Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18455/16.0T8LSB-A.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL
REMESSA DO PROCESSO
BES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Nos três sucessivos Códigos de Processo Civil resulta evidente que decretada a incompetência absoluta do tribunal se prevê possibilidade de remeter ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta «o processo» e não, «parte do processo».

II - Aliás, nem se vislumbra que parte(s) do processo poderia(m) ser remetida(s) para o tribunal administrativo, nem o apelante explica como poderia tal suceder, fazendo apelo, no uso de terminologia não jurídica, à possibilidade de “ajustes” processuais necessários feitos no e pelo Tribunal competente».

III - Portanto, como não é possível desmembrar o processo, é óbvia a falta de razão do apelante.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório

Na acção declarativa comum instaurada por JFcontra Banco Espírito Santo SA, Banco de Portugal, Novo Banco, SA, Fundo de Resolução; CMVM - Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e LP foi proferido acórdão neste Tribunal da Relação de Lisboa em 06/12/2017, constando no dispositivo:
«Pelo exposto,
Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, na sequência dos fundamentos supra aduzidos, em conceder parcial provimento à apelação de JF, e consequentemente decidem:
5.1 - Manter a sentença apelada no tocante à decidida absolvição da instância dos Réus Fundo de Resolução, Banco de Portugal e Comissão de Mercado de valores Mobiliários (CMVM);
5.5. - Revogar a sentença apelada no tocante à decidia - pelo tribunal a quo - absolvição da instância dos Réus Banco Espírito Santo, SA e Novo Banco, Sa e LP, determinando-se nesta parte o prosseguimento dos autos.
Custas da apelação pelo apelante JFe pelos apelados Banco Espírito Santo, SA, Novo Banco, SA e LP, e na proporção de 50%.»
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Em 05/02/2018 requereu o autor a remessa parcial do processo ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa «com aproveitamento de todos os documentos e atos praticados, nos termos e para os efeitos previsto no número 2 do artigo 99º do C.P.C.».
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Opôs-se o Banco de Portugal, invocando, em resumo:
- primeira razão: não prescinde da invocação de questões processuais e substantivas que não foram suscitadas na sua defesa precisamente por serem exclusivas dos processos que correm termos perante tribunais de jurisdição administrativa (ou por, pelo menos, serem desconhecidas ou diferentemente valorizadas na jurisdição cível);
- é o caso, por exemplo, das questões processuais respeitantes à inadmissibilidade de uma acção, à aceitação tácita do acto administrativo constitutivo da responsabilidade, ao incumprimento do ónus de alegação de facto e de direito da ilegalidade dos factos constitutivos dessa responsabilidade, à inexecução de sentenças dos tribunais administrativos por existência de causa legítima de inexecução, etc;
- e é o caso, também, no que respeita às referidas questões substantivas, da alegação de facto e de direito sobre a verificação dos pressupostos da adopção das Deliberações do Banco de Portugal postas em crise neste processo - ainda que indirectamente, pois aquilo que o autor pretende é obter uma condenação judicial do Novo Banco em contradição com o estabelecido nas Deliberações adoptadas em matéria de resolução do BES;
- em segundo lugar e sobretudo, o Banco de Portugal não prescinde da contra-alegação específica da matéria de facto e de direito alegada na petição inicial - o que não fez na contestação apresentada no tribunal cível por ser este manifestamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção;
- as razões ora invocadas pelo réu não são arbitrárias;
- assim, da eventual remessa destes autos para o tribunal administrativo com aproveitamento dos articulados resultaria evidente diminuição das suas garantias de defesa, ao passo que o direito do autor não é beliscado pois pode intentar nova acção com os mesmos fundamentos no tribunal administrativo.
Conclui nestes termos:
a) deve ser indeferida a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal;
b) se assim não se entender, apenas poderá ser aproveitada a petição inicial, devendo ser-lhe concedido novo prazo para contestar.
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Em 12/02/2018 foi proferida a seguinte decisão:
«Indefere-se o requerido por falta de fundamento legal porquanto a lei apenas admite a remessa do processo, o que não pode ocorrer no caso em análise porquanto o Autor teve vencimento parcial da sua pretensão, sendo revogada a decisão de incompetência absoluta relativamente a parte dos réus.».
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Inconformado, apelou o autor, terminando a alegação com as seguintes conclusões:
A) A decisão sub judice indefere o pedido de remessa do processo ao tribunal competente, limitando-se a dizer que falta fundamentação legal à pretensão deduzida pelo A.;
B) Razão porque considera o A. que não se encontra cumprido o poder/dever de fundamentação impostos às decisões judiciais;
C) Dispõe o n.º 1 do art. 205.º da Constituição da República Portuguesa que «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.» ao passo que preceitua o artigo 154.º do Código de Processo Civil que «1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.»;
D) Assim, carece o despacho reclamado da indicação da fundamentação de facto e de direito que motivou a decisão;
E) O que gera a sua nulidade, nos termos da al. b), do n.º 1, do artigo 615º. do C.P.C. ou, pelo menos, a sua irregularidade, que deverá ser sanada;
F) Assim, impõe-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que venha indicar a sua motivação de facto e de direito, sem a qual se encontra o A. impedido de sindicar a decisão tomada;
G) O Apelante requereu a remessa parcial dos autos indicando, como base legal, o artigo 99.º do Código de Processo Civil que não faz qualquer distinção entre uma procedência parcial ou total da acção e, podendo estar em causa uma eventual situação de litispendência, é ao Tribunal Administrativo que compete conhecer da mesma atenta pois que se encontra esgotado o poder jurisdicional do tribunal que se declarou incompetente para julgar a acção relativamente aos restantes RR..
H) Por identidade de razão, se é possível proceder ao aproveitamento parcial da acção para julgamento, será possível proceder ao aproveitamento parcial da acção para a levar a julgamento no tribunal que foi considerado competente para a julgar, sendo os “ajustes” processuais necessários feitos no e pelo Tribunal competente, à luz dos poderes de gestão processual conferidos ao juiz da causa.
I) A instância do tribunal incompetente não continua no tribunal competente, uma vez que a instância no tribunal incompetente se extinguiu e transitou em julgado. Consequentemente, no tribunal competente, inicia-se uma nova instância - Neste sentido veja-se o Acórdão de 01.06.2015 pela 5a Secção do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo n. o 1327/11.1TBAMT-B.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt;
J) Assim, daqui se conclui que o artigo 99.º do C.P.C. favorece o Autor, só a este concedendo a faculdade de requerer a remessa do processo a tribunal competente, prescindindo do acordo do Réu que, contudo, pode opor-se, desde que justificadamente, excluindo-se argumentos arbitrários, sendo que, encontrando-se esgotado o poder jurisdicional do tribunal incompetente, tratar-se-á de matéria a conhecer pelo tribunal competente.
K) Não se vislumbra que argumentos não tenham os RR invocado ou que não possam agora invocar perante tribunal competente que prejudique a sua defesa, não bastando alegar motivos sem os concretizar. Veja-se, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 29.01.2015, no processo n.º 141592/13.1YIPRT.-A.C1, disponível para consulta in www.dgsi.pt.
L) Os RR., ora Apelados, defendem a competência do tribunal administrativo desde o início da acção, não constituindo nenhum cenário novo ou surpresa, nem se vislumbrando que perante tribunal administrativo possam vir invocar algo de novo ou diferente do já invocado na sua defesa. Pelo que se considera inexistir motivo plausível que obste à remessa dos autos.
M) A qual deve ser ordenada, ao abrigo do artigo 99.º do C.P.C. e do princípio da economia processual com o aproveitamento dos actos processuais já praticados, sem prejuízo do poder/dever de gestão processual e adequação formal do tribunal competente.
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências Mui Doutamente suprirão, deverá o presente recurso de apelação ser admitido e julgada procedente, por provado e, em consequência ser a decisão reclamada revogada e substituída por outra que cumprindo o poder/dever de fundamentação ordene a remessa dos autos para o tribunal competente.
Só assim se fazendo a costumada Justiça.
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Defendendo a confirmação da decisão recorrida, contra-alegaram a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e o Banco de Portugal.
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A 1ª instância indeferiu a arguição de nulidade, exarando:
«Ao contrário do invocado a decisão em causa está fundamentada de facto - o Autor teve vencimento parcial da sua pretensão na Relação, sendo revogada a decisão de incompetência absoluta relativamente a parte dos réus - e de direito - a lei apenas admite a remessa do processo.».
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II - Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são estas:
- se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação
- se é admissível a remessa parcial da acção ao tribunal administrativo
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III - Fundamentação
A factualidade e dinâmica processual a considerar mostra-se exposta no relatório.
1. Da alegada nulidade da decisão recorrida.
Decorre dos art. 615º nº 1 al. b) e 613º nº 3 do CPC que a sentença ou o despacho padecem de nulidade quando não sejam especificados os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
O despacho recorrido expressa a fundamentação de facto e de direito, embora não indique a norma legal. Na verdade, o apelante sabe perfeitamente qual a norma a que se reporta a 1ª instância pois a invocou no seu requerimento, resultando óbvio que a julgadora entende que a mesma não pode sustentar a sua pretensão. Que outro fundamento de direito poderia a 1ª instância invocar? Portanto, é manifesta a inexistência da apontada nulidade.
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2. Se é admissível a remessa parcial da acção ao tribunal administrativo.
Por comodidade de exposição, reproduz-se aqui integralmente o art. 99º do Código de Processo Civil:
«1. A verificação da incompetência absoluta implica a absolvição da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar.
2. Se a competência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada.
3. Não se aplica o disposto no número anterior nos casos de violação de pacto privativo de jurisdição e de preterição do tribunal arbitral.».
Já o art. 105º do Código de Processo Civil de 1939 previa:
«Reconhecida a incompetência absoluta do tribunal, o processo ficará sem efeito.
Mas se a incompetência for julgada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se, estando as partes de acordo. Neste caso o autor requererá que o processo seja remetido ao tribunal em que há-de correr a nova acção.».
Em anotação a esse normativo escreveu o Prof. Alberto dos Reis:
«Ao contrário do que sucede com a incompetência relativa (art. 111.º, § 2º), a procedência da incompetência absoluta produz o resultado seguinte: o processo fica sem efeito.
Mas esta regra admite a excepção prevista na 2ª alínea. Em vez de ficar sem efeito, o processo é remetido para o tribunal competente quando se verificarem cumulativamente três requisitos:
1º Ser a incompetência julgada depois de findarem os articulados;
2º Estarem as partes de acordo no aproveitamento destes;
3º Ser a remessa dos autos para o tribunal competente requerida pelo autor.» (in Código de Processo Civil anotado, 3ª ed. pág. 243).
Sobre o art. 105º do CPC anterior ao actualmente vigente, no qual também se exigia o acordo das partes, escreveram José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto:
«O nº 2 constitui uma manifestação do princípio da economia processual, na vertente da economia de actos e formalidades processuais. Decretada a incompetência depois de fundos os articulados, podem estes aproveitar-se se o autor, obtido o acordo do réu, requerer a remessa do processo para o tribunal competente.
Sublinhe-se que, por este meio, o autor evita a inutilização do processo, mas não obvia à absolvição da instância, pelo que no tribunal competente se inicia uma nova instância. Assim, aproveitam-se apenas os articulados e os actos processuais que eles impliquem (citação do réu, notificações, eventual despacho liminar ou pré-saneador), mas não os restantes actos praticados pelas partes ou pelo tribunal, (…)
Do mesmo modo, não se mantêm os efeitos civis derivados da propositura da primeira causa e da correspondente citação do réu, salvo se, nos termos do art. 289º-2 a nova acção for intentada ou o réu citado para ela no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância.» (in Código de Processo Civil anotado, vol 1º, 2ª ed, pág. 204/205).
Nos três sucessivos Códigos de Processo Civil resulta evidente que se prevê a remessa «do processo» e não de «parte do processo». Aliás, nem se vislumbra que parte(s) do processo poderia(m) ser remetida(s) para o tribunal administrativo, nem o apelante explica como poderia tal suceder, fazendo apelo tão só, no uso de terminologia não jurídica, à possibilidade de “ajustes” processuais necessários feitos no e pelo Tribunal competente».
Portanto, como não é possível desmembrar o processo, é óbvia a falta de razão do apelante.
E assim, dada esta impossibilidade legal, fica prejudicada a questão de saber se a oposição a remessa dos autos é ou não justificada (cfr art. 608º nº 2 do CPC).
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IV - Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Lisboa, 21 de Junho de 2018

Anabela Calafate

António Manuel Fernandes dos Santos       

Eduardo Petersen Silva