Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5028/18.1T8FNC-A.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: EMBARGOS
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
RECIPROCIDADE
HERANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1– A existência de contracrédito para compensação, prevista no artigo 729º h) do CPC como fundamento de oposição à execução fundada em sentença condenatória, deve obedecer ao requisito temporal imposto na alínea g) do mesmo artigo e aos requisitos exigidos no artigo 847º do CC.

2– Não obedece a esses requisitos o contracrédito invocado pela executada embargante sobre a exequente embargada que consistiria na obrigação de uma sociedade unipessoal à qual o falecido pai da embargada, de quem esta é herdeira, teria prestado fiança, já que, para além de não estarem demonstrados os requisitos processuais das alíneas h) e g) do artigo 729º do CPC, tal fiança não foi objecto de condenação judicial e constituiria uma obrigação da herança e não da herdeira ora exequente, o que não obedece aos requisitos impostos pelo artigo 847º de os créditos serem recíprocos e de ser o crédito invocado exigível judicialmente.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO.


Por apenso à execução comum que RA… intentou contra G…, SA para pagamento da quantia certa de 178 469,24 euros, sendo 164 800,00 de capital, 9 391,34 euros de juros de mora e 4 277,90 euros de custas de parte reclamadas, em que é título executivo uma sentença condenatória transitada em julgado, veio o executado deduzir oposição por embargos, alegando, em síntese, que não houve condenação no pagamento de juros, inexistindo título executivo para este valor e que, no âmbito da actividade comercial de ambas, a embargante e a sociedade GA… – Unipessoal, Lda celebraram em 1/04/2002 um contrato de distribuição e, para garantia deste contrato, a embargante na mesma data celebrou um contrato de fiança com GBA…, sócio único dessa sociedade, que prestou fiança para garantia, como principal pagador, do cumprimento pontual das obrigações da referida sociedade, mas, tendo falecido o fiador em 19/07/2009, sucederam-lhe como únicos herdeiros o cônjuge e as duas filhas, uma das quais a ora exequente, mantendo a sociedade em causa uma dívida para com a ora embargante, no valor total de 295 840,20 euros, reconhecida judicialmente nas sentenças dos processos que identifica, respectivamente no valor de 108 880,65 euros em sentença de 17/02/2015 e de no valor de 186 959,55 euros em sentença de 13/07/2018, tendo a embargada, na qualidade de herdeira do falecido fiador, sido notificada para o pagamento desta dívida e devendo o crédito da embargada reclamado na presente execução ser totalmente compensado com o referido credito da embargante.

Concluiu pedindo a procedência da oposição, com a declaração de inexistência de título executivo para o pagamento de juros e com procedência do contracrédito da embargante sobre a exequente embargada.

A exequente embargada contestou, opondo-se à excepção de inexistência de título para o valor exequendo dos juros e alegando, em síntese, que a fiança prestada pelo seu pai não foi em nome pessoal, tendo-se extinguido com a sua morte e que por ela responderiam apenas os bens da herança, sendo a embargada responsável por apenas parte do passivo da herança, não tendo ainda transitado em julgado uma das sentenças invocada pela embargante, tendo sido pago o passivo da herança, sendo responsável pelo crédito invocado pela embargante a sociedade da empresa GA…Lda, quando o crédito exequendo é da exequenda embargada, não sendo possível compensar créditos de terceiros, mas sim apenas entre pessoas que sejam reciprocamente credor e devedor e não podendo ser compensado um crédito não reconhecido judicialmente. 

Concluiu pedindo a improcedência dos embargos.

Após os articulados e depois de dada oportunidade às partes para se pronunciarem quanto a eventual decisão de mérito no saneador, foi proferido saneador-sentença que conheceu de mérito e julgou parcialmente procedentes os embargos na parte relativa à quantia de juros de 9 391,34 euros e extinta a execução nessa parte, julgando improcedente a excepção de compensação e improcedentes os embargos no restante, determinando o prosseguimento da execução quanto ao demais peticionado.

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Inconformado, o embargante interpôs recurso e alegou, formulando conclusões com as seguintes questões:
- A sentença recorrida padece de erro de interpretação da matéria de facto julgada provada e da respectiva subsunção jurídica.
-A motivação para a decisão sobre a matéria de facto é manifestamente insuficiente, tendo sido violado o artigo 607º nº4 do CPC.
- O tribunal recorrido deveria ter julgado provados os seguintes factos:
(i)-A embargante celebrou um contrato de fiança com GBA…, pai da embargada, nos termos do qual este garantiu, como principal pagador, o cumprimento pontual das obrigações do devedor GA… – Unipessoal, Lda.
(ii)-GBA… faleceu no dia 19.07.2009.
(iii)-Sucederam-lhe, como únicos herdeiros, o seu cônjuge sobrevivo, IA… e as suas duas filhas RA…, aqui embargada e AF….
(iv)- A GA… – Unipessoal, Lda mantém uma divida reconhecida judicialmente, para a ora embargante, no valor total de €295.840,20, reconhecido parcelarmente em duas sentenças distintas, proferidas nos processos nº51151713.0YIPRT e nº3222/15.6T8FNC, ambas transitadas em julgado.
(v)-A embargante foi interpelada para proceder ao pagamento da referida quantia.
- Os meios probatórios que impunham decisão diversa são o contrato de fiança (doc. nº3), a habilitação de herdeiros (doc. nº4), as sentenças proferidas nos referidos processos (docs. 5 e 6) e a interpelação da embargada (doc. nº7).
- O contracrédito invocado pela embargante consta de documento com força executiva própria.
-O contrato de fiança, enquanto contrato particular de reconhecimento de dívida, constitui título executivo, não requerendo decisão judicial que o declare e/ou reconheça para este efeito.
- O crédito da embargada deve ser compensado, na sua totalidade, com o crédito da embargante, devendo a sentença ser revogada e substituída por outra que julgue os embargos procedentes.   
    
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A recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito suspensivo por ter sido prestada caução.

As questões a decidir são.
I)-Aditamento de factos à matéria de facto provada.
II)-Saber se existe um contracrédito do embargante executado que fundamente a oposição à execução.

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FACTOS.

A sentença recorrida considerou os seguintes factos assentes com interesse para a decisão da causa:
A.-Por decisão de 06/04/2017, transitada em julgado, proferida no processo nº3599/14.0T8FNC, que correu termos no Juízo Central Cível do Funchal (J2), G…, SA foi condenada a pagar a RA… a quantia de €6.000,00 (seis mil euros) mensais, desde o dia 05.07.2013 até ao dia 09.10.2015, a título de indemnização pela privação do uso do seu imóvel e a quantia de €2.000,00 (dois mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais.
B.-A sentença foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/06/2018.
Consignou-se ainda que, à restante matéria alegada pela embargante, não se responde, por ser de direito, conclusiva ou simplesmente irrelevante para a decisão.

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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

I)– Aditamento de factos à matéria de facto provada.
A apelante pretende que à matéria de facto provada sejam aditados factos que entende estarem demonstrados pelos documentos 3, 4, 5, 6 e 7 da petição de embargos.
Por ter interesse para a fundamentação da decisão da causa, adita-se aos factos provados apenas o seguinte facto:
C.- Com a petição de embargos, para além de outros, foram juntos os seguintes documentos:  
- documento nº3, que é um documento datado de 1 de Abril de 2002, subscrito por GBA…, onde consta que, perante P…, presta fiança como principal pagador do cumprimento pontual das obrigações do devedor, no contrato de distribuição entre P… e GA… Unipessoal, Lda;
- documento nº4, que é uma escritura de habilitação de herdeiros de 28/08/2013, em que a cabeça de casal por óbito de GBA… em 19/07/2009, atesta que são suas únicas herdeiras o cônjuge sobrevivo e as duas filhas, a referida cabeça de casal e a ora exequente embargada RA…;
- documento nº5, que é uma sentença de 17/02/2015, proferida no processo 51151/13.0YIPRT, que condena a ré GA…Unipessoal Lda a pagar à autora G…, SA a quantia de 108 880,65 euros;
- documento nº6, que é uma sentença de 13/07/2018, proferida no processo 3222/15.6 T8FNC, que condena a autora reconvinda GA… Unipessoal, Lda a pagar à ré reconvinte G…, SA a quantia de 186 959,55 euros;
- documento nº7, que é uma carta com registo de 30/10/2018, em que a ora embargante solicita à ora embargada o pagamento da quantia de 295 840,20 euros, na qualidade de herdeira habilitada de GBA… e com base em contrato de fiança por este subscrito em 1/04/2002.
    
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II)–Se existe contracrédito que fundamente a oposição à execução
A exequente apelada deu à execução uma sentença transitada em julgado, que condenou a executada apelante a pagar-lhe a quantia de 164 800,00 euros e que é título executivo, nos termos dos artigos 10º nº5 e 703º nº1 a) do CPC.
Veio então a executada deduzir oposição por embargos, invocando um contracrédito com o qual pretende compensar a dívida exequenda.
A oposição à execução fundada em sentença só pode ter como fundamento algum daqueles que estão enunciados nas alíneas do artigo 729º do mesmo código, nomeadamente o da alínea h): “contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos”.

Este fundamento da alínea h), sendo um facto extintivo da obrigação, constitui uma autonomização do fundamento geral previsto na alínea g) do mesmo artigo 729º, ou seja “qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio”.

Apesar de autonomizado este fundamento de oposição, o crédito com que se pretende operar a compensação tem de obedecer ao critério temporal geral previsto na alínea g), que é o de ser posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração, pois, se o contracrédito fosse anterior, poderia ter sido alegado oportunamente, no processo declarativo por força dos artigos 573º, 588º e 611º do CPC, não podendo ser invocado em sede de oposição à execução de sentença, quando não foi arguido no momento próprio (cfr. neste sentido Paulo Faria e Ana Loureiro em “Primeiras Notas ao NCPC”, volume II, pág. 249 e Rui Pinto, “Notas ao CPC”, volume II, página 258).

No caso dos autos, para além não se demonstrar o trânsito em julgado das sentenças juntas como documentos nºs 5 e 6 da petição de embargos, não se mostra também que a sentença de 17/02/2015 do processo 51151/13 tenha transitado já depois do encerramento da discussão no processo em que foi proferida a sentença de 6/04/2017 que constitui o título executivo dos presentes autos.

Mas, para além destes requisitos processuais, o contracrédito apresentado como oposição à execução tem de obedecer aos requisitos materiais impostos nos artigos 847º e seguintes do CC, que regulam a forma de extinção das obrigações por compensação.
Estabelece assim o artigo 847º nº1: “Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer dela pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos: a) ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material; b) terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade”.

Ora no presente caso, apesar de a embargante basear o seu invocado crédito na condenação resultante das duas sentenças que apresentou, imputa a responsabilidade do respectivo pagamento aos herdeiros do falecido GBA…, através de uma fiança que este teria prestado.

Só que a compensação prevista no artigo 847º pressupõe a reciprocidade de créditos e o contracrédito invocado pela embargante consistiria na obrigação da exequente embargada de pagar a dívida da Sociedade GA…Unipessoal, Lda, por via da fiança prestada por GBA…, falecido e de quem a embargada é herdeira.

Sucede que tal obrigação da exequente embargada não seria sua, mas sim da herança e, como tal, seria responsável por tal dívida um património autónomo e diferente do património da embargada, sendo forçoso o entendimento de que o devedor do contracrédiito invocado pela embargante não é a mesma entidade que a credora exequente, não se verificando o requisito de reciprocidade de créditos previsto no artigo 847º nº1 do CC.

Finalmente, dir-se-á que a obrigação que pudesse resultar desta fiança não é exigível judicialmente porque a mesma não constitui título executivo, não integrando a alínea b) do nº1 do artigo 703º do CPC (nem mesmo no âmbito da anterior redacção do CPC, no seu artigo 46º, pois a fiança é uma garantia e não o reconhecimento de determinadas obrigações pecuniárias), nem integra a alínea a) da mesmo artigo 703º nº1, já que nas duas sentença mencionadas o invocado fiador não figura como parte, não tendo sido condenado, havendo condenação apenas da sociedade unipessoal GA….

Não está assim verificado o requisito do artigo 847º nº1 a) do CC, não se apresentando o crédito invocado com título exequível, sendo que se deverá exigir ao executado o que se exige ao exequente e também, no artigo 788º nº2 do mesmo código, ao credor reclamante (cfr neste sentido Paulo Faria e Ana Loureiro, obra citada, volume II, pág. 250).
        
Conclui-se, portanto, que o contracrédito em discussão não preenche os requisitos legais previstos no artigo 847º do CC e no artigo 729º h) do CPC para ser fundamento de oposição à execução, improcedendo as alegações de recurso.

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DECISÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.   
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Custas pela apelante.
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Lisboa,2021-02-04
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 
Maria Teresa Pardal
Anabela Calafate   
António Santos