Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
303/13.4PPLSB.L1-3
Relator: ANA PARAMÉS
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PEDIDO CÍVEL
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1-Da conjugação do disposto no artigo 82°-A do C.P.P., e do n°2 do artigo 21° da Lei n.° 112/2009, de 16 de setembro, resulta que, em caso de condenação por crime de violência doméstica, há sempre lugar ao arbitramento de uma indemnização à vítima. Seja porque ela a pediu ou, não o tendo feito, por não se ter expressamente oposto ao seu arbitramento.
2-Atenta a natureza do crime de violência doméstica, a vontade do legislador foi a de dar uma proteção adicional às vítimas destes crimes, natural e especialmente fragilizadas por o seu agressor ser alguém muito próximo, dos quais muitas vezes dependem monetária e/ou psicologicamente, o que lhes diminui a capacidade de auto defesa.
3-Assim o tribunal tem sempre de fixar uma indemnização, sem que tenha de haver prova de qualquer "particulares exigências de protecção da vítima", a qual, pelas razões supra mencionadas, foi dada como pré-existente pelo legislador neste tipo de crimes.
4-Pelo que, decidindo contra disposição legai expressa, ao não fixar uma indemnização civil a favor da assistente, vítima do crime de violência doméstica, o Tribunal não se pronuncia sobre uma questão que deveria apreciar, o que determina a nulidade da sentença, nos termos do n° 1, al. e), do art. 379° do C.P.P.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa


I-Relatório:

1,  No âmbito do processo comum com intervenção do Tribunal Singular que, sob o n.° n° 303/13.4PPLSB, corre termos pelo 7.° Juiz da secção Criminal da Instância de Lisboa, foi o arguido C.:
. Absolvido da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86,°, al. d), da Lei n.° 5/2006, de 23-02.

« Condenado como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.°, n.° 1 b) e 2, do CP na pena de dois anos e seis meses de prisão, a qual foi declarada suspensa na sua execução por igual período de tempo com sujeição a regime e prova.

, Condenado o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.°, al. d), da Lei n,° 5/2006, de 23-02 na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), num total de €600 (seiscentos euros).

 , Condenado a pagar à demandante cível, Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 568,08 (quinhentos e sessenta e oito euros e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido de indemnização ao arguido.

2.  Inconformada, recorreu a assistente A., requerendo a anulação da sentença, por omissão de pronúncia quanto ao pedido de indemnização civil e o reenvio do processo ao Tribunal “a quo” para que este conheça oficiosamente de tal pedido.

Para tanto alega, em síntese, que a Exma Srª Juíza não condenou o arguido no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos causados à vítima e deveria tê-lo feito, por tal questão ser do conhecimento oficioso, nos termos conjugados do disposto no art. 82° A do Código Penal e art. 21.°da Lei 112/2009 de 16 de Setembro (Lei da Violência Doméstica).

3.Na lª Instância, a Digna Magistrada do Ministério Público apresentou resposta, concluindo que o recurso da assistente não merece provimento, porquanto, pese embora o n° 2 do art., 21.° da Lei 112/2009 remeta para o disposto no art. 82°A do C.P.P. tal remissão não exclui ou afasta a aplicação do requisito "particulares exigências de protecção da vítima", não sendo aceitável a conclusão de que toda e qualquer pessoa vítima de um crime de violência doméstica, por si só, é uma vítima com particulares exigências de protecção. No caso concreto a factualidade provada não permite concluir pela existência dessa particulares exigências de protecção da vítima pelo que não se verificava a obrigatoriedade de fixação oficiosa de uma indemnização civil à assistente.

4.Admitido o recurso e já nesta Instância a Exma. Srª Procuradora-Geral Adjunta, defendeu a tese contrária à da sua Exma colega da 1ª Instância, entendendo que a vítima de um crime de violência doméstica, por si só, é uma vítima com particulares exigências de protecção, pelo que, salvo oposição expressa da vítima e não tendo esta deduzido nos autos pedido de indemnização civil, deve o tribunal arbitrar obrigatoriamente uma indemnização civil, como decorre dos termos conjugados dos arts. 82°A do CPP o n° 2, do art. 21.° da Lei 112/2009.

Concluí pela procedência do recurso e da arguida nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, devendo, em consequência, os autos baixarem à 1ª Instância para, após o exercício do contraditório e eventual produção prova, ser fixada uma indemnização à vítima, ora recorrente.

5.Foi cumprido o disposto no art.° 417,°, n.° 2, do Cód. Proc. Penal, não tendo sido apresentada resposta.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II  - Fundamentação Delimitação do objecto do recurso.

E pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso deste Tribunal, como no caso dos vícios enumerados no art.410°, n° 2, do CPP.

Assim sendo, de acordo com as conclusões da respectiva motivação a única questão que se coloca no presente recurso, e que define o objecto do mesmo, resume-se a aferir se, no caso concreto, se verifica a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, conforme disposto no art., 379.°, n.° 1, al., c) do CPP. por, contra disposição legal expressa, não ter o tribunal fixado na decisão uma indemnização civil a favor da assistente, vítima do crime de violência doméstica .

Para uma correcta decisão, mesmo que limitada à questão equacionada, é fundamental conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida, pelo que aqui se transcrevem os factos que o tribunal recorrido deu como provados e não provados:

  «Factos Provados:

1.O arguido e a ofendida A., doravante A., vivem maritalmente há mais de dez anos, partilhando cama, mesa e habitação, na Rua …………., Lisboa.

2.Desde há cerca de cinco anos que o seu relacionamento conjugal entrou em ruptura, surgindo discussões frequentes entre os dois.

3.No dia 22 de Agosto de 2013, pelas 19.40 horas, no interior da residência do casal supra identificada e após discussão o arguido empurrou a ofendida, agarrou-lhe os cabelos e desferiu-lhe vários murros na cabeça, tendo a ofendida necessidade de receber tratamento no hospital de São José, em Lisboa.

4.Em consequência da agressão perpetrada pelo arguido na ofendida, esta sofreu as seguintes lesões: "Membro superior direito: equimose acastanhada na face lateral do terço inferior do braço com 4x3cm, no membro superior esquerdo. Equimose acastanhada na face lateral do terço médio do antebraço com 2 cm de diâmetro, lesões essas que lhe determinaram directa e necessariamente um período de doença fixável em 4 dias, sendo de dois com afectação da capacidade para o trabalho geral e dois com afectação para o trabalho profissional.

5.No dia 23 de Agosto de 2013, em hora não concretamente apurada, o arguido disse- lhe: "vou cortar a cabeça à tua filha, arranco-lhe os olhos e ofereço-te numa caixinha, cuidados com as varandas, vou pôr o bairro contra vocês e vou deixar de pagar as contas".

6.No dia 12/10/1013, pelas 15.45 horas no interior da residência do casal o arguido após discussão com a ofendida empurrou-a com força, sendo que ambos exalavam odor a álcool.

7.Chamada a polícia à residência, apreendeu na posse do arguido uma catana, com cabo em madeira de 13 cm e com uma lâmina com cerca de trinta e sete centímetros de lâmina.

8.No dia 8 de Março de 2014, pelas 15.30 horas o arguido discutiu com a ofendida no interior da residência supra identificada e durante a discussão desferiu-lhe murros na cabeça, puxou-lhe os cabelos e apertou-lhe os braços.

9.Em consequência da agressão perpetrada pelo arguido na ofendida, esta sofreu as seguintes lesões: "traumatismo do couro cabeludo da face e dos membros superiores, lesões essas que lhe determinaram directa e necessariamente um período de doença fixável em 7 dias, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e sem afectação para o trabalho profissional."

10.No dia 30 de Março de 2014, pelas 23.20 horas, o arguido encontrava-se embriagado, pegou num balde com água e despejou na cama da ofendida de seguida disse-lhe:" és uma puta, uma vaca já te fodi uma vez e fodo-te outra".

11.A ofendida chamou a polícia ao local, ao ser questionado pelo agente da PSP sobre o que se tinha passado o arguido dirigiu-se a A. e disse-lhe: "parti a casa e continuo a partir tudo, quando a polícia sair daqui, a casa é minha e tu vais sair daqui para fora, vais morar para a rua, tu não vales merda nenhuma, não tenho medo de ti nem da polícia".

12.Nessa altura e em face da exaltação do arguido foi-lhe dada voz de detenção pela PSP, após a detenção do arguido foi apreendido no interior da residência uma catana de Marca Martindale, n° 8, com o cumprimento total de 65 cm, com cabo de madeira de 15 cm de comprimento, e 4 cm de largura e lâmina de 50 cm de comprimento e 6 cm de largura.

13.O arguido agiu de forma livre e consciente, com intenção de ofender corporalmente a companheira, de forma grave, maltratando-a física e psicologicamente, atingir a sua dignidade como pessoa e como mulher, humilhando-a o que quis e conseguiu.

14.O arguido quis e conseguiu deter a catana referida em 7), bem sabendo tratar-se a mesma de arma proibida.

15.O arguido praticou os actos de agressão supra descritos na residência da vítima.

16.Agiu o arguido, livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

17. A filha da assistente é o foco das discussões entre o casal.
18. O arguido é visto no seu meio como alguém tranquilo e trabalhador.

19.A assistente, a sua filha e o arguido consumiam estupefacientes juntos.

20.Actualmente arguido e assistente apenas partilham a casa, sendo que o arguido realiza todas as refeições fora de casa, bem como faz o tratamento da sua roupa no exterior.

21.O arguido é camionista e aufere a quantia mensal de €1000.

22.Despende €250,00 a título de pagamento da sua parte do empréstimo contraído para aquisição da casa que habita.

23.Tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade.

24.Por sentença transitada em julgado em 26-02-2008 o arguido foi condenado pela prática em 17-03-2002 de um crime de resistência e coação sobre funcionário na pena de 8 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano.

25.Em consequência das condutas do arguido ocorridas nos dias 22-08-2013 e 08-03- 2014 a ofendida foi assistida no hospital de S. José, sendo que essa entidade despendeu a quantia de €568,08 (quinhentos e sessenta e oito euros e oito cêntimos) nos tratamentos e consultas necessárias para assistir a ofendida A.

 FACTOS NÃO PROVADOS:

 a) Que o arguido detinha a catana referida em 12) bem sabendo tratar-se de arma proibida.

Nada mais com interesse para a boa decisão da causa resultou provado ou não provado, sendo inócua a descrição dos factos instrumentais, e sendo proibida a descrição dos factos conclusivos».

*

A assistente, ora recorrente não impugna a decisão sobre a matéria de facto, não questiona o seu enquadramento jurídico-penal e aceita a medida da pena aplicada ao arguido.

Insurge-se contra a decisão, apenas, por esta não ter condenado o arguido a pagar-lhe uma indemnização civil, a título de reparação dos prejuízos sofridos, indemnização a cuja fixação não se opôs e a que tem direito, por ter sido vítima de um crime de violência doméstica (arts. 21° n°s. 1 e 2 da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro e 82,° A, n°.l do Código de Processo Penal), pelo que, não tendo o tribunal recorrido, se pronunciar sobre uma questão que deveria ter conhecido, violou a norma constante do art., 21.° da Lei n." 112/2009 de 16 de Setembro, verificando-se a nulidade de sentença por omissão de pronúncia, que argui.

Vejamos:

A Lei n.° 112/2009, de 16/9, que instituiu o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das vítimas destes crimes, estabelece no seu art. 21° o direito da vítima à indemnização, nos seguintes termos:

«1 - A vítima é reconhecida, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82. °- A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser....».

Por seu turno dispõe, o citado art. 82°-A do C.P.P., que versa sobre a reparação da vítima em casos especiais:

«1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72° e 77°, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
2  - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório,
3  - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização».
Entendemos que da conjugação dos preceitos legais supra mencionados, contrariamente à posição assumida pelo M°P° em 1ª Instância, resulta que, em caso de condenação por crime de violência doméstica, há sempre lugar ao arbitramento de uma indemnização à vítima, ou porque ela a pediu ou, não o tendo feito e não se tendo oposto ao seu arbitramento expressamente, porque assim o determina o n°2, do art. 21° da Lei n,° 112/2009, de 16/9 ao preceituar que para efeito do crime de violência doméstica «(...), há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82. °-A do Código de Processo Penal» (sublinhado nosso).

Na verdade, atenta a natureza do crime em causa, de violência doméstica e a frequência com que o mesmo se vem verificando na nossa sociedade, entendemos que a vontade do legislador foi a de dar uma protecção adicional às vítima destes crimes, natural e especialmente fragilizadas por o seu agressor ser alguém muito próximo dos quais muitas vezes dependem monetária e/ou psicologicamente, o que lhes diminui a capacidade de auto defesa, e daí que tenha estabelecido, nos termos do n°2, do art. 21° da Lei n.° 112/2009, de 16/9 que para efeitos deste crime, não tendo a vítima deduzido pedido de indemnização civil e não se tendo oposto ao seu arbitramento, o tribunal tenha sempre de fixar uma indemnização, sem que tenha de haver prova de qualquer "particulares exigências de protecção da vítima", a qual, peias razões supra mencionadas, foi dada como pré-existente pelo legislador neste tipo de crimes.

No caso concreto, a sentença recorrida condenou o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, do art. 152°, n° 1, al. a), do Código Penal, na pessoa da assistente A.P.V., não tendo esta deduzido pedido de indemnização civil nem deduzido qualquer oposição expressa à atribuição de tal indemnização. Consequentemente, nos termos supra expostos, deveria o tribunal “a quo” ter-se pronunciado sobre a indemnização a atribuir à assistente.

Não o tendo feito deixou de se pronunciar sobre uma questão que deveria apreciar, o que determina a nulidade da sentença, nos termos do n° 1, al. e), do art. 379° do C.P.P. Deste modo, impõe-se declarar nula a sentença e determinar que o processo baixe à 1a instância a fim de ser proferida nova sentença que se pronuncie sobre a indemnização que for devida à assistente.

Previamente, deverá o tribunal “‘a quo” reabrir a audiência e dar a conhecer ao arguido da questão que o tribunal terá de conhecer, assim se assegurando o direito ao contraditório, havendo lugar à produção de prova, sobre esta matéria, caso esta se mostre necessária.

III- DISPOSITIVO:

Em face do exposto, acordam as juízas desta ... Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa nos seguintes termos:

.Julgar procedente o recurso interposto pela assistente A.P. V. e, em consequência, anula-se a sentença recorrida, devido ao vício de omissão de pronúncia, por não se ter pronunciado sobre a indemnização a atribuir à vítima determinando-se que, em reabertura da audiência se dê conhecimento desta circunstância ao arguido, havendo lugar a eventual produção de prova, caso esta se mostre necessária.
Sem custas.

Processado e revisto pela primeira signatária, que rubrica as restantes folhas.

Lisboa, 15 de Abril de 2015

Ana da Costa Paramés
Maria da Graça Santos Silva