Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
293/07.2TNLSB.L1-6
Relator: REGINA ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS
CONTRATO DE EXPEDIÇÃO
ACTIVIDADE TRANSITÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/03/2016
Votação: UNANIMIDADE COM UMA DECLARAÇÃO DE VOTO
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: -O contrato de transporte de mercadorias pode ser definido como aquele pelo qual uma das partes - o carregador/expedidor - encarrega outra - o transportador - que a tal se obriga, de deslocar determinada mercadoria de um local para o outro e de a entregar ao destinatário, mediante retribuição.
-O contrato de expedição ou trânsito define-se como o contrato pelo qual uma parte (transitário) se obriga perante a outra (expedidor) a prestar-lhe certos serviços - que tanto podem ser actos materiais ou jurídicos - ligados a um contrato de transporte, e também a celebrar um ou mais contratos de transporte em nome e em representação do cliente.
-Não obsta à qualificação como contrato de transporte o facto de a parte se dedicar a actividades próprias de um transitário, se foi para além do que é a actividade típica do transitário: obrigação de celebrar um contrato de transporte com um transportador, em nome próprio ou do expedidor, mas sempre por conta deste, assumindo também a obrigação de prestar ao expedidor serviços de natureza logística e operacional que assegurem a deslocação da mercadoria.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


           I–RELATÓRIO:


I.1-«I... Ldª», com sede ..., intentou em 12.11.07 acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra «L... Ldª», com sede ....

Alegou para tanto, e em síntese, que contratou a Ré para que esta procedesse ao transporte marítimo de telhas autoportantes de Lisboa para o Funchal, entregando-lhe, nos dias 30-09-2005 e 04-11-2005, em Santa Apolónia, diversas telhas em perfeito estado e sem qualquer vício para serem transportadas por mar para o Funchal e aí serem entregues à empresa «L..., S.A.», com quem a A. tinha acordado o fornecimento de tal material.

Posteriormente veio a ter conhecimento que o frete foi realizado em 13-11-2005 e que as telhas chegaram danificadas ao destino e sem qualquer possibilidade de recuperação. Salientou que pediu esclarecimentos à Ré e que esta a informou que o navio transportador deparou-se com uma tempestade durante a viagem e que os atados da telha tinham tombado em consequência do mau tempo. O valor das telhas ascendia ao montante global de 84.047,55 €, sendo que a sociedade que ia recebê-las, ao verificar que estavam danificadas, recusou-se a ficar com elas e a pagar o respectivo preço. A A. , perante tal situação e devido às boas relações comerciais com a «L..., S.A.», prontamente se disponibilizou para substituir as telhas danificadas às suas custas, o que fez. Entretanto, a Ré exigiu da A. o pagamento do serviço que efectuou deficientemente, no montante de 4.945,29 €. Ademais, a Autora teve de suportar a estadia portuária das tenhas danificadas e recusadas, que a Ré lhe debitou no valor de  2.867,94 €, bem como o transporte da carga do cais para os estaleiros da compradora, no montante de 1.785,75 €, e no frete e despesas conexas do transporte das novas telhas, na importância de 10.547,53 €.

Com este fundamento pede a condenação da R. ao pagamento da quantia de 99.248,77 € acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

I.2-Citada, a R. «L...» contestou e reconveio. Excepcionou a prescrição do direito da A. , atento o disposto no art. 16.º do DL n.º 255/99, de 07-07, dado que actuou como transitária, e não como transportadora – actividade que, aliás, não pode exercer. Por impugnação alegou que os atados de telhas não lhe foram entregues para que procedesse à sua carga no navio e transporte, tendo antes sido entregues ao armador e ao operador portuário por este contratado. Precisou que a obrigação por si assumida a solicitação da A. foi a de efectuar as operações necessárias para que a mercadoria – 4 atados de chapas metálicas – chegasse ao seu destino no Funchal. Asseverou que por diversas vezes alertou a A. para a necessidade de reforçar os suportes da carga de modo a que os mesmos possuíssem a resistência necessária para aguentar os esforços provocados pelo transporte marítimo, não tendo a Autora actuado em conformidade, e os os atados de telhas ficaram danificados quer em consequência de imprevista tempestade com que o navio se deparou, quer em consequência do deficiente acondicionamento da carga nos cavaletes fornecidos pela A., sendo que os mesmos foram transportados por conta e risco da mesma. Em todo o caso, sempre a sua responsabilidade estaria limitada nos termos do art. 15.º do DL n.º 255/99.

Requereu a intervenção principal provocada da seguradora para a qual transferiu a sua responsabilidade civil enquanto empresa transitária, a saber, a «L... Companhia de Seguros, S.A.».

Reconvindo, alegou que prestou à Autora diversos serviços de transitário, no montante global de 58.490, 83 €, os quais não foram pagos, ascendendo os juros de mora vencidos à taxa legal à quantia 12.999,88 €, pedindo, assim, a condenação da A. A pagar-lhe a quantia total de 71.489,65 €.

Autora replicou que celebrou com a Ré um contrato de transporte, sendo que o facto de esta ter contratado um terceiro não fez com que se desvinculasse do mesmo (art. 367.° do CCom), pelo que o prazo de prescrição a considerar é o de 20 anos (art. 309.° do CC), acrescentando que a Ré figura como carregadora no conhecimento de embarque, razão pela qual se responsabilizou pela integridade da carga confiada pela Autora. Salientou que o pedido reconvencional foi deduzido de forma ilegal, pois é inferior ao do pedido da Autora, mas em todo o caso, sempre estará extinto por compensação.
 
I.3-Indeferido o requerido chamamento, e dispensada a realização da audiência preliminar,  procedeu-se ao saneamento dos autos, tendo sido parcialmente admitido o pedido reconvencional relativamente às facturas do transporte dos autos, nos valores de 4.945,29 € e 2.867,94 €.

Relegou-se para final o conhecimento da excepção da prescrição, e seleccionou-se a matéria de facto assente e controvertida.

A Ré recorreu do despacho saneador na parte em que o mesmo indeferiu parcialmente o pedido reconvencional, recurso admitido como sendo de agravo, com subida diferida, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

I.4-Alegando no recurso de agravo, a ré conclui assim:

1ª-O que está em causa nos autos é a relação comercial existente entre as partes, isto é, um contrato de prestação de serviços de expedição e recepção de mercadorias da Recorrida;
2ª-No âmbito da relação comercial estabelecida entre as partes, a Recorrida intentou a acção de condenação tendo em vista o ressarcimento dos prejuízos, por si sofridos, em consequência do transporte de atados de telhas autoportantes e a Recorrente, também no âmbito da relação comercial estabelecida entre as partes, deduziu pedido reconvencional, porquanto a Recorrida não liquidou diversas facturas respeitantes a transportes marítimos intermediados pela Recorrente, os quais sempre foram mencionados pela Recorrida na sua petição inicial;
3ª-No caso em apreço, a causa de pedir é toda a relação comercial existente entre as partes. É, pois, o contrato de prestação de serviços de expedição e recepção de mercadorias;
4ª-É na decorrência do contrato de prestação de serviços que ocorrem determinados danos na carga transportada, pelo que, a base de toda a acção intentada pela Recorrida funda-se no contrato e na relação comercial existente entre as partes;
5ª-O pedido reconvencional trata-se de uma contra pretensão, uma nova acção dentro do mesmo processo, a reconvenção, embora com um pedido autónomo, deve ter uma certa compatibilidade com a causa de pedir do Autor;
6ª-Foi a Recorrida que invocou toda a relação comercial existente entre as partes, logo a Recorrente considera que o pedido reconvencional deduzido é compatível com a causa de pedir da Recorrida, pelo que deverá ser totalmente admissível;
7ª-O requisito substantivo da admissibilidade da reconvenção, da alínea a) do nº 2 do artigo 274º do C.P.C, implica que o pedido formulado em reconvenção resulte naturalmente da causa de pedir do autor ou seja normal consequência do facto jurídico que suporta a defesa, que tem o propósito de obter uma modificação benigna ou extinção do pedido do autor;
8ª-O pedido reconvencional é manifestamente admissível;
9ª-O Tribunal a quo ao não admitir o presente pedido reconvencional estará a violar princípios basilares do processo civil, nomeadamente a economia processual e a segurança jurídica, pelo que deverá o presente recurso ser procedente e, consequentemente, ser revogada a decisão, que indeferiu parcialmente o pedido reconvencional, constante no Despacho Saneador de que se recorre, sendo ordenada a sua substituição por decisão que julgue o pedido reconvencional, deduzido pela ora Recorrente, totalmente admissível;
10ª-Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e a decisão que indeferiu parcialmente o pedido reconvencional constante no despacho saneador de que se recorre, revogada e, consequentemente, ser ordenada a sua substituição por decisão que julgue o pedido reconvencional totalmente admissível.

I.5-O julgamento efectuou-se em duas sessões com gravação da prova, e por último proferiu-se sentença datada de 25.02.2015,  a julgar a acção procedente condenando-se a ré no pedido, e absolvendo-se a autora do pedido reconvencional admitido.
Fixou-se à causa o valor de 170.738,42 €.

I.6-Apelou a ré da sentença.

Alegando, conclui deste modo:

1ª-A sentença recorrida enferma de uma interpretação errada da prova produzida nos autos e respetiva valoração jurídica;
2ª-Da prova produzida em audiência e pré-existente nos autos não pode resultar provado que a Recorrente estabeleceu com a Recorrida que aquela procederia à carga no navio e ao seu transporte de Lisboa para o Funchal – facto k);
3ª-Não pode também ficar provado que a Recorrente descarregaria ainda os produtos dos camiões da Autora e carregá-los-ia no navio que efetuasse o transporte de Lisboa para o Funchal – facto l);
4ª-Nem pode resultar provado que a Recorrida entregou à Recorrente tais telhas para esta última mandar proceder à sua carga num navio e efetuar o frete para o Funchal – facto n);
5ª-As testemunhas B..., M..., M... e O..., confirmaram ao Tribunal que a Recorrente não efetua o transporte de mercadorias, é um mero intermediário, entre os diferentes operadores intervenientes na deslocação das mercadorias;
6ª-As mesmas testemunhas confirmaram também que a Recorrente não carrega nem descarrega mercadoria dos camiões para os navios e vice-versa, confirmando que essa tarefa é competência das empresas de estiva e desestiva, licenciadas para esse efeito;
7ª-Também a testemunha J... confirmou ao Tribunal que a Recorrente era apenas um intermediário da Recorrida para o transporte de mercadorias, confirmando ainda que é o armador quem carrega o navio;
8ª-Desta forma impõe-se a alteração da resposta dada aos pontos k), l) e n) dos factos dados como provados, devendo os factos ser julgados como NÃO PROVADOS;
9ª-Relativamente ao facto provado q), igualmente entende a ora Recorrida que não podia ter ficado provado que “A Ré não informou a Autora quando e como foram as mesmas carregadas no navio que iria efectuar o transporte, nem o nome do navio, ou da identificação do armador de tal navio”.
10ª-A testemunha J... confirmou que a Recorrida tinha conhecimento do nome do navio que faria o transporte no dia anterior a ter que entregar a carga uma vez que essa informação lhe era enviada pela Recorrente por fax ou e-mail, bem como confirmou que a Recorrente indicava sempre qual a portaria à qual tinham que se dirigir e qual o terminal para o efeito;
11ª-Esta testemunha, trabalhador da Recorrida, confirmou também conhecer os procedimentos de carga do navio;
12ª-As testemunhas B... e M... confirmaram que a Recorrente informa sempre a Recorrida do cais de entrega da mercadoria, respectivos horários e nome do navio que fará o transporte;
13ª-Desta forma, deve igualmente ser a resposta dada ao ponto q) dos factos provados ser alterada, devendo o facto aí constante ser julgado NÃO PROVADO.
14ª-Quanto ao facto w), entende a Recorrente que não poderia ter resultado provado qual o valor das telhas avariadas;
15ª-Tal facto carecia, aliás, de prova documental, que não foi junta aos autos.
16ª-As testemunhas A..., E... e J... não souberam precisar o valor em dívida;
17ª-Desta forma, face a tudo o exposto, deve também a resposta ao ponto w) dos factos provados ser alterada, devendo o valor das telhas avariadas ser julgado NÃO PROVADO.
18ª-Atenta toda a prova produzida e supra referenciada, deverá ser alterada a resposta dada pelo MM.  Juiz a quo aos factos k), l), n), q) e w), tudo nos termos do disposto no 662º, n.º 1 do Código de Processo Civil;
19ª-A alteração que supra se refere quanto à matéria de facto impõe, em conformidade e nos termos do artigo 607.º, nº 4 do CPC, que seja a Recorrente absolvida do pedido porquanto, face à prova produzida, fica evidentemente demonstrado que as partes não celebraram um contrato de transporte marítimo de mercadorias, mas sim um contrato de expedição ou trânsito.
20ª-Não tem aplicação ao caso o regime preceituado no DL 352/86 que regula o contrato de transporte marítimo de mercadorias, mas sim o DL 255/99, que regula o acesso e o exercício da atividade transitária;
21ª-O artigo 13º do DL 255/99 concede às empresas transitárias a possibilidade de estas praticarem todos os atos necessários ou convenientes à prestação de serviços, bem como assumir em nome próprio ou em nome do cliente ou do destinatário dos bens, toda e qualquer forma legítima de defesa dos interesses correspondentes, podendo ainda celebrar contratos com terceiros em nome próprio, por conta do expedidor ou do dono da mercadoria, bem como receber em nome próprio ou por conta do seu cliente, as mercadorias que lhe são entregues pelo transportador e atuar como gestor de negócios;
22ª-As empresas transitárias, respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, assim como respondem pelo incumprimento das obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado no âmbito da sua atividade, sem prejuízo de terem, sobre estas, direito de regresso – art.15º DL 255/99;
23ª-O direito de indemnização resultante da responsabilidade do transitário prescreve no prazo de 10 meses a contar da data da conclusão da prestação de serviço contratada – art. 16.º DL 255/99;
24ª-Na data de entrada da presente ação declarativa encontrava-se já prescrito o direito de indemnização da Recorrida;
25ª-Devendo o Tribunal ad quem, procedendo a uma correta apreciação da prova produzida e direito aplicável, reconhecer a procedência da invocada prescrição e, em consonância, deve a sentença proferida ser revogada e substituída por outra que, nos termos do art.º 16.º do DL 255/99 de 07 de Julho, absolva a Recorrente do pedido contra si formulado, o que, desde já, se requer;
26ª-Caso assim não se entendesse, sempre a sentença recorrida violaria o disposto no artigo 31º do DL 352/86, bem como o artigo 4.º § 5.º da Convenção de Bruxelas;
27ª-Quando não seja conhecido o valor ou a natureza da mercadoria danificada, tanto o armador como o navio não serão obrigados a indemnizar o expedidor por uma soma superior a 100 libras esterlinas por volume ou unidade, ou o equivalente em moeda diversa;
28ª-O direito interno português fixou este valor em 100.000$00, a que corresponde a quantia de € 498,80;
29ª-Não foi declarado o valor da mercadoria no conhecimento de carga, pelo que não pode a Recorrente ser condenada a indemnizar a recorrida em quantia superior a 1.995,20 €, valor correspondente à multiplicação do limite legal pelo número de volumes declarados – 4 atados de telha;
30ª-Não tem aplicação ao caso o Protocolo de Visby uma vez que o mesmo não foi ratificado pelo Estado Português;
31ª-Termos em que deve a sentença proferida ser revogada e substituída por outra que, observando os critérios definidos no direito interno e na convenção de Bruxelas, condene a Recorrente no pagamento da quantia máxima de 1.995,20 €.

I.5-Em contra-alegações, a autora defende a confirmação da sentença.

Por não haver razões que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto dos recursos.
                                               
II–FUNDAMENTOS.

II.1–de facto.

A 1ª instância deu como assente e provado o seguinte circunstancialismo fáctico:

a)A Ré é uma sociedade por quotas cujo objecto social é o agendamento de navios, trânsitos, despachos e serviços afins e encontra-se licenciada para o exercício da actividade transitária com o Alvará n.º 36/2001 [al. a) dos factos assentes].
b)Para efectuar diversos transportes dos produtos da sua indústria, nomeadamente telhas metálicas autoportantes de grandes dimensões, de Fátima para o Funchal, local de descarga de tais materiais, a Autora acordou com a Ré que a primeira transportaria os produtos acima descritos até ao cais de embarque sito em Sta. Apolónia, Lisboa [al. b) dos factos assentes].
c)Para cada um dos transportes, a Ré apresentou sempre uma factura à Autora, em que a mesma indicava o frete e seus custos [al. c) dos factos assentes].
d)A instância da Autora, a Ré informou que o navio que efectuou o transporte dos atados para o Funchal, no dia 13-11-2005, se deparou com uma tempestade marítima na sua viagem, e que, em consequência da mesma, os atados das telhas tombaram, avariando deste modo as mesmas [al. d) dos factos assentes].
e)A Ré emitiu e remeteu à Autora factura a cobrar o serviço prestado, no montante de € 4 945,29 [al. e) dos factos assentes].
f)Dado que os atados das telhas não puderam de imediato ser retirados do cais de carga no Caniçal, Funchal, a Ré debitou à Autora os custos da estadia portuária no montante de € 2 867,94 [al. f) dos factos assentes].
g)Para efectuar o transporte da mercadoria em substituição da estragada, a Autora recorreu novamente aos serviços da Ré, que de igual modo facturou tal transporte à A. no montante de € 8 837,53 [al. g) dos factos assentes].
Consta de conhecimento de embarque emitido pela agente de navegação Navex n.º 02 CV que faz fls. 95 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido: Transportador: V... S.A.; Carregador: L... Lda., - como Agentes – R... Consignatário: L... Lda., - como Agentes - Funchal Navio: Ilha da Madeira   Porto de Carga: Lisboa   Porto de Descarga: Caniçal
Quantidade e Qualidade de volume: 4 atados de chapa de telha cada 14,04 x 1,00 x
3,2 Peso Bruto: 27 600,00 kg
Condições de transporte: Pier / Pier
Lisboa 2005/11/11 [al. g) dos factos assentes].

h)Mais se estabelece no conhecimento de embarque:

2.Cláusula Principal - Deverão ser aplicadas as regras de Haia contidas na Convenção Internacional para Unificação de determinadas regras relativas a Conhecimentos de Embarque datadas de Bruxelas aos 25 de Agosto de 1924, tal como promulgada no país que o embarque seja efectuado as regras não tenham sido adoptadas, aplicar-se-á a legislação correspondente do país de destino mas, no que se refere aos embarques para os quais não existam disposições legislativas obrigatoriamente aplicáveis, serão observadas as condições da citada convenção (...).
9.Os animais vivos, plantas e carga sobre o convés:
Serão transportados consoante as disposições de Haia nas condições estipuladas na Cláusula 2 acima mencionada com a excepção de que o transportador não será responsável por qualquer perda ou dano resultantes de quaisquer acto, negligência ou falta de seu pessoal no maneio de tais animais, plantas e mercadorias transportadas no convés [al. h) dos factos assentes].

j)A Autora dedica-se à indústria de coberturas metálicas e, no exercício dessa sua actividade, executa obras e fornece produtos da sua indústria para todo o país e estrangeiro, assim como para as regiões autónomas da Madeira e dos Açores (resposta dada ao art. 1.º da base instrutória).
k)No acordo referido em b), Autora e Ré estabeleceram que esta procederia à carga no navio e ao seu transporte de Lisboa para o Funchal (resposta dada ao art. 2.º da base instrutória).
l)A Ré descarregaria ainda os produtos dos camiões da Autora e carregá-los-ia no navio que efectuasse o transporte de Lisboa para o Funchal (resposta dada ao art. 3.º da base instrutória).
m)Em data anterior a 11-11-2005, a Autora transportou telhas de Fátima para Lisboa, a fim de serem transportadas para o Funchal e aí serem entregues à empresa L..., S.A., com quem a Autora tinha acordado o fornecimento de tal material (resposta dada ao art. 4.º da base instrutória).
n)A Autora entregou à Ré tais telhas nas datas indicadas, no Terminal Multiusos do Poço do Bispo, Lisboa, para esta última mandar proceder à sua carga num navio e efectuar o frete para o Funchal, onde seriam recebidas pela Ré e entregues à L..., S.A. (resposta dada ao art. 5.º da base instrutória).
o)As telhas autoportantes foram entregues em 4 atados, sem que possuíssem qualquer dano que as desvalorizasse (resposta dada ao art. 6.º da base instrutória).
p)Autora e Ré acordaram que as telhas autoportantes deveriam seguir em 4 atados, suportados por cavaletes, a bordo de um navio com destino ao Funchal (resposta dada ao art. 7.º da base instrutória).
q)A Ré não informou a Autora quando e como foram as mesmas carregadas no navio que iria efectuar o transporte, nem o nome do navio ou da identificação do armador de tal navio (resposta dada ao art. 8.º da base instrutória).
r)Em 16-11-2005, a Autora foi informada pela L... S.A. de que os 4 atados de telhas se encontravam estragados em praticamente todo o seu comprimento, sem recuperação possível e inutilizados para o seu fim (resposta dada ao art. 9.º da base instrutória).
s)As telhas autoportantes era constituídas por 228 telhas em arco IC 70/900 esp. 0,70mm, chapa branca 1.ª camada, lacada de ambas as faces, com 12 736 mm de comprimento, e 162 telhas em arco IC 70/900 esp. 0,70mm, chapa verde 23 camada, lacada de ambas as faces, com 13 448 mm de comprimento (resposta dada ao art. 10.º da base instrutória).
t)As telhas de chapa branca com 12 736 mm de comprimento tinham o valor de € 47 734,98 e as telhas de chapa verde com 13 448 mm de comprimento o valor de € 36 312,57 (resposta dada ao art. 11.º da base instrutória).
u)A sociedade L..., S.A., ao verificar que as telhas estavam deterioradas, recusou recebê-las e pagar o preço à Autora (resposta dada ao art. 13.º da base instrutória).
v)A Ré facturou à Autora o transporte dos atados das telhas danificadas do cais de carga do Caniçal para a Ribeira Brava, local dos estaleiros da L..., S.A., no montante de € 1784,75 (resposta dada ao art. 13.º da base instrutória).
w)A Autora procedeu à substituição das telhas avariadas às suas custas, no valor de € 84 047,55 (resposta dada ao art. 14.º da base instrutória).
x)A Autora tomou conhecimento dos estragos provocados na mercadoria em 16-11­ 2005 (resposta dada ao art. 16.º da base instrutória).
y)No acordo referido em b) e k), a Ré assumiu ainda perante a Autora a obrigação de planificação, controlo, coordenação e direcção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites na expedição, recepção e circulação de 4 atados de chapa de telhas autoportantes transportadas do porto de Lisboa para o porto do
Funchal e daí para as instalações do recebedor (resposta dada ao art. 17.° da base instrutória).
z)A Autora não efectuou o seguro das mercadorias transportadas (resposta dada ao art. 19.° da base instrutória).

aa)A mercadoria dos autos foi carregada no convés do navio (resposta dada ao art. 20.° da base instrutória).
bb)Durante a viagem, os cavaletes que suportavam as telhas da Autora tombaram e o navio deparou-se ventos que atingiram a força máxima n.° 7 entre as 12 e as 20 horas do dia 13-11-2005, mar cavado e/a grosso entre as 16 horas do dia 12-11-2005 e as 4 horas do dia 14-11-2005, tendo sofrido alguns balanços transversais violentos (resposta dada ao art. 21.° da base instrutória).
cc)A Ré emitiu e remeteu à Autora a factura n.° 5021655, de 14-11-2005, vencida a 14-12-2005, no valor de € 4945,29 (resposta dada ao art. 22.° da base instrutória).
dd)A Ré emitiu e remeteu à Autora a factura n.° 5501416, de 05-12-2005, vencida nessa mesma data, no valor de € 2867,94 (resposta dada ao art. 23.º da base instrutória).
*

     Factos julgados não provados:

1.A Autora suportou as despesas com novo transporte dos seus produtos desde Fátima até Sta. Apolónia, Lisboa, no montante total de € 810 (resposta dada ao art. 15.° da base instrutória).
2.A Ré alertou por diversas vezes a Autora para a necessidade de esta reforçar os suportes de carga (cavaletes) para que os mesmos possuíssem a resistência necessária para aguentar os esforços provocados pelo transporte marítimo (art. 18.° da base instrutória).
3.A Autora não reforçou os referidos suportes e a Ré recomendou-lhe a realização do seguro das mercadorias transportadas (art. 19.° da base instrutória).

II.2- de direito.

2.1-Principia-se pela análise do recurso de agravo do despacho proferido a 31.08.2010, portanto, ainda na vigência do CPC/61, manifestando o recorrente interesse no seu conhecimento.

A questão que objectiva o agravo prende-se com a admissão parcial do pedido reconvencional.

A ré/agravante pediu, em reconvenção, a condenação da A. ao pagamento da quantia total de 71.489,65 €, sendo 58.490,83 € de capital, quantia de que a A. será devedora e constante da soma das facturas cujos números, datas e valores descreve, emitidas no âmbito da relação comercial estabelecida entre A. e Ré.

Para ditar a admissão parcial do pedido reconvencional, considerou-se que o mesmo excedia largamente o pedido da acção e a causa de pedir, á excepção das facturas no montante de 4.945,29 € e 2.867,94 € por dizerem respeito ao transporte em causa na acção.

Cremos que não há razão para censurar o assim decidido.

Para que a reconvenção seja admissível ao abrigo da al.a) do nº2 do art.274º/CPC de 61 (art.266º/2-a) do NCPC), é necessário que o pedido tenha a mesma causa de pedir que serve de suporte ao pedido da acção ou emerja do acto ou facto jurídico que serve de fundamento á defesa.

Afirma a recorrente que o pedido emerge da relação comercial existente entre as partes, querendo com isto dizer que é lícito, em reconvenção, pedir a condenação da autora ao pagamento daquilo que ela é devedora no âmbito dessa relação.

Não é assim.

É verdade que a autora referiu-se a diversos transportes marítimos – fretes - dos produtos da sua indústria, de Fátima para o Funchal, tendo para tal contratado a ré. Descreveu o modo de actuação, e esclareceu que a ré sempre lhe apresentou uma factura em que indicava o frete e os custos, fretes esses – acrescenta – que foram sempre pagos a tempo e horas.

Ora, é  nesse contexto comercial que a autora vem alegar, a fundamentar o seu pedido, que contratou com a ré um transporte marítimo de mercadorias - telhas autoportantes - para o Funchal, com as características e valor que descreve, tendo o frete sido realizado em 13.11.2005. Alega que três dias depois recebeu a comunicação por parte da destinatária das telhas, que as mesmas se encontravam completamente danificadas.

Portanto, a causa de pedir da acção não é, ao contrário do que afirma a recorrente, a relação comercial existente entre as partes, mas o concreto contrato firmado entre elas na sequência desse relacionamento para transporte das telhas autoportantes, e o defeituoso cumprimento do mesmo por parte da ré . É esse transporte em particular e aqui em causa, que a autora diz ter sido parcialmente incumprido pela ré, que fundamenta o pedido.

A ele reportam-se as duas mencionadas facturas, sendo as demais facturas respeitantes a fretes realizados em datas anteriores e posteriores ao frete acordado.

Bem andou, pois, a instância recorrida, em admitir parcialmente o pedido reconvencional.

Resta, assim, negar provimento ao agravo, mantendo-se a decisão agravada.

2.2–da apelação.

Face à factualidade provada, a 1ª instância entendeu que as partes celebraram um contrato de transporte de mercadorias por mar, onde a A./recorrida «I...», ancorou o alegado cumprimento defeituoso.

Contra este entendimento desde o início se manifestou a ré/recorrente «L...», defendendo que entre as partes foi celebrado, sim, um contrato de expedição ou trânsito, invocando a sua qualidade de sociedade transitária.

A questão essencial que vem colocada no recurso consiste, pois, em qualificar o contrato ajuizado.

O contrato de transporte de mercadorias pode ser definido como aquele pelo qual uma das partes – o carregador/expedidor – encarrega outra – o transportador – que a tal se obriga, de deslocar determinada mercadoria de um local para o outro e de a entregar ao destinatário, mediante retribuição.

Embora se apresente como um contrato bilateral e sinalagmático celebrado entre o carregador e o transportador, o destinatário não é afastado do contrato, e por isso se vem fazendo referência á sua estrutura triangular, envolvendo três centros de interesses, diferenciados mas complementares.

Ao contrato de transporte marítimo de mercadorias aplicam-se as regras da «Convenção de Bruxelas» (CB) assinada em 25.08.1924, introduzida no direito interno pelo DL nº37.748, de 01.02.1950, e do DL nº352/86, de 21.10, que regula o transporte de mercadorias por mar.

Segundo o art.1º do DL 352/86, o “contrato de transporte de mercadorias por mar é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria, de um porto para porto diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada «frete»”.

A CB limita-se a estabelecer o mínimo das obrigações do transportador, o máximo das suas exonerações, o limite da indemnização por avarias de carga e os procedimentos a observar no caso de reclamações por avarias de carga.

O contrato de expedição ou trânsito define-se como o contrato pelo qual uma parte (transitário) se obriga perante a outra (expedidor) a prestar-lhe certos serviços – que tanto podem ser actos materiais ou jurídicos – ligados a um contrato de transporte, e também a celebrar um ou mais contratos de transporte em nome e em representação do cliente.[2]

Em sentido estrito é um mandato representativo, e em sentido lato, um contrato de prestação de serviços, que poderá abranger a prática quer de operações materiais, quer de actos jurídicos, ligados a um contrato de transporte,
Escreve Luís Lima Pinheiro: “O transporte de mercadorias surge na grande maioria dos casos associado a uma operação económica mais ampla, normalmente uma venda de mercadorias. Com frequência, a operação económica inclui uma deslocação da mercadoria por dois ou mais meios de transporte de natureza diferente (…). Tradicionalmente, salvo quando um dos segmentos é encarado como meramente complementar, são celebrados contratos juridicamente independentes para cada um dos segmentos do transporte. Mas regista-se actualmente uma tendência no sentido da celebração de um contrato único cobrindo a operação global”.[3]

Nem sempre é possível estabelecer a distinção entre os dois tipos de contrato referidos.

Para dilucidar se se está perante um contrato de transporte ou um contrato de trânsito, ter-se-á de analisar o caso concreto.

Ora, descendo á situação presente, a matéria de facto evidencia que a A. celebrou com a ré um contrato de transporte marítimo de mercadorias. É o que claramente resulta dos pontos de facto k), l), n) q) e y).

Sucede que a recorrente impugna a factualidade inserida nesses quatro primeiros pontos, reputando-os de incorrectamente julgados, bem como o ponto w), baseando-se no depoimento das testemunhas que apresentou, M..., B..., M... e O...

A recorrente entende que tais pontos de facto controvertidos deveriam ter sido dados como não provados, pretendendo, assim, que a Relação modifique nesse sentido a decisão fáctica. 

A audiência de julgamento foi gravada em CD, estando deste modo acessíveis os depoimentos oralmente prestados, para os efeitos do disposto no art.662º do C.P.C., e a recorrente deu cumprimento aos ónus estabelecidos no art.640º/1 e 2-a) do mesmo diploma.

Estão, assim, preenchidas as condições formais necessárias à modificação da matéria de facto da 1ª instância.

Vejamos, então, se falta à pretensão dos recorrentes motivos de ordem substancial.

A referida modificação deve ser o resultado da reapreciação dos elementos probatórios que, com plena autonomia, seja feita na Relação, que, percepcionando os elementos de prova que estão disponíveis e no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas (arts.396º/C.C. e 607º/4 e 5, C.P.C.), adquira uma convicção diversa da que foi assumida pela 1ª instância, pode alterar a decisão fáctica nos pontos impugnados.

A esta luz, vejamos se existiu no caso concreto um erro manifesto do julgador na apreciação do valor probatório dos meios de prova que foram produzidos.

Adiantando, diremos que não houve.

A convicção do decisor da 1ª instância assentou sobretudo no depoimento das testemunhas J... e J..., para além do conhecimento de embarque a fls.95.

Ouvida integralmente a gravação dos depoimentos das testemunhas que se pronunciaram sobre as matérias em questão, diremos que a resposta de teor positivo dada aos pontos questionados não merece reparo.

Com efeito, auscultadas as gravações dos depoimentos assinalados, resulta, em resumo: a)- M..., que trabalhou para a «L...» no Funchal, até 2011 nas áreas comercial e administrativa. Referiu que a empresa era transitária, não tem navios, embora assegure o transporte do porto de embarque até ao destino.

Do caso em concreto nada sabe.

b)-B..., executora de tráfego da «L...». Afirmou ter tratado da documentação (facturas, guias de remessa) relativas ao transporte de telhas da «I...», de Lisboa para o Funchal da «I...». Referiu que o transporte por mar era feito por um armador escolhido pela «L...», e era esta que fazia todo o serviço, como escolha do cais, horários e contacto com o destinatário para levantamento da carga, não fazendo nem carga nem descarga.

c)-O..., chefe de escritório da «L...» até 2009. Afirmou que “a nossa obrigação era contratar serviços de transporte desde que o cliente solicite”, esclarecendo que o nome do navio não é comunicado ao cliente.

d)M..., operacional da «L...», afirmou que a empresa é uma intermediária desde a origem até determinado destino, realizando aquilo que o cliente solicitar.

Auscultámos o depoimento de J..., coordenador de obras da «I...».
Num depoimento isento e esclarecedor, afirmou ser ele quem contactava com as transportadoras, tendo acordado com a ré tudo o que fosse necessário para o transporte das telhas de Lisboa para o Funchal. Disse que o material saiu de Fátima para ser entregue no cais de Sta Apolónia sob instruções da «L...», para no Funchal ser entregue á destinatária, a «L...», sendo na portaria do cais que era indicado o nome do navio. Esclareceu que chegando o camião carregado ao cais indicado por «fax» ou «e-mail» pela ré, era ela que depois tratava de tudo. Afirmou que sendo a ré uma empresa transitária, estava incumbida de tratar do transporte; aceite o orçamento por ela apresentado, a mesma solicitava depois o peso, comprimento e altura do material a ser transportado. Esclareceu que embora a ré não tivesse navios, era contratada e comprometia-se a pôr o material de Sta Apolónia para o Funchal, podendo alugar o transporte (navio) a outros.

Conforme se extrai destes resumidos testemunhos, a «L...» actuou como intermediária entre a expedidora («I...») e a destinatária («L...s»). Os serviços que a A. lhe contratou não se limitaram a meros actos ou operações de carácter burocrático relativos ao transporte dos 4 atados de telhas de Lisboa para o Funchal. Ela comprometeu-se também a recepcioná-las, fazer o embarque no navio e desembarcá-las, e ainda a realizar o transporte por mar posto que por intermédio de terceiros, no caso a empresa «V...» que emitiu o conhecimento de embarque.

Quanto ao valor da substituição das telhas danificadas (item II.1-w), vale o documento a fls.99 (fax enviado pela A. á Ré em 18.11.05 dando conta dos custos com a danificação total dos quatro atados de chapa de telha), não impugnado pela ré.

Em suma, não há motivo para divergir da decisão fáctica relativamente aos pontos de facto impugnados, mantendo-se, assim, integralmente, o elenco factual acima descrito.

A matéria facto evidencia um contrato de transporte, conforme acima se disse.

A isto não faz obstáculo o facto de a ré se dedicar a actividades próprias de um transitário, já que ela foi para além do que é considerada a actividade típica do transitário: obrigação de celebrar um contrato de transporte com um transportador, em nome próprio ou do expedidor, mas sempre por conta deste, assumindo também a obrigação de prestar ao expedidor serviços de natureza logística e operacional que assegurem a deslocação da mercadoria.

O DL 255/99, de 07.07, diploma regulador da actividade das empresas transitárias, não proíbe estas empresas de celebrarem e executarem contratos de transporte de mercadorias, directamente ou com recurso a terceiros, assumindo a realização do transporte pretendido pelo interessado, caso em que se está perante um contrato de transporte.[4]

Foi esta a situação em análise. O que a A. pretendeu foi simplesmente que as telhas fossem deslocadas do porto de Lisboa para o porto do Funchal e aqui entregues á «L...». Para isso contactou uma vez mais a ré com quem já mantinha relações comerciais, celebrando com ela um contrato de transporte. Pouco importa que a ré exerça a actividade de transitário, o que interessa é que assumiu a realização do transporte integral, tratando da parte logística e operacional e recorrendo a um terceiro que dispunha dos meios necessários para a deslocação da mercadoria por mar (art.337º/C.Com).

Contrariamente ao defendido pela recorrente, o contrato ajustado entre ela e a autora não se limitou a uma simples prestação de serviços, no sentido de a ré envidar esforços que a levassem a contatar alguém que se incumbisse do pretendido transporte e entrega das telhas, celebrando com ele um contrato de transporte, em nome próprio ou da autora.

Haverá, pois, que concluir-se, como a 1ª instância, que o contrato ajuizado é de qualificar como um contrato de transporte marítimo de mercadorias. E por virtude dele, a ré tem de responsabilizar-se perante os danos ocorridos com os quatro atados de chapa de telha.

Logo, actuando não na qualidade de transitária, mas como transportadora, o que lhe era possível, não se aplica aqui o prazo prescricional do direito de indemnização estabelecido no art.16º do DL 255/99.

Para se eximir á sua responsabilidade, sustenta a recorrente que a indemnização reclamada deve ser limitada á quantia de 498,80 € multiplicada pelo número de volumes declarados – 4 atados de telha. Isto porque não foi declarado o valor da mercadoria no conhecimento de carga.

De facto, pelo nº1 do art.4º do DL352/86, o carregador deve entregar ao transportador uma declaração de carga contendo a natureza e características da mercadoria, os eventuais cuidados de que careça, o tipo de embalagem e o seu acondicionamento, as marcas necessárias á sua identificação, o número de volumes ou de objectos e a sua quantidade ou peso.

Estas indicações são de extrema importância, pois o transportador irá emitir o conhecimento, e assumir a correspondente vinculação que para ele emerge do contrato de transporte, baseado na informação aí contida.[5]

Pelo art.5º do referido diploma, recebidas as mercadorias e a respectiva declaração de carga deverá o transportador emitir e entregar ao carregador um recibo ou um conhecimento de carga “para embarque”. Este conhecimento de carga ou de embarque (bill of lading) é já um título representativo das mercadorias (art11º), contendo, para além de outros elementos, os referidos no nº1 do art.4º.

No mesmo sentido dispõe o art.3º/3 da CB, estabelecendo o art.4º/5, que “Tanto o armador como o navio não serão obrigados, em caso algum, por perdas e danos causados ás mercadorias ou que lhe digam respeito, por uma soma superior a 100 libras esterlinas por volume ou unidade, ou o equivalente desta soma numa diversa moeda[6], salvo quando a natureza e o valor destas mercadorias tiverem sido declaradas pelo carregador antes do seu embarque e essa declaração tiver sido inserida no conhecimento.”.
Dispõe o nº1 do art.24º do referido diploma que “quando as mercadorias forem consolidadas para transporte, em contentores, paletes ou outros elementos análogos, consideram-se volumes ou unidades de carga os que estiverem enumerados no conhecimento de carga”.

Se o conhecimento de carga não contiver essa enumeração, estabelece o art.31º/2 que cada contentor, palete ou outro elemento análogo é considerado, para efeitos de limite legal de responsabilidade, como um só volume ou unidade de carga.

Descendo á situação em apreço, resulta do conhecimento de embarque a fls.95, emitido pelo transportador «V... S.A.» e entregue ao carregador «L..., Ldª», a seguinte carga: 4 atados de chapa de telha, cada 14,04x1,00x3,2, peso bruto total - 27.600,00 kgs [item II.1-h)].

Não menciona o conhecimento de carga, o valor da mercadoria, nem ela foi declarada pelo carregador antes do embarque. Haveria, então, que operar a limitação da responsabilidade a que se reportam os arts.4º/5 da CB e 31º do DL 352/86.

A instância recorrida entendeu que a dita limitação deverá ter por base a unidade de peso (kg). Partindo deste entendimento considerou que a multiplicação dos 27.600,00 kg pelo valor referido no referido art.31º (498,80 €) ascendia a um total superior ao valor das mercadorias (84.047,55 €), não havendo assim lugar á limitação em referência.

Contra este entendimento insurge-se a recorrente, e cremos que com razão.

Na verdade, o critério do quilograma foi acolhido nas alterações introduzidas ao CB pelo Protocolo de Hague/Visby-1968 («Protocolo de 1968»). Sucede que Portugal não é parte no Protocolo, pelo que este não se aplica por força própria nos tribunais portugueses.

A este propósito, observa Luís de Lima Pinheiro no texto infra citado: “Das alterações introduzidas pelo Protocolo de 1968 cumpre salientar o alargamento da esfera espacial de aplicação do regime convencional, a subida do limite da indemnização e a extensão deste limite e das excepções do transportador aos seus auxiliares de cumprimento.

Não é líquida a razão por que Portugal ainda não é parte deste tratado. As modificações por ele introduzidas no regime da Convenção de Bruxelas merecem aprovação geral. A menos que se favoreça uma ruptura com o sistema instituído pela Convenção de Bruxelas - designadamente a sua substituição pelo da Convenção de Hamburgo - é fortemente recomendável que se seja parte do Protocolo de 1968.

Existe ainda um Protocolo de 1979 que modifica o art. 4.º da Convenção de Bruxelas quanto à definição da unidade de conta relevante para o limite da indemnização. Portugal também não é parte deste tratado.

Como Portugal não é parte no Protocolo, este não se aplica por força própria nos tribunais portugueses. Qual o Direito que se aplica? Importa distinguir conforme o Estado em que o conhecimento foi emitido denunciou ou não a Convenção de 1924.”.

Por conseguinte, não tendo sido acolhido esse terceiro critério, e porque está em causa um transporte marítimo interno, valem os critérios fixados nos já referidos arts.31º e 4º/5: volumes ou unidades de carga enumerados no conhecimento de cargo.

No caso, 4 atados a que correspondem o valor de 1.995,20 € (498,80 € x 4). Será então este o limite legal de responsabilidade da ré.

Resta, assim, concluir pela parcial procedência do recurso.
                                                                      
III–DECISÃO.

Acorda-se, pelo exposto, em julgar parcialmente procedente a apelação, e revogando-se o 1º segmento decisório da sentença, condena-se a ré «L...» a pagar á autora «I...», a quantia de 1.995,20 € acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo pagamento.
No mais mantém-se a sentença apelada.
Custas em ambas as instâncias por recorrente e recorrida na proporção do vencimento.  

                                                         
LISBOA, 03.03.2016


Regina Almeida
Fátima Galante


Maria Manuela Gomes (voto a conclusão, conforme declaração que se junta).

                        Declaração de Voto
1.Voto apenas o segmento decisório (ou conclusivo), demarcando-me da fundamentação de direito, já que discordo da qualificação do contrato em causa como contrato de transporte marítimo.
Na realidade e contrariamente ao afirmado no acórdão, dos factos provados resulta, a meu ver sem dúvida, que o contrato firmado entre a Autora e a Ré abarcava para além do transporte das mercadorias em causa – 4 atados telhas metálicas autoportantes, com 14,04m x 1m x 3,2m do porto de Lisboa para o porto do Caniçal, no Funchal - toda uma série de outros actos, característicos e integradores da actividade transitária, tal como se mostra regulada pelo Dec. Lei nº 255/99 - designadamente a prática de todos os actos inerentes ao descarregamento dos camiões da autora e ao carregamento dos mesmos no navio, às “burocracias” inerentes à emissão do conhecimento de embarque, ao seu levantamento no porto do Funchal e subsequente entrega ao cliente da Autora (cfr. als. G), K ) e L) dos factos provados).
Acresce que o acórdão considerou também como “facto” provado tudo quanto consta da alínea Y) do dito elenco dos factos provados, ou seja que, no âmbito do contrato em causa (e outros similares) “… a Ré assumiu perante a Autora a obrigação de planificação, controlo, coordenação e direcção das operações necessárias á execução das formalidades e trâmites na expedição, recepção e circulação” dos 4 atalhos de telhas, transportadas do porto de Lisboa para o porto do Funchal e daí para as instalações do recebedor, o que, a não ser considerado matéria de direito e como tal não susceptível de integrar a lista dos factos provados, “assenta como uma luva”, na própria definição legal de actividade transitária, tal como consta do artigo 1º, nº 2 do citado DL nº 255/99.
Perante tudo o exposto, qualificaria o contrato celebrado entre a autora e a ré como contrato de expedição, integrado na específica actividade da ré e única para a qual está legalmente autorizada.

2. É certo que a Ré, no âmbito desse contrato se obrigou também a um verdadeiro contrato de transporte - aquele pelo qual uma pessoa (o transportador) se obriga perante outra (o interessado ou expedidor) a providenciar o deslocamento de pessoas ou de bens de um local para outro (cfr. por todos, Menezes Cordeiro, Manual de Direito comercial, I, 2001, p. 527 e, na jurisprudência, v.g. ,Acórdão do STJ de 16.09.2008 – proc. nº 08A2433) – mas fê-lo no âmbito da genérica prestação de serviços a que se obrigara, subcontratando, para o efeito, uma sociedade transportadora, aliás expressamente identificada, no conhecimento de embarque, onde figura como “Transportador: V... SA” e como “Carregador” a Ré L..., Lda “como Agentes”.
A ré assumiu, portanto, por si a actividade de transitária e, por subcontrato, a do transportador.
Como se afirma no Acórdão do STJ de 11.10.2001, revista nº 2088/01- 1º Secção, com sumário publicado no sítio da PGDL, Jurisprudência do STJ (boletim interno) “As duas actividades, embora desempenhadas pela mesma pessoa jurídica, mantêm-se conceptualmente distintas e autónomas do ponto de vista da sua disciplina jurídica; a actividade do transitário sujeita-se àqueles diplomas” [v.g DL nº 255/99, sucessor do primitivo DL nº 43/83]; a actividade do transportador submetida ao C. Com. (artºs 366e ss) e às convenções internacionais aplicáveis”.
Assim sendo, pacífico nos parece também, que o prazo de prescrição a que alude o art. 16º do DL nº 255/99, respeita tão somente aos casos de responsabilidade do transitária derivados do exercício directo da sua actividade própria e não nos casos de subcontrato, em que a empresa transitária responde perante o cliente, sem prejuízo do direito de regresso, conforme deriva do art. 15º do diploma citado.

Efectivamente estatui este último preceito que:
“1.As empresas transitárias respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso.
2.À responsabilidade emergente dos contratos celebrados no âmbito deste diploma aplicam-se os limites estabelecidos, por lei ou convenção, para o transportador a quem seja confiada a execução material do transporte, salvo se outro limite for convencionado pelas partes.”
Daí que, embora não acompanhando a fundamentação base do acórdão, conclua que a responsabilidade da ré está limitada aos valores constantes do mesmo, visto a circunstância, lamentável, de Portugal não ter ratificado o Protocolo de Bruxelas, de 23 de Fevereiro de 1968 (Protocolo da Haia-Visby) e ter, vários anos depois, continuado a limitar a responsabilidade do transportador, salvo convenção em contrário, ao número de volumes ou unidades de carga enumerados no respectivo conhecimento de embarque – no caso 4 atados - mesmo perante a especificação e a evidência do tipo de mercadorias naqueles agrupada (cfr. ainda art. 24 do DL nº 352/86).

3. Termos em que, como acima referi, apenas vote a conclusão.


Lisboa, 3 de Março de 2016


[1]Relatora: Regina Almeida – Desembargadoras Adjuntas: Drªs Maria Manuela Gomes e Fátima Galante
[2]Cfr. F. Costeira da Rocha, «O contrato de transporte de mercadorias», pág.80
[3]«Temas de Direito Marítimo», Revista da OA, ano 2008, Vol.I >doutrina
[4]Cfr., entre outros, Acs. STJ de 14.01.93 (CJstj I/93.47), de 06.03.97 (CJstj I/97.136) de 16.09.08 (revista nº2433/08-1ªS.) e 04.11.2010 (proc.3219/04.1TVLSB).
[5]F. Costeira da Rocha, ob.cit., pág.133
[6]O art.31º/1 do DL352/86 fixou em 100.000$00 por volume ou unidade de transporte, a que actualmente corresponde 498,80 €.

Decisão Texto Integral: