Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2410/21.0T8VFX.L1-4
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
AVALIAÇÃO DE RISCOS PROFISSIONAIS
SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO
INFRAÇÃO PERMANENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I- O direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde constitui um direito fundamental dos trabalhadores (art.º 53.º da CRP), podendo ser qualificado como um direito bipolar, pois, por um lado, nele impera “uma feição negativa, um direito negativo, de abstenção de condutas lesivas pelo empregador à saúde do trabalhador (art.º 64.º da CRP), por outro lado, prevalece uma configuração positiva, um direito positivo, de satisfação pela entidade patronal de condições de segurança  e saúde no trabalho (art.º 59.º, n.º 1, alínea c) )”.
II - Assume carácter duradouro ou permanente a infração ao disposto no art.º 15.º n.º 2, alínea c) da Lei 102/2009, de 10 de Setembro onde se prevê que “O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção: (…) c) Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos;(…)”.
III - Nos ilícitos duradouros ou permanentes existe, pelo menos, uma acção e uma omissão, estruturalmente indivisíveis, que a lei integra numa só figura criminosa. Pelo contrário, nos ilícitos instantâneos, com efeitos duradouros inexiste o dever jurídico de remoção das consequências duradouras e também a constante renovação da resolução criminosa
IV - Embora estivesse vinculada a fazê-lo, a Arguida não procedeu à avaliação do risco de contaminação microbiológica (doença do legionário) decorrente do uso de sistemas de refrigeração húmidos, como era o utilizado pela mesma na sua actividade industrial.  Assim, uma vez que não resulta da factualidade provada a data em que terá cessado a permanência da acção (incumpridora) da Arguida, não se dispõe de dados que nos permitam afirmar que o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional se tenha sequer iniciado.
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência no Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
Vem a Arguida, AAA, arguir a nulidade do acórdão de fls. 710-724, por omissão de pronúncia, por nele se não ter declarado a prescrição do procedimento contra-ordenacional contra si instaurado. Aduz, em suma, que foi condenada pela prática de uma contra-ordenação muito grave, por violação do disposto no artigo 15.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, por não ter contemplado, no relatório de avaliação de riscos profissionais, de 21 de Fevereiro o risco de Legionella. 
O dever de identificação dos riscos previsíveis em todas as actividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na concepção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na selecção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos» (cfr. artigo 15.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 102/2009) deve ser cumprido em momento prévio à aprovação dos relatórios de avaliação de riscos profissionais. Pelo que, datando o relatório de avaliação de riscos profissionais de 21 de Fevereiro de 2014, a infração imputada à ADP consumou-se, necessariamente, antes desta data ou, quando muito, nesse dia, por ser este em que o risco de Legionella não foi previsto no relatório, devendo tê-lo sido. Mais diz que, nos termos dos artigos 52.º e 54.º da Lei 107/2009, de 14 de Setembro, o prazo de prescrição é de 8 anos (5 anos + 2,5 anos + 6 meses). Consequentemente, o procedimento contraordenacional prescreveu a 21 de fevereiro de 2022.
Aduz, ainda, que os prazos decorrentes das “suspensões COVID”, previstos no artigo 7.º, números 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (primeira “suspensão COVID”), e no artigo 2.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro (segunda “suspensão COVID”), apenas devem valer para o futuro, ou, considerando-se os mesmos aplicáveis, significam que “o processo esteve suspenso apenas 140 dias”, razão pela qual sempre  procedimento contra-ordenacional prescreveria, a 11 de Julho de 2022.
Conclui, desse modo, no sentido de se dever declarar extinto o procedimento em causa, com fundamento no decurso do prazo de prescrição.
Não foi apresentada resposta.
II – Apreciando
Na ausência previsão legal no âmbito da Lei 102/2007, de 14 de Setembro (Regime Processual Aplicável às Contra-Ordenações Laborais e da Segurança Social), de regime relativo às nulidades da decisão, nos termos do art.º 60.º (“ Sempre que o contrário não resulte da presente lei, são aplicáveis, com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra-ordenações”), será de aplicar, subsidiariamente, o previsto no regime geral das contra-ordenações (DL 433/82, de 27 de Outubro, na sua actual redacção). E, porque também este não contém norma específica sobre esta matéria, nos termos do seu art.º 41.º, (“1-Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”), será de aplicar subsidiariamente o disposto no art.º 379.º do Código de Processo Penal (CPP) que rege sobre a nulidade da sentença penal.
Segundo esse normativo,
1- É nula a sentença a sentença quando:
(…)
c) O tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
(…)”
A prescrição não foi suscitada nos autos. Todavia, ao contrário do que sucede no direito civil, em que deve ser arguida, no âmbito contra-ordenacional «a prescrição ocorre pelo simples lapso do tempo, independentemente de outra condição», «competindo à autoridade judiciária invocá-la “ex officio” em qualquer fase do processo» (Vd. Simas Santos e Jorge L. Sousa, in Contra-Ordenações” 2.ª Edição, Vislis 2002, pág. 220. No mesmo sentido, o Ac. do TRC de 07-03-2018, proc. 1633/08.2.PCBR.C1).
Destarte, sendo a prescrição do conhecimento oficioso, cabe ao tribunal declará-la, desde que ocorra - o que no caso se não verifica, como passaremos a expor.
Assim,
Nos termos do art.º 52.º, da Lei 102/2007,
Sem prejuízo das causas de suspensão e interrupção da prescrição previstas no regime geral das contra-ordenações, o procedimento extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação hajam decorrido cinco anos.”
Determina, por seu turno, o art.º 53.º que:
1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
a) Não possa legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;
b) Não possa prosseguir por inviabilidade de notificar o arguido por carta registada com aviso de recepção;
c) Esteja pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa competente, nos termos previstos no regime geral das contra-ordenações.
d) Esteja pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa competente, até à decisão final do recurso.
2 - Nos casos previstos nas alíneas b), c) e d) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.
Resultando do art.º 54.º o seguinte:
1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa competente que procede à aplicação da coima.
2 - Nos casos de concurso de infracções, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação.
3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tenha decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
Como é sabido, a prescrição tem como efeito a extinção do procedimento contra-ordenacional.
Uma vez que a dita Lei 102/2007 é omissa quanto à determinação do início da contagem do prazo de prescrição, nos termos do citado art.º 60.º, importa recorrer ao previsto no DL 433/82, de 27 de Outubro (RGCO). E, porque este também é omisso a esse respeito, por força do seu art.º 32.º (“Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal”), há que aplicar o preceituado no art.º 119.º do Código Penal, onde se dispõe:
Artigo 119.º (Início do Prazo)
 1-O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
2 - O prazo de prescrição só corre:
a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação;
b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto;
c) Nos crimes não consumados, desde o dia do último acto de execução.
3 - No caso de cumplicidade atende-se sempre, para efeitos deste artigo, ao facto do autor.
4 - Quando for relevante a verificação de resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.
No presente caso, foi imputada a arguida a prática da contra-ordenação prevista no art.º 15.º, n.º 2, alínea c), da Lei 102/ 2009, de 10 de Setembro, onde se prevê que:
 “ O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção: (…)
c) Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos;
(…)”
Como resulta claramente da norma legal, trata-se de um dever de carácter duradouro e permanente a que o empregador está sujeito enquanto perdura a relação laboral.
Relembra-se que segundo o art.º 281.º do Código do Trabalho
“1 - O trabalhador tem direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde.
 2 - O empregador deve assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção”.
Prescrevendo o art.º 59.º, da Constituição da República Portuguesa que:
“1-Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
(…)
c) Á prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde;
(…)”
O direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde constitui um direito fundamental dos trabalhadores. Como refere Milena Rouxinol in “A obrigação de Segurança do Empregador”, Coimbra Editora, pág. 106, “ Sobre o empregador que se apresenta como sujeito diferenciado relativamente ao trabalhador  (…) impende desde logo por força da Constituição, um dever de prestação cujo conteúdo se singulariza não só por representar uma protecção antecipada de saúde (…), como ainda por, fundando-se na sua particular posição contratual – uma posição de supremacia jurídica – se conformar em função da mesma e do que ela representa no que respeita à relação entre o prestador de trabalho e o risco a que, enquanto tal, se sujeita”.  Sustenta, por seu lado, Céline Rosa Pimpão in “ A tutela do Trabalhador em Matéria de Segurança e Saúde no Trabalho” Coimbra Editora, pág. 61, que “o direito do trabalhador à segurança e saúde no trabalho é qualificado pela nossa Constituição, como um direito bipolar. Isto porque se por um lado impera uma feição negativa, um direito negativo, de abstenção de condutas lesivas pelo empregador à saúde do trabalhador (art.º 64.º da CRP), por outro lado, prevalece uma configuração positiva, um direito positivo, de satisfação pela entidade patronal de condições de segurança  e saúde no trabalho (art.º 59.º, n.º 1, alínea c)”. (Sublinhados nossos).
No presente caso, resulta da factualidade provada que a Arguida, não procedeu à avaliação dos riscos decorrentes da bactéria Legionella nas suas instalações, estando vinculada a fazê-lo. Com efeito, no exercício da sua actividade industrial de produção de adubos a arguida utiliza um sistema de arrefecimento dos equipamentos de produção através de três circuitos de torres de refrigeração e de bacias, onde circula água com a qual procede ao arrefecimento dos equipamentos de produção de adubos. A água passa em circuitos autónomos do processo de produção dos adubos e dos circuitos onde circulam os materiais de produção. Para além disso, como se fez constar no Acórdão reclamado, existem orientações a nível da União Europeia e da pertinente legislação, relativamente ao risco de contaminação microbiológica (como a doença do legionário) dos sistemas de refrigeração húmidos, como era o sistema utilizado pela Arguida na sua actividade industrial.
Deste modo, considerando, como já dito, a natureza duradoura do dever que recai sobre a Arguida de zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da actividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, cabendo no âmbito daquela obrigação, entre o mais, a identificação dos riscos previsíveis em todas as actividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na concepção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na selecção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos, tendo em conta a actividade por aquela desenvolvida, consideramos que a contra-ordenação em causa assume carácter duradouro ou permanente. O relatório sobre a avaliação dos riscos, não se autonomiza daquele dever, como parece pressupor a Arguida, constituindo, antes, a exteriorização do seu cumprimento, ao mesmo tempo que permite às autoridades inspectivas verificar se existe efectiva avaliação dos riscos previsíveis com vista à sua eliminação ou redução das suas consequências - numa perspectiva de prevenção das condições de segurança e saúde no trabalho. E, como não se ignora, prevenção deve estar (sempre)  presente em todos os aspectos do trabalho, como, aliás, também decorre do referido art.º 15.º, da Lei 102/2009.
Nos ilícitos duradouros ou permanentes existe, pelo menos, uma acção e uma omissão, estruturalmente indivisíveis, que a lei integra numa só figura criminosa. Pelo contrário, nos ilícitos instantâneos,  com efeitos duradouros inexiste o dever jurídico de remoção das consequências duradouras e também a constante renovação da resolução criminosa (Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2007, pág. 314). Deste modo, em tais situações,  a pescrição há-de correr quando cessa a permanência da acção (A. Carvalho Filho “Comentário ao Código Penal Brasileiro”, pág. 369, citado por Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, "Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral", 2ª Edição, 2002, Vislis, pág. 222). Referindo também estes autores, que “A infração permanente já foi definida como uma linha, por contraposição à infração imediata e instantânea (que seria um ponto) e à infracção continuada (que seria uma série de pontos). Nessa visão, o extremo da linha marca o fim da actividade ilícita do agente e o princípio da actividade para o sancionar, começando aí a prescrição. Ao contrário da infracçao continuada, em que a ação é divisível, na infracção permanente essa acção é indivisível”, “Ob. Cit.” pág. 221.
Acolhendo estes ensinamentos, e retornando de novo à factualidade provada, dela não resulta a data em que terá cessado a permanência da acção (incumpridora) da Arguida, pelo que se não dispõe de dados que nos permitam afirmar que o prazo de prescrição se tenha sequer iniciado.
Perante o exposto, apenas resta concluir pela não verificação de qualquer omissão de pronúncia, sendo como tal de desatender a arguida nulidade.

III – Decisão
Em face do exposto, desatende-se a arguida nulidade e mantém-se o acórdão reclamado.
Custas pela Arguida.

Lisboa, 2023-03-01
Albertina Pereira
Leopoldo Soares
Alves Duarte