Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
694/16.5SGLSB-A.L1-3
Relator: ANA PAULA GRANDVAUX
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
CUMULAÇÃO COM PROIBIÇÃO CONTACTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: A medida de coacção de prisão preventiva prevista no artº 202º do C.P.P é cumulável com a medida de proibição de contactos com determinada pessoa prevista no artº 200º/1/d) do C.P.P sempre e quando se verificarem os pressupostos legais impostos pela lei (isto é, quer os pressupostos gerais de aplicação de qualquer medida de coacção, quer os pressupostos específicos de cada uma destas duas medidas de coacção supra mencionadas) e as necessidades cautelares do caso em concreto assim o exigirem.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


1–J.S.C., melhor identificado nos autos, no âmbito do processo de inquérito nº 694/16.5SGLSB, que corre termos na 1ª Secção de Instrução Criminal J2, do Tribunal de Instrução Central da Comarca de Lisboa aquando do seu 1º interrogatório judicial de arguido detido, realizado em 4.7.2016 ficou sujeito à medida de coacção de prisão preventiva e TIR nos termos das disposições conjugadas dos artºs 193º, 196º e artº 202º/1/a) e e) e artº 204º al b) e c) todos do C.P.P, por despacho proferido nessa mesma data pela Srª Juiz do TIC.

Posteriormente, por despacho proferido em 20.10.2016 (a fls 456/457) pelo Sr. Juiz do TCIC, foi indeferida a pretensão manifestada pelo M.P a fls 14, de cumular a prisão preventiva com a obrigação de não contactar por qualquer meio, determinada pessoa, que no caso sub Júdice é a ofendida I.C..

2–Não se conformando com tal decisão veio o M.P dela interpor recurso a fls 507 e segs.

Da respectiva motivação extrai as seguintes (transcritas) conclusões:

1.-Foi aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, na dia 4/07/2016, na sequência da detenção em flagrante delito pela prática de um crime de homicídio na forma tentada (na pessoa da ofendida I.C. , esposa do arguido), p. e p. pelo art. 131.º e 23.º do C.P., de um crime de ofensa à integridade física grave (na pessoa do menor E.C. , filho do casal), p. e p. pelo art. 144.º, al. d) do mesmo diploma legal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. c) do Regime jurídico das Armas e Munições;
2.-No decurso do inquérito, no dia 19/10/2016, a ofendida I.C.  revelou que o arguido a tinha contactado telefonicamente e através de carta e pediu-lhe que mudasse a versão dos factos que relatou, dizendo que ele apenas a queria assustar e não matar.
3.-Por força do verbalizado pela ofendida, entendeu o Ministério Público existir perigo de perturbação do decurso do inquérito e promoveu a aplicação ao arguido, em cumulação com a prisão preventiva, da medida de coacção de proibição de contactos com a ofendida;
4.-O Mmo. JIC indeferiu a promoção do Ministério Público argumentando que não era legalmente possível a cumulação de tais medidas de coação;
5.-Apesar de o art. 202.º nada dizer quanto à possibilidade de cumulação da medida de prisão preventiva com a medida de coacção de proibição de contactos, não se pode concluir que não é possível tal cumulação;
6.-Não é esse o entendimento da doutrina – cfr. Maia Costa, in “Código de processo Penal” comentado por António Henriques Gaspar, J.S.C. António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques da Graça, 2014, na anotação ao art. 202.º (pág. 877, ponto 10) e Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direito do Homem”, 2.ª edição, defende na sua anotação ao art. 202.º (pág. 569, ponto 5);
7.-Nem da jurisprudência – cfr. os acórdãos proferidos pela 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 56/16.4PHSNT.L1 e pela 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 1639/14.2PCSNT, que decidiram ser de cumular as medidas de coacção de prisão preventiva e de proibição de contactos com a vítima.
8.-Entendemos que, em concreto, se verifica um forte perigo de perturbação do decurso do inquérito, designadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova que só poderá ser acautelado pela imposição ao arguido da medida de coacção de proibição de contactos, por qualquer meio, com a ofendida em cumulação com a medida de coacção de prisão preventiva já aplicada.

Nestes termos, o douto despacho recorrido deverá ser substituído por outro que aplique ao arguido a medida de coacção de proibição de contactos por qualquer meio com a ofendida, em cumulação com a medida de coação de prisão preventiva já aplicada.

Porém, Vossas Excelências, não deixarão de fazer a habitual JUSTIÇA!
(texto elaborado em computador e revisto pela signatária – art. 94.º, n.º 2 do C.P.P.)
           
3-O arguido, respondeu à motivação apresentada (fls 608 a 614) defendendo a negação do provimento ao recurso e terminando as suas contra-alegações com as seguintes (transcritas) conclusões:

1º-   
A agravação das medidas de coação não pode ser levada a cabo sem que ao arguido seja dada a oportunidade de se pronunciar sobre os factos que fundamentam tal pedido.
2º-
A requerida cumulação das medidas de coação – a ter fundamento e possibilidade legal – nunca poderia ser decretada imediatamente, antes devendo o arguido ser confrontado com os seus fundamentos para que os pudesse contraditar.
3º-
O Ministério Público sustenta a sua pretensão, por aqui encontrar nos autos um inexistente perigo de perturbação do inquérito na pessoa da Ofendida.
4º-
A 12 de Setembro de 2016, a folhas 229 dos autos, a ofendida I.C.  declarou, perante a P.J que (na parte aqui relevante):

Não tem dúvidas que o J.S.C. a ameaçou com a arma e que o mesmo queria disparar contra si
5º-
Esta alegação que o arguido contactou a Ofendida no sentido de a levar a mudar a versão dos factos, apenas faz sentido se for temporalmente situada entre o primeiro e o segundo depoimento.
6º-
No segundo depoimento, a 19 de Outubro de 2016, a Ofendida declarou a folhas 448 dos autos:
           
Que confirma as declarações prestadas a folhas 229 e 230

Disse ainda que;

Instada referiu que no dia dos factos quando o arguido lhe apontou a arma ficou com medo que o arguido disparasse a arma e a matasse e por isso a única reacção que teve foi abrir a porta da rua, fugir e gritar para chamarem a polícia para salvar a sua vida
7º-
Os autos revelam que tais contactos, se existiram, não tiveram o significado nem o efeito de alterar, influenciar ou prejudicar a prova, porque, de facto, a Ofendida não mudou a versão dos factos; pelo contrário, confirmou-os e repetiu a versão.
8º-
Os alegados contactos do arguido, a terem existido, não têm o significado que o M.P. lhes pretende dar, não passando de um pedido de desculpas e de uma demonstração de arrependimento pela tragédia que causou e que assumiu no interrogatório judicial.
9º-
O despacho ora em crise é coerente, bem fundamentado e ponderado, devendo por isso ser mantido.

Nestes termos e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o despacho recorrido ser mantido na íntegra.Fazendo-se assim a devida Justiça.

4-Este recurso foi admitido por decisão proferida em 28.10.2016, a fls 513/512 dos autos.

5-Nesta Relação de Lisboa, a Digna Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer de fls 40, no sentido do provimento do recurso, aderindo na íntegra à argumentação aí desenvolvida no sentido de que no caso concreto está demonstrada a “existência em concreto de forte perigo de perturbação do processo (perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova) perigo esse que só poderá ser acautelado pela imposição ao arguido da medida de proibição de contactos, por qualquer meio, com a ofendida, em acumulação com a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva já aplicada."

Pugna assim em consequência pela consequente revogação da decisão recorrida por violação do preceituado no artº 191º 192º, 193º, 200º/1/al d), 203º e 204º al b) todos do C.P.P.
6-Foi oportunamente cumprido o artº 417º/2 do C.P.P., não tendo sido apresentada qualquer resposta.
7-Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
***

II-Fundamentação.

Delimitação do objecto do Recurso ou questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.
A única questão suscitada consiste em saber se a medida de coacção de prisão preventiva é cumulável com a medida de proibição de contactos com determinada pessoa.

A Decisão recorrida.

Como já acima fizemos alusão, foi proferido em 20.10.2016 o despacho judicial ora recorrido (que indeferiu a pretensão do M.P de cumular a prisão preventiva já aplicada com uma nova medida de coacção, a proibição de contactar por qualquer meio com a ofendida nos autos), o qual se dá aqui por integralmente reproduzido para melhor compreensão do objecto deste recurso:

“O Ministério Público pretende a aplicação ao arguido da medida de proibição de contactar por qualquer meio com a ofendida, sustentando a ideia de forte perigo de perturbação do decurso do inquérito no recente depoimento da ofendida (fls. 448 e 449) onde a mesma refere que recebeu cartas e telefonemas do arguido, as quais incluíam um pedido de mudança da sua versão dos factos, em virtude de ele não ter tido intenção de a matar, apenas de a assustar.
Analisada juridicamente a questão este tribunal entende que tal promoção não possui viabilidade.
Por um lado, não se encontra prevista a possibilidade de cumulação da prisão preventiva com a de proibição de contactos (prevista no artº 200°, nº1, d), do Código de Processo Penal), ao contrário do que acontece com a outra medida que integra o conceito constitucional de prisão preventiva, a obrigação de permanência na habitação (artº 201°, nº2, do Código de Processo Penal).
Por outro lado, o incumprimento pelo arguido da nova medida de proibição de contactos não teria qualquer consequência.
Há ainda a considerar que, estando em causa uma conduta activa por parte da ofendida, na leitura das cartas e na realização das conversas com o arguido, parece ser claro que a medida de coacção está direccionada à ofendida e não ao arguido (de resto, aquela refere já ter tratado dos papéis para ir visitar o arguido à prisão), não podendo o tribunal aplicar medidas de coacção a pessoas que não praticaram crimes.
Finalmente, a conduta sucintamente imputada ao arguido não parece incluir fortes condicionantes a qualquer prestação de colaboração na descoberta da verdade, designadamente ameaças ou outro tipo de consequências sobre a liberdade da mesma.
Assim, sem prejuízo da aplicação no estabelecimento prisional das medidas julgadas adequadas, considerando o disposto nos arts. 7°, nº1, e), 68° a 72°, do Código de Execução de Penas, e da eventualidade, em abstracto, da verificação de circunstâncias que permitam uma decisão diversa ao abrigo do disposto no artº 123°, nº1 e nº2, do mesmo Código, indefiro o promovido a fls. 453.”           
*

Analisando.
Da possibilidade legal e da necessidade de cumular no caso sub Júdice a medida de coacção da prisão preventiva com a medida de coacção da proibição de contactos.

Veio o M.P na 1ª instância defender em sede de inquérito estar comprovada a existência em concreto de forte perigo de perturbação do processo (perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova), mediante a revelação feita pela ofendida I.C.  no dia 19.10.2016 no decurso do inquérito de que “o arguido a tinha contactado telefonicamente e através de carta e lhe pediu que mudasse a versão dos factos que relatou, dizendo que apenas a queria assustar e não matar”.

E acrescentou ainda que em seu entender tal perigo só poderá ser acautelado pela imposição ao arguido J.S.C. da medida de coacção de proibição de contactos, por qualquer meio, com a ofendida, em acumulação com a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva já aplicada.

Pelo contrário entendeu o Sr. Juiz do TIC que “essa acumulação não está legalmente prevista face à interpretação conjugada do artº 200º/1/d) de artº 201º/2 do C.P.P.”

E que além do mais “esta medida de coacção ora proposta pelo M.P estaria mais direccionada à ofendida (que referiu até já ter tratado dos papéis para visitar o arguido à prisão) do que ao arguido uma vez que está em causa uma conduta activa por parte da ofendida e não pode o Tribunal aplicar medidas de coacção a pessoas que não praticaram crimes”
E por último “a conduta imputada ao arguido não parece incluir fortes condicionantes à colaboração da ofendida para a descoberta da verdade” sendo que por todas estas razões, indeferiu a pretensão do M.P.

Quid Juris?

Em nosso entender e salvo o devido respeito por entendimento diverso, assiste razão ao M.P. como melhor explicaremos de seguida.

Importa desde já adiantar que sobre esta mesma questão se pronunciou já este Tribunal da Relação de Lisboa:
-por Acórdão da 9ª secção Criminal proferido em 15.9.2016 no âmbito do processo nº 56/16.4PHSNT.L1 em que foi Relator o Sr. Juiz Desembargador Dr. Cláudio Ximenes;
-e por Acórdão da 5ª secção Criminal proferido em 2.6.2015, no âmbito do processo nº 1639/14.2PCSNT-B.LL.5 em que foi Relator o Sr. Juiz Desembargador Dr. Cid Geraldo, cuja argumentação iremos seguir aqui de perto, por a ela aderirmos.  

No fundo o objecto deste recurso implica a análise e decisão de duas questões distintas, a saber:
a)a possibilidade se cumular a aplicação da medida de coacção de proibição de contactos com a medida de coacção de prisão preventiva encontra-se legalmente prevista? ou é manifestamente ilegal e deve desde logo ser indeferida a pretensão do M.P na 1ª instância com esse fundamento de ausência de previsão legal?
b)em caso afirmativo, sendo legalmente possível essa acumulação, justificava-se ainda assim no caso concreto, a aplicação dessa medida de coacção de proibição de contactos e foram respeitados todos os requisitos necessários para o efeito?

Vejamos.

a)Da possibilidade de cumulação da medida de coacção de proibição de contactos com a medida de coacção de prisão preventiva.

O artº 200º, nº 1, al. d) do C.P.P. estabelece que:Se houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativa e sucessivamente, as obrigações de: (…)
não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas ou não frequentar certos lugares ou certos meios”.

Argumenta o Mmº JIC na decisão recorrida que enquanto o artº 201º, n.º 2 do C.P.P. prevê expressamente a possibilidade de cumular a medida de obrigação de permanência na habitação, com a medida de proibição de contactos, por qualquer meio, com determinadas pessoas, já o artº 202º do C.P.P que regula a aplicação da prisão preventiva nada diz expressamente quanto à possibilidade de cumulação da medida de prisão preventiva com a medida de coacção de proibição de contactos, concluindo assim não estar prevista a possibilidade de cumulação destas medidas.

Ora, não é esse o entendimento da doutrina, nem da jurisprudência plasmada nos Acórdão acima mencionados, nem o nosso.

Na verdade, Maia Costa, in “Código de processo Penal” comentado por António Henriques Gaspar, J.S.C. António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques da Graça, 2014, na anotação ao art. 202.º (pág. 877, ponto 10), defende que: “A prisão preventiva é apenas cumulável com o TIR, com a suspensão do exercício de profissão, função, actividade ou direitos (artº 199º) e também com a proibição de contactar com determinadas pessoas por interpretação extensiva do artº 201º, nº 2”.

Por outro lado, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direito do Homem”, 2.ª edição, defende na sua anotação ao artº 202º (pág. 569, ponto 5) que:
A prisão preventiva é cumulável com: a) o termo de identidade e residência (artº 196º, nº 4); b) a suspensão do exercício (artº 199º, nº 1); c) com a obrigação do artº 200º, nº 1, al. d) (por interpretação extensiva do artigo 201º, nº 2)”.

Com efeito, mesmo sem recorrer ao argumento da interpretação extensiva do artº 201º/2 do C.P.P (cuja validade, salvo o devido respeito pelos autores em questão, nos suscita algumas dúvidas, uma vez que estamos no domínio de aplicação de medidas de coacção restritivas das liberdades dos indivíduos e como tal não será em nosso entender lícito o recurso a esse tipo de interpretação) afigura-se-nos que essa cumulação cabe dentro da interpretação literal e conjugada dos preceitos ora em análise ou seja do artº 200º/1/d) (que prevê a medida de coacção da proibição de contactos) e do artº 202º (referente à prisão preventiva) ambos do C.P.P.

É verdade que a possibilidade de cumular a medida de obrigação de permanência na habitação, com a medida de proibição de contactos por qualquer meio com determinada pessoa, apenas surge clara e expressamente mencionada no artº 201º/2 do C.P.P - isto é no preceito que regula a OBRIGAÇÃO de PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO.

E no artº 202º do C.P.P que regula a PRISÃO PREVENTIVA o legislador não menciona expressamente essa faculdade de cumulação com a medida de proibição de contactos, mas quanto a nós tal faculdade ainda está contida na letra da lei deste preceito.
Com efeito logo no intróito do preceito diz-se: “Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventivaquando(…referindo-se depois os vários pressupostos específicos da aplicação desta medida de coacção).

Ou seja, o legislador claramente admite a hipótese de na eventualidade da medida de coacção de “imposição de condutas reguladas no artº 200º do C.P.P “(e que pode ser a proibição de contactos com determinada pessoa) não ser suficiente para satisfazer as necessidades cautelares e afastar os perigos existentes, regulados no artº 204º do C.P.P, o juiz poder aplicar a prisão preventiva, sem se especificar contudo se essa aplicação será feita de forma cumulada ou não.

Nestes termos cabe aqui nesta previsão legal do artº 202º do C.P.P, quer a situação da “medida coactiva de proibição de condutas” regulada no artº 200º já antes ter sido aplicada e depois se ter revelado insuficiente a posteriori no decurso do inquérito, quer a situação de “ab initio” aquando do 1ª interrogatório judicial do arguido, se estar a avaliar qual das medidas de coacção se deveria aplicar ao arguido e se dever optar entre medidas de carácter não detentivo (previstas no artº 197º, 198º ou 200º do C.P.P) ou uma medida coactiva privativa da liberdade como é a prisão preventiva”.

Mas é claro para nós que no caso de a medida prevista no artº 200º/1/d) do C.P já ter sido aplicada e se ter revelado “a posteriori” insuficiente, o Sr. JIC poderá aplicar a prisão preventiva (se se verificarem os demais pressupostos gerais e específicos desta medida de coacção previstos no artº 202º e artº 204º do C.P.P) e nesse caso, a aplicação da prisão preventiva não terá necessariamente que acarretar a revogação da anterior medida de proibição de contactos porque a lei não o impõe.

Ou seja, o legislador no artº 202º do C.P.P nada nos diz sobre a necessidade dessa revogação, pelo que a nova medida de coacção - prisão preventiva - iria poder co-existir com a proibição de contactos já antes aplicada ao abrigo do artº 200º/1/d) do C.P.P, se tal fosse considerado necessário pelo JIC para completa e integral satisfação das necessidades cautelares do caso. 

Ora a ser assim, naturalmente que a situação inversa se justifica igualmente a nosso ver e cabe por isso nesta previsão legal do artº 202º do C.P.P, que não afasta tal hipótese.

Isto é, a possibilidade de ser aplicada ab initio a prisão preventiva e depois mais tarde no decurso do inquérito, as exigências cautelares aumentarem e exigirem a aplicação em cumulação, de uma medida de proibição de contactos prevista no artº 200º/1/d) do C.P.P como sucede no caso presente.

Em bom rigor tal solução não nos choca, até porque a Obrigação de permanência na habitação, ou prisão domiciliária, prevista no artº 201º do C.P.P é no fundo também uma medida de privação da liberdade seriamente gravosa para vida de um cidadão, pelo que não deixa de ser uma verdadeira “prisão” embora não “intra muros”.

Por isso, o legislador sentiu-se na necessidade de deixar bem claro e de forma explícita no artº 201º/2 do C.P.P aquela possibilidade de cumulação da “Obrigação de permanência na habitação com a medida de coacção de proibição de contactos”, ao contrário do que sucede com a prisão preventiva em que “a proibição de contactos” é quase já na maior parte dos casos, uma natural decorrência ou consequência da prisão preventiva, pela sua própria natureza.

Em resumo e concluindo, temos por assente ser legalmente possível a cumulação da medida de coacção de prisão preventiva com a medida de coacção de proibição de contactos, por qualquer meio, de acordo com a interpretação conjugada dos artigos 191º, 192º, 193º, 200º, nº 1, al. d), 202º e 204º do C.P.P.

b)Justificava-se ainda assim a aplicação ao arguido J.S.C.  que já se encontrava em prisão preventiva, da medida de coacção de proibição de contactos com a vítima I.C.  sua mulher e foram respeitados todos os requisitos necessários para o efeito no caso presente?
A questão aqui levantada pelo arguido recorrente, tem a ver com o mérito da decisão do Tribunal a quo, no que respeita à escolha da medida de coacção que no caso melhor se adequa às necessidades cautelares do caso sub Júdice.
Relembremos que o M.P/recorrente veio invocar estarem verificados no caso presente quer os pressupostos gerais de aplicação de uma qualquer medida de coacção, isto é a existência de um forte perigo de perturbação do inquérito, requisito previsto no artº 204º/b) do C.P.P quer dos requisitos previstos no artº 200/1/d) do C.P.P que são específicos da medida de coacção de proibição de contactos.
Não obstante, o Tribunal a quo indeferiu a pretensão do M.P com base entre outros argumentos, no entendimento de que a conduta do arguido, ora denunciada pela vítima no sentido de esta alterar o seu depoimento, “não parece ter condicionado qualquer prestação da colaboração da ofendida para descoberta da verdade uma vez que esta manteve intacto o seu depoimento já anteriormente prestado”.

Tal posição equivale fundo a dizer que o Tribunal a quo entendeu que a referida conduta do arguido não representa qualquer intensificação do perigo previsto no artº 204º do C.P.P de perturbação do inquérito nomeadamente para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, não se justificando assim que lhe pudesse ser agora imposta a medida de coacção da proibição de contactos com a ofendida sua mulher.

Mas tal leitura dos factos feita pelo Tribunal a quo não é acertada, como melhor explicaremos adiante.

Vejamos.

Como se sabe as medidas de coacção destinam-se a satisfazer exigências de natureza cautelar no processo penal, numa fase em que o arguido ainda não está condenado por decisão transitada em julgado pelo que se presume inocente.

Por isso o C.P.P condiciona a sua aplicação à verificação de requisitos apertados, uns necessários à aplicação de qualquer medida de coacção (artº 204º do CPP e outros específicos para a aplicação de cada uma delas.

No caso presente verificam-se os pressupostos específicos previstos no artº 200º do C.P.P para a aplicação da medida de coacção de proibição de contactos, a saber “ fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos

E verificam-se igualmente a nosso ver os outros pressupostos gerais da sua aplicação previstos no artº 191º, 192º, 193º/1 e artº 204º do C.P.P, como melhor explicaremos de seguida.
 
No decurso do inquérito e durante a sua inquirição, no dia 19/10/2016, a ofendida I.C.  revelou que “o arguido a tinha contactado telefonicamente e através de carta, pedindo-lhe que mudasse a versão dos factos que relatou, dizendo que ele apenas a queria assustar e não matar”.

Na posse de tal informação e considerando que se verificava naquele momento um forte perigo de perturbação do inquérito, o Ministério Público, no próprio dia, solicitou ao Mmo. JIC a aplicação imediata ao arguido, em cumulação com a medida de coação de prisão preventiva já aplicada, da medida de coacção de proibição de contactos, por qualquer meio, com a ofendida – cfr. promoção de fls. 453.

Ora nos presentes autos, foi aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, no dia 4/07/2016, na sequência da detenção em flagrante delito pela prática de um crime de homicídio na forma tentada (na pessoa da ofendida I.C. , esposa do arguido), p. e p. pelo artº 131º e 23.º do C.P., - (punido com pena de prisão de 8 a 16 anos na forma consumada, sendo a punição especialmente atenuada na forma tentada, de acordo com o artº 23º/2 e artº 73º do C.P) de um crime de ofensa à integridade física grave (na pessoa do menor E.C. , filho do casal), p. e p. pelo artº 144º, al. d) do mesmo diploma legal - (punido com pena de prisão de dois a dez anos) - e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º, nº 1, al. c) do Regime jurídico das Armas e Munições – cfr. fls. 62-71.

É grave a ilicitude dos factos fortemente indiciados que o arguido, J.S.C.  praticou contra a sua mulher e contra o seu próprio filho, o que se revela desde logo nas respectivas molduras abstractas deste tipo de crimes previstas no C.P e também pelo alarme e intranquilidade que geram na comunidade em geral.

Naturalmente que neste tipo de casos, em que a violência num contexto familiar é exercida de forma gravosa dentro do próprio lar, o depoimento das vítimas reveste quase sempre uma importância fundamental pela inexistência quase sempre de outras testemunhas oculares.

Por outro lado, também é sabido ser quase sempre ambivalente a relação entre o agressor e a vítima, sendo frequente o recurso à manipulação por parte do primeiro sobre a segunda.

Daí que no presente caso, é absolutamente fundado e legítimo o receito por parte do M.P, de que o arguido possa exercer pressão sobre a ofendida sua mulher para que altere o seu depoimento de forma a poder vir a ser ilibado das imputações de factos ilícitos graves que sobre ele impendem, o que nos parece muito provável poder suceder, até porque segundo relato da ofendida, acima reproduzido, essa pressão já começou a ser exercida (através de telefonemas e mediante o envio de cartas).

Desde modo a interpretação feita pelo arguido de que “os autos revelam que tais contactos, se existiram, não tiveram o significado nem o efeito de alterar, influenciar ou prejudicar a prova, porque, de facto, a Ofendida não mudou a versão dos factos; pelo contrário, confirmou-os e repetiu a versão” e de que “os alegados contactos do arguido, a terem existido, não têm o significado que o M.P. lhes pretende dar, não passando de um pedido de desculpas e de uma demonstração de arrependimento pela tragédia que causou e que assumiu no interrogatório judicial” não se nos afigura minimamente plausível nem aceitável.

Na situação em que o arguido se encontra, privado da liberdade, o natural é que procure agora recorrer às armas que estão agora ao seu alcance para alterar a sua situação ou minorar as consequências dos seus actos fortemente indiciados, conhecedor do ascendente psicológico que exerce sobre a sua mulher, vítima dos crimes em investigação nestes autos.

Essas “armas” poderão passar pela simples “sedução” ou “chantagem emocional” até chegar às ameças de agressão, a exercer por carta, por telefone ou até pessoalmente aquando de visitas feitas à prisão pela mulher, com vista nomeadamente a conseguir que a ofendida I.C.  altere o seu depoimento para o favorecer.

A prisão preventiva em que o arguido se encontra limita em grande medida as possibilidades de contacto entre ele e a mulher, a ofendida I.C. .

Mas não impede totalmente que esses contactos ocorram, quer pelo telefone quer por carta, nem impede que possam encontrar-se pessoalmente no contexto de visitas à prisão por parte da ofendida - o que a acontecer propicia o risco sério e forte de o arguido vir a pressionar a ofendida para esta alterar o seu depoimento no sentido de o ilibar.

Assiste pois razão ao M.P, quando defende que os perigos de natureza cautelar que se fazem sentir neste processo, têm agora uma intensidade maior face à conduta do arguido que foi revelada pela ofendida (no sentido de o arguido a ter contactado pedindo-lhe para ela alterar o seu depoimento) e nomeadamente o perigo de perturbação do inquérito só será suficientemente salvaguardado com a aplicação a este arguido da proibição de contactos, em cumulação com a medida de coacção da prisão preventiva.

Tal como foi reconhecido e expressamente referido no Acórdão de 15.9.2016 da 9ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa acima citado, “a proibição de contactos entre o arguido e a vítima afecta necessariamente o direito de contacto desta com o seu marido. Mas não será esse facto que impede a aplicação de tal medida quando justificada pela necessidade de evitar que o arguido se sirva do contacto para afectar a aquisição, conservação ou a veracidade da prova e contribuir para a boa administração da justiça no caso concreto”.

Esta medida de coacção proposta pelo M.P a aplicar em cumulação com a prisão preventiva e prevista no artº 200/1/d) do C.P.P é assim proporcional à gravidade dos factos e adequada às exigências cautelares que o caso requer, porque a prisão preventiva se revela uma medida de coacção insuficiente só por si para dar resposta integral e plena ao perigo de perturbação do inquérito a que se refere o artº 204º b) do C.P.P, face à fortemente indiciada conduta do arguido nestes autos, da prática em autoria material de crimes graves, objecto do presente inquérito e de ter exercido pressão junto da ofendida e principal testemunha no processo para esta alterar o seu depoimento quanto à prática daqueles.

Por outro lado, não podemos esquecer que este perigo de perturbação do inquérito já se verificava desde o início do inquérito e havia fundado a sujeição do arguido à medida da prisão preventiva, pelo que não se trata de uma situação totalmente nova, apenas se verificou agora um aumento desse perigo concreto, isto é uma maior exigência cautelar.

Ou seja, o perigo de perturbação do inquérito é agora bem mais intenso porquanto se verifica nos termos acima expostos, um maior perigo, em concreto, de o arguido/recorrente coagir a ofendida e outras testemunhas que possam vir a ser arroladas (ainda que não presenciais) a alterarem os seus depoimentos, com a finalidade de este arguido não vir a ser incriminado.

Assim sendo, não se afigura necessária a audição do arguido previamente à aplicação da medida de proibição de contactos no caso presente.

Tal audição não é imposta ou obrigatória em termos legais, já que no C.P.P a possibilidade dessa audição ocorrer está prevista nos casos de haver revogação ou substituição de medidas de coacção, o que não sucede aqui - artº 212º/4 do C.P.P.

Por outro lado, o arguido manifestou já a sua posição neste recurso, tendo assim sido exercido o contraditório.

Procede, assim, o recurso do M.P quanto a esta suscitada questão e a decisão recorrida deve ser alterada no sentido de sujeitar o arguido J.S.C. à obrigação de não contactar com a vítima por qualquer meio.

III-Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes da ...ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em:

A)Conceder provimento ao recurso interposto pelo M.P, revogando o despacho recorrido e determinando que em sua substituição seja proferido outro que nos termos acima expostos, aplique ao arguido J.S.C., em cumulação com a prisão preventiva, a medida coactiva de proibição de contactos com a vítima I.C. , por qualquer meio.
B)Sem Tributação.
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Lisboa, 15/2/2017

                                
                                                                                     
(Ana Paula Grandvaux Barbosa)-(Texto processado e integralmente revisto pela relatora.)                                
(Maria da Conceição Simão Gomes)