Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
899/12.8GCFAR.L1-3
Relator: ANA PARAMÉS
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1.Não se verifica a nulidade insanável prevista pelo art° 119°, al. c), do Código de Processo Penal se o defensor oficioso do arguido foi notificado e esteve presente na tomada de declarações para memória futura prestadas pela ofendida, conforme exige o art° 64°, n° 1, al. f), do C.P.P.
2.Com a tomada de declarações para memória futura da menor, em sede de crime de Abuso sexual pretendeu o legislador evitar que a ofendida tivesse de repetir o depoimento no futuro - sendo este gravado e ouvido em audiência - evitando-se a revitimização e minimizando-se tanto quanto possível as repercussões psico-emocionais na menor visando ainda, possível, garantir a veracidade e espontaneidade das respostas da menor ofendida.
3.As boas práticas judiciais e as regras da psicologia impõem que uma menor, alegadamente vítima de abusos sexuais, que tenha prestado declarações para memória futura, só venha a prestar novas declarações em julgamento se tal se mostrar absolutamente indispensável para colmatar algumas dúvidas que possam existir no espírito de quem vai decidir.
4.Toda a prova produzida em julgamento mostra-se avaliada e ponderada no acórdão recorrido de acordo com raciocínios lógicos e segundo as regras de experiência comum, tendo sido realizado um efectivo escrutínio de todo o material probatório, não sendo de censurar o recurso às ilações retiradas em termos de matéria de facto provada, nos termos do disposto no art. 127º do C.P.P.
5.Estando em causa valores tão elementares como a liberdade e autodeterminação sexual de uma criança, não sendo ainda neste momento possível prever as consequências que a conduta do arguido teve e terá na formação e desenvolvimento da sexualidade da menor e das características da sua personalidade que começou a ser abusada sexualmente com apenas 8 anos de idade, impõe-se a necessidade de dar um sinal claro à comunidade de que tais valores devem ser superiormente protegidos e valorizados, havendo fortes razões sobretudo de prevenção geral que justificam o afastamento da suspensão da execução da pena de prisão em crimes desta natureza.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.


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I–Relatório:


1.Por acórdão de 2 de Julho de 2015, proferido no processo comum colectivo n.° XXX do Tribunal da Comarca da ……, Instância Central, do … Juiz, secção Criminal foi decidido:

. Absolver o arguido RQS  da prática de um crime de «actos sexuais com adolescente», agravado, p. e p. pelos artigos 173°, n° e 2, e 177°, n°, al. b), ambos do Cód. Penal;
. Absolver o arguido RQS  da prática de um crime de «coacção», p. e p. pelo artigo 154°, n°, do Cód. Penal;
. Condenar o arguido RQS  como autor material de um crime de «abuso sexual de criança», agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171°, n° e 2, e 177°, n°, al. b), ambos do Cód. Penal, na pena 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2.Inconformado, o arguido veio recorreu da condenação, requerendo que o recurso seja julgado procedente e, em consequência, venha a ser absolvido de todos os crimes pelos quais foi condenado, ou, caso assim não se entenda, seja a pena aplicada suspensa na sua execução. Como fundamento do recurso invoca a nulidade insanável, por o defensor do arguido não ter estado presente na tomada de declarações à ofendida para memória futura,  nulidade por o tribunal não ter promovido o depoimento da ofendida em sede de audiência e julgamento de forma a suprir incertezas que se suscitaram, errada apreciação probatória, e subsidiariamente , defende  que a pena de prisão que lhe foi imposta deveria ter sido declarada  suspensa na sua execução.

3.O Ministério Público respondeu à motivação apresentada, defendendo a improcedência do recurso.

4.O recurso foi admitido.

5.Neste tribunal, a Sr.ª. Procuradora-Geral Adjunta defendeu a improcedência do recurso, em síntese, pelos mesmos fundamentos da resposta apresentada pelo seu Exmº Colega em 1ª instância.

6.Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.

II.Fundamentação:

1.Delimitação do objecto do recurso.

É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso deste Tribunal, como no caso dos vícios enumerados no art.410º, nº 2, do CPP. e das nulidades da própria sentença.

Assim sendo, de acordo com os vícios que são do conhecimento oficioso do Tribunal e das conclusões da respectiva motivação o objecto do recurso dos presentes autos suscita as seguintes questões que serão conhecidas pela ordem que se enunciam, de seguida:

A.Nulidade insanável por o defensor do arguido não ter estado presente na tomada de declarações à ofendida para memória futura (art.119º al.c) do CPP) e nulidade por o tribunal não ter promovido o depoimento da ofendida em julgamento para o esclarecimento de dúvidas suscitadas (art.120º, nº 1,  al.d) do CPP);
B.Da apreciação probatória;
C.Postergação do principio do «in dubio pro reo»;
D.Dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P.;
E.Suspensão da execução da pena;

2.Apreciando.

A.Das nulidades -Nulidade insanável por o defensor do arguido não ter estado presente na tomada de declarações à ofendida para memória futura (art.119º al.c) do CPP) e nulidade por o tribunal não ter promovido o depoimento da ofendida no julgamento de forma a trazer certezas ao processo (art.120º, nº1,  al.d) do CPP).

O arguido/recorrente alega que o depoimento da ofendida está viciado de nulidade insanável prevista pelo art° 119°, al. c) do Código de Processo Penal, porquanto, o defensor não estava, nem foi notificado para estar presente na tomada de declarações para memória futura prestadas pela ofendida, conforme exige o art° 64°, n° 1, al. f), do Código de Processo Renal.

Não tem, manifestamente, razão.

Conforme, resulta, claramente de fls. 244, 246, 250, 262 e 273 a defensora do arguido nomeada (nessa data, a Ilustre defensora Drª …….) foi notificada para a diligência e, efectivamente, encontrava-se presente quando a menor prestou declarações para memória futura.

Pelo que sobre esta questão nada mais há a acrescentar. Os factos falam por si.

Não se verifica, pois, a alegada nulidade de depoimento.

Alega ainda o recorrente RQS  que o Tribunal "a quo", ao não ordenar que a ofendida prestasse depoimento presencial, em sede de audiência de discussão e julgamento, omitiu uma diligência essencial para a descoberta da verdade, sendo que tal omissão constitui uma nulidade, ao abrigo do disposto no art° 120°, n° 1, do Cód. Proc. Penal.

Salvo o devido respeito, carece de qualquer sentido a alegada nulidade.

Como resulta do teor do acórdão recorrido, o Tribunal "a quo" não considerou que o depoimento presencial da ofendida fosse indispensável para a descoberta da verdade material e não entendeu que as declarações para memória futura prestadas pela menor suscitassem quaisquer dúvidas, como resulta evidente da motivação da decisão de facto, daí constando que o tribunal fez uma avaliação exaustiva, crítica e conjugada com outros elementos de prova do depoimento prestado pela ofendida que nenhuma censura nos merece. Ora assim sendo, não faria qualquer sentido que o Tribunal "a quo" obrigasse a menor a depor fazendo-a reviver factos passados extremamente dolorosos para si. A lei, as boas práticas judiciais e as regras da psicologia impõem que uma menor, alegadamente vítima de abusos sexuais, que tenha prestado declarações para memória futura, só venha a prestar novas declarações em julgamento se tal se mostrar absolutamente indispensável para colmatar algumas dúvidas que possam existir no espírito de quem vai decidir. Ora, como resulta da singela leitura do acórdão condenatório, ao tribunal "a quo" não ficou com qualquer dúvida do que foi dito e como foi dito pela menor perante a Senhora Juiz de Instrução Criminal, considerando assim suficiente o depoimento da menor prestado em sede de inquérito.

O recorrente bem sabe que, com a tomada de declarações para memória futura da menor, se pretendeu precisamente evitar que a menor  tivesse de repetir o depoimento no futuro - sendo este gravado e ouvido em  audiência - evitando-se a revitimização e minimizando-se tanto quanto possível as repercussões psico-emocionais na menor.

E, certamente que também não ignora que, com a tomada de declarações para memória futura se pretendeu, tanto quanto possível, garantir a veracidade e espontaneidade das respostas da menor ofendida.

Termos em que, improcede, igualmente, a nulidade invocada.

B.Da apreciação probatória.

1.É o seguinte o teor do Acórdão recorrida no que concerne aos factos provados e aos não provados:

«Factos provados:

1.A RVJ, nascida em 4 de Maio de 1997, residiu até, pelo menos, Setembro de 2011, na habitação sita na …………. juntamente com a sua mãe, os seus dois irmãos e o arguido RQS., seu padrasto.
2.A partir de data não concretamente determinada, mas no decurso do ano de 2005, quando RVJ. tinha ainda 8 anos de idade, o arguido decidiu aproveitar-se do facto de a sua mulher se encontrar ausente, para desempenhar o seu trabalho, durante grande parte do dia e até cerca das 00:00 horas, e de, por via disso, se encontrar sozinho com a sua enteada, menor, para passar a praticar actos sexuais com esta.
3.Em execução dessa determinação, o arguido passou a manter práticas de natureza sexual com a menor, sempre na ausência da mãe da menor e a maior parte das vezes no quarto do casal.
4.Na primeira dessas ocasiões, durante a noite, em data não concretamente apurada do ano de 2005, o arguido encontrava-se na cama do quarto de casal quando a menor ali se deslocou para ver televisão.
5.A menor encontrava-se sentada na cama quando o arguido a puxou para si e começou a tirar-lhe o pijama.
6.Não obstante a menor ter manifestado a sua oposição, o arguido despiu-a completamente enquanto, com uma das mãos, lhe tapou a boca.
7.Quando ambos se encontravam completamente despidos, o arguido tentou penetrá-la na vagina, como não conseguiu introduziu os dedos na vagina e manipulou-lhe o peito.
8.Tal conduta apenas cessou porque, entretanto, a DCVS, mãe da menor, chegou a casa.
9.Aproveitando-se do receio da menor, do facto de exercer autoridade sobre esta, uma vez que era seu padrasto, e de a sua mulher não se encontrar em casa, o arguido continuou a levar a cabo diversas práticas de natureza sexual com aquela.
10.No decurso de tais práticas, o arguido, completamente despido, despia a menor, deitava-a na cama, manipulava-lhe o peito e a vagina, penetrando-a com os dedos.
11.Noutras ocasiões, o arguido colocava a menor por cima de si ou deitava-se por cima dela, esfregava o pénis na vagina daquela e penetrava-a ligeiramente.
12.Após, manipulava o seu pénis e ejaculava para cima do corpo da menor, normalmente para cima da sua barriga.
13.O arguido forçou-a, também, em diversas ocasiões, a efectuar-lhe sexo oral, todavia, de forma menos frequente, porquanto aquela resistia encerrando a boca, acabando aquele por desistir.
14.A actuação do arguido repetiu-se ininterruptamente, com uma frequência semanal, e decorreu em moldes semelhantes aos supra descritos desde o ano de 2005 até ao ano de 2011.
15.O arguido sabia qual a idade da menor, tanto mais que é seu padrasto.
16.Sabia, ainda, que com as suas condutas, descritas nos pontos 2. a 14., estava a limitar gravemente a liberdade e a autodeterminação sexual da menor, bem como estava a prejudicar o desenvolvimento da sua personalidade, sem se preocupar com os prejuízos e os danos irreparáveis que a esta causava.
17.O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção concretizada de satisfazer os seus instintos libidinosos, apesar de conhecer o carácter proibido das mesmas.
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18.O arguido RQS é o segundo elemento de uma fratria de três de um agregado familiar com um estrato sócio-económico desfavorecido, o que determinou que a figura paterna permanecesse longo período emigrado em ……, onde se reformou. A dinâmica familiar que rodeou o processo de desenvolvimento do arguido foi caracterizada como normativa, em termos psico-afectivos, assente em sentimentos de solidariedade e inter ajuda, tendo RQS permanecido no agregado de origem até 2001 (32 anos de idade), aquando do estabelecimento de relação marital com a mãe da ofendida.
19.Ao nível escolar, o arguido abandonou o ensino com cerca de dezassete anos, sem concluir o 8º ano de escolaridade (sendo referidas algumas dificuldades de aprendizagem mas um comportamento normativo em recinto escolar), tendo então integrado o mercado de trabalho, como aprendiz de marceneiro, actividade que desenvolveu durante cerca de 7 anos.
20.Em termos laborais, sendo detectados períodos como beneficiário de subsídio de desemprego, o arguido trabalhou ainda como pintor de automóveis (na sequência de conclusão de formação financiada nessa área) e como recepcionista/vigilante num parque de estacionamento, mediante dois contratos de trabalho de 3 anos, intercalados com períodos de inactividade/subsídio de desemprego, sendo que em 2010,    aquando da vivência de um segundo enfarte do miocárdio, estava num desses períodos, não tendo retomado a actividade laboral.
21.Em termos afectivos, o arguido referiu a vivência de duas relações de namoro (de curta duração), tendo iniciado a sua vida sexual (situações de sexo impessoal) em período anterior à relação marital com a mãe da ofendida. O estabelecimento de relação marital com a mãe da ofendida não obteve, numa fase inicial, o consenso da família do arguido na sequência de estereótipos de género característicos de uma comunidade rural e relacionados com o facto de a então companheira ainda se encontrar casada (embora separada maritalmente por motivos de violência doméstica/hábitos alcoólicos do então cônjuge) e de ter dois menores a cargo, situação posteriormente ultrapassada, mas que na actualidade, e no âmbito da presente situação jurídico-penal, foram activados.
22.O quotidiano do RQS sempre decorreu no exterior (………) da comunidade de origem, privilegiando nesta o convívio com a família constituída e/ou alargada. Levados a posicionar-se diacronicamente quanto à dinâmica familiar do agregado constituído, quer o arguido Sá, em moldes adequados, as tarefas domésticas e/ou cuidados a prestar aos enteados e à filha em comum, facto relevante na medida em que, no período referente aos factos subjacentes ao processo (e quando o arguido se encontrava activo laboralmente), o casal apresentava horários de trabalho incompatíveis. Também do veiculado (e à excepção de alteração de comportamento por parte da ofendida em Agosto/2012, referida pela mãe), os enteados do arguido estabeleceram uma adequada vinculação afectiva com RQS, sendo de referir que o contacto daqueles com o pai apenas se regularizaria depois do divórcio das figuras parentais, teria a ofendida cerca de 8 anos de idade.
23.Já no que concerne à intimidade conjugal, as versões do arguido e mãe da ofendida, embora similares, na medida em que foi caracterizada como não satisfatória, divergem em termos do início/atribuição causal da referida insatisfação. Assim, o arguido referiu algumas dificuldades ao nível da manutenção da relação sexual desde o primeiro enfarte do miocárdio (em 2006) com evolução negativa face à atitude de não compreensão do cônjuge e com agravamento após o segundo enfarte, em 2010. A esse nível, o agora ex-cônjuge salienta quadro de não satisfação e/ou concordância com a forma de expressão sexual de RQS desde o início de relacionamento, privilegiando contudo a dinâmica relacional a outros níveis, tanto mais que quando conheceu o arguido vivenciava quadro de precariedade sócio-habitacional, concomitante com fragilidade emocional.
24.Em meados de 2010, o quadro económico do agregado familiar em causa registou significativa alteração face à situação de baixa clínica do cônjuge do arguido (por motivos de Acidente Vascular Cerebral) concomitante com o quadro clínico de RQS que impossibilitava o desenvolvimento de esforços/retoma de actividade laboral. Nesse contexto, e pese embora o cônjuge do arguido tivesse recorrido à prestação de cuidados a idoso no domicílio, o agregado em causa deixou de reunir condições para cumprir os compromissos referentes a crédito para habitação, tendo optado por vendê-la e com o valor remanescente deslocarem-se, em Setembro de 2011, para o …… (onde detinham um contacto em ……….), com o intuito de investir no ramo da restauração, dado a experiência profissional do cônjuge do arguido como cozinheira. No ……., por contingências várias, o agregado do arguido, o qual já não englobava o irmão mais velho da ofendida, fixou residência em ….., onde estabeleceu restaurante de comida tradicional ……., com sucesso. Nos contactos efectuados na comunidade de ………., sendo que o agregado do arguido conviveu de forma próxima com a actual senhoria de RQS ., a dinâmica do núcleo familiar foi caracterizada como normativa, não se detectando referências sociais estigmatizantes relativas ao arguido, disponibilizando-se, inclusive, alguns elementos, para o acolher e apoiar quando face a situação de carência económica. A ruptura marital viria a ocorrer em Agosto de 2012, no âmbito dos factos subjacentes ao presente processo, não tendo desde então se verificado contactos pessoais entre RQS ., o agora ex-cônjuge e a ofendida. Efectuada a regulação do poder paternal da descendente em comum, RQS ., numa fase inicial manteve contactos regulares com aquela (mediante contacto prévio com o ex-cônjuge), situação que gradualmente foi-se alterando quer por motivos de divergências entre as figuras parentais relativamente aos horários das visitas, quer por não cumprimento da pensão atribuída à menor, concomitante com períodos de ausência do arguido, que se deslocou a Inglaterra por três vezes. Face ao exposto, a CPCJ de …….. veiculou a imagem do arguido como um pai pouco empenhado na relação com a descendente. Em 2013, RQS. estabeleceu contacto, pelo Facebook, com uma ex-vizinha no …………. emigrante em Inglaterra, tendo iniciado relação de namoro com esta e elaborado projectos no sentido de também emigrar para aquele país, situação que não viria a concretizar-se por razões económicas, mantendo-se, contudo, a relação.
25.Na actualidade, RQS afirma movimentar-se num quadro de precariedade económica, subsistindo com uma pensão de invalidez no valor de 328 euros, da qual é descontada a pensão da menor no valor de 100 euros, e tendo como principal despesa fixa mensal a renda da habitação no valor de 100 euros. Nesse contexto, o arguido usufrui de apoio alimentar diário por parte da Sta Casa de Misericórdia de …….. Na situação de insolvência pessoal — solicitada face à ausência de condições para cumprir compromisso referente a crédito pessoal concedido para obras na habitação que detinha na ………a-, e com dívida nas finanças — por não cumprimento das mais valias da venda da mesma habitação, RQS registou um período de cerca de 6 meses em que foi a actual senhoria que lhe assegurou habitação e alimentação. Não apresentando perspectivas de reintegração laboral (condicionadas pelas limitações de mobilidade), RQS desenvolve tarefas de jardinagem e/ou outras solicitadas pela senhoria, decorrendo o seu quotidiano maioritariamente na área de residência, de cariz rural, frequentando o café sito na zona, onde todos têm conhecimento da presente situação, denotando sentimentos de solidariedade.
28.O arguido não tem antecedentes criminais.

Factos não provados.

Não se provou que:

1.As práticas sexuais referidas nos factos provados ocorriam no quarto da ofendida.
2.O arguido advertiu a menor para não relatar nada à sua progenitora, pois, caso o fizesse, "logo iria ver o que lhe faria".
3.Perante tal advertência e com medo de vir a ser agredida fisicamente pelo arguido, a menor não relatou o sucedido à sua progenitora.
4.A conduta descrita nos pontos 2. e 3. repetiu-se, em moldes semelhantes ao descrito, sempre que o arguido levou a cabo práticas de natureza sexual com a menor.
5.Com a actuação descrita nos pontos 2. e 3., o arguido agiu com o propósito de fazer crer à menor que tal anúncio se concretizaria, de forma a que esta não denunciasse os factos ocorridos, com a intenção concretizada de evitar ser criminalmente perseguido pelas suas condutas, assim lhe produzindo receio, medo e inquietação, resultado que representou, quis e alcançou.
6.As práticas sexuais com a menor mantiveram-se nos termos dos descritos nos pontos 2. a 14. dos factos provados mesmo depois de RVJ ter atingido os 14 anos de idade, facto que ocorreu a 4 de Maio de 2011, e apenas cessaram em Setembro de 2011, data em que a mãe da menor foi forçada a ficar em casa devido a uma situação de doença prolongada.
7.Ao agir como descrito em 6., o arguido sabia que estava a limitar gravemente a autonomia vulnerável da sexualidade de RVJ a, aproveitando-se da sua inexperiência e da ausência de discernimento pleno e necessário para avaliar o sentido e o alcance do relacionamento sexual que com ele foi forçada a manter».

2.E fundamentou o tribunal “ a quo”  a sua convicção nos seguintes termos:

«MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO.

Na apreciação da matéria de facto, o tribunal teve em conta:

(i) a certidão de nascimento da RVJ, a fls. 168 e 169 dos autos, onde se constata que nasceu a 4 de Maio de 1997 e é filha de ADJ e de DCV, sendo que, à data dos factos dados como provados, estava confiada à mãe em consequência de divórcio dos pais.
(ii) as declarações prestadas pela ofendida para memória futura, ouvidas em audiência de julgamento, em que fez um relato pormenorizado, objectivo e coerente e, portanto, credível dos factos que foram dados como provados, tendo referido que não denunciou anteriormente a situação com receio de o arguido matar a sua mãe e os irmãos, sendo que tais abusos ocorreram até ter 14 anos de idade (nessas declarações não há qualquer referência a abusos posteriores a esta idade). Estas declarações são reforçadas, desde logo, pela versão dos factos mantida pela ofendida desde o início do processo, que os relatou à sua mãe, que teve oportunidade, por sua vez, de os transmitir ao tribunal, importando realçar que esta, desde logo, acreditou na filha, porque se recordou do primeiro episódio vertido nos factos provados, quando quase surpreendia o arguido em flagrante delito. Aliás, a mãe da ofendida afirmou no seu depoimento, como reforço da sua convicção em relação às revelações da filha, que o arguido ficou "vermelho" quando esta revelou a situação de abusos sexuais perante os familiares, tendo o arguido saído de casa para nunca mais voltar, e que este lhe confidenciou, entretanto e pelo telefone, que efectivamente os factos ocorreram, mas resumiram-se a meia dúzia de vezes, afirmação esta que, refira-se, não obteve do arguido qualquer reacção ou negação (embora, é certo, não o tivesse de fazer). Para além disso, o depoimento da menor é ainda sustentado pelos seguintes elementos de prova: (a) o exame de avaliação no âmbito de sexologia forense, a fls. 14 a 21 dos autos, datado de 29.08.2012, de onde decorre que «a examinada (RVJ) é portadora de hímen complacente, que permite uma introdução ligeira, mas que não permite uma introdução completa de pénis erecto normal de adulto» e que «Os elementos clínicos não comprovam desfloramento, no entanto, a persistência de pressão e forças locais, tal como a exercida por pénis erecto, de forma persistente e durante o provável período indicado na história pessoal, podem permitir uma maior laxidão, que corresponde ao hímen parcialmente complacente verificado», situações que se compatibilizam com as descrições que a ofendida fez, no sentido de que o arguido, durante os quase 6 anos que duraram as agressões sexuais, só penetrava com o pénis na sua vagina de forma ligeira, pois não conseguia fazê-lo por completo, optando antes por introduzir aí os dedos, (b) o relatório de exame médico-legal do foro pedopsiquiátrico, constante de fls. 211 a 215 dos autos, onde se fez constar que a ofendida «apresenta um quadro depressivo integrando um síndrome de stress pós traumático por abuso sexual repetido durante a infância». Refira-se que, pese embora este relatório não possa concluir pela credibilidade das declarações prestadas pela menor, tal não equivale a que o depoimento da ofendida seja de alguma forma posto em causa. Com efeito, o juízo de credibilidade dos depoimentos das testemunhas é tarefa própria e indeclinável do juiz, daí que não tenha aplicação no caso concreto do regime legal previsto no artigo 163° do Cód. de Proc. Penal, podendo o julgador até divergir das conclusões da perícia no que diz respeito à credibilidade do depoimento de uma testemunha, sem necessariamente recorrer a outro juízo pericial, sendo certo que no caso concreto a perícia não aponta para a descredibilização desse depoimento, mas antes para uma não conclusão pericial. Por fim, refira-se que os argumentos de defesa avançados pelo arguido não inquinam o que acima foi dito, nem abalam a convicção do tribunal, chegando mesmo a corroborar a posição assumida, senão vejamos: (a) o facto de o arguido ser um doente do foro cardíaco, não equivale a não possa ter relações sexuais, sendo certo que o próprio afirmou que, apesar dessas limitações, mantinha relações sexuais com a mulher, mãe da ofendida, o que foi confirmado por esta, embora esta tenha revelado que tais relações eram esporádicas e pouco duradouras (perdia a erecção pouco depois de iniciaram o ato sexual), o que vai de encontro com o relato da ofendida, no sentido de que o arguido não a conseguia penetrar na totalidade, optando por lhe introduzir os dedos na vagina (para além do facto de a ofendida ter um hímen complacente o que também justifica tal prática); (b) o facto de o arguido ter atrofia do membro inferior direito também não afasta a possibilidade de manter relações sexuais com a ofendida, pois, para além de as manter com a mulher, como já referimos, optava por manter o relacionamento sexual com a menor na cama, colocando-a preferencialmente por cima de si (como a menor referiu); o facto de ter um trabalho nocturno também não colide com o relato da menor, pois, como esta e a mãe explicaram, tal horário permitia-lhe ficar em casa durante todo o dia, pois a mãe da menor saía de casa de manhã e voltava quando o arguido já tinha saído, e estar em casa quando a menor regressava da escola, momentos em que ficavam sozinhos até que o irmão mais velho chegasse (sendo que este primeiro chegava às 19 horas e depois passou a chegar às 22 horas), sendo certo ainda que não foi dito que os abusos só ocorriam à noite, mas que ocorriam quando não estava ninguém em casa para além do arguido, da ofendida e da irmã desta, à data de tenra idade.
(iii) o relatório social, constante de fls. 420 a 426 dos autos, no que concerne à situação pessoal do arguido.
(iv) o CRC do arguido, a fls. 335 dos autos, em relação aos antecedentes criminais do arguido.

3.O recorrente apresentou as seguintes conclusões:

«1.O arguido foi condenado nos presentes autos e foi-lhe aplicada uma pena de quatro anos e seis meses de prisão efectiva.
2.O depoimento da ofendida sofre de uma nulidade insanável, prevista no artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal, por não ter estado presente, nem ter sido notificado para tal, o defensor do arguido na tomada de declarações para memória futura, violando o disposto no artigo 64º, n,º 1 alínea f) do Código de Processo Penal e nos artigos 20º e 34º da Constituição da República Portuguesa.
3.O tribunal não promoveu o depoimento da ofendida RVJ  na audiência, de forma a suprir as incertezas e dúvidas que surgiram no decorrer do julgamento, prescindindo de um meio de prova que tinha à disposição e que poderia ajudar a trazer certezas ao processo e permitiria a descoberta da verdade material, o que constitui uma nulidade, prevista no artigo 120º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal.
4.O tribunal a quo valorou apenas a o depoimento da ofendida RVJ, e da sua mãe, DCVS, ignorando a demais prova produzida em julgamento, sem o ter justificado e fundamentado, e ignorando todas as fragilidades que os referidos depoimentos têm.
5.O tribunal a quo falhou no seu dever de fundamentar a sentença, exigido pelos artigos 374º, 2, n.º 2 e 375.º do Código de Processo Penal e não aplicou correctamente o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
6.Por terem ficado por afastar tantas dúvidas e por terem ficado por responder tantas perguntas, o arguido, por aplicação do princípio in dúbio pro reo, nunca poderia ter sido condenado no presente processo.
7.Assim, a única decisão aceitável, tendo em conta o desenvolvimento do presente processo e as regras de processo penal e de direito constitucional, seria a absolvição do arguido.
8.Face ao exposto, deverá a decisão do tribunal a quo ser alterada, sendo o arguido absolvido de todos os crimes pelos quais veio acusado.
9.Ainda que assim não se entenda, o que por mera hipótese se coloca, sem se conceder, a pena deverá ser suspensa na sua execução, por estarem preenchidos todos os requisitos do artigo 50º do Código Penal».

Vejamos, agora, a requerida apreciação probatória:

A impugnação da matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada” ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.

Conforme decorre da fundamentação do seu recurso e respectivas conclusões o arguido veio sindicar a matéria de facto provada  através da impugnação ampla da matéria de facto provada.

Para tanto alega, em síntese, nomeadamente que o tribunal “a quo” não valorou os depoimento isentos das testemunhas de defesa e, em vez disso, deu total credibilidade aos os depoimentos da ofendida e da mãe da ofendida «(…)  As testemunhas APF e EAG disseram claramente que o arguido, a DCVS, o DJ e a RVJ, formavam uma família perfeitamente normal, com uma convivência saudável e visível aos olhos de toda a vizinhança (…) transmitiram ainda que o arguido tinha uma relação óptima com os filhos da sua ex-mulher, tratando-os como se seus filhos (…) a ofendida quebrou a sua credibilidade devido às contradições entre as suas declarações ao longo do processo e pela incompatibilidade do que disse com outros meios de prova, nomeadamente (…) Começou por dizer que tinha havido penetração, e, ao longo do processo, acabou por se desmentir, declarando que nunca foi penetrada, o que, tendo em conta a sua idade actual, não é uma confusão aceitável (…) Declarou que o arguido era uma pessoa violenta e agressiva, que lhe batia recorrentemente, quando ficou demonstrado precisamente o oposto, tanto pelas declarações do arguido, como pelas declarações da mãe da ofendida (…) Disse que um dos abusos ocorreu quando o irmão estava no quarto ao lado, quando foi dito pela sua mãe que, dada a configuração da casa, era impossível tal acontecer havendo mais alguém dentro de casa (…)  Declarou que o arguido demonstrou ser homossexual e que essa era a razão pela qual não tinham uma vida sexual satisfatória, lançando a dúvida: se o arguido era homossexual (…)e tinha dois menores em casa, um rapaz e uma rapariga, porque motivo optaria pela menor do sexo feminino? Por outro lado, este constitui um motivo para a testemunha guardar rancor para com o arguido (…) o arguido demonstrou que sofre de uma doença cardíaca muito grave e que tem uma deficiência na sua perna que limita muito a sua mobilidade. No douto acórdão, o tribunal a quo declara que tal não constitui uma limitação, pois o próprio arguido confessou que tinha relações sexuais com a sua esposa (…). No entanto, o que o arguido declarou e que corresponde à verdade, é que as suas limitações físicas e de saúde impedem-no de ter relações sexuais forçadas, contra a vontade do parceiro, em que, para além do esforço normal da relação sexual, teria que ter o esforço adicional de imobilizar a vítima, tapar a sua boca (…) O arguido provou que sofre de taquicardias, desmaios e outros episódios que limitam as suas capacidades físicas mais básicas, quando é colocado numa situação de stress. Por outro lado, demonstrou que um simples empurrão seria suficiente para o deitar ao chão, devido à falta de equilíbrio que tem por ter uma atrofia de um grau tão elevado. Ora, esta condição física não se coaduna de forma nenhuma com o que foi declarado pela ofendida e pela sua mãe, pois não seria possível ao arguido, mesmo que o quisesse, cometer os actos pelos quais vem acusado».

Em suma, e para não nos alargarmos mais na transcrição da motivação e conclusões do recurso, o que se verifica é que o arguido limita-se a apresentar e a defender a sua versão dos factos de forma genérica e abstracta, tecendo considerações subjectivas sobre todo um depoimento de uma e outra testemunha, afirmando ele próprio o que esta disse ou não disse, colocando questões e respondendo às mesmas de acordo com as suas próprias opiniões e convicções pessoais.

Os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, conforme expressamente dispõe o art.428º, do Código de Processo Penal.

Contudo, conforme dispõe o artigo 412º, nº3, do Código de Processo Penal, e sem prejuízo do disposto no art.410º, do mesmo código, a decisão sobre a matéria de facto só pode ser apreciada pelo tribunal de recurso se esta tiver sido impugnada nos termos do art.412º, nºs. 3 e 4, do Código de Processo Penal.

Na verdade, de acordo com o disposto no citado nº3, do art.412º, do Código de Processo Penal, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ter sido renovadas, sendo que nestes últimos casos (reportados às alíneas b) e c), do nº3, do art.412º), tal especificação faz-se “por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº2, do art.364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” em conformidade com o preceituado no nº4, do citado art.412º do CPP.

Assim a especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados só se satisfaz com a indicação individualizada do facto que consta da decisão recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, por exemplo, a indicação genérica e vaga de todos os factos ocorridos em determinado período de tempo e de espaço, ou, de todos os factos constantes da acusação e que integram os elementos constitutivos do crime porque o arguido foi condenado.

Por outro lado, “A indicação exigida pela alínea b), do nº 3 e pelo nº 4, do artigo 412.º do Código de Processo Penal – (…) das provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, sendo, por exemplo, insuficiente a indicação genérica de um depoimento” - cfr. Ac R.P. de 19.01.2000 in CJ XXV, 1, 235.

Estas exigências são essenciais, desde logo, para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, não sendo um ónus meramente formal. Na verdade o cumprimento destes requisitos condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto (neste sentido, Ac. do Tribunal Constitucional nº 140/2004, DR II de 17/4/2004, quando a versão do art. 412.º nº 3 e 4 do CPP que não era tão exigente como é na versão actual).

E são, igualmente, necessárias, porque ao Tribunal da Relação não cumpre proceder a um novo julgamento em matéria de facto, apreciando a globalidade das «provas» produzidas em audiência, antes lhe competindo, atenta a forma como se encontra estruturado o recurso, emitir juízos de censura crítica sobre determinados factos concretamente enunciados pelo recorrente.

O recurso não é um novo julgamento mas apenas um remédio para os vícios do tribunal a quo. O Tribunal de recurso verifica apenas da legalidade da decisão recorrida tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão e daí a importância da indicação dos pontos “incorrectamente julgados”, porque o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à apreciação em pontos concretos e determinados. (cfr., neste sentido, G. Marques da Silva, conferência parlamentar sobre a revisão do C.P.P., A.R., Cod. Proc. Penal, vol. II, tomo II).
Acresce que essa possibilidade de reexame a realizar por este tribunal, em sede de erro de julgamento tem, para além de uma série de outros parâmetros, um limite claro: a lei refere que tal reapreciação só poderá determinar uma alteração à matéria fáctica provada quando for possível concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa da realizada em 1ª instância, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão. Neste último caso, havendo duas (ou mais) possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si), se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artºs. 127º e 374º,  nº2 do C.P.Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais.

Em suma e como doutamente realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:

- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;

- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

No presente recurso, o recorrente discute o acerto da factualidade provada no que respeita à sua apurada conduta, defendendo que a mesma deveria ter sido dada como não provada não dando, porém, minimamente, cumprimento às exigências enunciadas para a impugnação da matéria de facto.

Conforme decorre da motivação e conclusões do recurso e que supra deixamos transcritas, o recorrente não individualizou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados no acórdão remetendo a sua impugnação para a generalidade da factualidade provada, com a qual discorda, não indicou, igualmente, o conteúdo especifico dos meios de prova ou de obtenção de prova que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida por referência aos suportes magnéticos e muito menos explicitou porque razão essa prova deveria levar a uma decisão diversa, limitando-se a afirmar, de forma genérica que os factos dados como provados resultaram, apenas, das declarações da ofendida e da mãe desta, que tais depoimentos não são credíveis pois entraram em contradições entre si, não tendo, no entanto referido objectivamente e ponto e ponto por ponto quais foram essas contradições e em que medida poderiam elas levar a uma decisão diversa.

Em suma, o recorrente, para além de não indicar concretamente as passagens em que se funda a sua impugnação, não especificou, como devia, o facto, ou, factos, concretos que constam da matéria de facto provada e que, em seu entender, considera incorrectamente julgados, limitando-se a remeter de forma genérica para todo um conjunto alargados de factos que constituem a essência do objecto do processo, como se pretendessem um novo julgamento sobre toda a factualidade em causa nos autos, sem referir, igualmente, nem na motivação nem nas conclusões do recurso o conteúdo especifico dos meios de prova ou de obtenção de prova que impunham uma decisão diversa daquele ou daqueles factos que considera erradamente julgados e muito menos explicitou, por que razão, essa prova, que deveria identificar (indicando a passagem das suas declarações ou a passagem dos depoimentos da ofendida e testemunha), imporiam uma decisão diversa da recorrida, relacionando o conteúdo específico do meio de prova que impunha essa decisão diversa com o facto individualizado dado como provado no acórdão, explicando o porquê dessa discordância e indicando qual seria a decisão correcta.

Nestes casos, como o dos presentes autos, em que o recorrente não dá cumprimento ao ónus de impugnação especificada, nem nas conclusões, nem na motivação de recurso, não há que endereçar-lhe convite para aperfeiçoamento, pois tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.
Neste sentido se pronunciaram os Ac. do Tribunal Constitucional nºs 259/2002 de 18/6/2002 e 140/2004 de 10/3/2004, ambos disponíveis in www.Tribunal constitucional. pt/ tc/acordãos.

Em face do exposto, não tendo o recorrente dado cumprimento ao ónus de impugnação especificada imposto no art.412º, nºs 3 e 4, do CPP, como o demonstra a motivação e as conclusões da motivação do recurso interposto, está este tribunal impedido de sindicar, por esta via, a decisão sobre a matéria de facto provada (art.431º, do CPP.).

C. Postergação do principio do “in dubio pro reo”.

Nesta sede, entende o arguido que não foi produzida prova suficientemente credível que colocasse em causa as suas próprias declarações (negando a prática dos factos) nem os depoimentos das testemunhas de defesa que afirmaram em sede de julgamento nunca se terem apercebido de qualquer comportamento estranho por parte do arguido para com a menor ofendida, antes, pelo contrário, sempre os viram como uma família normal, com uma convivência saudável, sendo visível que o arguido tinha uma relação óptima com os filhos da sua ex-mulher, nomeadamente a ofendida, pelo que, conclui, perante todas as dúvidas e incertezas sobre a factualidade provada, deveria o tribunal ter aplicado o princípio do “in dubio pro reo” e, em consequência, ter absolvido o arguido dos factos de que foi condenado nos autos.

O princípio da presunção de inocência está consagrado constitucionalmente no capítulo referente aos direitos, liberdades e garantias fundamentais (art. 32.º, n.º 2, da C.R.P.) e, como tal, é directamente aplicável e vincula as entidades públicas e privadas, nos termos do artigo 18º, n.º 1 da CRP.- Germano Marques da Silva, in Curso de Proc. Penal II, pág.108, e ss.-

Este direito está também reconhecido no artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem que proclama que toda a pessoa acusada de crime tem direito a que se presuma a sua inocência enquanto não se prove a sua culpabilidade, em conformidade com a lei e, bem assim, nos artigos 6º, n.º 2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais e 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

Este princípio abrange o princípio do “in dubio pro reo”, no sentido de que um “non liquet” na questão da prova deve ser sempre valorado a favor do arguido.

Por outras palavras, o princípio “in dubio pro reo” enquanto princípio relativo à prova, à matéria de facto, significa que, na decisão dos factos incertos, a dúvida do julgador favorece o arguido.

No caso dos autos, lendo a decisão recorrida, designadamente, a fundamentação de facto e a valoração da prova feita pelo tribunal, não se vislumbra que o Tribunal “a quo” tenha chegado a um estado de dúvida insanável e que, face a ela, tenha escolhido a tese desfavorável ao arguido, em violação daquele princípio.

Pelo contrário, resulta da análise do acórdão recorrida que os factos dados como provados no acórdão resultaram da actividade probatória desenvolvida, de acordo com os princípios da oralidade, da imediação, perante o julgador, tendo ainda em conta o princípio da aquisição da prova e que nenhuma dúvida surgiu no espírito do julgador ao dar como assente tais factos.

Não se  verifica, pois, qualquer violação do princípio do “in dubio pro reo”.

Prosseguindo.

D.Do mesmo modo, no âmbito de impugnação da matéria de facto tendo por objecto a aferição dos vícios previstos nos arts. 410.º, nº2, als. a), b) e c) todos do Código de Processo Penal, designadamente, insuficiência da decisão para a matéria de facto provada, contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova, vícios que são de conhecimento oficioso, impõe-se concluir que no acórdão recorrido não se verifica a existência de qualquer um deles.

Como resulta da própria letra da lei, em conformidade com o decidido no Ac. do STJ. nº. 07/95, em interpretação obrigatória, o conhecimento dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do CPP, só é possível, quando os mesmos resultarem, exclusivamente, do texto da decisão recorrida, por si só, ou, conjugada com as regras de experiência comum, sem recurso a elementos externos à decisão, diferentemente do que sucede no controle do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, quando o recorrente impugna a matéria de facto, nos termos do art. 412°, nº3, do CPP. Neste último caso, o Tribunal de recurso procede ao reexame de facto, nos pontos especificados pelo recorrente que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, especificadas pelo recorrente, e com base nas quais assenta a sua discordância (art. 412°, nº3, als. a) e b), do CPP), como tudo supra já deixamos exposto.

Em suma, ao fundamento de recurso baseado nos vícios do art.410º, nº2, do CP.P é alheio o que se situa fora do texto decisório, designadamente, quaisquer excertos probatórios colhidos em audiência, ou documentos juntos aos autos.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que se reporta a citada al. a) do nº2, do art.410º, do CPP é um vício que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.

Como se refere no Ac. do STJ de 12.11.1997 (citado por Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal anotado, Vol.II, pag.752), verifica-se o vicio de insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz.

O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a respectiva decisão verifica-se, pois, quando há uma lacuna, deficiência ou omissão no apuramento e investigação da matéria de facto. Este vício influencia e repercute-se na decisão proferida a qual, por isso, não poderá ser a «decisão justa que devia ter sido proferida»-vidé os Acs. do STJ de 30.06.99, proc. nº271/99, 3ª secção e de 02.06.1999, proc. nº 354/99, de 02.06.1999, cujos sumários se encontram publicados na página da Internet do STJ.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al.b), apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição ocorre entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.

Por sua vez, o erro notório na apreciação da prova (c), configura-se quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum.

Conforme jurisprudência corrente no STJ. o erro notório é o erro grosseiro que não escapa a um observador médio. Existe erro notório na apreciação da prova, quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica do homem médio, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos. Este vício tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (vide, entre muitos outros, o Ac. do STJ de l6JUN99, in BMJ 488, pág. 262). E, no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 07JUL99, 3ª Secção, cujo sumário se encontra publicado na página da Internet, Boletim nº. 33, e onde se lê “(...) O erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c), do nº 2, do art. 410º do CPP não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente, e só existe quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal».

Ora analisando o texto decisório, nomeadamente, da fundamentação quanto à convicção do tribunal, não resulta do mesmo que se tenha retirado de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável; que se tenha dado como assente algo notoriamente errado; que se tenha retirado de um facto provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum ou que se tenham violado as regras da prova vinculada ou as regras da experiência comum.

O tribunal “a quo” fundamentou, de forma aprofundada as razões que o levaram a ter em consideração as declarações para memória futura da ofendida e os depoimentos das testemunhas que identificou e conciliou esta prova com os demais elementos probatórios existentes nos autos, designadamente, o exame de avaliação no âmbito de sexologia forense, a fls. 14 a 21 dos autos e os elementos clínicos juntos aos autos, nomeadamente o relatório de exame médico-legal do foro pedopsiquiátrico, constante de fls. 211 a 215, onde se fez constar que a ofendida apresenta um quadro depressivo integrando um síndrome de stress pós traumático por abuso sexual repetido durante a infância. Toda esta prova se mostra avaliada e ponderada no acórdão recorrido de acordo com raciocínios lógicos e segundo as regras de experiência comum, afigurando-se ter sido realizado um efectivo escrutínio de todo o material probatório, não sendo de censurar o recurso às ilações retiradas em termos de matéria de facto provada, nos termos do disposto no art. 127º do C.P.P..

Alega o recorrente que demonstrou que sofre de uma doença cardíaca muito grave, de taquicardias, desmaios e outros episódios que limitam as suas capacidades físicas mais básicas, quando é colocado numa situação de stress, que tem uma deficiência na sua perna que limita muito a sua mobilidade  e que tais limitações físicas e de saúde impedem-no de ter relações sexuais forçadas, contra a vontade do parceiro. Mais afirma que o irmão da ofendida, de seu nome D, chegava cedo a casa todos os dias, o que é demonstrativo que os actos sexuais com a menor não podiam acontecer.

Quanto a estas concretas questões fundamentou o tribunal a razão porque entendeu não serem as referidas  patologias e tais factos impeditivas da actuação do arguido dada  como provada,  nos seguintes termos «(a) o facto de o arguido ser um doente do foro cardíaco, não equivale a que não possa ter relações sexuais, sendo certo que o próprio afirmou que, apesar dessas limitações, mantinha relações sexuais com a mulher, mãe da ofendida, o que foi confirmado por esta, embora esta tenha revelado que tais relações eram esporádicas e pouco duradouras (perdia a erecção pouco depois de iniciaram o ato sexual), o que vai de encontro com o relato da ofendida, no sentido de que o arguido não a conseguia penetrar na totalidade, optando por lhe introduzir os dedos na vagina (para além do facto de a ofendida ter um hímen complacente o que também justifica tal prática); (b) o facto de o arguido ter atrofia do membro inferior direito também não afasta a possibilidade de manter relações sexuais com a ofendida, pois, para além de as manter com a mulher, como já referimos, optava por manter o relacionamento sexual com a menor na cama, colocando-a preferencialmente por cima de si (como a menor referiu) (…) o facto de ter um trabalho nocturno também não colide com o relato da menor, pois, como esta e a mãe explicaram, tal horário permitia-lhe ficar em casa durante todo o dia, pois a mãe da menor saía de casa de manhã e voltava quando o arguido já tinha saído, e estar em casa quando a menor regressava da escola, momentos em que ficavam sozinhos até que o irmão mais velho chegasse (sendo que este primeiro chegava às 19 horas e depois passou a chegar às 22 horas), sendo certo ainda que não foi dito que os abusos só ocorriam à noite mas que ocorriam quando não estava ninguém em casa para além do arguido, da ofendida e da irmã».

A fundamentação exposta é coerente, lógica e de acordo com as regras da experiência comum. Já pelo contrário as justificações apresentadas pelo arguido não se mostram minimamente credíveis. O arguido não logrou demonstrar, designadamente, juntando os respectivos relatórios médicos, o que não se mostrava de difícil obtenção, que as alegadas incapacidades físicas e doença eram susceptíveis de o impedir fisicamente e em termos absolutos de actuar relativamente à menor da forma dada como provada e, certo é que, de acordo com a demais prova produzida e as regras da experiência comum tais factos não são impeditivos de tal actuação.

Deste modo, pelas razões aduzidas, tem-se por correcta e devidamente fundamentada a decisão recorrida, não se verificando qualquer nulidade, designadamente, por falta ou insuficiente fundamentação do acórdão, nos termos conjugados dos arts.374º, nº2 e 379º, nº1 al.a) e 2 do CPP., não nos merecendo, igualmente, qualquer censura a determinação dos factos assentes realizada pelo tribunal , que se devem manter, por não se verificarem, qualquer dos vícios a que aludem as três alíneas do art.410º, nº2, do C.P.P..

D.Suspensão da pena.

1.O tribunal “a quo” fundamentou a tipologia da pena imposta ao arguido da seguinte forma:

«Da suspensão da execução da pena
Apesar da pena de prisão aplicada ao arguido não ser superior a cinco anos, entendemos que não deve ser suspensa na sua execução, porquanto o seu cumprimento é imposto por razões de prevenção geral, já que a comunidade não compreenderia que perante tão grande ilicitude e censurabilidade ético-jurídica, as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico fossem ainda compatíveis com a ressocialização do arguido em liberdade, porque, neste caso, as expectativas da comunidade ficariam defraudadas, a confiança na validade das normas ficaria esvaziada de sentido e desapareceria o elemento dissuasor. Daí que o cumprimento efectivo da pena aplicada se mostre imprescindível à realização das finalidades da punição, não podendo a situação pessoal do arguido sobrepor-se às razões acima invocadas, o que, a ser preponderante, implicaria que não se efectivassem quaisquer penas de prisão em casos de abuso sexual de menor quando estivessem em causa pessoas inseridas socialmente, tanto mais que, como é sabido, a maioria dos abusos da criança parte de pessoas integradas, que se relacionam com os menores fruto da sua situação de familiaridade ou proximidade, nomeadamente pelo facto de serem seus pais, pedagogos ou elementos de referência, em quem o menor confia e muitas vezes ama, o que lhes causa também uma ambivalência de sentimentos relativamente ao ofensor, que são simultaneamente violentos e fontes de afeto e atenção».

Alega o recorrente, nesta sede que, desde o inicio do processo, colaborou com o tribunal na descoberta da verdade, actualmente, não tem qualquer contacto com a ofendida e com a sua mãe, encontra-se inserido gozando de apoio familiar e dos amigos, não tem quaisquer antecedentes criminais e tem uma saúde muito frágil, pelo que, colocado num estabelecimento prisional, o mais certo seria que o arguido não resistisse a uma agravação dos problemas de coração, o que poderá, inclusivamente, colocar perigo para a sua vida, encontrando-se preenchidos todos os requisitos necessários à suspensa da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.

3.Apreciando.

Como se vê, o arguido não impugna a medida da pena única imposta, nem as respectivas penas parcelares, mas tão-somente a sua tipologia, isto é, pretende que tal pena seja suspensa na sua execução, em síntese, com os argumentos seguintes:

a.Colaborou desde o início do processo com tribunal na descoberta da verdade;
b.A sua situação pessoal (o arguido encontra-se inserido  social e familiarmente);
c.A sua situação de saúde é frágil que a prisão efectiva poderá vir a agravar ainda mais fazendo perigar a sua vida.

Para aplicação da pena de suspensão de execução da pena de prisão é necessário, em primeiro lugar, que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade. Em segundo lugar, é necessário que o tribunal se convença, face à personalidade do arguido, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de comportamentos delituosos, tudo como decorre do nº1, do art.50º, do Código Penal.

Conforme se extrai deste dispositivo legal, são considerações de natureza exclusivamente preventiva, de prevenção geral e de prevenção especial, que justificam a opção pela suspensão da execução da pena de prisão.

Como refere Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 332/333, a prevenção geral surge sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização.

Formulado um juízo de prognose favorável, reportado ao momento da decisão, no sentido de que o arguido não voltará a delinquir e ainda que são asseguradas as expectativas da comunidade no sentido da defesa do ordenamento jurídico, o tribunal tem o poder-dever de decretar a suspensão da execução da pena.

Relativamente ao primeiro argumento avançado pelo recorrente, saliente-se que não se vislumbra qualquer colaboração do arguido com a acção da justiça, até porque, desde o inicio do processo e até ao final da audiência de discussão e julgamento o arguido sempre negou a prática dos factos dados como provados.

Ponderando, por outro lado, os factos dados como provados e a personalidade revelada pelo arguido, entende-se que no caso dos autos, não se mostra possível, efectivamente realizar tal juízo de prognose favorável relativamente ao arguido.

Na verdade e não obstante a sua inserção social, a verdade é que surge amplamente documentada nas circunstâncias dos actos cometidos pelo arguido ao longo de vários anos (desde o ano de 2005 até ao ano de 2011) uma personalidade absolutamente indiferente ao dever ser jurídico penal, profundamente alheia aos valores mais elementares direitos que violou de forma sistemática, o que impossibilita a possibilidade de um juízo de prognose positiva de que a aplicação de uma pena suspensa surta efeito neste, fazendo-lhe inculcar a noção da gravidade dos factos por si cometidos e da relevância dos bens jurídicos por si violados.

Acresce que, estando em causa valores tão elementares como a liberdade e autodeterminação sexual de uma criança, não sendo ainda neste momento possível prever as consequências que a conduta do arguido teve e terá na formação e desenvolvimento da sexualidade da menor e das características da sua personalidade que começou a ser abusada sexualmente com apenas 8 anos de idade, impõe-se a necessidade de dar um sinal claro à comunidade de que tais valores devem ser superiormente protegidos e valorizados.

Em crimes com a natureza dos que estão em causa nos autos são sobretudo razões de prevenção geral que justificam o afastamento da suspensão da execução da pena de prisão.

«Considerando a prática, com alguma frequência, de tais delitos entre nós, o interesse público de protecção de personalidades em desenvolvimento, no aspecto da sua sexualidade, sendo desejável que esta se afirme de forma harmónica e consciente que é afrontado, o alarme e a repugnância social que causam, evidente se torna que, para tranquilidade no tecido social e dissuasão de potenciais delinquentes, visto o quadro de extensos malefícios antecedente, que ultrapassam o interesse meramente individual, se impõe uma intervenção punitiva que pondere as sentidas “considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico”- segundo o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 344 –, por esta se limitando sempre o valor da socialização em liberdade» – Ac. STJ de 9/1/2008, proc. n.º 07P3748, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro.

A comunidade tem um sentimento de grande repulsa pelos crimes contra a autodeterminação sexual, exigindo uma punição exemplar dos mesmos, pelo que a suspensão da execução da pena de prisão geraria na comunidade um sentimento de que o ordenamento jurídico – penal não é devidamente salvaguardado, sobretudo quando nem sequer há interiorização do desvalor da sua conduta por parte do agente, como é o caso dos autos.


Por outro lado, o certo é que o estado de saúde do arguido não o impediu de praticar os ilícitos apurados, a que acresce que este não revela a mínima interiorização dos malefícios da sua conduta, não sendo suficiente estar integrado socialmente para se poder efectuar um juízo de prognose favorável.

Nesta conformidade, face às fortes exigências de prevenção geral, impõe-se que seja efectiva a pena de prisão em que o arguido foi condenado, não merecendo nenhuma censura a decisão recorrida.
Pelas razões supra expostas, improcede, na sua totalidade o recurso interposto pelo arguido

IV – Decisão.

Acorda-se em considerar-se improcedente o recurso interposto pelo arguido RQS e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Condena-se o recorrente no pagamento da taxa de justiça de 4 UC.


(Este Acórdão foi elaborado pela Relatora e por ela integralmente revisto)
                  
                   
Lisboa, 13 de Janeiro de 2016

Ana Costa Paramés
Maria da Graça Santos Silva