Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
972/10.7TTALM.L1-4
Relator: PAULA SÁ FERNANDES
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
DEBILIDADE MENTAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1. A garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art.º542 do CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a) e b), do seu nº2. Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má-fé.

2. As declarações confessórias do autor deveriam ser desconsideradas, ao invés de serem utilizadas pelo tribunal recorrido para o condenar como litigante de má -fé. Na verdade, resultou provado, que o autor sofre de uma debilidade emocional muito grande, sofre de atraso mental moderado e apresenta um QI de sessenta e tal quando o QI normal é de noventa ou mais e, por isso, não se consegue explicar bem, sendo normal apresentar-se muito confuso em Tribunal, tendo o próprio tribunal recorrido constatado que o autor sofre de importantes limitações ao nível da compreensão mental.

3. Face às condições de debilidade mental do autor concluímos que na sua versão dos acontecimentos relatada ao tribunal, o autor não agiu com qualquer espécie dolo ou sequer com negligência grosseira como é exigido para condenação por má-fé.

4. Se é certo que o autor não conseguiu fazer a prova do seu despedimento, tal não significa que, no seu entender, tenha falta à verdade dos factos tal como eles foram por si representados, em virtude das suas limitações evidentes, nomeadamente, pelo facto não saber ler, nem escrever e ter um atraso mental e um coeficiente de inteligência bastante abaixo da média, razões suficientes para não se condenar o autor como litigante de má –fé.

(Elaborada pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

AA, (…), intentou a presente acção declarativa de condenação emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma do Processo Comum, contra:

         BB, Ld.ª, (…):

- a declaração de ilicitude do despedimento;
- a condenação da ré no pagamento ao autor da quantia de € 60.575,80 a título de trabalho suplementar prestado pelo autor para além das 40 horas semanais entre Outubro de 2005 e Outubro de 2010;
- a condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização de antiguidade a fixar em 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade que decorrer até ao trânsito em julgado da acção, no montante à data da interposição da acção de € 20.445,00;
- a condenação da ré a pagar-lhe as retribuições, férias, subsídios de férias e de natal, diuturnidades, subsídios de frio e prémios de assiduidade, vencidas e vincendas desde o despedimento até ao trânsito em julgado da sentença, a liquidar em execução de sentença;
- a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais;
Tudo acrescido de juros de mora sobre todas as quantias peticionadas desde a data da citação da ré até efectivo pagamento.

         Alegou, em síntese, que foi admitido para trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização da ré em 01.01.1998, exercendo as funções de operador de manipulação. No dia 18 de Outubro de 2010 o gerente da ré mandou o autor para casa para gozar férias mais cedo do que o previsto, tendo-o feito assinar um documento escrito. Documento esse que o autor, que não sabe ler nem escrever, acreditou tratar-se de uma autorização para alteração das suas férias como lhe foi dito pelo sócio gerente da ré. Após ter ficado em casa durante alguns dias deslocou-se no dia 29 de Outubro ao armazém da ré, tendo o sócio gerente da ré numa reunião onde estavam presentes todos os trabalhadores, afirmado que o autor roubava peixe à empresa para o seu filho vender. O autor sentiu-se profundamente humilhado e vexado e começou a chorar. O legal representante da ré repetiu, por várias vezes, que o autor estava despedido, tendo-lhe entregue um recibo e um cheque no montante de € 3.956,79. Por ordem da ré, trabalhava 13 horas por dia durante a semana e 7 horas ao sábado num total de 72 horas por semana, devendo ser remunerado por trabalho suplementar. Os factos praticados pelo legal representante da ré causaram ao autor mágoa, vergonha, angústia, perda da auto-estima, ferindo a sua dignidade como trabalhador e como

pessoa, sentindo-se, também, enganado por aquele. Na sequência do despedimento foi diagnosticado ao autor "perturbação depressiva" e " ansiedade generalizada reactiva", tendo-lhe sido prescrita medicação.

         Conclui que foi despedido ilicitamente assistindo-lhe o direito à legal indemnização, bem como ao pagamento das retribuições vencidas e vincendas desde o despedimento até ao trânsito em julgado. Também, deve ser ressarcido por danos não patrimoniais. Reclama, ainda, o direito ao pagamento do trabalho suplementar por si prestado na vigência da relação laboral.

A ré na contestação impugna parte dos factos invocados, nomeadamente, no que respeita às concretas funções do autor e ao horário do mesmo, ainda, impugnou os factos relativos ao invocado despedimento afirmando que o autor, quando confrontado com o facto de levar peixe da ré, e após admitir tal facto acabaria por assinar uma carta de despedimento. Impugnou, igualmente, o facto do autor não saber ler nem escrever e ter prestado trabalho suplementar bem como os invocados danos não patrimoniais. Sustenta que o autor ao invocar o seu despedimento ilícito invoca factos que sabe não corresponder à verdade, sendo que a ré com a pendência da presente acção está a ser penalizada já que lhe foi cortado um seguro à facturação e viu suspenso um processo de empréstimo numa instituição bancária até estar o processo resolvido. Afirma, que o autor litiga de má-fé. Conclui, pugnando pela improcedência da acção com a sua consequente absolvição dos pedidos e pela condenação do autor em multa e indemnização por litigância de má-fé.

Após a realização da audiência de julgamento foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos: Pelo exposto:

a) julgo a presente acção improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo a ré dos pedidos contra si formulados:

b) julgo procedente o pedido de condenação do autor como litigante de má-fé, condenando o autor, a esse título, na multa de 3 UC e em indemnização a favor da ré consistente no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado, incluindo os honorários dos mandatários e a fixar depois de ouvidas as partes nos termos do disposto no artigo 457°, n°. 2 do CPC.

         O autor, inconformado, interpôs recurso, tendo para o efeito impugnado a matéria de facto relativa aos factos dados como provados nos n.ºs15 a 30 da matéria de facto dada como provada e que sustentaram a condenação como litigante de má-fé do autor, que deve ser revogada.

  Nas contra-alegações a ré pugna pela confirmação do decidido

         Colhidos os vistos legais

  Cumpre apreciar e decidir

         I. Como resulta das conclusões do recurso interposto, que delimitam o seu objecto, importa apreciar a impugnação à matéria de facto deduzida pelo autor e a invocada decisão sobre a litigância de má-fé.  

         II - Fundamentos de facto

         Foram considerados provados os seguintes factos:

(…)

III. Fundamentos de direito
1. Impugnação da matéria de facto

(…)

2. Litigância de má-fé por parte do autor

         Vejamos então  

Nos termos do art.542º, n.º 2 alíneas a), b), c) e d) do CPC, aplicável por força do art.1º, n.º 2, alínea a) do CPC, considera-se litigante de má-fé aquele que, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, tiver alterado a verdade dos factos; tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. A litigância de má-fé constitui, pois, o reverso dos deveres de cooperação, probidade e de boa-fé processual impostos às partes.
A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, sendo indiferente que no caso concreto o litigante tenha ou não razão: num e noutro caso gozam dos mesmos poderes processuais. No entanto, ao princípio da licitude do exercício dos meios processuais a mesma ordem jurídica coloca uma limitação: que esse exercício seja sincero, que a parte seja coerente e esteja convencida da justiça da sua pretensão. Por outras palavras, uma coisa é o direito abstracto de acção ou de defesa, outra o direito concreto de exercer actividade processual. O primeiro não tem limites, é um direito inerente à personalidade humana. O segundo sofre limitações impostas pela ordem jurídica; e uma dessas limitações traduz-se na seguinte exigência: é necessário que o litigante esteja de boa-fé ou suponha ter razão. Se a parte procedeu de boa-fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a conduta é perfeitamente lícita; se não tiver sucesso na sua pretensão, suporta unicamente o encargo das custas, como risco inerente à sua actuação. Mas se procedeu de má-fé ou com culpa, se sabia que não tinha razão ou se não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta assume o aspecto de conduta ilícita, impondo o art.º542, n.º1 do CPC que a parte que litigar dessa forma seja condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

         Na revisão do CPC de 1995, o legislador ampliou o âmbito de aplicação do referido instituto, assumindo que a negligência grave também é causa de condenação como litigante de má- fé, enquanto até então só uma conduta dolosa dava lugar a uma condenação dessa natureza. Assim, as partes têm o dever de não formular pedidos injustos, não deduzir oposição cuja falta de fundamento não deviam ignorar, não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o intuito de entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o andamento do processo e não requerer diligências meramente dilatórias têm o dever de proceder de boa- fé.
O tribunal recorrido entendeu condenar o autor como litigante de má-fé por entender que face ao elencos dos factos provados e não provados, pode-se concluir com segurança que o autor adulterou a verdade dos factos por si alegados e formulou pedidos cuja falta de fundamentos não ignorava, nomeadamente, no que diz respeito ao despedimento que diz ter sido alvo, pois toda a factualidade que invocou esse respeito não resultou provada, ao invés resultou provada a factualidade invocada pela ré, que é incompatível com a invocada pelo autor, e concluiu que se está perante uma demonstração clara por parte do autor de má -fé material, que deve ser censurada à luz do referido instituto, tendo condenado o autor como litigante de má-fé.  
Não se nos afigura que o tenha feito correctamente, pois se é verdade que fiou demonstrada a tese da ré quanto ao modo como ocorreu a cessação do contrato do autor tal, só por si, não é suficiente para se considerar que este demandou a ré com litigância de má- fé. Com efeito, a jurisprudência do STJ tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art.º456 do CPC (actual art.º542), nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a) e b), do seu nº2. Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má-fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má-fé processual – AC do STJ 11 de 12 de 2003 (relator Quirino Soares).

No caso, concordamos com o recorrente quando refere que as declarações confessórias do autor deveriam ser desconsideradas, ao invés de serem utilizadas pelo tribunal recorrido para o condenar como litigante de má -fé. Na verdade, resultou provado, face ao depoimento da testemunha RB, médico psiquiatra do autor, que este sofre de uma debilidade emocional muito grande, sofre de atraso mental moderado e apresenta um QI de sessenta e tal quando o QI normal é de noventa ou mais e, por isso, não se consegue explicar bem, sendo normal apresentar-se muito confuso em Tribunal, tendo ainda referido que o autor assinou um documento que não sabia que era o seu despedimento, pensava que era o pagamento das férias e outros créditos. Aliás, como resulta da inquirição ao autor, o próprio tribunal recorrido constatou que este sofre de importantes limitações ao nível da compreensão mental.

   Assim, face às condições de debilidade mental do autor reconhecidas em audiência de julgamento, concluímos que na sua versão dos acontecimentos relatada ao tribunal, e transmitida ao seu advogado, o autor não agiu com qualquer espécie dolo ou sequer com negligência grosseira como é exigido para condenação por má-fé. Se é certo que o autor não conseguiu fazer a prova do seu despedimento, tal não significa que, no seu entender, tenha falta à verdade dos factos tal como eles foram por si representados, em virtude das suas limitações evidentes, nomeadamente, pelo facto não saber ler, nem escrever e ter um atraso mental e um coeficiente de inteligência bastante abaixo da média, razões suficientes para não se condenar o autor nestes autos como litigante de má -fé, devendo dela ser absolvido.

         IV. Decisão

  Face ao exposto, julga-se procedente o recurso interposto pelo autor e revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se o autor da condenação como litigante de má-fé, que consistiu no pagamento de multa de 3 UC e em indemnização a favor da ré consistente no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado, incluindo os honorários dos mandatários e a fixar depois de ouvidas as partes nos termos do disposto no artigo 457°, n.º 2 do CPC.

         Custas pela recorrida

         Lisboa, 17 de Dezembro de 2014.

Paula Sá Fernandes

Filomena Manso

Duro Mateus Cardoso

Decisão Texto Integral: