Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3604/22.7T8LRS.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: GUERRA NA UCRÂNIA
MINISTÉRIO PÚBLICO
PROTECÇÃO DA CRIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Nos termos do disposto na al. b), do n.º 2, do art.º 106.º e do art.º 111.º, da LPCJP o arquivamento de processo de promoção e proteção, em que é autor o Ministério Público, logo ao nível do despacho liminar impõe ao tribunal a formulação de um juízo substantivo sobre o conteúdo do mesmo processo, incidindo diretamente sobre o seu objecto e pressupondo 1) a desnecessidade da medida requerida e que 2) a situação de perigo não esteja comprovada ou estando comprovada já não subsista.
2. Não preenche tais pressupostos, devendo o processo prosseguir os seus termos, a situação de uma menor, nascida a 13 de junho de 2004, cidadã ucraniana, que se encontra em Portugal atento o estado de guerra naquele país, onde permanecem os seus pais e restante família, estando acompanhada de outra cidadã ucraniana, nascida a 25 de maio de 1985, com a qual não tem vínculo familiar, tendo solicitado proteção temporária e necessitando, por isso, de aplicação de medida que a afaste do perigo em que se encontra.
3. Tendo o Ministério Público exarado na sua petição as razões pelas quais entendeu que se mostrava necessária a intervenção do tribunal, assim cumprindo o ónus que lhe é imposto para a introdução da matéria em tribunal, a sua decisão ao suscitar a ação do tribunal é da sua exclusiva competência, não podendo ser sindicada pelo tribunal no despacho liminar, proferido nos termos do disposto no art.º 111.º da LPCJP.
4. A ação do Ministério Público exercida na prossecução das suas atribuições previstas no art.º 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e no art.º 4.º, n.º 1, als. a) e i) do seu estatuto, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, e concretizadas, entre outros, nos art.ºs 72.º, 73.º e 105.º, da LPCJP, não está sujeita a qualquer condição, nomeadamente de esgotamento da ação das entidades administrativas que exercem a sua ação na área da promoção e proteção, da qual não é subsidiária, nem está dependente.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.
O Ministério Público, invocando o disposto nos artigos 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea d); 11.º, alínea c); 72.º, n.º 3; 73.º, n.º 1, al. b), 79.º, nº 1; 101.º, nº 1 e 105.º, n.º 1 da Lei n.º 147/99 de 1 de setembro e 2.º e 4.º, al. i) do Estatuto do Ministério Público, requereu a abertura de processo judicial de promoção e protecção em relação a Valeriia …, nascida a 13-6-2004, cidadã Ucraniana, com fundamento em síntese, em que a mesma se encontra em Portugal, em virtude do estado de guerra naquele país, no qual permanecem os seus pais e restantes familiares, estando acompanhada de uma cidadã ucraniana, nascida a 25-5-1985, com a qual não tem vínculo familiar, tendo já solicitado protecção temporária nos termos do disposto Resolução do Conselho de Ministros nº 29-A/2022, de 1 de março, alterada pela RCM nº 29-D/2022, de 11 de março em Portugal, necessitando de aplicação de medida que a afaste do perigo em que se encontra.
O tribunal a quo indeferiu liminarmente a petição com fundamento, em síntese, em que só depois da intervenção das entidades responsáveis, previstas nos art.ºs 7.º e 4.º da LPCJP se poderá ponderar da necessidade da intervenção do tribunal.
Inconformado com essa decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a substituição por outra que determine a abertura de instrução e a realização de diligências previstas nos artigos 106.º n.º 1 e n.º 2 e 107.º da LPCJP, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
I - A representação, defesa e promoção dos direitos e interesses das crianças e dos jovens constitui uma área de intervenção do Ministério Público, concretizada nos artigos 4.º n.º1 e 9.º do Estatuto aprovado pela Lei n.º 68/2019 de 27.08 e em diversos diplomas, no Código Civil, no artigo 17.º do RGPTC e na Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), por referência ao artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa.
II – Em 2.04.2022 com vista a assegurar o superior interesse da jovem, entendendo que a mesma se encontra em perigo e a carecer da aplicação de uma medida de promoção e protecção, o Ministério Público deu entrada em Juízo do processo judicial de promoção e protecção.
III – Em 8.04.2022 foi proferida decisão judicial em que se considerou ter ocorrido violação entre outras normas dos artigos 4.º al. K e11º da LPCJP, violação do princípio da subsidiariedade e da intervenção mínima e indeferiu liminarmente a petição inicial, determinado o arquivamento dos autos, por não ser legalmente admissível a propositura da mesma em conformidade com o disposto nos arts. 4º., 5º alínea d), 7º, 8º e 11º, 106.º, n.º 2 al. b) e 111.º, todos da L.P.C.J.P.
IV - Estamos perante um processo de promoção e protecção que tem por objecto a promoção dos direitos e protecção da jovem Valeriia ..., nascida em 13.06.2004, filha de ... Serhii e de ... Nataliia, que residia com os seus pais na Ucrânia, donde é natural e nacional, por forma a garantir o seu bem-estar e o desenvolvimento integral – artigo 1.º da LPCJP.
V- Por via doesta do de guerra que assola a Ucrânia e a fim de buscar protecção e segurança, a jovem deslocou-se para Portugal, onde entrou em 11-3-2022, ficando os seus pais e demais familiares na Ucrânia.
VI – Viajou acompanhada da cidadã ucraniana Kateryna ..., nascida a 25-5-1985, com a qual não tem qualquer vínculo familiar.
VII - A menor, desacompanhada dos seus progenitores ou legais representantes legais, apresentou-se junto dos Serviço de Estrangeiros e Fronteiras a fim de solicitar protecção temporária nos termos do disposto na Resolução de Conselho de Ministros n.º29-A/2022 de 1.03, alterada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º29-D/22 de 11.03.
VIII – A jovem encontra-se desacompanhada dos seus pais, seus legais representantes, aos cuidados de uma pessoa com a qual não tem qualquer vínculo familiar, que se encontra desempregada e sem rendimentos económicos, ambas alojadas em casa de terceiro, na Rua São ..., ….
IX - A jovem está na prática entregue a si própria, não conhece a língua portuguesa e não recebe os cuidados adequados à sua idade e situação pessoal, situação legitimadora da intervenção.
X - Atendendo à situação da jovem, urgindo acautelar os seus direitos e superior interesse, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, torna-se urgente, adequada e necessária a aplicação a titulo provisório da medida cautelar de promoção e protecção de Apoio junto de Pessoa Idónea, nos termos dos artigos 35.º n.º 1 alínea c) e 37.º da LPCJP ou outra que melhor se adequa à sua situação.
XI -Considerando a menoridade e o facto de não estar acompanhada de um legal representante, importa ainda que lhe seja nomeado um curador para os efeitos previstos no artigo 18.º n.º1 e n.º 2 da Lei n.º 67/2003 de 23.08, artigo 67.º do RGPTC e artigo 16.º e 17.º do Código de Processo Civil, nada impedindo que tal nomeação tenha lugar no âmbito do próprio processo de promoção e protecção, à semelhança do procedimento que lugar no nosso país para salvaguardar a situação jurídica dos jovens oriundos do Afeganistão e Síria no âmbito do programa europeu, ao qual Portugal aderiu, designado “Recolocação de Menores Não Acompanhados” (Recolocation for Unaccompanied Minors) ao abrigo do artigo 13.º do Regulamento (CE) n.º2201/2003 do Conselho de 27.11.2003, n.º 2 do artigo 17º do Regulamento (UE) N. o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junhode2013, Convenção sobre os Direitos da Criança, Convenção relativa à Competência, à Lei aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças, adoptada em Haia em 19.10.1996, aprovada pelo Decreto n.º52/2008 de 13.11 e publicado no DR, I Série, n.º 221, de 13.11.2008, nomeando-se um curador para os efeitos previstos no artigo 79.º da Lei de Asilo - Lei n.º27/2008 de 30.06 na redacção dada pela Lei n.º26/2014 de 05.05 e artigo 16.º e 17.º do Código de Processo Civil.
XII – A sociedade e o Estado têm o especial dever de desencadear as acções adequadas à protecção da criança vítima de violência, abuso sexual, exploração, abandono ou tratamento negligente ou por qualquer outra forma privada de um ambiente familiar normal nos termos do artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa.
XIII - A Lei de Promoção e Protecção tem por objecto a promoção dos direitos das crianças e jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, visando proteger os seus direitos individuais, sociais, económicos e culturais.
XIV - A Lei adota os princípios enunciados pela Carta das Nações Unidas, que reconhece a dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH que reconhece que a infância tem direito a ajuda e assistências especiais.
XV – A Lei de Protecção de Criança e Jovens em Perigo aprovada pela Lei n.º 147/99 de 1.09 aplica-se às crianças e jovens em perigo que residam ou se encontram em território nacional, ou seja, independentemente da sua nacionalidade ou da conexão do caso concreto com outros Estados e respectivos ordenamentos jurídicos – artigo 2.º.
XVI - Prescreve o Artigo 3.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo - Lei n.º147/99 de 01.09 com a última alteração pela Lei n.º26/2018 de 5.07, com a epígrafe Legitimidade da intervenção:
“1 - A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.
2 - Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:
i) Está abandonada ou vive entregue a si própria;
j) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;
k) Não recebe os cuidados ou a afeição adequada à sua idade e situação pessoal;
l) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;
m) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;
n) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
o) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.
p) Tem nacionalidade estrangeira e está acolhida em instituição pública, cooperativa, social ou privada com acordo de cooperação com o Estado, sem autorização de residência em território nacional.”
XVII - Nos presentes autos está em causa a aplicação do artigo 3.º n.º 1 e n.º 2 alíneas d) e h) da LPCJP.
XVIII - As crianças estrangeiras acolhidas em Portugal, e sem autorização do nosso Estado para aqui residirem, só por esse facto, vivenciam uma situação de perigo.
XIX - Dada a sua situação, a jovem encontra-se impedida de frequentar determinados cursos curriculares, estar inscritos em actividades desportivas, ter acesso a cuidados de saúde e ter acesso a prestações sociais por não terem autorização de residência.
XX - A regularização da sua situação depende de autorização dos seus pais, seus legais representantes, que atendendo ao cenário de guerra no seu país natal, se encontram ausentes e impedidos de exercerem o seu papel, desconhecendo-se se os mesmos se encontram em segurança, desconhecendo-se o seu paredeiro actual, tornando-se impossível o seu contato ou o envio de cartas para tratar da situação da jovem Valeriia ... para os convocarem e participarem em actos para prestarem o seu consentimento ou para serem citados em processos tutelares cíveis.
XXI – Os fluxos migratórios com origem no cenário de guerra em curso na Ucrânia motivou a Resolução do Conselho de Ministro n.º29-A/2022, a qual decorreu da Lei n.º67/2003 de 23.08 que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva 2001/55/CE do Conselho de 23.08 relativa às normas mínimas em matéria de concessão de proteção temporária no caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas e a medidas tendentes a assegurar uma repartição equilibrada do esforço assumidos pelos Estados-Membros ao acolherem estas pessoas e suportarem as consequências desse acolhimento.
XXII – Ao abrigo do referido regime legal encontra-se prevista a atribuição de protecção temporária, com atribuição automática de autorização de residência, pelo período de um ano, aos cidadãos nacionais da Ucrânia provenientes do seu país de origem que não possam regressar em consequência da situação de guerra que aí corre, podendo os beneficiários apresentar um pedido de asilo.
XXIII – No caso das crianças, encontra-se previsto que lhes seja facultado o acesso ao sistema de ensino público
XXIV - O artigo 18.º n.º1 da referida Lei n.º 67/2003 com a epigrafe menores não acompanhados prevê que o Estado providencie a necessária representação por tutor legal, ou se for caso disso, por uma organização responsável pelos cuidados e pelo bem-estar dos mesmos ou por outra representação adequada.
XXV - O n.º2 do artigo 18.º estabelece ainda que durante o período de protecção temporária, as crianças não acompanhadas sejam colocadas junto de familiares adultos, em família de acolhimento, em centros de acolhimento com instalações especiais para jovens ou junto da pessoa que cuidou do menor aquando da fuga.
XXVI - Trata-se de um regime especial, com carácter excepcional, o previsto no artigo 18.º, reportado especificamente aos menores estrangeiros não acompanhados e que integra as vertentes de representação e do acolhimento.
XXVII - Após a entrada em vigor da referida Resolução foram estabelecidos contactos para definição de procedimentos, entre as diversas entidades envolvidas, o ISSS, o Alto Comissariado para as Migrações, a SCML, a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens e Perigo, o SEF, o Grupo de Família e Crianças e Jovens da PGR e pelo Ponto de Contacto da Rede Judiciária Europeia em Matéria Cível, prevendo-se que no caso de crianças e jovens não acompanhados, como é o presente caso, tal situação seria diretamente comunicada ao MP para propositura de processo de promoção e protecção e definição da representação da criança em causa em razão do preceituado no artigo 1.º da Lei n.º67/2003 de 30.06.
XXVIII – Na sequência da definição do procedimento a ter lugar a CNPDPCJ emitiu a Directiva n.º1/2022 onde relativamente à situação das crianças não acompanhadas determinou que nos referidos casos deverão as CPCJ, que tenham conhecimento de tal situação, proceder à comunicação, no mais curto período de tempo e pela forma mais ágil e eficaz ao Ministério Público, com competência na área de Família e Menores, fazendo tal comunicação do máximo de elementos que permitam a identificação (incluindo local de residência da criança) e da pessoa com a qual, de facto, se encontra para este tomar as providências legais.
XXIX - A aplicação das medidas de promoção e protecção visam afastar o perigo em que a criança ou jovem se encontrem, proporcionar-lhes as condições que permitem proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral e garantir a recuperação física e psicológica das crianças vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso. – artigo 34.º alíneas a) b) e c) da LPCJP.
XXX - O artigo 4.º da LPCJP consagra os princípios orientadores da intervenção, em matéria de promoção dos direitos e protecção das crianças, os quais, como é óbvio, estão intimamente relacionados com alguns dos direitos fundamentais reconhecidos às crianças (que aqueles princípios visam concretizar) e que o legislador ali expressamente quis referir, sendo um dos mais importantes o princípio do superior interesse da criança ou do jovem, devendo a intervenção judiciária atender prioritariamente aos interesses e direitos supremos da criança ou jovem, internacional, constitucionalmente e legalmente consagrados.
XXXI - Prescreve o artigo 9.º n.º1 da LPCJP que a intervenção da CPCJP depende do consentimento expresso e prestado por escrito dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto, consoante o caso.
XXXII - Nos termos do n.º2 do referido artigo é referido que a intervenção das CPCJ depende do consentimento de ambos os progenitores, ainda que o exercício das responsabilidades parentais tenha sido confiado exclusivamente a um deles, desde que estes não estejam inibidos do exercício das responsabilidades parentais.
XXXIII – Tratando-se de uma criança estrangeira não acompanhada, desconhecendo-se a situação dos seus pais que permaneceram na Ucrânia em cenário de guerra, a obtenção do consentimento dos seus legais representantes para a intervenção não se mostraria possível.
XXXIV - Dispõe o artigo 11.º n.º 1 alínea c) da LPCJP que a intervenção judicial tem lugar quando seja não prestado o consentimento necessário.
XXXV – Encontra-se consagrado nos termos do n.º 2 do referido preceito legal que a intervenção judicial tem ainda lugar quando atendendo à gravidade da situação de perigo, o Ministério Público, oficiosamente, entenda de forma justificada que no caso concreto não se mostra adequada a intervenção da CPCJ.
XXXVI - Conforme referido na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 339/XII que procedeu à segunda alteração da CPCJ introduzida pela Lei n.º142/2015 de 8.09, DAR II Série A n.º139/XII/4 2015.05.28 (pág. 71-133) e ainda a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada e Comentada, Tomé D´Almeida Ramião, 9.ª Edição, Maio 2019, Quid Juris, pág. 60“( ..) reconhecendo-se que as circunstâncias do caso concreto possam, em qualquer caso, aconselhar a intervenção mais fortalecida do tribunal, cria-se uma válvula de escape do sistema, nos termos em que se reserva sempre ao Ministério Público, representante supremo da defesa dos direitos das crianças e jovens em perigo, o juízo de oportunidade, relativo à intervenção judicial de promoção e protecção, mesmo nos casos em que estariam reunidos os pressupostos para a intervenção da comissão de protecção”.
XXXVII - O artigo 11.º da LPCJP após a introdução da Lei n.º 142/2015 prevê várias situações em que se impõe a intervenção judicial, e assim, derroga o princípio da subsidiariedade, ultrapassando-se os obstáculos a uma intervenção célere e eficaz das comissões de protecção e criança e jovens, decorrentes da necessidade de realizar diligências e obter consensos com quem se encontra ausente, incontactável e impossibilitado de o prestar na prática.
XXXVIII - Nestes casos, devidamente justificados, a intervenção judicial ocorre a requerimento do Ministério Público por sua iniciativa (..) conforme referido no Comentário à Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Procuradoria-Geral do Porto, Almedina, 2020, pág. 105.
XXXIX – Foi fazendo uso dessa faculdade que o Ministério Público agiu em defesa dos interesses da jovem em causa.
XL - As crianças têm o direito fundamental à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral – artigo 69.º da CRP e Convenção dos Direitos da Criança adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20.11.1989, assinada por Portugal em 26.01.90, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90 de 12.09 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º49/90, ambos publicados no DR I Série n.º 211/90 de 12.10.90.
XLI - A decisão proferida não respeitou o princípio superior interesse da jovem e ao arrepio do mesmo determinou o arquivamento dos autos por considerar que se mostram violados os princípios da intervenção mínima e princípio da subsidiariedade previstos no artigo 4.º alíneas d) e k) da LPCJP, não atendendo ao disposto no artigo 11.º n.º 2 da LPCJP.
XLII - Mostra-se evidente que estando os progenitores ausentes, em cenário de guerra, qualquer diligência da CPCJ para recolher o seu consentimento expresso e por escrito e para celebrar um acordo de promoção e protecção a favor da jovem, na língua portuguesa que não entendem, não teria qualquer resultado em tempo útil para assegurar os interesses da jovem.
XLIII – No presente caso, o tribunal a quo deveria ter proferido despacho de abertura de instrução e determinar a realização de diligências previstas nos artigos 106.º n.º1 e n.º2 e 107.º da LPCJP.
XLIV - A decisão recorrida violou flagrantemente os direitos e interesses da jovem e o disposto nos artigos 3.º n.º 1 e n.º2, 4.º alínea a), 5.º alínea a), 11.º n.º1 e n.º 2, 34.º, 35.º n.º1 alínea c), 37.º, 43.º, 106.º n.º 2 alínea a), b), 107.º, artigo 18.º n.º1 e n.º 2 da Lei n.º 67/2003 de 23.08, artigo 67.º do RGPTC e artigo 16.º e 17.º do Código de Processo Civil, artigos 28.º, 29.º, 30.º da Convenção sobre os Direitos de Criança (Resolução da assembleia da República n° 20/90, D.R. I Série, n°211, de 12.9.90),
XLV - Termos em que, nos melhores de direito, e com o mui douto suprimento de V. Exas Venerandos Juízes Desembargadores, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e em consequência, revogar-se a douta decisão proferida recorrida, substituindo-a por outra que determine a abertura de instrução e a realização de diligências previstas nos artigos 106.º n.º1 en.º2 e 107.º da LPCJP e designada data para audição da jovem, diligenciando-se previamente pela nomeação e presença de tradutor/interprete na referida diligência com vista a assegurar os seus interesses, aplicar a medida cautelar de promoção e protecção de Apoio junto de Pessoa Idónea, nos termos do artigo 35.º n.º1 alínea c) e37.º da LPCJP e ainda nomear como legal representante da jovem, designadamente para os efeitos do disposto no artigo 67.º do RGPTC, artigo 16.º e 17.º do Código de Processo Civil, artigo 18.º n.º1 da referida Lei n.º67/2003 de 23.08 a cidadã ucraniana Kateryna ..., nascida a 25-5-1985 com as legais consequências.
2. FUNDAMENTAÇÃO.
A) OS FACTOS.
A matéria de facto a considerar é a acima descrita, sendo certo que a questão submetida a decisão deste tribunal se configura, essencialmente, como uma questão de direito.
B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, a questão submetia ao conhecimento deste Tribunal da Relação pelo apelante consiste, tão só, em saber se o tribunal a quo podia rejeitar liminarmente o processo, como fez, ou se devia ter recebido o processo e praticar os atos necessários a acautelar a situação de perigo descrita na petição do Ministério Público, como este pretende.
Vejamos.
A competência do tribunal a quo para o despacho liminar do processo de promoção e proteção é a estabelecida pelo art.º 106.º, n.º 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro, no qual pontifica a al. b), invocada pelo tribunal para indeferir liminarmente a petição inicial e ordenar o arquivamento dos autos.
A norma da al. b), do n.º 2, o art.º 106.º da LPCJP estabelece que “Recebido o requerimento inicial, o juiz … se considerar que dispõe de todos os elementos necessários:

b) Decide o arquivamento do processo, nos termos do artigo 111.º”.
Por sua vez, dispõe o art.º 111.º da LPCJP, sob a epígrafe “arquivamento”, que “O juiz decide o arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação de medida de promoção e proteção, podendo o mesmo processo ser reaberto se ocorrerem factos que justifiquem a referida aplicação”.
Como decorre deste preceito legal, o arquivamento do processo de promoção e proteção logo ao nível do despacho liminar impõe ao tribunal a formulação de um juízo substantivo sobre o conteúdo do mesmo processo, incidindo diretamente sobre o seu objecto e pressupondo 1) a desnecessidade da medida requerida e que 2) a situação de perigo não esteja comprovada ou estando comprovada já não subsista.
No caso sub judice a inexistência de tais pressupostos para o arquivamento resulta da exegese da petição inicial do Ministério Público, é complementada pelo mais aduzido nas alegações de recurso e é comprovada pela própria decisão do tribunal a quo quando, depois de ordenar o arquivamento, manda remeter “… cópia da petição inicial e expediente que a acompanha à CPCJ a fim de aí sinalizar a jovem nos termos e para os devidos e legais efeitos”.
A decisão de arquivamento configura-se, assim, em substância, não como um arquivamento por desnecessidade de medida e do processo, mas como uma espécie de incompetência, por preterição da intervenção prévia da entidade administrativa a que a mesma decisão se reporta e cuja ação sugere.
Ora, uma tal decisão carece de fundamento legal, não podendo o mesmo inferir-se dos princípios orientadores da intervenção, estabelecidos pelo art.º 4.º da LPCJP, nem da Intervenção de entidades com competência em matéria de infância e juventude estabelecido pelo art.º 7.º da mesma Lei.
Aliás, a competência direta do tribunal para a apreciação da situação de perigo descrita na petição inicial, resulta diretamente do disposto no art.º 11.º da LPCJP que, sob a epígrafe “Intervenção judicial”, prevê nas als. b), c) e d), do n.º 1, as situações descritas na petição inicial que exigem a “intervenção judicial”, por contraposição à “intervenção administrativa” expressamente excluída.
A competência do tribunal a quo para a tramitação e decisão da situação de perigo descrita na petição do Ministério Público resulta também do disposto no n.º 2, do art.º 11.º, da LPCJP, o qual dispõe que “A intervenção judicial tem ainda lugar quando, atendendo à gravidade da situação de perigo, à especial relação da criança ou do jovem com quem a provocou ou ao conhecimento de anterior incumprimento reiterado de medida de promoção e proteção por quem deva prestar consentimento, o Ministério Público, oficiosamente ou sob proposta da comissão, entenda, de forma justificada, que, no caso concreto, não se mostra adequada a intervenção da comissão de proteção”.
Com efeito, tendo o Ministério Público exarado na sua petição as razões pelas quais entendeu que se mostrava necessária a intervenção do tribunal, assim cumprindo o ónus que lhe é imposto para a introdução da matéria em tribunal, a sua decisão ao suscitar a ação do tribunal é da sua exclusiva competência, não podendo ser sindicada pelo tribunal, no despacho liminar, proferido nos termos do disposto no art.º 111.º da LPCJP.
A este propósito importa, ainda, referir que a ação do Ministério Público exercida na prossecução das suas atribuições previstas no art.º 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e no art.º 4.º, n.º 1, als. a) e i) do seu estatuto, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto e concretizadas, entre outros, nos art.ºs 72.º, 73.º e 105.º, da LPCJP, não está sujeita a qualquer condição, nomeadamente de esgotamento da ação das entidades administrativas que exercem a sua ação na área da promoção e proteção, da qual não é subsidiária, nem está dependente,
 Procede, pois, a apelação, devendo revogar-se a decisão recorrida e ordenar-se o prosseguimento do processo de promoção e proteção para conhecimento da situação de perigo descrita na petição inicial e prolação de decisão em conformidade com o requerido e o interesse da menor.
C) SUMÁRIO
1. Nos termos do disposto na al. b), do n.º 2, do art.º 106.º e do art.º 111.º, da LPCJP o arquivamento de processo de promoção e proteção, em que é autor o Ministério Público, logo ao nível do despacho liminar impõe ao tribunal a formulação de um juízo substantivo sobre o conteúdo do mesmo processo, incidindo diretamente sobre o seu objecto e pressupondo 1) a desnecessidade da medida requerida e que 2) a situação de perigo não esteja comprovada ou estando comprovada já não subsista.
2. Não preenche tais pressupostos, devendo o processo prosseguir os seus termos, a situação de uma menor, nascida a 13 de junho de 2004, cidadã ucraniana, que se encontra em Portugal atento o estado de guerra naquele país, onde permanecem os seus pais e restante família, estando acompanhada de outra cidadã ucraniana, nascida a 25 de maio de 1985, com a qual não tem vínculo familiar, tendo solicitado proteção temporária e necessitando, por isso, de aplicação de medida que a afaste do perigo em que se encontra.
3. Tendo o Ministério Público exarado na sua petição as razões pelas quais entendeu que se mostrava necessária a intervenção do tribunal, assim cumprindo o ónus que lhe é imposto para a introdução da matéria em tribunal, a sua decisão ao suscitar a ação do tribunal é da sua exclusiva competência, não podendo ser sindicada pelo tribunal no despacho liminar, proferido nos termos do disposto no art.º 111.º da LPCJP.
4. A ação do Ministério Público exercida na prossecução das suas atribuições previstas no art.º 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e no art.º 4.º, n.º 1, als. a) e i) do seu estatuto, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, e concretizadas, entre outros, nos art.ºs 72.º, 73.º e 105.º, da LPCJP, não está sujeita a qualquer condição, nomeadamente de esgotamento da ação das entidades administrativas que exercem a sua ação na área da promoção e proteção, da qual não é subsidiária, nem está dependente.

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida e ordenado o prosseguimento do processo de promoção e protecção.
Sem Custas.

Lisboa, 26-05-2022
Orlando Santos Nascimento
José Maria Sousa Pinto
Vaz Gomes