Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12090/20.5YIPRT.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
AFASTAMENTO
ACTOS CONCLUDENTES
MEIO DE PROVA
CONFISSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.O afastamento da presunção do cumprimento (Artigo 313º do Código Civil) cabe ao credor mediante confissão do devedor ou do seu sucessor, tratando-se de uma presunção sui generis porquanto se trata do único meio de prova admissível, não podendo a presunção ser afastada por mera prova testemunhal.

II.Integram factos e atos concludentes que contrariam a presunção de pagamento, nos termos da parte final do Artigo 314º do Código Civil: negar a existência originária do crédito; discutir o montante em dívida; remeter a determinação do montante em dívida para o tribunal; invocar uma causa de nulidade e/ou anulabilidade da obrigação; alegar o pagamento de importância inferior à reclamada, sob o pretexto de que aquele pagamento corresponde à liquidação integral do débito; invocar a gratuitidade dos serviços.

III.No âmbito do depoimento de parte prestado pelo devedor, que invoca a prescrição presuntiva, não lhe é exigível uma precisão e uniformidade discursórias que são incompatíveis com o próprio fundamento das prescrições presuntivas, não integrando a prática de atos incompatíveis com a presunção a existência de meras incongruências ou hesitação de memória quanto ao modo e quanto ao momento do pagamento alegado.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


CC instaurou contra DD ação especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, peticionando o pagamento de €6.750,00 a título de capital e €929,47, a título de juros de mora.

Alegou para o efeito que, no âmbito da sua actividade comercial, prestou serviços de medicina dentária à R. (cirurgia para colocação de implantes com provisionalização fixa imediata de arcada total), tendo emitido a Factura n.° 1..../0...2, no valor de 6.750,00 €, datada de 13.01.2018. Não obstante ter sido por diversas vezes interpelada, a Ré não procedeu ao pagamento da quantia em dívida, quantia essa a que acrescem juros de mora.

Contestando, a Ré invocou que o crédito em causa prescreve no prazo de dois anos, prazo esse que já decorreu (quer se considere que os serviços tenham sido prestados em 2016, quer em 2018), beneficiando a Ré da presunção legal de pagamento. Conclui invocando ter pago todas as quantias em dívida.

Após julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente.

***

Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
I.Apesar do notório esforço da Ré em sede de depoimento de parte, bem como do teor vertido no n.5 1 do art. 357.5 do Código Civil (doravante C.C.), tal não enferma a confissão tácita por parte da Ré, tanto em sede de Oposição, bem como em sede de depoimento de parte.
II.A Ré nunca impugnou especificadamente o teor vertido no ponto 3 do referido requerimento de onde se retira que a Ré "nunca pagou 0 preço em dívida à Autora no referido montante de 6.750,00€ apesar das constantes e repetidas insistências feitas (...) a partir da data da emissão da referida fatura".
III.É entendimento maioritário doutrinal e jurisprudencial que a atuação em juízo do devedor, quando invocada a exceção em causa (prescrição presuntiva), não pode suscitar qualquer dúvida relativamente ao cumprimento da obrigação.
IV.A Ré suscita demasiadas incertezas relativamente ao seu integral cumprimento, nunca se lembrando, com exatidão, de como cumpriu a sua obrigação, e em que datas, apresentando um depoimento inseguro e inconsistente.
V.A Ré começa por alegar ter pago todos os montantes devidos, umas vezes em numerário, outras vezes através de transferência bancária, "conforme pudesse" (depoimento de Parte da Ré - minutos 3:09 a 5:40).
VI.Contudo, mais tarde, afirma que desconhecia a fatura em causa nos presentes autos, tendo apenas tomado conhecimento da mesma aquando do início da presente ação (Depoimento de Parte da Ré - minuto 7:38 s 7:55): (…)
VII.No fundo, a Ré afirma que não se lembra de como realizou os pagamentos, mas lembra-se que estes foram feitos, independentemente do valor (que nunca especifica), mas que até abrangeram 0 valor inscrito numa fatura que diz desconhecer até à data da sua notificação para a presente ação.
VIII.A Ré confessar ter pago um valor total bem inferior àquele que foi contratado entre as partes: esta confessa ter pago "treze mil e pouco", quando, na verdade, o valor total dos serviços contratados perfazia a quantia de € 23.500,00 (vinte e três mil e quinhentos euros).
IX.Tal é confirmado pelo documento junto aos autos pela Autora sob o nome "Plano de Tratamento e Orçamento", plano esse que foi assinado pela Ré, tendo esta reconhecido a sua assinatura, em sede de Audiência Final, quando confrontada com o referido documento.
X.Conforme o depoimento de Parte da Ré - minuto 17:45 a 19:40: (…)
XI.Ora, o comportamento da Ré é flagrante: apesar de afirmar, em sede de depoimento de parte, que pagou tudo o que devia à Autora (o que não é verdade), esta afirma inequivocamente que, no total, apenas pagou "treze mil e poucos euros", montante bem inferior aos serviços contratados e prestados pela Autora, e confirma que o tratamento foi integralmente prestado (ambas as fases);
XII.Quando confrontada com o "Plano de Tratamento e Orçamento" por si assinado (e livremente contratado com a Autora), a Ré invocada uma delirante redução de preço, o que nunca ocorreu.
XIII.De facto, a Autora deu alguma liberdade à Ré para fasear os pagamentos, autorizando o seu pagamento em prestações (prática comum da Autora), contudo, nunca concedeu qualquer redução de preço, o que é inequivocamente confirmado pelo testemunho prestado pelo Dr. FF (Inquirição da Testemunha FF - minuto 7:50 a 10:35) (…)
XIV.A Ré pagou um valor substancial do tratamento, contudo, a fatura em causa corresponde ao valor ainda em aberto no seu processo (remanescente), valor voluntariamente assumido pela Ré aquando da colocação da prótese definitiva, isto é, da segunda fase do tratamento previamente acordado.
XV.A inquirição da Testemunha DC também corrobora o alegado (mesma gravação, minutos 12:30 a 13:35, em que a testemunha corrobora que esse era o valor em aberto aquando da colocação da prótese definitiva, o qual nunca foi pago até ao presente dia).
XVI.Ambos os testemunhos não podem ser ignorados quando relacionados com a confissão da Ré de ter pago apenas parte do preço.
XVII.A Ré também estava ciente que ainda mantinha um valor em aberto com a Autora, motivo pelo qual enviou a carta junta aos autos pela Autora.
XVIII.Ainda assim, a data em que a carta é enviada não se coaduna com a explicação dada pela mesma, sendo este mais um momento flagrante de memória seletiva (Depoimento de Parte da Ré - minuto 12:25 a 13:55).
XIX.A Ré consegue assegurar que a carta por si assinada e enviada não diz respeito a nada daquilo que inicialmente contratou com a Autora, alegando que tal montante era referente ao arranjo de uma prótese partida, mas através do registo das consultas da Ré / Processo clínico (também junto aos autos) constatamos que a tal quebra da prótese só se veio a verificar após a emissão da fatura em causa e após o envio da carta da por parte da Ré.
XX.Atenta a prova produzida, bem como toda aquela que foi junta aos autos, é notório, e salvo diversa opinião, que a presunção de cumprimento invocada se encontra inequivocamente ilidida.
XXI.A Ré praticou inúmeros atos e comportamentos totalmente incompatíveis com a presunção que alegou.
XXII.A simples alegação do pagamento não pode proceder quando, ao longo do seu depoimento, a Ré afirma que, ao longo do tratamento, pagou um montante inferior ao contratado, "conforme pudesse", perfazendo um total de "treze mil e poucos euros", quando também admitiu que foram realizadas as duas fases do tratamento, chegando até a justificar o envio de uma carta em que reconheceu ter um valor em aberto com um evento que só se veio a verificar posteriormente ao envio da predita missiva.
XXIII.Por estes motivos, impugna-se o 6.  ponto da matéria de facto dada como provada na douta Sentença recorrida.
XXIV.É firme convicção da Autora que se verifica a situação prevista no art. 314.9 do C.C., in fine, tendo a Ré assumido inequivocamente que não pagou a totalidade dos serviços prestados, motivo pelo qual se emitiu a fatura em causa nos presentes autos.
Nestes termos, e, nos demais de Direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso, e, em consequência, revogando a Sentença recorrida, substituindo-a por outra que atenda às justas pretensões da Autora, com correta interpretação dos factos e exata aplicação do direito, farão V. Exas., como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!»

***

Não se mostram juntas contra-alegações.

QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]

Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i.-Impugnação da decisão da matéria de facto;
ii.-Reapreciação de mérito (prescrição presuntiva).

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1.-A A. é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços médicos;
2.-No exercício da actividade a que se dedica, a A. vendeu à R. vários materiais e prestou à mesma diversos serviços (cirurgia para colocação de implantes com provisionalização fixa imediata de arcada total);
3.-Os serviços tiveram início em data não concretamente apurada, mas durante o ano de 2016 e terminaram no dia 13.01.2018;
4.- Em consequência do referido em 2. e 3, no dia 13.01.2018, a A. emitiu a Fatura n.º FA 1..../0...2, no valor de € 6.750,00;
5.-A Ré, com data de 06.03.2019, enviou uma carta à A. com o seguinte teor:
«Exmos. Senhores.
Venho por este meio solicitar que me seja enviado com urgência moldes dos implantes da cirurgia dentária, efetuada pelo Dr. FF.
O meu estado de saúde não me permite a grandes deslocações, pelo que agradeço desde já a vossa colaboração.
Mais informo que não recebi qualquer correspondência da vossa clínica. Verifique que no comprovativo de registo dos CTT, a minha morada não está completa, pelo que seria impossível chegar até mim qualquer carta enviada.
Solicito o NIB da vossa conta para poder efetuar o pagamento em aberto.
Fico a aguardar o solicitado o mais urgente possível
6.-A R. pagou a totalidade do preço devido pelos materiais e serviços efetuados.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A apelante pugna pela reversão do facto provado sob 6 (“A Ré pagou a totalidade do preço devido pelos materiais e serviços efetuados”) para não provado, argumentando que ocorreu uma confissão tática por parte da Ré, quer em sede de oposição, quer em depoimento de parte, argumentando que a Ré praticou atos e comportamentos incompatíveis com a presunção que alegou, designadamente: a ré afirmou que pagou um montante inferior ao contrato, “conforme pudesse”, perfazendo um total de “treze mil e poucos euros”, quanto também admitiu que foram realizadas duas fases de tratamento, chegando até a justificar o envio de uma carta em que reconheceu ter um valor em aberto com um evento que só se veio a verificar posteriormente ao envio da referida missiva.

O tribunal a quo justificou a sua resposta designadamente nestes termos:
«Em sede de depoimento de parte, a R. manteve tal conduta, reconhecendo que a A. lhe prestou diversos serviços médicos dentários, que tiveram início em data que não se recorda, mas que se reporta há cerca de quatro anos atrás e cujo tratamento perdurou por cerca de dois anos. Mais referiu que ambas acordaram previamente o valor devido pelo tratamento, que rondava os €13.000,00, sendo que metade do valor foi pago antes da cirurgia e a outra metade em prestações e durante o decurso do tratamento, conforme fosse a disponibilidade financeira da R.. Reiterou ter pago todas as quantias em dívida, umas vezes por transferência bancárias, outras em numerário.
Atendeu-se igualmente aos documentos juntos aos autos, mais concretamente a factura que titula a dívida ora reclamada (fls. 12), assim como o plano de tratamento e orçamento (junto aos autos no dia da audiência), e com os quais a R. foi confrontada (esclarecendo, contudo, que só teve conhecimento da factura com a presente acção, mas confirmando a sua assinatura no plano de tratamento e orçamento).
Tomou-se, por fim, em consideração o depoimento das testemunhas FF, médico dentista da A., que confirmou ter sido o próprio quem realizou a primeira fase do tratamento da R. e quem emitiu a factura junta aos autos, assim como DC, administrativa da A., que confirmou que a R. foi paciente da clínica, confirmando a realização dos serviços e a emissão da factura, ainda que desconhecendo se a mesma lhe foi entregue.
No que respeita ao facto 5, tomou-se em consideração o documento junto aos autos, cuja autoria e assinatura a R. reconheceu, ainda que referindo que o mesmo se reportava a outros serviços que não os acordados e decorrentes da quebra de alguns dentes da prótese provisória e cuja reparação não se encontrava incluída no plano de tratamento e no valor então acordado.
No que respeita ao facto 6, sendo este que maior atenção exigiu ao tribunal, e fazendo a «ponte» entre a fundamentação de facto e a fundamentação de Direito, cumpre referir o seguinte:
Os serviços a que os autos reportam foram prestados entre 2016 a 2018, sendo que a factura foi emitida em 13.01.2018, data em que o tratamento findou.
A presente acção (requerimento inicial de injunção) deu entrada em 13.02.2020.
Prescreve o art. 312.º do C.C. que «As prescrições de que trata a presente subsecção fundam-se na presunção do cumprimento.»
Prescreve, por seu turno, o art. 317.º, alínea a) do C.C. que prescrevem no prazo de dois anos «a) Os créditos dos estabelecimentos que forneçam alojamento, ou alojamento e alimentação, a estudantes, bem como os créditos dos estabelecimentos de ensino, educação, assistência ou tratamento, relativamente aos serviços prestados;» (sublinhado nosso)
A consagração da prescrição presuntiva assenta na ideia de que determinados tipos de obrigações são cumpridos de forma imediata ou em curto prazo, sendo usual que o devedor não exija quitação ou não a conserve por muito tempo.

Conforme ensinam Ana Prata e outros, in Código Civil Anotado, Vol. I., Almedina, pág. 417, «Do fundamento apontado às prescrições presuntivas– a presunção de cumprimento, considerados os contornos das obrigações em causa – decorre a sua finalidade específica: a tutela da posição do devedor, obviando ao pagamento duplicado da obrigação, por se entender não ser, nestes casos, exigível a conservação de quitação.»

Daqui decorre necessariamente que não está propriamente em crise a inércia do credor em exercer o seu direito (conducente à prescrição extintiva), mas apenas a presunção de que, decorrido algum tempo, o pagamento já se terá verificado. Assim, apenas se parte do princípio de que o pagamento já se efectivou.

Por conseguinte, na prescrição presuntiva, o decurso do tempo não determina a extinção da obrigação, mas apenas libera o devedor de provar o cumprimento. Há, pois, a inversão do ónus da prova, que deixa de onerar o devedor, cabendo ao credor o encargo de demonstrar o não pagamento.

Porém, constituindo uma autêntica presunção, a lei exige que os meios de prova do não pagamento do crédito sobre o qual aquela é invocada provenham do devedor (cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, Coimbra, vol. I, pág. 282), o que apenas se alcançará por confissão do mesmo – artigo 313.° do C.C..

Nos termos do 356.° do C.C., a confissão judicial pode ser espontânea ou provocada.
A confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual, ou em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado.
Já a confissão judicial provocada pode ser feita em depoimento de parte ou em prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal.
A confissão poderá ainda ser tácita ou expressa.
Nos termos do art. 314.° do C.C. considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou a praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento (confissão tácita).
Já será expressa se o devedor confessar clara e expressamente o não pagamento da dívida.
Finalmente, determina o n.° 1 do artigo 323.° do C.C. que a prescrição se interrompe pela citação ou notificação judicial de qualquer acto «que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.» Já de acordo com o n.° 2, «se a citação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias».

No caso dos autos, a acção foi instaurada mais de dois anos volvidos desde a data de prestação dos serviços, não existindo qualquer causa interruptiva ou suspensiva.
Verifica-se, deste modo, a existência de uma prescrição presuntiva, ou seja, numa presunção de pagamento, tendo este pagamento, além do mais, sido expressamente alegado.
Assim, tal presunção apenas poderia ser afastada por confissão da R., expressa ou tácita.
No caso, a R. não confessou o não pagamento, nem no seu articulado (Oposição), nem em sede de depoimento de parte (confissão expressa). A R. também não se recusou a depor, não se recusou a prestar juramento no tribunal, nem adoptou qualquer conduta processual incompatível com a presunção do cumprimento, como sucederia se questionasse a existência da dívida, o seu valor ou vencimento (confissão tácita).
Poder-se-ia questionar se o documento a que o facto 5 da matéria de facto provada respeita, e através do qual a R. vem pedir à A. o envio do NIB para pagamento «em aberto» é documento bastante para afastar tal presunção, nomeadamente se conjugada com o depoimento das testemunhas inquiridas (FF e DC, que declararam que a dívida não se encontrava paga).
E a resposta deve ser negativa.
De facto, nos termos do art. 357.°, n.° 1 do C.C., a declaração confessória deve ser inequívoca, o que no caso não sucede.

Conforme ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in ob. cit., pág. 317, «a exigência da inequivocidade da declaração confessória é facilmente explicável em face da força probatória de que goza a confissão (rainha das provas) e das cautelas especiais de que ela, por isso mesmo, necessita de ser rodeada.»

Ora, do referido documento não resulta minimamente claro qual a dívida em causa, qual a factura que ainda se encontra por liquidar e qual o valor em falta. A este respeito, a R. esclareceu que a mesma respeitava a outros serviços que não os inicialmente contratados, mas decorrentes do facto de alguns dentes da prótese provisória terem caído e cuja reparação não se encontrava incluída no preço inicialmente acordado para o tratamento. E se é certo que o depoimento de parte da R., na parte não confessória, e ainda que apreciado livremente pelo tribunal (cfr. art. 466.°, n.° 3 do C.P.C.), deva ser analisado com cautela, atento o interesse directo no desfecho da acção, a verdade é que o alegado não diverge na totalidade do depoimento da testemunha FF, na parte em que referiu que a última vez que a R. foi a uma consulta foi em 2019 (e não em 13.01.2018, data da emissão da factura), para uma consulta de avaliação e efectuada pelo seu colega André Rebolo (dado que a testemunha apenas teve intervenção na primeira fase do tratamento).

E no que respeita ao montante global acordado, muito embora o documento intitulado «Plano de Tratamento e Orçamento» faça referência a duas fases de tratamento, a testemunha FF referiu que apenas teve intervenção na primeira fase, cujo valor corresponde, no global, aos cerca de €13.000,00 referidos pela R..
Assim, o referido documento não é claro, nem inequívoco, nem expresso, de forma a concluir-se que, por via do mesmo, a R. confessou o não pagamento das quantias ora reclamadas em juízo.
E mesmo que desse documento se pudesse extrair algum carácter confessório, importaria ter em atenção o princípio da indivisibilidade de confissão – cfr art. 360º do C.C. - pelo que tal documento, reconhecido expressamente pela R. como tendo sido por ela subscrito e assinado, sempre teria de ser «acompanhado» do depoimento da R. no sentido de que o mesmo dizia respeito a dívida diversa.

Conclui-se, pois que tendo a A. o ónus de ilidir a presunção de pagamento e não estando confessado o não pagamento, impunha-se dar o facto 6 como provado.»

Apreciando.

Como bem sinalizou o tribunal a quo, nos termos do nº1, do Artigo 313º do Código Civil, a presunção de cumprimento só pode ser ilidida por confissão do devedor originários ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão. Ou seja, o afastamento da presunção cabe ao credor mediante confissão do devedor ou do seu sucessor, tratando-se de uma presunção sui generis porquanto se trata do único meio de prova admissível (Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, p. 760), não podendo a presunção ser afastada por mera prova testemunhal.

A confissão judicial pode ser expressa ou tácita (Artigo 314º do Código Civil), sendo que a expressa pode assumir as modalidades previstas no Artigo 356º do Código Civil (espontânea em articulado ou provocada em depoimento de parte ou em prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal).

Sustenta a apelante que ocorreu confissão tácita por parte da Ré porquanto a mesma nunca impugnou especificadamente o teor vertido no ponto 3 do requerimento, onde se afirmou que a Ré “nunca pagou o preço em dívida à autora no referido montante de € 6.750 apesar das constantes e repetidas insistências (…)”.

Improcede a argumentação porquanto no artigo 7º da oposição, a Ré alegou que “(…) nada deve à requerente pois liquidou integralmente todos os materiais e serviços efetuados”, sendo que a defesa deve ser considerada no seu conjunto (Artigo 574º, nº2, do Código de Processo Civil). Conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2020, 2ª ed., Almedina, p. 672, «É lógico que não se pode considerar como admitido um facto só porque não foi concretamente impugnado, quando a análise da contestação permita concluir, com segurança, que o réu não aceita esse facto como exato.»

Sustenta a apelante que ocorreu uma confissão tácita, nos termos do Artigo 314º do Código Civil, porquanto a ré – em sede de depoimento de parte -  afirmou que pagou um montante inferior ao contrato, “conforme pudesse”, perfazendo um total de “treze mil e poucos euros”, quando também admitiu que foram realizadas duas fases de tratamento, chegando até a justificar o envio de uma carta em que reconheceu ter um valor em aberto com um evento que só se veio a verificar posteriormente ao envio da referida missiva.

Nos termos do Artigo 314º do Código Civil, considera-se confessada a dívida, se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento em tribunal, ou praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento.

Integram factos e atos concludentes que contrariam a presunção de pagamento, nos termos da parte final do Artigo 314º: negar a existência originária do crédito; discutir o montante em dívida; remeter a determinação do montante em dívida para o tribunal; invocar uma causa de nulidade e/ou anulabilidade da obrigação; alegar o pagamento de importância inferior à reclamada, sob o pretexto de que aquele pagamento corresponde à liquidação integral do débito; invocar a gratuitidade dos serviços (cf. Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, Coimbra Editora, 2008, p. 100; Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, p. 761; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 1.7.2013, António Eleutério, 355/11, de 21.1.2014, Pinto dos Santos, 409815/09).

No caso em apreço, a Ré compareceu e prestou depoimento de parte, sendo que, anteriormente, na oposição deduzida não invocou qualquer circunstancialismo dos acima exemplificados, dos quais decorre o afastamento da presunção de cumprimento.

Assim sendo, a questão centra-se apenas na apreciação/valoração do seu depoimento de parte.

Em primeiro lugar, há que ressaltar que a única assentada decorrente do depoimento de parte foi que: «A depoente foi confrontada com o plano de tratamento e orçamento, assim como com a carta de 6 de março de 2019, ambos agora juntos aos autos, confirmando a sua assinatura» (fls. 23 v.).

Nos termos das disposições conjugadas dos Artigos 463º, nº1, do Código de Processo Civil e 358º, nº1, do Código Civil, só assiste força probatória plena à confissão ocorrida em depoimento de parte no segmento em que a mesma seja reduzida a escrito, aplicando-se o princípio da indivisibilidade da confissão (Artigo 360º do Código Civil; sobre o significado deste princípio, cf. Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2ª ed., Almedina, 2021, pp. 108-112).

Ora, a assentada de que a ré confirma a sua assinatura aposta no plano e tratamento e orçamento bem como na carta de 6.3.2019 não tem a virtualidade confessória que a apelante divisa. Com efeito, de per si, tais factos não integram a prática em juízo de atos incompatíveis com a presunção de cumprimento. Tais asserções da depoente foram, concomitantemente, acompanhadas da explicitação do contexto em que tal ocorreu (conforme decorre da audição do respetivo depoimento), sendo que a depoente esclareceu que o valor total dos serviços “eram quase treze mil euros o total”, tendo acordado e esclarecido com o Dr. que não podia pagar os valores inscritos no plano de pagamento, razão pela qual o Dr. reduziu de imediato o custo dos serviços para um valor de 13 mil euros “e qualquer coisa”, sendo que a carta de 6.3.2019 decorre de outros serviços (dentes da provisória partidos) que não os peticionados neste processo, nada tendo a ver com o orçamentado.

É certo que a depoente não afirmou um valor uniforme contratualizado ao cêntimo, mas foi bastante clara que, conforme acordado verbalmente, foi pagando conforme podia, ora em numerário ora por transferência bancária, tendo pago tudo.

Não constitui a prática em juízo de atos incompatíveis com a presunção de cumprimento, a existência de algumas incongruências reveladas durante a prestação do depoimento de parte (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.3.2013, Helena Melo, 724/11, www.colectaneadejurisprudencia.com ). Também no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.4.2011, Amélia Ribeiro, 1846/07, se afirmou, com pertinência, que «Tendo a R. dito e mantido que tudo pagou, perante a afirmação do pagamento não basta alguma hesitação de memória quanto ao modo e quanto ao momento para concluir pela confissão tácita.»

Note-se que as prescrições presuntivas «baseiam-se numa presunção de que as dívidas visadas foram pagas. De um modo geral, elas reportam-se a débitos marcados pela oralidade ou próprios do dia-a-dia. Qualquer discussão a seu respeito ocorre imediatamente, ou é impossível de dirimir com consciência» (Menezes Cordeiro (coord.) Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, 2020, p. 896).

Sendo este o fundamento último do instituto, seria incongruente exigir ao depoente de parte/devedor um depoimento com um grau de precisão/uniformidade que é negado pela razão de ser do instituto, qual seja o de forçar a uma discussão e prova em curto prazo dos valores em dívida.

Assim sendo, a análise do depoimento de parte feita pela apelante e nos segmentos indicados não integra a prática em juízo de atos incompatíveis com a presunção de pagamento, não sendo exigível ao depoente uma precisão e uniformidade discursórias que são incompatíveis com o próprio fundamento das prescrições presuntivas.

Mesmo que assim não fosse, os segmentos das declarações apontadas pela apelante poderiam, quando muito, ser livremente apreciadas pelo tribunal (Artigo 358º, nº4, do Código Civil), sendo certo que, por força do princípio da indivisibilidade da confissão, caberia à apelante fazer prova em contrário dos factos desfavoráveis concomitantes à confissão (cf. Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2ª ed., Almedina, 2021, pp. 109-110), o que a apelante não logrou fazer, quer por prova documental quer por prova testemunhal. As testemunhas inquiridas pela apelante não infirmaram, circunstanciadamente, a versão da Ré quanto aos valores em dívida e quanto aos pagamentos, sendo que o Dr. FF só interveio na 1ª fase do tratamento e não refutou, concretamente, acordo verbal diverso do documento escrito e a testemunha DC limitou-se a confirmar a versão da autora quanto ao não pagamento da fatura, não tendo intervenção em qualquer acordo verbal com a Ré.

Por todo o exposto, nada há a alterar à redação do facto 6.

REAPRECIAÇÃO DE MÉRITO (PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA)

Mantendo-se inalterada a matéria de facto, nada há a alterar à subsunção jurídica feita pelo tribunal a quo, a qual está correta e não foi questionada pela apelante, só o sendo no pressuposto da reversão do facto 6 para não provado, o que não ocorre.

A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).


DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).



Lisboa, 9.11.2021



Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira

                                    

[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).