Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1773/19.2T9LSB.L1-9
Relator: FERNANDO ESTRELA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–Na ausência de antecedentes criminais da arguida, o enquadramento profissional e familiar, a circunstância de o risco de repetição das condutas criminosas se encontrar fortemente atenuado - desde logo, porque a menor CC se encontra confiada à guarda e aos cuidados da avó materna - e as características específicas dos crimes (em particular o contexto psicossociológico e a ausência de motivos excessivamente censuráveis, v.g., satisfação da libido da arguida, instrumentalização das vítimas para esse efeito, autorizam a prognose de que a suspensão da execução da pena permitirá uma adequada satisfação das exigências preventivas e de reintegração (artigo 40° Código Penal).

II–Assim, a "censura do facto e a ameaça" de cumprimento de uma pena de prisão constituirão uma suficiente advertência para a arguida, propiciando a compreensão e interiorização do torto da sua conduta e levando-a a adotar um comportamento conforme às normas consensualizadas pela comunidade”, pelo que a sujeição da suspensão da pena aplicada à arguida com a sujeição a regime de prova - arts. 50° ns° 1 e 5 e 53°, n° 3, do Código Penal, reforça as necessidades de prevenção geral e especial, pelo que se justifica a suspensão da pena de prisão ( em cumulo juridico) aplicada à arguida.
Decisão Texto Parcial:Acordam na 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I–No Proc.º n.º1773/19.2T9LSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 9, por sentença de 5 de Junho de 2018, foi decidido julgar a acusação procedente, por provada e, consequentemente:


1.–CONDENAR a arguida AA como autora material e em concurso real de crimes (artigo 30.°, n.° 1, do Código Penal), de dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelas disposições conjugadas dos artigos 173.°, n.° 1, alínea a), 170.° e 177.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, em duas penas parcelares de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
2.–CUMULAR juridicamente ambas a penas parcelares e CONDENAR a arguida na pena conjunta de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, com sujeição a regime de prova - artigos 50.°, n.ºs 1 e 5, e 53.°, n.° 3, do Código Penal.

II–Inconformada, a arguida AA interpôs recurso formulando as seguintes conclusões:


A)-A Recorrente não tem antecedentes criminais, padece de dificuldades cognitivas, sofre de Perturbação Ansiosa-Depressiva e os factos praticados, por falta de prova, não obedeceram a uma qualquer finalidade libidinosa, pervertida ou obscena para cujo atingimento as filhas da arguida foram instrumentalizadas, manipuladas ou usadas;
B)-A Recorrente associou o tipo de crime que lhe foi imputado a outro tipo de práticas sexuais, denotando desde logo falta de consciência e culpa no crime em que foi condenada;
C)-A Recorrente está inserida num meio económico/social baixo, tendo residido em casas pequenas e sem qualquer privacidade para cada um dos membros do agregado familiar;
D)-As conclusões supra indicadas deveriam ter tido maior peso na fixação de medida da pena única aplicada à arguida e na definição dos seus critérios de aplicação, o que foi ignorado pelo Juiz "a quo";
E)-Pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelas disposições dos artigos 173.º, n.º3, al. a), 170.º e 177.º, n.º1, al. a) do Código Penal, a arguida podia ser condenada até 4 anos de prisão, ou seja, em 48 meses de prisão;
F)-Pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelas disposições dos artigos 173.º, n.º, al. a), 170.º e 177.º, n.º1, al. a) do Código Penal, em teoria, a Recorrente podia ser condenada por cada um deles numa pena máxima de 4 anos de prisão, ou 48 meses de prisão;
G)-No caso em apreço, a arguida foi condenada por cada um dos crimes, previsto e punido pelas disposições dos artigos 173.º n.º3, al. a), 170.º e 177.º, n.º1, al. a) do Código Penal, em duas penas parcelares de parcelares de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, ou seja em 16 meses de prisão para cada um dos crimes cometidos;
H)-Comparando a pena máxima aplicável a cada um dos crimes cometidos, isto é até 48 meses de prisão (4 anos), a condenação da arguida em 16 meses de prisão corresponde a 1/3 da pena máxima para o crime de abuso sexual de criança, p. e p. nos artigos 173.º, n.º3, al. a), 170.º e 177.º, n.º1, al. do Código Penal, ou seja 33,33%, traduzindo-se a medida da pena aplicada numa redução em relação à pena máxima prevista naqueles dispositivos em 66,66%;
I)-O juiz "a quo" ao determinar o cúmulo jurídico da pena aplicar fixou o limite máximo da pena em 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, ou seja em 28 meses de prisão, pela soma das penas parcelares aplicadas, e fixou a pena mínima em 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, ou seja em 16 meses prisão, por ser o limite mínimo determinado por qualquer uma das penas;
J)-Por força daqueles limites máximos e mínimos da pena aplicar em cúmulo jurídico, o Juiz "a quo" condenou a arguida numa pena única de 2 (dois) anos de prisão, ou seja, em 24 meses de prisão;
K)-Em termos aritméticos a redução da pena em cúmulo jurídico, em termos percentuais, foi apenas de 15% em relação à pena máxima aplicável em cúmulo jurídico (28 meses de prisão), ou, dito de outra forma, a arguida foi condenada em 85% da pena máxima que lhe podia ser aplicável em cúmulo jurídico (28 meses de prisão);
L)-Comparando o critério usado pelo Juiz "a quo" na determinação das penas parcelares aplicadas à arguida, verificamos que na fixação das penas parcelares foi aplicada a redução da pena em 2/3 (66,66%) em relação à pena máxima aplicável, que era de 48 meses de prisão, já que por cada um dos crimes a pena foi fixada em 1/3 (33,33%) da referida pena máxima;
M)-O critério usado pelo Juiz "a quo" na fixação das penas parcelares, redução da pena em 66,66% em relação à pena máxima aplicável, não foi usado na determinação da medida da pena única, já que a mesma apenas beneficiou uma redução de 15% em relação à pena máxima aplicável de 28 meses de prisão;
N)-O cálculo de fixação do cúmulo jurídico deveria ter tido a mesma regra de cálculo, a mesma percentagem de fixação da pena, isto é 66,66%, o que corresponderia na condenação da recorrente em 1/3 (33,33%) da pena máxima prevista para o cúmulo jurídico (28 meses de prisão);
O)-A pena única aplicável à arguida segundo o critério de fixação da pena parcelar corresponde a uma pena única de 9 meses e 3 dias de prisão;
P)-Contudo, como a lei penal prevê que, em cúmulo a pena aplicável não pode ser inferior à maior pena concreta parcelar, a arguida deve ser condenada apenas na pena única de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, já que também não se compreende, por falta de fundamentação que a suspensão da pena aplicada foi fixada em período superior à medida da pena única;
Q)-A pena um única aplicada mostra-se desadequada, desproporcional e excessiva, ignora por completo as características da personalidade da arguida e suas capacidades cognitivas, e seu modo de vida, o ambiente sócio-económico em que se insere, veja-se o relatório social, violando o preceituado nos artigos 77.º e seguintes do Código Penal;
R)-A sentença em crise não está devidamente fundamentada quanto aos critérios objectivos e aritméticos da aplicação de pena única, bem como não explica as razões de aplicar um período de suspensão da pena superior à pena aplicada;
S)-A sentença em crise está ferida de nulidade - artigo 379.º, n.º 2-b) do Código de Processo Penal;
T)-A pena aplicada à Arguida, faz ainda perigar e viola não só os fundamentais princípios da proporcionalidade, adequação e equidade, como acima de tudo viola os Constitucionais direitos a um julgamento justo, à equidade do julgamento, e fins das penas, suprimindo um dos mais valiosos direitos do Estado de Direito Democrático;
U)-A decisão em crise violou ainda o disposto nos artigos 70.º, 71º e 77.º do Código Penal, os princípios de proporcionalidade, adequação, equidade e julgamento justo que emanam da C.R.P;
V)-Deve a sentença recorrida ser declarada nula nos termos e para os efeitos do artigo 379.º, n.º 2 b) do Código de Processo Penal, nulidade que desde já se argui, para todos os devidos e legais efeitos;
W)-Em sua substituição promover-se nova decisão que fixe a condenação da arguida na pena de única de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa por igual período de tempo.

Ao decidirem assim estarão a fazer a costumada justiça!

III– O Ministério Público na 1.ª instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto.
1-Por cada um dos dois crimes pelos quais foi condenada foi aplicada à arguida a pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
2-Logo, em sede de cúmulo jurídico de penas, em termos abstractos, poderia a arguida ser condenada no mínimo de 1 ano e 4 meses de prisão e no máximo de 2 anos e 8 meses de prisão, isto por força do disposto no art. 77° n° 2 do Cód. Penal.
3-A pena única de 2 (dois) anos de prisão aplicada em concreto à arguida mostra-se conforme, por um lado, às necessidades de prevenção especial e geral que in casu se fazem sentir, e por outro, se fixam dentro dos limites da culpa daquela na prática dos factos.
4-Inexiste qualquer nulidade da Sentença recorrida.
5-A realização da operação de cúmulo jurídico de penas não corresponde a uma aplicação de soma, subtracção ou percentagem precisa e matemática em relação às penas parcelares aplicadas (cfr. neste sentido o disposto no art. 77° n° 1 do Cód. Penal).
6-No que concerne ao período de suspensão da execução da pena ser, in casu, superior à pena única aplicada também se dirá que tal situação está de acordo com o preceituado no art. 50° n° 5 do Cód. Penal, onde actualmente se dispõe que "o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos".
7-A Douta Sentença recorrida não violou quaisquer disposições legais, designadamente as indicadas pela recorrente ou outras.
8-Antes faz a correcta apreciação dos factos e aplica o direito em conformidade.
9-Deve manter-se o julgado.

Assim, se decidindo, Exmos. Senhores Juízes Desembargadores, será feita JUSTIÇA.

IV–Transcreve-se a decisão recorrida.

I-RELATÓRIO


Para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público acusou a arguida:

AA………., solteira, nascida a ……….,
A quem se imputam os factos constantes da acusação de fls. 157ss, que aqui se dão por reproduzidos e integram a prática pela arguida, como coautora material e em concurso efetivo, verdadeiro ou puro de crimes (cf. artigo 31.°, n.° 1, do Código Penal), de dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelas disposições conjugadas dos artigos 171.°, n.° 3, alínea a), 170.°, e 177.°, n.° 1, alínea a), todos do Código Penal.
O Ministério Público acusara igualmente BB (companheiro da arguida e pai das ofendidas) a quem imputava a prática, em concurso efetivo, verdadeiro ou puro de crimes, como coautor material, dos dois referidos crimes de abuso sexual de crianças; e, como autor material (singular), de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelas supracitadas disposições legais, e de um crime de violência doméstica (agravado), previsto e punível pelo artigo 152.°, n.ºs 1, alínea d), 2, 4 e 5 do Código Penal.

O Ministério Público requereu, ainda, de harmonia com as imputações acusatórias originais:
- Ao abrigo do disposto no artigo 152.°, n.ºs 4 e 5 do Código Penal, a aplicação aos arguidos [sic Terá havido lapso, pois a arguida não foi acusada da prática do crime de violência doméstica] das penas acessórias de proibição de contacto com a ofendida CC e o afastamento da sua residência;
- Em conformidade com o disposto no artigo 69.°-B, n.° 2, do Código Penal, a aplicação a ambos os arguidos da pena acessória de exercer profissão, emprego , funções ou atribuições públicas ou privadas cujo exercício envolva o contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos; e
- Ao abrigo do disposto no artigo 69.°-C, n.ºs 2 e 3, do Código Penal, a aplicação a ambos os arguidos das penas acessórias de proibição de assumir a confiança da menor e de inibição do exercício das responsabilidades parentais relativamente à menor ofendida; e
- O arbitramento de quantias às vítimas CC e DD, a título de reparação dos prejuízos sofridos, nos termos dos artigos 82.°-A do Código de Processo Penal e 21.°, n.° 2, da Lei n.° 112/2009, de 16 de setembro.
Não houve lugar à constituição de assistente nem foi deduzido qualquer pedido de indemnização civil.
Os arguidos apresentaram contestação, alegando, em síntese, serem falsos ou estarem empolados, distorcidos ou exagerados os factos descritos no libelo acusatório, e concluindo pela sua absolvição - fls. 242ss.

Arrolaram testemunhas.
Por iniciativa do Tribunal foi elaborado pela DGRSP relatório social para determinação da sanção (artigo 370.°, n.° 1, do Código de Processo Penal).
Procedeu-se à audiência de julgamento, repartida por várias sessões e com exclusão da publicidade, conforme despacho exarado na ata da primeira sessão - 23-1-2020.
Apesar de a ofendida CC ter sido ouvida em declarações para memória futura em sede de inquérito, foi oficiosamente determinada a comparência da mesma em audiência para prestação de esclarecimentos, ao abrigo do princípio da descoberta da verdade material e da boa decisão da causa, sendo certo que, no ínterim, a mesma completou 16 anos de idade.
Por fim, já após o início da audiência de julgamento, veio a ser declarado extinto, por morte do agente, o procedimento criminal contra BB, ficando ope legis prejudicado o pedido de arbitramento de quantias indemnizatórias às vítimas (artigos 82 °-A do Código de Processo Penal e 21.°, n.° 2, da Lei n.° 112/2009, de 16 de setembro).

Encerrada em definitivo a audiência de julgamento, cumpre agora decidir.

II–SANEAMENTO DO PROCESSO

Não existem questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e de que cumpra, neste momento, conhecer.

III–FUNDAMENTAÇÃO


Apenas se apreciarão seja em sede de Factos Provados seja em sede de Factos não Provados, aqueles que se mostram relevantes para a boa decisão da causa, tendo em conta a aludida extinção do procedimento criminal quanto a BB. Além disso, para melhor clareza expositiva, desdobrou-se ou alterou-se a formulação linguística dos factos narrados na acusação, incluindo-se alguns factos instrumentais facilitadores da compreensão do caso. Trata-se de meras modificações de forma - as mais das vezes explicativas - e não de alterações de fundo.

1–FACTOS PROVADOS

1.1- Da acusação
1.–A arguida AA e o seu defunto companheiro (ex-arguido) BB, são pais das ofendidas CC, nascida em ………., e DD, nascida em ………
2.–O agregado familiar, incluindo as duas mencionadas ofendidas, residiu em várias habitações ao longo dos últimos 15 anos, todas sitas no bairro da ………., em Lisboa, designada e sucessivamente no ……….; na ……….; na …….…; e na Rua ………. Lisboa
3.–A ofendida DD, atualmente com 21 anos (à data dos factos descritos na acusação), viveu com os seus progenitores, aqui arguidos, desde que nasceu até aos 18 anos de idade, ou seja, entre 1997 e meados de 2015, nas moradas identificadas, muito embora com várias ausências intercaladas, em datas e por períodos não exatamente apurados.
4.–A ofendida CC, atualmente com 15 anos (à data dos factos descritos na acusação), viveu com os seus progenitores, aqui arguidos, até aos 14 anos de idade, ou seja, entre 2003 e meados de 2017, nas ditas moradas.
5.–Contudo, durante aquele período e até aos seis anos de idade, passou largas temporadas, por vezes meses seguidos, em casa da avó materna, EE, sita na Rua ………., Lisboa.
6.– O mesmo sucedendo com a ofendida DD, até completar os 12 anos de idade.
7.–Quando completaram os seis e os 12 anos, as ofendidas, por vontade dos pais (máxime, do seu hoje falecido pai), passaram a viver permanentemente com estes, percorrendo as citadas residências.
8.–Assim, a ofendida CC residiu no n.° ………. entre os seis e os oito anos, e a ofendida DD entre os 12 e os 14 anos de idade.
9.–E no n.° ………. residiram entre os oito e os 12 anos, e os 14 e os 18 anos, respetivamente.
10.–A ofendida CC viria a sair definitivamente de casa dos progenitores com 13 anos, para voltar a viver com a avó materna, a cujos cuidados se encontra presentemente confiada por decisão judicial - cf. douta Sentença proferida no processo de Regulação das Responsabilidades Parentais n.° 4092/19.OT8LSB, que corre os seus termos pelo Juízo de Família e Menores de Lisboa-J1.
11.–A ofendida DD deixou a casa paterna com 18 anos de idade, Todas as descritas residências familiares eram de pequenas dimensões.
12.–Na residência sita na ………., as ofendidas dormiam num quarto contíguo ao dos pais, tendo cada um destes quartos a respetiva porta.
13.–Na residência sita na ………., os pais dormiam numa divisão que era simultaneamente a sala, e as ofendidas em um quarto, sem porta, que dava para aquela divisão.
14.–Por último, na residência sita na Rua ………., as ofendidas começaram por dormir sozinhas no sótão e posteriormente num quarto, enquanto os pais sempre dormiram na sala, existindo portas a separar cada divisão.
15.–No entanto, nas segunda e terceira das indicadas residências, as então menores ofendidas ouviram amiúde os pais a manterem relações sexuais nas divisões contíguas, por serem perfeitamente audíveis os ruídos produzidos por ambos durante o ato, em especial pela ora arguida mercê dos gritos e gemidos que emitia.
16.–Nessas ocasiões, numa primeira fase - coincidente grosso modo com a permanência na ………. - a menor CC acordava e começava a chorar, pensando que alguém estava a fazer mal à mãe.
17.–Com o passar do tempo tomou consciência de que os pais estavam a ter relações sexuais, facto que também lhe foi explicado pela irmã mais velha, DD.
18.–Não deixou, contudo, a ofendida CC de se sentir perturbada, triste, ansiosa e amargurada sempre que ouvia os ruídos causados pelos pais.
19.–A ofendida DD, apesar de também ela se sentir sobressaltada e enervada, procurava acalmar-se e acalmar a irmã mais nova e distraí-la, v.g., partilhando os headphones para ouvirem música ao mesmo tempo; por vezes, ambas colocavam as almofadas da cama à roda da cabeça, de modo a tapar os ouvidos e abafar os sons.
20.–Quando ainda residiam no n.° ………., pelo menos por uma vez, os pais e as ofendidas dormiram todos na sala, no chão, muito próximos uns dos outros.
21.–Nessa ocasião, os pais, nus um e outro, se bem que por baixo da roupa de cama, mantiveram relações sexuais de cópula completa, o que foi visualizado pela ofendida DD, a qual na altura contava cerca de 12-13 anos de idade.
22.–Na habitação da ………., a ofendida CC, por ser muito apegada à mãe e ter medo de dormir sozinha nas ausências da irmã, ia dormir com os pais na sala, num colchão colocado junto àquele onde os pais dormiam, estando ambos assentes no chão.
23.–Também nestas circunstâncias os seus pais não se coibiam de manter relações sexuais, o que a deixava muito transtornada, constrangida e inquieta.
24.–Para chamar a atenção para a sua presença, a ofendida mexia-se ostensivamente e tossia, mas nem assim os pais deixavam de ter relações sexuais de cópula completa ou, pelo menos uma vez, de coito oral, nus um e outro, bem sabendo que a mesma se encontrava deitada a escassos centímetros do seu leito.
25.–As relações de cópula verificavam-se debaixo da roupa de cama, ao contrário do coito oral, facto que permitiu à ofendida CC visualizá-lo.
26.–A arguida e o seu falecido companheiro (progenitor das ofendidas) sabiam, face à proximidade dos seus corpos em relação às suas filhas, não havendo nada que as impedisse de ver e ouvir o que estavam a fazer, que as relações sexuais entre ambos poderiam ser visualizadas pelas duas filhas menores, como efetivamente o foram pelo menos por uma vez em relação a cada uma delas, e escutadas pelas mesmas, como sucedeu múltiplas vezes.
27.–Esta situação manteve-se enquanto a arguida e o defunto companheiro viveram com as filhas, as quais eram expostas ao relacionamento sexual dos pais do modo descrito, sem poderem furtar-se essa exposição.
28.–O que teve lugar em ambas as residências sitas na ....……- ………..
Ao atuar da forma descrita, a arguida agiu em comunhão de esforços e intentos, de comum acordo com o seu então companheiro e pai das ofendidas, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por Lei.

1.2–Da contestação
20.–Existe uma animosidade de longa data entre os progenitores das ofendidas e a avó materna, EE, causada por divergências familiares, mormente quanto à educação e condições de vida das menores.
21.–O ambiente socioeconómico, cultural e educacional onde vivem a arguida e as ofendidas, e onde viveu também o falecido companheiro da arguida e pai daquelas reconduz-nos às famílias de classes sociais baixas.
22.–Nalguns casos, as horas em que a arguida e o seu falecido companheiro decidiam ter relações sexuais coincidiam com as horas em que julgavam estarem ambas as ofendidas a dormir.
23.–Devido aos problemas de saúde que foi sentindo ao longo dos anos e à correspondente medicação, o falecido progenitor das ofendidas veio a sofrer de impotência sexual, o que reduziu a frequência das relações sexuais com a arguida.

1.3–Da instrução e discussão da causa
24.–No âmbito do processo de promoção e proteção relativo à menor CC, foi elaborado relatório no qual se informava:

5.1–Antecedentes
Na sequência de sinalização realizada à CPCJ-Lisboa Centro, a 18/02/2019, foi naquela comissão instaurado processo de promoção e proteção a favor da jovem CC. No âmbito daquela foram referenciados fatores de perigo consubstanciados em maus-tratos físicos e psicológicos por parte dos progenitores e suspeita de abuso sexual por parte do progenitor (exposição a comportamentos sexualizados desadequados à sua condição e faixa etária).
25.–O casal parental é descrito como sendo portadores de patologia do foro mental, com caraterísticas associadas a comportamentos agressivos e conflituosos.

5.2– Situação atual
A CC (jovem) compareceu em entrevista na EATTL, acompanhada pela sua Avó Materna EE e pelo sobrinho FF. A jovem revelou ao longo da entrevista competências inter-relacionais adequadas, com um discurso espontâneo, organizado, coerente e capacitante no sentir e expressar emoções, bem como foi esclarecedora dos seus objetivos pessoais e familiares.
A jovem demonstrou uma apresentação cuidada em termos de higiene e vestuário, adequado à sua faixa etária.
Acerca da sua dinâmica familiar, a CC relatou ter sete (7) irmãos, ou seja, seis (6) consanguíneos (de relações anteriores do Pai) e 1 germano (DD). A jovem reside com a Avó Materna há cerca de dois anos, porque segundo a própria "a Mãe meteu-me na rua" (sic), existindo entre a díade uma relação disfuncional pautada por conflitos recorrentes em que a figura materna ameaçava a jovem ("metia sempre o nome da Avó em tudo (...) ela dizia se gostas tanto da tua Avó vai para casa da tua Avó e deu-me um rolo de sacos pretos" (sic).( Em audiência de julgamento veio a apurar-se que os sacos se destinariam ao acondicionamento e transporte dos pertences da menor de casa dos pais para a casa da avó).
Inicialmente, CC não visitava os Pais na casa daqueles, porém, o Pai adotou a postura de a obrigar a ir a casa "todos os dias para lhe dar um beijinho" (sic). Porém, a jovem também acrescentou que nessas deslocações a casa dos Pais, este "quase não falava ou então dizia piropos, tipo, se perdesses peso ficavas mais boazona e falavam mal da Avó a mim (...) não gostava de lá ir" (sic).
Mais foi referido pela jovem que enquanto permaneceu com os Pais, assistia "às brigas entre eles e eles a fazer relações sexuais" (sic).
Segundo CC, esta já tinha vivido anteriormente com a Avó Materna até aos 6 anos, tendo sido levada pelos progenitores, com quem permaneceu até aos 13 anos.
Atualmente, a CC não mantém por sua iniciativa contactos com os Pais, tendo estes sido suspensos por via judicial, mas dada a proximidade das residências dos Pais e Avó Materna, é frequente os encontrar na via pública ou a rondar a sua casa, tendo dado o exemplo que, no dia 18/08/2019, enquanto a jovem estendia uma toalha os terá visualizado a rondar a casa, ou que a Mãe costuma deixar "coisas na caixa do correio e no estenda" (sic).
CC afirmou que a presença dos Pais a "incomoda muito (...) sinto-me sempre muito maltratada" (sic) evitando passar na rua daqueles. Mesmo quando encontra os Pais na via pública, a CC desvia o seu trajeto, porque disse sentir-se ameaçada pelo olhar intimidatório daqueles.
No que se refere aos conflitos referenciados nas peças processuais entre a CC e a Avó Materna, a jovem admitiu os mesmos, justificando que só à data é que consegue falar sobre os acontecimentos a que esteve sujeita pelos seus Pais, sentindo em relação a estes últimos emoções de revolta, os quais por vezes são dirigidos à Avó Materna, "é aquele buraco, é o sítio dos meus pais que não está preenchido"; "é a pessoa que tem estado sempre presente, eu quero ficar com ela para sempre" (sic); "gostava que os meus Pais vivessem mais longe e não os ter que ver" (sic).
A Avó Materna é identificada pela jovem como sendo a sua principal referência "conto muitas coisas à Avó, a Avó sempre me tentou proteger, a Avó é que me criou, me deu educação" (sic), reconhecendo que esta familiar manifesta preocupação pela sua situação.
A jovem refere ter amigos com os quais mantém contactos frequentes, contudo, é da sua preferência permanecer em casa a ver filmes ou ir à praia com a Avó Materna.
Em termos escolares, a CC completou o 9.° ano de escolaridade no CED D. Maria Pia (ensino regular). Inscreveu-se no curso de restauração-bar, com início em setembro próximo, no mesmo CED, cuja formação terá a duração de três (3 anos) com equivalência ao 12.° ano.
Ao nível da saúde, iniciou acompanhamento psicológico no SAMS, com próximo agendamento para setembro. Anteriormente já foi observada na consulta de Pedopsiquiatria (Dr.ª AV, em abril de 2018), devido a ideação suicida, tendo sido medicada com antidepressivos e reguladores do sono. Nessa altura, a médica considerou que a jovem não estaria em condições para frequentar a escola, tendo sido apresentado atestado clínico para o efeito. Atualmente tem indicação para tomar Victan em caso de SOS, mais ocorrendo devido a situações provocados pelos Pais.
A jovem está inscrita na Unidade de Saúde das Mónicas, contudo, a Avó Materna preferencialmente recorre ao SAMS.
Na entrevista com a Avó Materna EE, esta referiu que a neta CC "a revolta dela é muito grande em relação aos Pais" (sic) por não ter "uns Pais iguais aos outros" (sic).
A Avó [relatou] que assumiu os cuidados à neta desde a infância daquela, e até aos seus 6 anos, por sua própria iniciativa devido à incapacidade do casal parental para assumir essa responsabilidade, dada a situação psíquica dos mesmos e ausência de recursos materiais (alimentação, vestuário). [...]
Atualmente, a Avó Materna é quem assegura a totalidade dos cuidados básicos à CC, bem como as suas necessidades de vestuário, educação e saúde.
Relativamente à progenitora da Jovem, AA, "sempre teve uma autoestima muito baixa, fez o 9.° ano a custo, é fraca de cabeça" (sic). [...]

[...]
Segundo a Avó Materna, a progenitora AA (DN. ……….) poderá desempenhar funções de auxiliar de limpeza no Hospital Curry Cabral [...] Situação habitacional
A habitação da Avó Materna, segundo a CC, é constituída por dois quartos, sala, cozinha e casa de banho. No quarto da Avó, atualmente, permanece a irmã DD e o sobrinho FF; na sala pernoita a Avó e a jovem (a jovem referiu que prefere dormir com a Avó, devido a pesadelos). O segundo quarto serve de arrumação para a roupa, estando previsto que esta assoalhada seja o futuro quarto da CC.
O agregado tem a despesa mensal do arrendamento de 178€, sendo que os rendimentos são provenientes da reforma por invalidez da Avó Materna e do salário da neta II...........

6.– AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA


Junto da EATTL, a CC foi perentória em afirmar a sua intenção de não manter qualquer contacto com os Pais. Considera que a presença daqueles na sua vida não beneficia a sua estabilidade emocional, expressando sentimentos de revolta contra os Pais por toda a exposição aos fatores de perigo que vivenciou enquanto permaneceu aos cuidados daqueles.
A CC revelou consciência dos maus-tratos vivenciados no passado, assim como da incapacidade vinculativa às figuras parentais. Por seu lado, a CC mantém uma relação positiva com a figura parental substitutiva, neste caso, a Avó Materna, como elemento que tem contribuído para o seu bem-estar.
Atualmente, a CC não sente que esteja em situação de perigo, enquanto à responsabilidade da Avó Materna, tendo a expectativa de que poderá ser aplicada uma medida/coação de afastamento definitiva implicada aos Pais "acho que estou em perigo se os meus Pais se aproximarem, mas não estou em perigo com a Avó" (sic). A jovem afirmou beneficiar do estatuto de vítima, tendo já acionado o apoio da PSP decorrente de tentativas de aproximação por parte dos Pais.
Da avaliação efetuada, e ponderada a totalidade dos fatores de proteção e de perigo, são relevados os meios protetivos, estes correspondentes ao exercício da parentalidade que tem sido assumida pela figura da Avó Materna. Mais se considera que os eventuais conflitos que possam ter existido entre a Avó e a Jovem prende-se com a vulnerabilidade emocional daquela última, consequente dos maus-tratos infligidos pelos pais durante o período de coabitação.

I)–Fatores de Proteção:
a)-A CC aparenta possuir recursos intelectuais adequados;
b)-A CC aparenta ter consciência do papel de cada um dos elementos do grupo familiar na construção do seu bem-estar;
c)-Existência de suporte familiar;
d)-Os cuidados básicos ao nível da saúde, nutrição, vestuário, educação e supervisão estão a ser assegurados adequadamente pela Avó Materna;
e)-Os cuidados ao nível da saúde mental estão a ser assegurados adequadamente pela Avó Materna (diligenciadas consultas de Pedopsiquiatria e Psicologia Clínica);
f)-A Avó Materna, enquanto figura substituta e de continuidade do exercício parental, corresponde de forma adequada às necessidades da jovem;
g)-Reconhecimento dos problemas familiares pela CC e Avó Materna, permitindo que sejam desencadeados pelas próprias os meios de proteção disponíveis na comunidade, nomeadamente o recurso às autoridades policiais, quando necessário;
h)-Aceitação e manifestação de afetos entre a CC e a Avó Materna;
i)-Atitudes de proteção por parte da Avó Materna em relação à CC, contra os abusos das figuras parentais;
j)-Adequação de práticas parentais por parte da Avó Materna em função da idade da CC.

II)–A CC está inserida em contexto escolar, tendo apresentado aproveitamento final no final do ano letivo 2018/2019, visando a frequência de um curso profissional em setembro próximo, o que revela competências pessoais internas e de adaptação que a permitiram ultrapassar uma fase anterior depressiva que a obrigou a suspender provisoriamente os estudos.

III)–Fatores de Perigo:
a)-História de maltrato perpetuada pelos Pais;
b)-Pais com história de perturbação psiquiátrica;
c)-Fragilidade ao nível da segurança física e psíquica da jovem, consequente dos comportamentos dos Pais;
d)-Conflito familiar perpetuado pelos comportamentos dos Pais.
A CC na sequência da sujeição ao ambiente e dinâmica familiar disfuncional e maltratante perpetuado pelos progenitores é uma jovem que aparentemente demonstra capacidades resilientes, que reforçadas pelo apoio de outros familiares, designadamente pela Avó Materna, e outras medidas específicas (pedopsiquiatria, psicologia), tem mostrado competências para ultrapassar os efeitos/consequências da insuficiente e negligente vinculação e proteção dos Pais.

7.– FORMULAÇÃO DA PROPOSTA
Face ao exposto, a EATTL considera que no âmbito do processo judicial de promoção dos Direitos e Proteção, a aplicação de uma medida protetiva, à atualidade, poderá não corresponder à real e premente necessidade da CC, considerando-se que o maior beneficio para a jovem é a efetiva inibição e interdição das responsabilidades parentais atribuídas aos progenitores, por definição judicial no âmbito do processo civil da regulação do exercício das responsabilidades parentais, com guarda exclusiva atribuída à Avó Materna EE.

[...]
Com base em entrevista realizada com a arguida em sede das instalações desta equipa da DGRSP; entrevista telefónica efetuada com a filha/ofendida no presente processo, DD; entrevista telefónica com a mãe da arguida/avó das alegadas vítimas, EE; articulação com a Técnica Superior de Reinserção Social responsável pela elaboração do Relatório Social para a Determinação da Sanção sobre o companheiro/coarguido BB; consulta e análise dos documentos facultados por AA, designadamente: declaração médica datada de 20-12-2019 e guias de tratamento farmacológico referentes à arguida e companheiro, relata a DGRSP:
Ao longo da entrevista realizada, AA apresentou-se emocionalmente fragilizada, evidenciando choro fácil e uma postura de franca revolta relativamente à respetiva progenitora, a quem culpabiliza pela presente situação processual e afastamento das filhas, evidenciando um discurso tendencialmente depreciativo relativamente à ascendente.

I– Dados relevantes do processo de socialização
De acordo com o que nos foi possível apurar, o processo de desenvolvimento e socialização da arguida terá sido afetado pela perda de figuras afetivas significativas, designadamente com o falecimento de uma tia, com quem vivia e posteriormente do progenitor, contava cerca de doze anos de idade.
Mais nova de três irmãos germanos, a irmã mais velha da arguida viria cedo a autonomizar-se, permanecendo a arguida aos cuidados da mãe, com quem refere ter tido um relacionamento desarmonioso, nomeadamente pelo facto de aquela manifestar uma postura de grande rigidez e controlo para consigo (atitude divergente da evidenciada com o irmão pelo facto de ser rapaz).
Atribui ainda à progenitora alegadas vivências promiscuas (designadamente de caráter sexual) com elementos do sexo oposto, com quem a ascendente travaria conhecimento em "danceterias" ou casas de fado que frequentava regularmente aos fins-de-semana e a que a arguida seria exposta porquanto da sua obrigação em acompanhar a mãe nas diversas atividades diurnas e/ou noturnas mantidas (exceto no decurso das atividades escolares).
No que concerne ao seu percurso escolar, AA terá completado o sexto ano com registo de reprovações por dificuldades ao nível da expressão da linguagem, tendo, segundo a mãe, sido acompanhada em terapia da fala. Evidenciando desde cedo dificuldades de aprendizagem e alegada instabilidade psicológica, enquadramento que a mãe refere ter sido exacerbado após o falecimento do progenitor, AA terá sido ainda acompanhada em consultas de Psicologia.
Tendo ainda frequentado um curso profissional para desenvolver funções de auxiliar de ação educativa, AA desistiu definitivamente da escolarização para dar início a atividade profissional, contava cerca de dezanove anos, vindo a exercer atividade numa loja de confeções e posteriormente num videoclube. Segundo a progenitora da arguida, EE, em face das alegadas dificuldades cognitivas evidenciadas, a arguida apresentaria, todavia, dificuldade em conservar os empregos.
No plano relacional, a arguida constituiu maritalidade com BB contava cerca de vinte e três anos de idade. Sendo o companheiro cerca de vinte anos mais velho, teria já cinco filhos de duas relações anteriores, permanecendo três deles à responsabilidade daquele.
AA integrou o agregado do companheiro, de quem tem duas filhas/ofendidas no presente processo, que contam atualmente 22 e 16 anos de idade.
De acordo com o verbalizado, o casal veio a subsistir dos rendimentos auferidos por BB, na área da carpintaria e posteriormente através da atividade de motorista, bem como dos valores monetários auferidos pela arguida na área das limpezas.
No que se refere à relação conjugal, é pela arguida referenciado um relacionamento afetivo e coeso, sendo do mesmo modo verbalizado ter juntamente com o companheiro mantido sempre uma relação harmoniosa com as filhas, que seriam próximas do pai.
A mãe de AA assinala, no entanto, ter conhecimento de eventuais comportamentos impulsivo-agressivos por parte do companheiro, exercidos sobre a arguida.

II– Condições sociais e pessoais
À data dos alegados factos subjacentes ao presente processo, AA mantinha agregado nuclear com o companheiro BB e as filhas de ambos (alegadas ofendidas), em habitação camarária.
Pese embora refira a manutenção de um relacionamento harmonioso no seio do agregado, as filhas intercalavam habitação entre o agregado de origem e o agregado da avó materna, EE, que verbaliza ter sempre acompanhado as netas aos mais diversos níveis.
Esta situação parece nunca ter sido bem aceite pelo casal, imputando a arguida à respetiva progenitora a alegada pretensão de ficar com a responsabilidade das filhas, contexto que viria agudizar a relação disfuncional mantida entre ambas
Desde a instauração do presente processo que a arguida não fala com a progenitora, responsabilizando-a pelo mesmo.
No domínio económico, o casal subsiste presentemente através dos rendimentos da arguida, no valor aproximado de 600 euros mensais, fruto da atividade que exerce na área das limpezas em unidade hospitalar, bem como da alegada venda de objetos em segunda mão na feira da ladra. Pese embora tenha estado de baixa médica, retomou recentemente a atividade profissional.
O companheiro não usufrui de qualquer fonte de rendimento por alegada falta de comparência a junta médica agendada no âmbito de baixa de que beneficiou, na sequência de um aneurisma cerebral de que sofreu há cerca de dois anos.
Com um valor de arrendamento da habitação na ordem dos 300 euros mensais, o casal alega não ter liquidez financeira para fazer face às despesas, referindo neste sentido ter realizado um acordo com o senhorio para pagamento da renda logo que lhes seja possível.
Pese embora o casal beneficie de apoio por parte da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, encontra-se a vivenciar sérias dificuldades económicas.
Ao nível da saúde e segundo declaração médica datada de 20-12-2019, AA padece de Perturbação Ansiosa-Depressiva, fazendo medicação coadunante [sic]. De acordo com a mesma fonte, a arguida mantém, todavia, um seguimento irregular, faltando regularmente às consultas.
No que diz respeito às suas características pessoais e de acordo com a progenitora, a arguida apresenta algumas limitações cognitivas, que a par da fragilidade emocional e caráter depressivo se traduzirá não raras vezes em passividade comportamental, nomeadamente no âmbito da relação com o companheiro, bem como em dificuldades reflexivas e consequenciais.

[...]

IV–Conclusão
Do trajeto de AA ressaltam as perdas de figuras afetivamente significativas em idade precoce, que a par dos alegados sentimentos de controlo vivenciados e alegada exposição a padrões disfuncionais terão sido impactantes no seu equilíbrio e desenvolvimento e obviado a um percurso pessoal, escolar/formativo ou profissional auto-valorativo.
Os aparentes deficits evidenciados ao nível pessoal, aliados à perturbação clínica diagnosticada, dificuldades económicas, problemática de saúde do companheiro/coarguido, disfuncionalidade relacional com a progenitora e afastamento das filhas parecem estar a exacerbar as fragilidades da arguida, que se nos manifesta vulnerável.

[...]

A arguida não tem antecedentes criminais registados.

2–FACTOS NÃO PROVADOS (SEM PREJUÍZO DO EXARADO EM 1)

(………………………………………………………………………)

4–Do DIREITO

4.1– Dispõe o artigo 171.° do Código Penal (sob a epígrafe "Abuso sexual de criança"):
1- Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2- Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

3- Quem:
a)-Importunar menor de 14 anos, praticando ato previsto no artigo 170.°; ou
Atuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espetáculo a) ou objeto pornográficos;
b)-Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a actividades sexuais;

é punido com pena de prisão até três anos.


4-Quem praticar os atos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.

5- A tentativa é punível.


Por seu turno, o artigo 170.° do mesmo Código reza assim (sob a epígrafe "Importunação sexual"):
Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Finalmente, o artigo 177.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, estipula que a pena prevista, designadamente, no artigo 171.°, n.° 3, do Código Penal, é agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for ascendente, descendente, adotante, adotado, parente ou afim até ao segundo grau do agente.

A propósito do artigo 171.°, n.° 3, alínea a), do Código Penal justificam-se duas sintéticas notas interpretativas. A primeira para sublinhar que o bem jurídico tutelado é a autodeterminação sexual, agora protegida perante condutas que não representam a extorsão de contactos sexuais por coação sexual ou prática análoga, mas que, tendo em consideração a idade da vítima, podem, mesmo sem coação, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade. A Lei presume que a prática de atos perante o menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do mesmo, presunção que conserva consistência absoluta na generalidade dos casos (presunção iniludível), não obstante as dúvidas que, no mundo contemporâneo fortemente erotizado e sexualizado e ao menos em certos casos, se poderão suscitar à luz dos conhecimentos oriundos de outras áreas do saber, como a psicologia, a pedopsiquiatria e a antropologia modernas. Este racional vale, destarte, para a prática de (certos) atos sexuais perante menor, independentemente de o seu corpo ser tocado, pela efetiva interferência e perturbação do desenvolvimento saudável da personalidade do menor no âmbito sexual.

A segunda e última nota, porventura consequencial da primeira, reporta-se à natureza do crime: trata-se de um crime de perigo abstrato, na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração do tipo de ilícito fique afastado. Como sucede nos crimes desta natureza, o perigo constitui a ratio legis, o motivo da incriminação, não integrando a estrutura da tipicidade (A questão da natureza do crime, todavia, não é inteiramente pacífica, existindo autores que defendem tratar-se de um crime de dano).

Mister é concluir que os factos provados integram efetivamente a prática, pela arguida, em concurso (ideal) efetivo, verdadeiro ou puro de crimes (cf. artigo 30.°, n.° 1, do Código Penal), de dois crimes de abuso sexual de criança, previstos e puníveis pelas disposições legais referenciadas. Não suscita qualquer dúvida a efetividade do concurso de crimes, atento o cunho pessoalíssimo do bem jurídico tutelado (cf. supra). Poderia, pelo contrário, colocar-se em questão a singularidade de cada um dos crimes, porquanto se expuseram várias condutas (potencialmente) típicas; a verdade é que nada se apurou quanto às respetivas circunstâncias concretas, por evidentes razões de ordem prática, mormente a natural incapacidade das vítimas para especificarem aquele circunstancialismo caso a caso. É de considerar correta, por isso, a imputação de um só crime em relação a cada uma das vítimas (Apesar de se tratar de matéria não inteiramente pacífica. Cf., a título de exemplo (com múltiplas referências jurisprudenciais), acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6-2-2019, processo n.° 966/14.3JAPRT.P1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-12-2019, processo n.° 501/17.1T9LMG.MG.C1; e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2-5-2019, processo n.° 6/17.0JDLS13.L1-9, todos consultados em www.dgsi.pt).

4.2–A determinação da medida concreta da pena (ou determinação da medida da pena) obedece ao critério global do artigo 71.°, n.° 1, do Código Penal: "A determinação da medida da pena dentro dos limites definidos na lei far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes". Daqui se retira que a determinação da medida da pena será feita em função das categorias da culpa e da prevenção (geral e especial), resultando a dosimetria da ponderação ou valoração das diversas circunstâncias do crime - circunstâncias agravantes ou atenuantes gerais, das quais o n.° 2 do artigo 71.° exemplifica algumas delas.

Em resumo, a culpa (do agente) constitui o fator limitativo máximo ou superior da pena, inultrapassável por força do princípio da culpa - não há pena sem culpa nem a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa (cf. artigos 1.° da Constituição da República e artigo 40.°, n.° 2, do Código Penal). O limite inferior ou mínimo da pena estabelece-o a necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto (cf. artigo 40.°, n.° 1, do Código Penal), ou seja, a prevenção geral positiva ou de integração, conexionada com o reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança perante à violação da norma. Finalmente, dentro desta moldura penal de segundo grau ou abstrata-concreta, dir-se-ia, a precisa e adequada medida da pena decorre das exigências preventivas-especiais, quer na vertente da socialização quer na de advertência individual de segurança ou neutralização do delinquente.

O preceito incriminador pune o crime com pena de prisão, não estipulando à partida qualquer alternatividade com uma pena não detentiva (rectius, pena de multa). A determinação da pena é, nesta fase do processo, a determinação da pena ou penas de prisão.

No caso, do ponto de vista geral, evidenciam-se dois vetores antinómicos: em sentido agravante, um vetor relacionado com os laços filiais entre a agente do crime e as vítimas e a duração ou prolongamento, por vários anos, da conduta ilícita, mesmo após a arguida ter sido alertada - pelo menos, pela ofendida CC e pela sua avó materna - para as consequências nefastas experienciadas pelas filhas - angústia, tensão, perturbação psicológica, ansiedade, mal-estar geral e tristeza. Em sentido antinómico, um vetor atenuante referido, por um lado, às condições de vida do agregado, nomeadamente em matéria habitacional, pois todas as residência familiares se caracterizavam pela reduzida área útil, a que se juntava nalguns casos, a ausência de portas nas divisões, dificultando ao casal a fruição reservada e privada da sua sexualidade; e, por outro lado, atinente a algumas características da personalidade da arguida, com incidência sobre a inexigibilidade (ou exigibilidade) de outra conduta. Retira-se, com efeito, do relatório social:
No que diz respeito às suas características pessoais e de acordo com a progenitora, a arguida apresenta algumas limitações cognitivas, que a par da fragilidade emocional e caráter depressivo se traduzirá não raras vezes em passividade comportamental, nomeadamente no âmbito da relação com o companheiro, bem como em dificuldades reflexivas e consequenciais.

[...]

IV–Conclusão
Do trajeto de AA ressaltam as perdas de figuras afetivamente significativas em idade precoce, que a par dos alegados sentimentos de controlo vivenciados e alegada exposição a padrões disfuncionais terão sido impactantes no seu equilíbrio e desenvolvimento e obviado a um percurso pessoal, escolar/formativo ou profissional auto-valorativo.
Os aparentes deficits evidenciados ao nível pessoal, aliados à perturbação clínica diagnosticada, dificuldades económicas, problemática de saúde do companheiro/coarguido, disfuncionalidade relacional com a progenitora e afastamento das filhas parecem estar a exacerbar as fragilidades da arguida, que se nos manifesta vulnerável.

Em matéria de prevenção especial, de notar que a arguida não averba antecedentes criminais e se encontra inserida profissional e economicamente, sendo modesta a sua condição social; já do ponto de vista familiar é patente alguma disfuncionalidade, porventura presente desde fases precoces da sua vida e hoje persistente na relação com a sua mãe e especialmente com a filha CC - cuja regeneração se antevê tarefa complexa. Revela-se, em suma, uma necessidade (re)socializadora com alguma premência em matéria educacional-sexual (sem que isso possa coenvolver, sublinha-se, a imposição de uma qualquer moral sexual alegadamente correta ou apropriada ou aprovada pela maioria da população, pois esta é matéria totalmente alheia ao Direito Penal).

Não parece, ou pelo menos nada se provou nesse sentido, que a exposição das filhas do casal às práticas sexuais dos pais obedecesse a uma qualquer finalidade libidinosa, pervertida ou obscena para cujo atingimento as menores fossem instrumentalizadas, manipuladas ou usadas.

Os crimes sexuais que envolvem menores suscitam consabidamente bastante alarme social e reclamam uma resposta decerto vigorosa e inteligível pela comunidade, sem abdicar, todavia, dos princípios de política criminal e dos critérios legais de definição das penas vinculativos para o aplicador do direito. Ora, no contexto de prevenção geral positiva, não são apenas os aspetos ou circunstâncias atinentes ao facto (em particular, o grau de lesão ou perigo de lesão do bem jurídico protegido pelo Direito Penal) que valem; os fatores referentes, grosso modo, à personalidade do agente estão talhados, é certo, para se projetarem na avaliação da medida da pena necessária à satisfação das exigências de prevenção especial, contudo também podem e devem ser valorados sob a égide da prevenção geral. Deste ponto de vista, o que interessará é considerar a personalidade consoante ela se apresente como mais ou menos respeitadora das normas jurídico-criminais; sendo certo que abalo sofrido na confiança comunitária na validade das normas e as necessidades de estabilização da sua confiança serão diversamente avaliadas consoante aquela personalidade é captada de forma positiva, negativa, ou indiferentemente pela comunidade.

Neste sentido, a situação pessoal da arguida e a sua personalidade, acima evidenciadas, tenderão a atenuar a robustez da reação contrafáctica imprescindível à recomposição da indemnidade da Ordem Jurídica e à estabilização dos anseios comunitários de Justiça, tudo no quadro do Estado de Direito Democrático refratado na Constituição da República.
Posto isto, afigura-se adequada a pena de um ano e quatro meses de prisão em relação a cada crime.

4.3– Dispõe o artigo 77.°, n.° 1, do Código Penal:"Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente".
O sistema do cúmulo jurídico de penas parcelares em uma pena conjunta foi adotado para evitar a eventual ultrapassagem do limite da culpa, que seria provocada por um sistema de acumulação material, onde ocorresse a mera soma das penas em que o arguido tivesse sido condenado (EDUARDO CORREIA). Este sistema da pena conjunta pretende espelhar uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente, através da combinação das penas parcelares (que não perdem a natureza de fundamentos da pena do concurso).

A punição em concurso opera, em primeiro lugar, pela determinação das penas parcelares em que o arguido foi condenado por cada um dos crimes em concurso (cf. supra). Em segundo lugar, o limite máximo da moldura do concurso obtém-se mediante a soma das penas parcelares - artigo 77°, n.° 2, do Código Penal. Em terceiro e último lugar, a pena (conjunta) aplicável tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. No caso, portanto, o limite mínimo é determinado por qualquer uma das idênticas penas parcelares, i.e., 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão; o limite máximo - soma de ambas as penas parcelares - fixa-se em 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

Os citérios de determinação da medida concreta da pena conjunta são aqueles que constam do artigo 71.° do Código Penal, a que acresce um critério especial previsto pelo artigo 77.°, n.° 1, in fine do Código Penal, que impõe a consideração em conjunto dos factos e a personalidade do agente. Do que se trata é de ponderar em conjunto os factos, atendendo à ilicitude global de toda a conduta do agente em análise.

Uma vez mais, é de salientar, à uma, o prolongamento das condutas típicas e a sua prática em meio familiar e, à outra, uma certa impreparação da arguida para manter uma conduta conforme ao Direito, associada ao seu perfil cognitivo-emocional.

Conclui-se, por isso, que a culpa e as exigências preventivas concorrem para a fixação de uma pena conjunta de dois anos.

4.4–Nos termos do artigo 50.°, n.° 1, do Código Penal, é de suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade de agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às consequências deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Ora, no caso, a ausência de antecedentes criminais, o enquadramento profissional e familiar, a circunstância de o risco de repetição das condutas criminosas se encontrar fortemente atenuado - desde logo, porque a menor CC se encontra confiada à guarda e aos cuidados da avó materna - e as características específicas dos crimes (em particular o contexto psicossociológico e a ausência de motivos excessivamente censuráveis (v.g., satisfação da libido da arguida, instrumentalização das vítimas para esse efeito), autorizam a prognose de que a suspensão da execução da pena permitirá uma adequada satisfação das exigências preventivas e de reintegração (artigo 40° Código Penal). Ou seja, a "censura do facto e a ameaça" de cumprimento de uma pena de prisão constituirão uma suficiente advertência para a arguida, propiciando a compreensão e interiorização do torto da sua conduta e levando-a a adotar um comportamento conforme às normas consensualizadas pela comunidade.

Recorde-se que a suspensão se insere num conjunto de medidas não institucionais que não determinam a perda da liberdade física, mas importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida do condenado e, por isso, embora funcionem como substitutivas da prisão, não podem ser vistas como formas de clemência ou graça. Constituem penas com pressupostos perfeitamente definidos e controláveis, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos. Além disso, a suspensão da execução da pena de prisão visa afastar o delinquente da criminalidade sob ponderação dos inevitáveis efeitos negativos da reclusão (quebra das ligações familiares e outras, perda de emprego, efeito estigmatizante, exposição ao contágio criminal, etc.). Outrossim, o prognóstico favorável - formulado no momento da decisão e não ao da prática dos crimes - não é um juízo de certeza, envolvendo sempre uma margem de risco perfeitamente aceitável no presente caso visto que o perfil criminológico da arguida está muito longe do traçado para o típico sexual offender.

Pelas mesmas razões, não se justifica a condenação da arguida nas penas acessórias previstas nos artigos 69.°-B e 69.°-C do Código Penal.

Resta acrescentar que a eficácia da suspensão da execução da pena é reforçada pela imposição obrigatória de regime de prova - artigo 53°, n.° 4, do Código Penal.

IV–DISPOSITIVO

PELO EXPOSTO E DECIDINDO, ESTE TRIBUNAL


1.–JULGA a acusação procedente, por provada e, consequentemente, CONDENA a arguida AA como autora material e em concurso efetivo, verdadeiro ou puro de crimes (artigo 30.°, n.° 1, do Código Penal), de dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelas disposições conjugadas dos artigos 173.°, n.° 1, alínea a), 170.° e 177.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, nas duas penas parcelares de 1 (uni) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
2.–CUMULA juridicamente ambas a penas parcelares impostas na alínea anterior e CONDENA a mesma arguida na pena conjunta de 2 (dois) anos de prisão, cuja execução SUSPENDE pelo período de 3 (três) anos, com sujeição a regime de prova - artigos 50.°, n.ºs 1 e 5, e 53.°, n.° 3, do Código Penal.
3.–INDEFERE o requerimento de aplicação à arguida AA das penas acessórias de proibição de contacto com a ofendida CC, incluindo o afastamento da residência desta (artigo 152.°, n.°s 4 e -5, do Código Penal); de proibição de exercer emprego, funções ou atribuições públicas cujo exercício envolva o contacto regular com menores (artigo 69.°-B, n.° 2, do Código Penal); e de proibição de assumir a confiança da menor e de inibição do exercício das responsabilidades parentais relativamente à menor ofendida (artigo 69.°-C, n.ºs 2 e 3, do Código Penal).
4.–INDEFERE o arbitramento de indemnização a favor das ofendidas CC e DD (cf. supra).

(...)

V–Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no seu parecer veio dizer, em conclusão, sentido de se proceder à:

1.-Correção da sentença recorrida, por lapso manifesto, nos termos do art. 380°, n° 1, b) e n° 2, do C. P. Penal, sendo que na parte dispositiva em 1, onde se lé 173°, n° 1, alínea a) passe a dizer-se 171°, n° 3, alínea a);
2.-No mais, da manutenção da sentença recorrida, pugnando-se pela improcedência do recurso.

VI– Cumpre decidir.


1.–O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na CJ (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).

2.–O recurso será julgado em conferência, atento o disposto no art.º 419.º n.º 3 alínea c) do C.P.Penal, a contrario.
3.–A arguida veio recorrer restrita matéria de direito pugnando, em suma, se altere a medida da pena única, fixando a sua condenação na pena única de 1 anos e 4 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo.
4.–É de verificação oficiosa os vícios constantes do art.º 410.º n.ºs 2 e 3 do C.P.Penal , que no caso se não constatam ,como se verá.
Recorde-se que a norma respeita aos vícios da decisão, verificáveis pelo mero exame do seu (dela, decisão) próprio texto, ou por esse exame conjugado com as regras da experiência comum. Por outras palavras, elementos estranhos à decisão não podem ser invocados ou chamados a fundamentar esses vícios que, repete-se, têm de resultar do próprio texto, e apenas deste.
Da leitura da sentença recorrida ressalta a enorme clareza do texto e do sentido da decisão. Clareza que resulta desde logo da simplicidade factual e jurídica do caso, não existindo a mais ténue obscuridade ou contradição. Trata-se de um texto integralmente lógico, bem estruturado e devidamente fundamentado.
Percorrida a decisão recorrida constata-se não ocorrerem os vícios de erro notório na apreciação da prova, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e da decisão.

Com efeito, a decisão não enferma de qualquer dos vícios do n° 2 do art. 410° do CPP.

5.–Da qualificação jurídico-penal.

A arguida foi condenada pela prática, em autoria material e concurso real, de dois crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelos arts. 173° n° 1 al. a), 170° e 177° n° 1 al. a), do Código Penal, e mas duas penas parcelares de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, e em cúmulo jurídico das penas parcelares na pena conjunta de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na respetiva execução pelo período de 3 (três) anos, com sujeição a regime de prova - arts. 50° ns° 1 e 5 e 53°, n° 3, do Código Penal.
Na parte dispositiva em 1, onde se lê 173°, n° 1, alínea a) do Código Penal, por lapso evidente, como resulta da leitura do próprio texto da sentença recorrida, se queria dizer 171°, n° 3, alínea a) do Código Penal, o que se corrige nos termos do art. 380°, n° 1, b) e n° 2, do C. P. Penal.


Encontram-se verificados os elementos objectivos e subjectivos que permitiram condenar a arguida pela prática, em autoria material, e em concurso real, dos mencionados crimes, com a correcção agora efectuada.

6.–Da medida da pena.


Tendo a arguida praticado factos típicos, ilícitos e culposos e não se encontrando reunidos os pressupostos da dispensa de pena, impõe-se a aplicação de penas, como consequência jurídica da prática dos crimes.
A determinação da medida da pena continua compreendida dentro da faculdade discricionária do juiz (Cavaleiro Ferreira, “Boletim dos Institutos de Criminologia”, 64) após a subsunção dos factos aos preceitos penais e respeitando os pressupostos a que se refere o artigo 71.º do Código Penal.
E um dos princípios basilares do Direito Penal reside na compreensão de que toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.
São importantes as necessidades de prevenção geral e especial positivas e negativas, face à proliferação de crimes de abuso sexual de menor que causam grande alarme social e insegurança da sociedade, sendo também necessário reforçar a confiança dos cidadãos no funcionamento da justiça.
Sendo finalidades das penas, a protecção de bens e valores jurídicos e a reintegração do agente delituoso na sociedade (prevenção geral e prevenção especial, respectivamente), há que buscar um ajustado equilíbrio entre elas, equilíbrio esse que não inibe que, perante o caso concreto, uma dessas finalidades possa e deva prevalecer sobre a outra.
Relativamente à medida da pena, atente-se naquilo que a esse respeito se refere no Ac. do S.T.J. de 6/05/1998 in B.M.J. n°477, p.100:
"1- Sendo a culpa, o juízo de censura dirigido ao agente pela conduta que livremente assumiu, na definição da medida da pena cumpre ter presente que não há pena sem culpa e que a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa.
2- As exigências da prevenção geral, considerada esta como prevenção positiva ou de integração, definem o limite mínimo da medida concreta da pena.
3- A prevenção especial, no sentido positivo de reintegração do agente na sociedade determina a fixação da medida concreta da pena num "quantum" situado entre o limite mínimo exigido pela prevenção geral e o máximo ainda adequado à culpa."

Contra a arguida há a considerar a gravidade objectiva e subjectiva dos factos; a ilicitude é elevada, como o é o grau de culpa.
Como acima se expôs, face às finalidades das penas, em caso algum pode a pena ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º n.º 2 do C.Penal).

Assim, a decisão recorrida ponderou, além da inexistência de arrependimento:
“No caso, do ponto de vista geral, evidenciam-se dois vetores antinómicos: em sentido agravante, um vetor relacionado com os laços filiais entre a agente do crime e as vítimas e a duração ou prolongamento, por vários anos, da conduta ilícita, mesmo após a arguida ter sido alertada - pelo menos, pela ofendida CC e pela sua avó materna - para as consequências nefastas experienciadas pelas filhas - angústia, tensão, perturbação psicológica, ansiedade, mal-estar geral e tristeza. Em sentido antinómico, um vetor atenuante referido, por um lado, às condições de vida do agregado, nomeadamente em matéria habitacional, pois todas as residência familiares se caracterizavam pela reduzida área útil, a que se juntava nalguns casos, a ausência de portas nas divisões, dificultando ao casal a fruição reservada e privada da sua sexualidade; e, por outro lado, atinente a algumas características da personalidade da arguida, com incidência sobre a inexigibilidade (ou exigibilidade) de outra conduta.

(...)
Em matéria de prevenção especial, de notar que a arguida não averba antecedentes criminais e se encontra inserida profissional e economicamente, sendo modesta a sua condição social; já do ponto de vista familiar é patente alguma disfuncionalidade, porventura presente desde fases precoces da sua vida e hoje persistente na relação com a sua mãe eespecialmente com a filha CC - cuja regeneração se antevê tarefa complexa. Revela-se, em suma, uma necessidade (re)socializadora com alguma premência em matéria educacional-sexual (sem que isso possa coenvolver, sublinha-se, a imposição de uma qualquer moral sexual alegadamente correta ou apropriada ou aprovada pela maioria da população, pois esta é matéria totalmente alheia ao Direito Penal).
Não parece, ou pelo menos nada se provou nesse sentido, que a exposição das filhas do casal às práticas sexuais dos pais obedecesse a uma qualquer finalidade libidinosa, pervertida ou obscena para cujo atingimento as menores fossem instrumentalizadas, manipuladas ou usadas.”

Assim a decisão recorrida observou todos os elementos a que se referem os art.º 40.º 70.ºe 71.º todos do Código Penal, condenando a arguida em duas penas parcelares de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, no que decidiu com acerto.

7.–Do concurso de crimes e da pena única.


Em cúmulo jurídico daquelas penas parcelares o tribunal a quo condenou a arguida na pena única de 2 (dois) anos de prisão.
Tendo-se encontrado as penas parcelares relativas aos ilícitos referidos, cumpre agora proceder à determinação de uma pena única, considerando em conjunto os factos e a personalidade do agente, nos termos do art. 77º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
Assim, o limite mínimo da pena aplicável corresponde à pena máxima concretamente aplicada, e o limite máximo corresponde à soma das penas parcelares encontradas.
Como entende o Supremo Tribunal de Justiça, face ao disposto no art. 77º do Código Penal (cfr., por todos, os Acórdãos de 11 de Janeiro de 2001, Processo n.º 3095/00-5, de 4 de Março de 2004, Processo n.º 3293/04-5, e de 12 de Julho de 2005, todos in www.dgsi.pt), a pena única a estabelecer em cúmulo deve ser encontrada numa moldura penal abstracta, balizada pela maior das penas parcelares abrangidas e a soma destas, e na medida dessa pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, com respeito pela pena unitária. Na verdade, o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário, mas a personalidade traduzida na condução de vida, em que o juízo de culpabilidade se amplia a toda a personalidade do autor e ao seu desenvolvimento, também manifestada de forma imediata a acção típica, isto é nos factos.

Esse critério, conforme salienta Figueiredo Dias, consiste em apurar se “numa avaliação da personalidade – unitária - do agente”, o seu percurso de delinquência “é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma carreira») criminosa” e não a uma “pluriocasionalidade que não radica na personalidade (...)” (in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, pág. 291).

Os crimes cometidos são de alguma gravidade por terem colocado em causa a saúde física e mental das mencionadas crianças.

Tendo em atenção o disposto no artigo 77.°, n° 2, do Código Penal, deverá ser construída uma moldura penal com um limite mínimo 1 ano e 4 meses de prisão e o limite máximo de 2 anos e 8 meses de prisão, onde o Tribunal deverá ter em conta os factos e a personalidade do agente, ou, como refere Figueiredo Dias, "a gravidade do ilícito global perpetrado", apontando este autor como critério avaliativo a seguir o da "conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique". Para além de uma "avaliação da personalidade unitária" reconduzíve1 ou não a uma tendência criminosa ("Direito Penal Português", As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 421).

Considerando as circunstâncias dos factos, os crimes cometidos e a personalidade da arguida evidenciada nos autos sem esquecer a culpa e as necessidades de prevenção, entende este tribunal como ajustada a aplicação da pena única fixada na 1.ª instância.

8.– Sobre a suspensão de execução da pena.


A arguida foi condenada na pena única de 2 (dois) anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, com sujeição a regime de prova - arts. 50° ns° 1 e 5 e 53°, n° 3, do Código Penal.
Nos termos do disposto no art.º 50.º, n.º 1 do Código Penal “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

“Ora, no caso, a ausência de antecedentes criminais, o enquadramento profissional e familiar, a circunstância de o risco de repetição das condutas criminosas se encontrar fortemente atenuado - desde logo, porque a menor CC se encontra confiada à guarda e aos cuidados da avó materna - e as características específicas dos crimes (em particular o contexto psicossociológico e a ausência de motivos excessivamente censuráveis (v.g., satisfação da libido da arguida, instrumentalização das vítimas para esse efeito), autorizam a prognose de que a suspensão da execução da pena permitirá uma adequada satisfação das exigências preventivas e de reintegração (artigo 40° Código Penal). Ou seja, a "censura do facto e a ameaça" de cumprimento de uma pena de prisão constituirão uma suficiente advertência para a arguida, propiciando a compreensão e interiorização do torto da sua conduta e levando-a a adotar um comportamento conforme às normas consensualizadas pela comunidade.” (da decisão recorrida).

A sujeição da suspensão com a sujeição a regime de prova - arts. 50° ns° 1 e 5 e 53°, n° 3, do Código Penal, reforça as necessidades de prevenção geral e especial.
Foi correctamente ponderada e decidida a suspensão de execução da pena única aplicada, pelo que nada há a censurar.

Registe-se a correcção acima efectuada:
Na parte dispositiva em 1, onde se lê 173°, n° 1, alínea a) do Código Penal, por lapso evidente, como resulta da leitura do próprio texto da sentença recorrida, se queria dizer 171°, n° 3, alínea a) do Código Penal, o que se corrige nos termos do art. 380°, n° 1, b) e n° 2, do C. P. Penal.

Não foram violadas quaisquer normas legais ordinárias e/ou constitucionais maxime o art.º 32.º da CRP, nem prejudicado o direito de defesa da arguida.

VII–Termos em que, negando provimento ao recurso interposto pela arguida, se confirma a decisão recorrida, com a correcção supra descrita.

Custas pela arguida, sendo de 3UC a taxa de justiça.

(Acórdão elaborado e revisto pelo relator- vd. art.º 94 º n.º 2 do C.P.Penal)

Lisboa, 11 de fevereiro de 2021

(Fernando Estrela)
(Guilherme Castanheira

Decisão Texto Integral: