assim, deve ser considerada como uma decisão sobre direitos privados abrangida pela previsão do art. 978º, nº 1, do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal.
2.5. Nada consta dos autos ou de conhecimento oficioso que permita duvidar da verificação dos requisitos a que aludem as alíneas c), I.ª parte, e d), do artigo 980.º, do CPC, tendo em consideração, nomeadamente, que os Requerentes residiam no Brasil à data da celebração da escritura, tendo ambos nacionalidade brasileira.
2.6. Importa avaliar se a matéria não é da competência exclusiva dos Tribunais Portugueses.
Deve entender-se por matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses aquela que lhe é reservada em exclusividade quer pelo direito da União, quer pelo direito nacional, ou seja, aquela que não admite pacto de jurisdição de que resulte a privação da competência ou que obste, justamente, a que sentença proferida por tribunal de outro Estado seja revista e confirmada na ordem jurídica Portuguesa.
Na ordem jurídica portuguesa vigoram dois regimes gerais de competência legal exclusiva: o regime comunitário [actualmente, da União] e o regime interno. O regime interno só é aplicável quando a acção não for abrangida pelo âmbito de aplicação do regime comunitário, que é de fonte hierarquicamente superior[3].
No caso vertente a questão pode colocar-se quanto ao facto de a revisão se referir a uma declaração de união estável, similar ao regime de parceria registada sobre cujos efeitos rege o Regulamento (UE) 2016-1104 do Conselho, de 24 de Junho de 2014[4].
2.6.1. Quanto ao direito da União
O referido Regulamento aplica-se ao regime dos efeitos patrimoniais das parcerias registadas, conforme decorre do seu artigo 1.º, n.º 1, pelo que as regras de competência, mormente as constantes dos artigos 4.º a 6.º, não são aplicáveis no caso, a considerarem-se como regras de competência exclusiva.
Mesmo quando se considerassem aplicáveis, por poderem estar em causa também efeitos patrimoniais, faltaria a identificação entre a união estável e a parceria registada.
De todo o modo, sempre faltariam os factores de conexão considerados nas normas.
Também não são aplicáveis as normas dos artigos 58.º a 60.º por se referirem a actos autênticos praticados em Estados-Membros, por o não ser o Brasil.
Do que se conclui que inexiste competência exclusiva face ao Direito da União.
2.6.2. Quanto ao direito Português
De ponderar o estabelecido no artigo 63.º, alínea c), do Código de Processo Civil, que estatui que os tribunais portugueses são exclusivamente competentes: c) Em matéria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal.
Mesmo a pressupor que a revisão solicitada tem como fito a inscrição em registo civil da situação de união de facto, o que nada permite concluir, entende-se que a atribuição de competência exclusiva visa apreciar a verificação dos requisitos de inscrição em registo, ao que se não destina a presente acção de revisão.
Por estas razões, conclui-se que também nada obsta à revisão nos termos da II.ª parte da alínea c) do artigo 980.º, do CPC, não se verificando, do que dos autos consta, a previsão de nenhuma das alíneas d) a f), da mesma norma.
2.7. Advirta-se que a revisão tem carácter meramente formal pelo que resulta despicienda a apreciação de documentos diversos dos relativos ao acto revidendo.
V) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em rever e confirmar a referida escritura pública de 15 de Janeiro de 2015, para produzir efeitos em Portugal.
Fixa-se à ação o valor de € 30.001,00 – artigos 303.º, n.º 1, e 306.º, n.º 1 e 2, do CPC .
Custas pelo Requerente – artigo 535.º, n.º 1 e 2, alínea a), do CPC.
Registe, notifique e comunique ao Registo Civil.
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Lisboa, 21 de Novembro de 2019
Ana de Azeredo Coelho
 Eduardo Petersen Silva
 Cristina Neves
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
É admissível a revisão de escritura declaratória de união estável quando, na ordem jurídica em que foi outorgada, a celebração de tal escritura é causa directa de produção de efeitos relativos a direitos privados, uma vez que a intervenção do oficial público que a escritura pressupõe não se restringe ao reforço da força probatória das declarações antes é idónea à produção daqueles efeitos.
(AAC)
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[1] A relação é de similitude, sendo no entanto diversos os institutos como decorre da definição de parceria registada constante do artigo 3.º do Regulamento. A união estável tem características que a situam entre a união de facto portuguesa e a parceira registada prevista no regulamento.
[2] Que ora se encontra nas bases de dados: http://www.dgsi.pt.
[3] Luís de Lima Pinheiro, A competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses, p.1, consultado em 22 de Outubro de 2019 em https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-iii-dez-2005/doutrina/luis-de-lima-pinheiro-a-competencia-internacional-exclusiva-dos-tribunais-portugueses/
[4] Sublinha-se o utilíssimo apoio prestado pela Ex.ma Senhora Juiz Desembargadora Paula Pott, Ponto de Contacto da Rede de Cooperação Judiciária Civil e Comercial na identificação das normas comunitárias.