Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
309/09.8PEOER.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: MAUS TRATOS A MENORES
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Iº Em matéria de apreciação da prova intervém sempre uma componente subjectiva, nomeadamente quanto à credibilidade da prova pessoal, o que implica a imediação da produção da prova, componente essa que não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação;
IIº Na circunstância de umas testemunhas dizerem num sentido e outras dizerem precisamente no sentido contrário, não tem o tribunal, necessariamente, de optar pela versão do arguido, fazendo de imediato aplicação do princípio in dubio pro reo. Um só depoimento pode bastar - desde que convença o tribunal - para declarar determinado facto como provado, mesmo havendo outro ou outros depoimentos em sentido contrário daquele. O importante é que o julgador, na fundamentação da decisão, convença todos aqueles que, com base nela, tentem reconstruir o processo lógico dessa decisão, das razões da sua opção;
IIIº Entre os bens jurídicos protegidos pelo crime de maus tratos, p.p., pelo art.152A, do Código Penal, está a integridade física e psíquica de pessoa menor de 18 anos;
IVº Trata-se de um crime específico que, no caso de maus tratos físicos, não passa de um crime de ofensas à integridade física autonomizado em função da particular relação existente entre o agente e a vítima, havendo uma relação de concurso aparente entre os dois tipos de ilícito;
Vº Para efeitos daquele crime de maus tratos, deve entender-se que tem a menor ao seu cuidado, à sua guarda, à responsabilidade da sua direcção ou educação, o pai que no exercício de um direito previsto no âmbito da regulação do poder paternal, se preparava para a levar consigo da casa da mãe durante certo período, apesar da mesma estar entregue a guarda da mãe, no âmbito daquela regulação;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:

I - Relatório:
1. Em processo comum que correu termos no 3.º Juízo Criminal do Tribunal de Oeiras, sob acusação do Ministério Público foi submetido a julgamento, perante tribunal singular, o arguido A..., tendo, a final, sido condenado[1], como autor material de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.°-A, n.º 1 a), do Cód. Penal[2], na pena de um ano e meio de prisão, suspensa por igual período.
O arguido havia ainda sido acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. p. pelo art. 152.º, n.º 1 al. a) e c) e 2, do CP, do qual foi absolvido.
*
2. Inconformado, recorreu o arguido, concluindo da seguinte forma:
1- O depoimento do Arguido foi apenas impreciso devido ao nervosismo de estar pela primeira vez em tribunal.
2- O depoimento das testemunhas de defesa, á excepção de AG..., todas elas disseram apenas o que sabiam directamente ou o que lhe contaram com imparcialidade.
3- As testemunhas de acusação se mostraram pré preparadas, com a lição bem estudada, com a intenção de incriminarem o Arguido, com mais ou menos subtileza.
- A mãe (queria) ver o Arguido preso, mas ainda disse que a queda se tinha devido a ela puxar de um lado e o Arguido do outro, que ela é que escorregou e caiu com a filha, logo ela é que materialmente deu origem à queda, sendo este facto do conhecimento publico, e a ser um crime o MP tem o dever de actuar.
4- A Menor respondeu sem medo na presença do pai na sala, o que não é normal numa menor, e respondeu com muita maturidade para a idade, palavras do Senhor Doutor Juiz. Disse a menor que a queda tinha sido causada por o pai (Arguido) e a mãe puxarem uma para cada lado, mas as dores não foram causadas, não pela queda com traumatismo craniano, mas pelo puxão de cabelos do pai, o que conjuntamente a ter dito que tinha cabelos fortes e não tinha deixado cair cabelos no local da queda a quando do puxão dos cabelos, em contradição com o depoimento da mãe que afirmou que os cabelos da filha eram fracos, digo eu pelo que teriam que ficar cabelos no local do puxão com força, pelo que o depoimento da menor foi parcial, foi mentiroso.
5- CS... apesar de estar de relações cortadas com o Arguido disse algumas verdades não valoradas na sentença, nomeadamente que arguido e mãe se encontravam a discutir e chamar palavrões em simultâneo um ao outro.
6- SS..., filha de CS..., disse que não viu nada, mas habilmente lá foi respondendo com curtas palavras, às múltiplas e dirigidas perguntas do senhor Doutor Juiz, fazendo-se passar por pessoa isenta, mas incriminando sempre o arguido, todo o depoimento foi assente no dizer o que a menor lhe havia dito.
7- Apenas se provou que no dia dos factos chovia torrencialmente, os factos se passaram depois das 8 da manhã, só estiveram presentes o Arguido, MS... (mãe) e a Menor C..., as restantes testemunhas foi um disse que disse.
8- A discussão foi à porta de casa da mãe e a queda foram a cerca de 20 metros numas escadas de 4 a 7 degraus estreitos e escorregadios em pedra, debaixo de muita chuva, mais ou menos se apurou que mãe puxou de um lado e Arguido do outro, mãe largou filha por falta de força ou por ter escorregado por estar de chinelos, uma delas mãe ou filha caiu por cima da outra, as versões são contraditórias, caíram a pique, houve várias lesões, ida ao hospital.
9- A Menor alega que as dores que sentiu foram dos dois lados da cabeça (puxões) apesar do traumatismo craniano ser só sobre o lado esquerdo, sendo devido aos (puxões) de cabelo feitos pelo pai (arguido) muito mais dolosos nas suas palavras do que o embate a pique no chão da estrada.
10- Pelo acima exposto quanto à matéria de direito é de total justiça se concluir que não existiu de forma alguma dolo do Arguido no supra referido crime de maus tratos, os elementos objectivos e subjectivos do tipo não se encontram preenchidos, sendo o crime de maus tratos um crime especifico que exige o Dolo, não houve dolo, logo não houve crime, pelo que se pede a absolvição total do Arguido do crime de que vinha condenado (crime de maus tratos), se for entendimento que deve ser o Arguido condenado o mesmo deve o ser em pena inferior à da Sentença, atendendo aos factos em concreto.

3. Respondeu o Ministério Público, defendendo a improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.
4. Admitido o recurso e subidos os autos, neste Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apôs “visto”.
5. Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
***
II. Fundamentação:
1. Conforme Jurisprudência uniforme nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das demais questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
No caso sub judice, teve lugar a gravação áudio das declarações oralmente prestadas em audiência, nos termos dos arts. 363.º e 364.º, do CPP[3], sendo por isso possível o recurso em matéria de facto, com reapreciação da prova gravada.
O arguido limitou o seu recurso – como era seu direito – às seguintes questões:
- impugnação da matéria de facto;
- qualificação jurídica dos factos provados;
- medida da pena.
***
2. Mas vejamos, em primeiro lugar, o teor da decisão recorrida quanto a matéria de facto:
2.1 É a seguinte a factualidade considerada provada (transcrição):
“1.     MS… viveu com o arguido, como se de marido e mulher se tratassem, cerca de 5 anos.
2.       Deste relacionamento nasceu, em 2 de Setembro de 2000, a filha de ambos, C....
3.       Por sentença de 2 de Janeiro de 2007, proferida pelo Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais, 1º Juízo de Família e menores, foi regulado o exercício do poder paternal da menor, tendo esta ficado confiada à mãe.
4.       No dia 18 de Abril de 2009, MS… vivia com a sua filha no Pátio dos …., em …, numa vivenda térrea geminada, em frente à qual existe um pátio interior comum às demais vivendas, ao qual se ascende por umas pequenas escadas em pedra, com cerca de 6 degraus.
5.       Nesse dia, pelas 8h10m, MS… encontrava-se naquela sua residência, quando o arguido aí se deslocou para levar a sua filha consigo, de fim de semana.
6.       Após breve troca de palavras com MS… sobre o desempenho escolar da menor, o arguido agarrou a sua filha C... e puxou-a para que esta o acompanhasse, tendo a menor começado a chorar e a gritar.
7.       Para que C... o acompanhasse, e porque MS… puxou pelo capuz da menor, o arguido agarrou, com uma mão, a menor pelos cabelos, puxando-a para a frente.
8.       O arguido, enquanto assim procedia, chamava a sua ex-companheira de “puta”, “porca” e “ordinária”.
9.       Junto às escadas, a menor desequilibrou-se e caiu pelas escadas abaixo, seguida por MS…, que se desequilibrou conjuntamente com a sua filha.
10.     MS… agarrou a filha na queda, rolando, ambas, pelas escadas abaixo, caindo a primeira sobre a segunda, enquanto a segurava nos braços.
11.     Como consequência directa e necessária da queda e do puxão de cabelos, a menor C... sofreu traumatismo craniano sem perda de conhecimento, com cefaleia parieto-occipital esquerda, com eritema do couro cabeludo, com hematoma epicraniano de partes moles, lesões que lhe determinaram 7 dias sem incapacidade para as actividades escolares.
12.     A menor teve que ser assistida no Hospital de São Francisco Xavier.
13.     Ao cair no chão, MS… sofreu escoriações do cotovelo direito e do terceiro dedo da mão direita, lesões que lhe determinaram 5 dias sem incapacidade para o trabalho e que foram assistidas no Hospital de São Francisco Xavier.
14.     A menor C... tem dificuldades de aprendizagem.
15.     E é asmática.
16.     O arguido actuou deliberada, livre e conscientemente, querendo puxar a sua filha pelos cabelos, apesar de representar que a sua conduta era proibida por lei.
17.     O arguido, quando ia buscar a filha a casa de MS…, o que, naquela data, fazia de 15 em 15 dias, costumava epitetá-la com expressões como as referidas em 8, no que era correspondido pela sua ex-companheira, que o  chamava de “paneleiro”.
18.     Naquelas ocasiões, o arguido dizia, por vezes, que lhe ia tirar a “filha”.
19.     A menor sofre com estes factos.
20.     O arguido, até ao fim de 2009, era apoiado pela mãe.
21.     A partir desta data, passou a receber uma pensão de invalidez de cerca de € 600,00.
22.     O arguido vive sozinho.
23.     O arguido entrega € 75,00 por mês a título de alimentos devidos à menor C....
24.     O arguido é tido, no seu meio social, como uma pessoa pacata.
25.     O arguido não tem averbada no seu registo criminal qualquer condenação em processo penal.”
*
2.2 Factos não provados.
– Que o arguido puxasse a menor em direcção ao solo.
– Que o arguido não esteja a cumprir o pagamento da pensão de alimentos fixada na decisão do Tribunal de Família e menores.
– Que o arguido prive a sua filha de ter acesso a um apoio escolar especial.
– Que o arguido não trate a sua filha com respeito e carinho.
– Que, para além da acção descrita em 7, o arguido queira molestar fisica e psicologicamente a sua filha.
*
2.3 Em sede de fundamentação da convicção do tribunal, escreveu-se na sentença recorrida (transcrição):
«O Tribunal ao fixar a matéria de facto supra descrita, fundou a sua convicção na apreciação conjunta e crítica das declarações do arguido, confrontadas com os depoimentos das testemunhas MS…, C..., CS, SS…, E…, M…, AG… e MP…, com a documentação clínica de fls 10, 11, 37 a 41 e 176, com a certidão de assento de nascimento de fls 158 e com os autos de exames pericial de fls 16 a 18, 21 a 23, 72 a 75.
O arguido admite os factos assentes em 1 a 5, 9, 14 e 15, corroborados, além do mais, pela certidão de fls 158 e pelo relatório de fls 176.
O arguido nega, no entanto, que tenha epitetado com as expressões referidas em 8, a sua ex companheira e nega que tenha puxado os cabelos da sua filha, projectando a sua queda para a frente e pelas escadas abaixo. E nega que tenha querido, por qualquer modo, derrubar MS….
No entanto, o arguido produz sempre declarações atabalhoadas que se associam não apenas ao seu modo de ser e ao seu espírito nervoso, mas também à absoluta incapacidade para explicar a dinâmica da queda da sua filha e da sua companheira e, sobretudo, da causa que a motivou.
E, assim, as declarações do arguido são tidas por pouco credíveis, contrariando as regras de experiência comum e os depoimentos esclarecidos de MS…, CS… e SS….
O arguido revela que se apresentou pelas 8 horas, em casa de MS… para levar a sua filha consigo, conforme regime de visitas estipulado pelo 1º Juízo de Família e menores do Tribunal de Cascais.
E, nessa altura, MS… começou, exaltada, a exibir-lhe cadernos da sua filha, mas sem deixar ler o que quer que fosse.
O arguido revela que, então, no fim da conversa, virou-se e levou a sua filha pela mão, que não lhe resistiu e que o acompanhou de bom grado.
Ouviu, uns passos atrás de si e verifica que a sua ex-companheira puxara pelo capuz do casaco da filha, despregando-o e que se agarrara, entretanto, aos cabelos da filha, com as duas mãos.
Então, a sua filha caiu das escadas de pedra, com 6 ou 7 degraus, e MS… caiu em cima da filha.
Depois, levantaram-se as duas e foram para casa, retirando-se o arguido de volta ao …, onde vivia.
Ali regressado de transportes públicos, soube ao chegar, por um terceiro seu amigo, que a sua filha e a sua esposa tinham ido para o Hospital mas, no entanto, não entrou em contacto com elas.
Ora, a explicação de que ficou sem reacção perante este episódio não faz qualquer sentido. Caso a menor tivesse sido derrubada pela acção da mãe, não faz sentido que o arguido nada fizesse, não procurasse saber quais as reais consequências de tão aparatosa queda e se limitasse a voltar ao … donde saíra tão cedo, de transportes.
Nem faz sentido que não procurasse saber qual o estado da menor, já para não falar da sua ex companheira, ao saber que ambas estavam no Hospital.
E também não faz inteiro sentido que uma menor de tão tenra idade, sendo disputada naquela circunstância por ambos os pais, se dirigisse tão naturalmente para casa com o progenitor que tinha produzido tão assustadora queda.
Pelo contrário, a própria menor explica credivelmente e num depoimento seguro que reflecte maturidade para a idade, que foi o pai quem lhe puxara os cabelos, produzindo a sua queda.
Num depoimento que não indicia ter sido produzido sobre sugestão, C... explica que o seu pai, o aqui arguido, lhe puxou pelos cabelos, aleijando-a. A sua mãe puxou pelo capuz e acabou por escorregar nas escadas, caindo ambas pela escadaria.
Ora, as lesões apresentadas pela menor e que estão descritas no exame pericial de fls 21 e 73, são compatíveis, em termos médico legais, com um puxão de cabelos e posterior queda.
A menor explica que as dores de que se queixara, mesmo após a queda, se deveram aos cabelos arrepelados.
E o descontrolo emocional que é transversal à atitude do arguido em audiência pode justificar esta actuação do arguido.
O depoimento de MS… é igualmente credível e escorreito.
Esta testemunha explica os factos da mesma forma, explicando que a sua filha estava a hesitar em andar, com se não tivesse decidido que queria ir com o pai e este puxou-lhe pelos cabelos.
A testemunha explica, de forma credível, que o arguido não teria a intenção de atirar a filha das escadas a baixo, mas apenas de a encaminhar em direcção a essas escadas.
No entanto, uma vez que MS… tentou agarrar o capuz da filha, desequilibrou-se, precipitando-se para as escadas com a filha, logrando agarrá-la e amortizar a queda desta.
MS… revela que a filha estava, essencialmente, queixosa por causa do puxão de cabelos e chorava copiosamente, o que fez com que a testemunha afirmasse que o arguido já não ia levar a filha.
Confirma, ainda, que o arguido não lhes deu qualquer satisfação, nem procurou saber do estado de saúde de ambas.
A testemunha assevera, se forma segura, que o arguido chamou-a, naquela ocasião e à semelhança de outras, de “puta”, ordinária” e “porca”, mas assume que também costuma responder com palavras menos próprias.
Os depoimentos de SS…, perfeitamente isento, e de CS…, menos objectivo e pouco distanciado, reforçam a força probatória dos dois primeiros depoimentos.
Na verdade, ainda que não tenham assistido aos factos, ambas as testemunhas acabam por confirmar que a primeira reacção da criança perante a queda, instantes depois desta ter ocorrido, foi reconhecer àquelas suas vizinhas que o pai lhe puxara os cabelos. Como ambas afirmam, a menor queixava-se de dores causadas pelo puxão de cabelos, descrevendo a dor que sentia.
CS… ouviu, noutras ocasiões, o arguido a chamar MS… de “puta” e “ordinária”, mas ouvia que esta ripostava, chamando o arguido de “paneleiro”.
Estas duas testemunhas visionaram que a criança tinha dois hematomas na cabeça.
As demais testemunhas, arroladas pelo arguido, não têm conhecimento directo dos factos, pelo que não permitem dilucidar qualquer facto, nem esbater a convicção que o Tribunal foi formando relativamente à matéria levada à acusação.
E…, amiga do arguido, ainda que demonstre um conhecimento limitado sobre a vida deste, acaba por ter um depoimento muito abonatório da sua personalidade.
M.. também tem um depoimento abonatório, acrescentando que o arguido queixava-se dos diferendos que tinha com a sua ex companheira, relativos às visitas da sua filha.
AG…, irmã do arguido, refere que o arguido chegou a casa muito abatido e contou-lhe o episódio. E assevera que o arguido, nesse dia 17/04/2009, tinha-lhe assegurado que não tinha puxado os cabelos da criança. Ora, segundo o arguido, após a queda nas escadas não houve grande troca de palavras, não tendo a sua ex companheira dito nada sobre puxões de cabelos, pelo que aqui se regista uma contradição enorme entre as declarações do arguido e o depoimento da sua irmã.
Para mais, esta refere que o arguido não lhe disse que a C... tinha ido para o Hospital, o que permite concluir que este conhecimento indirecto dos factos é contrário ao afirmado pelo arguido e demonstra não ser, sequer, completo.
O depoimento da outra irmã do arguido, MP…, também apresenta esta contradição com as declarações do arguido, na medida em que afirma que o arguido não lhe dissera que a menor tinha ido para o Hospital.
Deste modo, os depoimentos das testemunhas da acusação não puderam, de forma nenhuma, ser abalados pelos depoimentos das testemunhas de defesa.
A falta de antecedentes criminais resulta assente com base no Certificado de Registo Criminal de fls 126.
No que diz respeito aos demais elementos sócio económicos do arguido, estes foram assentes com base nas declarações do próprio.
Os factos não provados resultam, além do que se disse, da falta de elementos probatórios que sobre eles recaíssem.
Na verdade, ainda que MS… explicasse que o arguido não pagou inteiramente as prestações de alimentos a que estava obrigado, não consegue precisar quais.
Ainda que o arguido tenha um depoimento não esclarecedor quanto ao pagamento das prestações de alimentos, afirma que tem pago os € 75,00 mensais.
Por outro lado, MS… acaba por reconhecer que ainda que tenha dificuldades financeiras, não tem deixado de ser prestado apoio médico e psicológico à sua filha.
Deste modo, não se pode considerar provado que o arguido não tem cumprido a prestação de alimentos e que, por causa disso, C... não esteja a receber o apoio que precisa.
Também não se apurou que o arguido tenha, noutras ocasiões, querido molestar física ou psicologicamente a sua filha.»

***
3. Analisemos, pois, as questões formuladas pelo recorrente:
3.1. A impugnação da matéria de facto:
As relações conhecem de facto e de direito (art. 428.º, do CPP).
«…
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação» (art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo Código).

Convém, todavia, frisar, desde já, que o recurso em matéria de facto não visa a obtenção de um segundo julgamento sobre aquela matéria, sendo antes e apenas uma oportunidade para remediar eventuais males ou erros cometidos pelo tribunal recorrido. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva[4], «o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida»[5].
Quer isto significar que, face ao princípio da livre apreciação da prova - «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» (art. 127.º) - compete fundamentalmente ao tribunal de recurso aferir da legalidade e da bondade do caminho percorrido pelo tribunal recorrido para formar a sua convicção e alcançar o resultado que se traduziu na respectiva decisão em sede de matéria de facto.
Deverá ainda ter-se presente que em matéria de apreciação da prova intervém sempre uma componente subjectiva, nomeadamente quanto à credibilidade da prova pessoal, e que os próprios depoimentos em audiência são frequentemente condicionados pelo modo como são recebidos. Tal componente «implica a imediação da produção da prova e a decisão pelos próprios juízes que constituíram o tribunal na audiência e essa componente não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação»[6].
O recorrente, aceitando expressamente a maioria dos factos provados, pretende impugnar os identificados sob os números 6, 7, 8, 9 (embora quanto a este o inclua igualmente entre os factos que aceita como correspondendo à verdade – cfr. ponto 3.º, da motivação), 10, 11, 12, 17, 18 e 19.
Para o efeito, invoca a existência de contradições entre os vários depoimentos e entre estes e as próprias declarações do arguido.
Porém, da análise da prova que se mostra junta aos autos, confrontada com a análise que dela é feita pelo tribunal recorrido, nenhum erro é perceptível, nenhuma divergência é de assinalar, relativamente à leitura que o tribunal fez de cada um dos depoimentos e que reflectiu na respectiva motivação da decisão de facto, quando confrontada esta com o que efectivamente resulta de cada um desses depoimentos. Nem o recorrente invoca existir tal erro ou divergência.
Bem vistas as coisas, a crítica do recorrente patenteia apenas a sua discordância com a opção do tribunal, ao dar maior crédito a uns depoimentos em detrimento de outros. Mas essa é uma outra questão, que respeita exclusivamente à livre convicção, à livre apreciação da prova (art. 127.º, do CPP) e à motivação das decisões judiciais.
Na circunstância de umas testemunhas dizerem num sentido e outras dizerem precisamente no sentido contrário, não tem o tribunal, necessariamente, de optar pela versão do arguido, fazendo de imediato aplicação, nomeadamente, do princípio in dubio pro reo. Um só depoimento pode bastar - desde que convença o tribunal - para declarar determinado facto como provado, mesmo havendo outro ou outros depoimentos em sentido contrário daquele. O importante é que o julgador, na respectiva fundamentação da decisão, convença todos aqueles que, com base nela, tentem reconstruir o processo lógico dessa decisão, das razões da sua opção. Por isso exige a lei que a fundamentação da sentença obedeça a determinados requisitos, enunciados no art. 374.º, n.º, 2, do CPP.
Ao realizar o julgamento, o juiz de 1.ª instância tem, em virtude da oralidade e da imediação, «uma percepção própria do material probatório que nós indiscutivelmente não temos. O juiz do julgamento tem contacto vivo e imediato com o arguido, com o ofendido, com as testemunhas, assiste e não raro intervém nos seus interrogatórios pelos diversos sujeitos processuais, recolhe um sem número de impressões … que não ficam registadas na acta, apenas na sua mente …Essa fase ao vivo, do directo, é irrepetível»[7].
Na fase de recurso, praticamente dominada pela escrita em vez da oralidade (apesar de os depoimentos estarem gravados e, por isso, poderem ser ouvidos), é quase impossível avaliar, com correcção, da credibilidade de cada depoimento, dizer se um é mais credível do que o outro prestado em sentido diverso é tarefa difícil. Perante dois conjuntos de depoimentos, cada um deles testemunhando em sentido contrário ao outro, por qual deles optar? Acompanhando, mais uma vez, o acórdão atrás citado, «essa é, em princípio, uma decisão do juiz do julgamento. Uma decisão pessoal possibilitada pela sua actividade cognitiva, mas também por elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais». Como a propósito refere Damião da Cunha[8], os princípios do processo penal, a imediação e a oralidade, implicam que deve ser dada prevalência às decisões da primeira instância. Em recurso, pouco mais haverá a fazer do que controlar e sindicar a razoabilidade da sua opção, o bom uso ou abuso do princípio da livre convicção, com base na motivação da sua escolha[9].
«Aquilo que o tribunal de recurso pode essencialmente censurar é a violação de todo um conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação da prova (que limitam o “arbítrio” na sua apreciação), exactamente: as regras de experiência comum, o princípio in dubio pro reo, o princípio de presunção de inocência e, em especial, aquele que está directamente ligado à afirmação de uma culpabilidade pelo facto, isenta de qualquer referência a características pessoais do arguido»[10].

Conforme refere expressamente o juiz recorrido:
- “as declarações do arguido são tidas por pouco credíveis, contrariando as regras da experiência comum e os depoimentos esclarecidos de MS…, C..., CS… e SS...”;
- “… a menor explica credivelmente e num depoimento seguro …”;
- “O depoimento da MS… é igualmente credível e escorreito”;
- “ … ainda que não tenham assistido aos factos, ambas as testemunhas (S... e C...) acabam por confirmar a primeira reacção da criança perante a queda, instantes depois desta ter ocorrido …”;
- “As demais testemunhas, arroladas pelo arguido, não têm conhecimento directo dos factos, pelo que não permitem dilucidar qualquer facto, nem esbater a convicção que o tribunal foi formando relativamente à matéria levada à acusação”;
- E mais adiante: “… os depoimentos das testemunhas da acusação não puderam, de forma nenhuma, ser abalados pelos depoimentos das testemunhas de defesa”.

Relativamente ao que aconteceu, temos, na verdade, apenas a versão do arguido, completamente isolada, sem que haja qualquer outro meio de prova que a corrobore, em confronto com a versão da acusação, confirmada por duas pessoas – a menor ofendida, filha do arguido, e a mãe desta – que viveram os acontecimentos relatados e cujos depoimentos são, no fundamental, coincidentes, e são, ainda que parcialmente, corroborados pelos depoimentos das testemunhas de acusação relativamente ao que constataram logo a seguir aos factos, ao comparecerem de imediato no local destes, bem como pelo que ouviram, logo no momento, à ofendida e mãe, relativamente ao que se havia passado.
A questão controvertida, face ao alegado pelo arguido, é apenas a que respeita ao motivo pelo qual a menor caiu pelas escadas - uma vez que não há dúvidas de que caiu e das sequelas resultantes dessa queda -, rejeitando responsabilidades próprias nessa matéria, enquanto que, para o tribunal, sustentado nos depoimentos da menor C... e da mãe desta, a menor caiu porque foi puxada pelos cabelos, pelo arguido.
Independentemente das reservas que o recorrente possa colocar relativamente à veracidade do conteúdo de tais depoimentos, nomeadamente da menor C..., o certo é que este tribunal não dispõe de quaisquer outros meios de prova que, com maior credibilidade, permitam sustentar a falta de razoabilidade da posição assumida pelo tribunal recorrido, antes pelo contrário, do conjunto da prova produzida diríamos que a conclusão a que chegou o tribunal a quo é a mais razoável, está suficientemente sustentada na prova produzida, apresentando-se a respectiva fundamentação lógica, racional e convincente.
Dito de outro modo: para que o tribunal de recurso proceda à alteração da matéria de facto, exige a lei que as provas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
Todavia, perante os elementos de prova disponíveis – declarações do arguido, depoimentos das testemunhas e documentos juntos aos autos (em especial, os autos de exame médico) -, não se colhem razões para censurar a opção do tribunal, por inexistir qualquer violação das regras ou princípios relativos à prova, não sendo possível concluir, face à prova indicada, que os factos impugnados não ocorreram tal como descrito na sentença recorrida.
Dir-se-á, pois, sem necessidade de maiores delongas, que o recurso improcede no que concerne à impugnação da matéria de facto.

3.2. Quanto à qualificação jurídica dos factos provados:
Alega o arguido que não actuou com dolo, pelo que não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de maus tratos.
Escreveu-se na decisão recorrida, a tal propósito, o seguinte:
“…
O crime de maus tratos pressupõe que o seu agente se encontre numa determinada relação para com a vítima.
O sujeito passivo do crime em apreço só pode ser a pessoa que se encontra para com o agente na relação pressuposta no preceito incriminador.
Assim, encontra-se nessa posição, o menor entregue em guarda a qualquer pessoa, ou, no caso, o menor em relação ao progenitor a quem não está entregue a sua guarda mas que tem, como pai não inibido do poder paternal, o poder dever de promover a protecção e educação da sua filha. E, está nesta posição o pai de um menor que o tenha consigo no cumprimento do respectivo regime de visitas.
O crime de maus tratos não pressupõe, já, uma reiteração das condutas, contentando-se o tipo, para se subsumir ao tipo criminal, uma só conduta “ agressora “ que, pela sua gravidade, mereça esta especial tutela e punição.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo de crime em análise, o mesmo exige o dolo em qualquer das suas modalidades, previstas no artº 14º do Código Penal.
No entanto, como o crime em causa tanto pode ser um crime de resultado (como acontece no caso dos maus tratos físicos ) como de perigo ( casos descritos nas als. b) e c) do nº 1 e no nº 4 do artº 152º ), o conteúdo do dolo é variável em função do tipo de conduta do agente, dividindo-se, conforme os casos, em dolo de resultado ou mero dolo de perigo.
É imputado ao arguido o preenchimento da conduta típica prevista no nº 1 a).
Assim, o dolo deve abranger o próprio resultado danoso da integridade física ou da saúde, ou da honra e consideração da vítima, bem como, o conhecimento da relação de, no que no caso nos interessa, da guarda de menores.
Enquanto progenitor da vítima, o arguido encontrava-se especialmente obrigado a respeitá-la, e a zelar pela sua educação, crescimento harmonioso e bem estar.
Tais imposições decorrem dos mais básicos imperativos de ordem moral.
Ora, ficou provado que o arguido puxou os cabelos da sua filha, com força, provocando-lhe dores e hematomas. E ficou ainda provado que, ao actuar assim, o arguido produziu, ainda que não o desejasse, a queda da menor. E que fez acompanhar esta conduta de ofensas verbais à progenitora da menor, a quem chamava de “puta”, “porca” e “ordinária”.
O arguido não prestou qualquer assistência, nesta situação, à menor.
Deste modo, considero preenchidos todos os elementos objectivos do tipo de crime pelo qual o arguido acusado.
Quanto aos elementos subjectivos estes também se mostram preenchidos, sendo que o arguido actuou de forma dolosa e com dolo directo, com plena consciência de todos os elementos objectivos do tipo em análise e com vontade de maltratar a ofendida.
Pelo exposto, inexistindo quaisquer causas de exclusão da culpa ou da ilicitude, o arguido não pode deixar de ser condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 a) do Código Penal.”

A norma legal correcta que está aqui em causa é actualmente a do art. 152.º-A, do CP[11], do seguinte teor:
“Maus tratos

1 — Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 — Se dos factos previstos no número anterior resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.”

Entre os bens jurídicos protegidos pela norma está a integridade física e psíquica de pessoa menor de 18 anos.
O tipo objectivo consiste, pois, na prática de maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa menor, levados a cabo por quem tem esta à sua guarda, ou sob a responsabilidade da sua direcção ou educação.
Trata-se de um crime específico que, no caso de maus tratos físicos, não passa de um crime de ofensas à integridade física autonomizado em função daquela particular relação existente entre o agente e a vítima, havendo uma relação de concurso aparente entre os dois tipos de ilícito.
 Dúvidas não há de que no presente caso houve agressão física à menor por parte do pai, consubstanciada tal agressão no puxão de cabelos da menor, ao ponto de a fazer cair, resultando de tal acção as sequelas descritas no respectivo exame médico. Mesmo que a menor não tivesse caído pelas escadas, bastaria aquele acto do arguido para integrar o aludido conceito de “agressão física”, sendo por si suficiente para preencher a previsão normativa relativamente a este requisito do tipo objectivo.
Por outro lado, apesar de a guarda da menor ter sido entregue à mãe no âmbito da regulação do poder paternal face à ausência de vida em comum de ambos os progenitores, o pai não foi totalmente excluído do exercício daquele poder, tinha direito de visitas da menor e a levá-la com ele durante determinados períodos, preparando-se, no dia dos factos, para levar a menor mais uma vez consigo, para com ela passar o fim-de-semana.
Consequentemente, o pai da menor estava ali nessa qualidade, no exercício dos seus direitos como pai, incumbindo-lhe os correspondentes deveres decorrentes da paternidade, passando a estar a menor ao seu cuidado, sob a responsabilidade da sua direcção e educação, enquanto com ele se mantivesse.
Estão, por isso, preenchidos os elementos objectivos do tipo.
No que concerne ao tipo subjectivo, exige-se efectivamente que o agente aja com dolo. Este pode assumir qualquer uma das suas modalidades: directo, necessário e eventual. Sendo essencial para a conformação do dolo a correcta informação do agente sobre a qualidade da vítima e da relação existente entre ambos, não oferece quaisquer dúvidas que, no presente caso, o arguido sabia que estava perante a sua filha e que estava ali para a tomar a seu cargo. Também não oferece dúvidas de que quis puxar a menor pelos cabelos (facto provado n.º 16, que nem sequer foi impugnado), tendo agido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo tal conduta proibida. Tanto basta para que se conclua pela verificação de dolo directo, conforme assinalado na decisão recorrida.
É certo que da matéria da facto provada não resulta que o arguido quis o resultado verificado – queda da menor pelas escadas – ou mesmo que previu ou devia ter previsto tal consequência da sua conduta. Todavia, tal previsibilidade só assumiria relevância para efeitos de integração da sua conduta no crime preterintencional previsto no n.º 2 do art. 152.º-A, do CP, cujo resultado teria de ser imputado ao agente pelo menos a título de negligência, na ausência de dolo de resultado.
Todavia, na ausência de factualidade que permita integrar a conduta do arguido em tal previsão normativa, pelo facto de as ofensas à integridade física não chegarem a atingir o grau de gravidade pressuposto na alínea a) do n.º 2 da citada norma, a ofensa à integridade física simples pressuposta no n.º 1, al. a), do mesmo normativo legal, foi seguramente levada a cabo pelo arguido, de forma dolosa.
Concluindo-se, pois, pela verificação de todos os pressupostos, objectivos e subjectivos, do tipo legal em causa e pelo qual foi condenado o arguido.

3.3. Passemos, pois, à questão da medida da pena:
O ilícito cometido é punível com pena de um a cinco anos de prisão.
O tribunal recorrido fundamentou do seguinte modo a escolha feita:
“Em sede de determinação das consequências jurídicas do crime e da reacção criminal adequada, a culpa e a prevenção funcionam como critérios gerais orientadores da medida da pena, tendo esta, sempre, como limite, aquela, que é justamente o seu suporte. Relevante para encontrar a "medida da culpa", são os próprios ilícitos típicos, enquanto apreciados nas suas consequências típicas, que lhe conferem uma certa "imagem" ou sentido social.
Assim, tendo como pressuposto este critério orientador, analisemos então a situação do arguido.
Como se viu, o arguido está comprometido com o crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 a) do Código Penal.
O qual é punível com pena de prisão de um a cinco anos.
Este crime não prevê, em alternativa, a aplicação de pena de multa.
Assim, a pena a aplicar é necessariamente a de prisão.
Ora, é necessário, ao nível da culpa do arguido, considerar:
- A intensidade reduzida do dolo.
- A ilicitude um pouco abaixo da mediania dos factos – atentos os meios utilizados pelo arguido, as consequências directas da sua conduta e a falta de reiteração.
- O arguido não revelou ter interiorizado a censurabilidade da sua conduta.
- Tem-se esforçado por desenvolver a sua capacidade de se relacionar com a menor.
- Sopesa-se positivamente a falta de antecedentes criminais do arguido.
Assim, entendo adequada uma pena de um ano e meio de prisão.
O arguido é primário e está integrado socialmente.
O arguido está numa situação de invalidez, pelo que a sua disponibilidade para o trabalho é reduzida.
O arguido não elaborou um juízo de censura em relação aos factos, pelo que a substituição da pena de prisão por trabalho a favor da comunidade, nos termos do artigo 58º, nº 1 do Código Penal, não se mostra adequada a assegurar as finalidades da punição.
Todavia, afigura-se-me que a simples ameaça com a pena de prisão será suficiente para assegurar essas finalidades de punição, garantindo para a recuperação social do arguido.
Deste modo, decido suspender a execução da pena de prisão, por período de ano e meio – cfr. artigo 50º, nº 1 e 5 do Código Penal.”

Dispõe o art.º 40.º, do CP, que “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1) e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (n.º 2). Acrescenta o art.º 71.º, n.º 1: «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
Dos citados artigos extrai-se que a medida concreta da pena tem como parâmetros: a) a culpa, cuja função é a de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; b) a prevenção geral (de integração), à qual cabe a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; c) a prevenção especial, à qual caberá a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente.
Em suma, a culpa e a prevenção constituem os dois termos do binómio que importa ter em conta para encontrar a medida correcta da pena.
Perante a moldura abstracta correspondente, que tem um ano de prisão como mínimo, podendo ir até cinco anos, o circunstancialismo a ponderar in casu, para o efeito – o grau de ilicitude dos factos (abaixo da mediania, segundo a decisão recorrida, atentos os meios utilizados e a não existência de reiteração), as respectivas consequências (fazendo com que a menor tivesse caído e rolado pelas escadas, o que lhe causou traumatismo craniano, com cefaleia parieto-occipital e eritema do couro cabeludo com hematoma epicraniano de partes moles), a reduzida intensidade do dolo, apesar de este se apresentar na forma directa, as condições pessoais e situação económica do arguido, a ausência de antecedentes criminais, sem esquecer as exigências de prevenção -, terá de concluir-se que a pena aplicada ao arguido – de um ano e seis meses de prisão – está muito próxima do limite mínimo, não padecendo, na perspectiva deste tribunal, de qualquer exagero, sendo, por isso, de confirmar, bem como a respectiva suspensão.
Em consequência, é o recurso totalmente improcedente.

***
III. Decisão:           
Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente o recurso do arguido A..., confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo do arguido, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC (art. 87.º, n.º 1 al. b) e n.º 3, do CCJ).
Notifique.

Lisboa, 24 de Maio de 2011

(Elaborado em computador e revisto pelo relator, o primeiro signatário - artigo 94.°, n.º 2, do CPP).

Relator: José Adriano
Adjunto: Vieira Lamim
-------------------------------------------------------------------------------------
[1]  Por sentença de 28 de Junho de 2010, nessa mesma data depositada.
[2]  Na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4.09.
[3]  Na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29/08.
[4] In “Registo da Prova em Processo Penal – Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues”, pág. 809;
[5] No mesmo sentido, Cunha Rodrigues, Lugares do Direito, Coimbra, 1999 pag. 498; ou ainda o Ac. do STJ de 20/02/2003, Proc. 240/03-5, in “Boletim de Sumários dos Acórdãos do STJ”: «Os recursos, como remédios jurídicos que devem ser, não podem ser utilizados com o único objectivo de alcançar “uma melhor justiça”, já que a pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulte da violação do direito material».
[6] G. Marques da Silva, obra citada, pag. 817.
[7]  Recurso. n.º 3321/04, da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto (relator: Des. António Gama).
[8] “A estrutura dos recursos na proposta de revisão do CPP”, RPCC, 8.º, 2.º, pág. 259, citado no Ac. desta Relação proferido no Rec. 3321/04, acima citado.
[9] Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, lições de 1988/89, pág. 140 e segs.
[10] Damião da Cunha, “O Caso Julgado Parcial”, ed. 2002, pág. 567.
[11]  Na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, vigente à data dos factos.