Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11501/05.4TBCSC.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: NEGÓCIO SIMULADO
POSSE NÃO TITULADA
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Decorrendo a posse do Autor de um negócio simulado, celebrado entre ele e o irmão com vista a prejudicar o direito da Ré, há que considerar tal posse como de má fé.
- Contudo, uma vez que a simulação é um vício que afecta a substância do negócio e não a forma, a posse deveria ser tida como titulada.
- Tendo sido interposta acção judicial na qual foi declarado nulo o aludido negócio jurídico, e tendo a nulidade efeito retroactivo, tudo se passa como se o negócio nunca tivesse sido celebrado, pelo que a posse do Autor passa a carecer de título, e isto desde o início.
- O prazo para aquisição do imóvel por usucapião, no caso de posse não titulada e de má fé, é de 20 anos.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório:

J... intentou contra R... a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, alegando, em síntese,
- Que desde 1980 entrou na posse de um prédio que identifica onde construiu uma moradia na qual fixou a sua residência. Esta posse caracteriza-se por ser exercida em nome próprio, de forma pública, pacífica e ininterrupta ao longo de mais de 24 anos.
Concluiu que deve reconhecido o seu direito de propriedade sobre a fracção autónoma identificada por via da usucapião e, em consequência, ser cancelado o registo do prédio em causa a favor da R. e ser ordenada a inscrição do mesmo a favor do A.

Citada contestou a Ré, alegando, em síntese,
- Que o A. entrou na posse do imóvel, através de um negócio simulado celebrado com o seu irmão e ex-marido da R., negócio este que veio a ser declarado nulo, por simulação, através de sentença, transitada em julgado;
- No seguimento desta sentença, a R. requereu o cancelamento da inscrição predial a favor do A. e solicitou, com base num título legítimo de aquisição, o registo do imóvel em seu nome;
- A posse do A. é não titulada e de má-fé, donde o mesmo só poderia adquirir o imóvel, ao fim de 20 anos;
- Nos termos conjugados do artº 1292 e dos artigos 323, 326 e 327, todos do Cód. Civil, a contagem do prazo de 20 anos foi interrompida, com a citação do A (em 20/11/1990), da proposição da acção de reivindicação da R. contra o A, que com o n° 162/90, correu os seus legais termos na antiga 2ª Secção do 4° Juízo do Tribunal Judicial de Cascais, uma vez que nesta acção a instância foi considerada deserta;
- Sendo a posse do A não titulada, de má fé, não existindo registo da mera posse, e tendo passado apenas 15 anos desde o facto que originou a interrupção da contagem do prazo da usucapião, não se encontram preenchidos todos os requisitos legais para que a acção do A proceda, pelo que, a R. deverá ser absolvida de todos os pedidos formulados pelo A.

Em reconvenção, suscitou o incidente da intervenção principal provocada da mulher do A e veio reivindicar a propriedade do imóvel, objecto mediato destes autos, alegando em síntese:
- Que é a legítima proprietária do lote de terreno e da moradia nele edificada, a qual se encontra registada a seu favor;
- No entanto e apesar de a reconvinte ser a proprietária do imóvel, o reconvindo vem ocupando a referida moradia, sem qualquer título ou justificação e sem o consentimento da R.
- Desde Abril 1989 (data em que foi registada a propriedade em nome da reconvinte), esta encontra-se privada de usufruir da sua moradia, tem a reconvinte o direito a ser indemnizada pelo reconvindo e sua mulher, dos prejuízos que tal ocupação lhe vem causando, prejuízos esses a liquidar em execução de sentença, por não serem imediatamente determináveis.
Concluiu que deve a acção ser julgada improcedente, por não provada e a R. absolvida dos pedidos, que deve a reconvenção seja julgada procedente, por provada, decretando-se reconhecido o direito de propriedade da reconvinte sobre o imóvel e ordenando-se a entrega do mesmo à reconvinte, totalmente devoluto de pessoas e bens.

Na réplica o A impugna e o pedido reconvencional concluindo pela improcedência deste e pela procedência da acção.
 
Na tréplica a Ré reconvinte, impugnou as excepções deduzidas na réplica, concluindo que devem as excepções serem julgadas improcedentes, por não provadas, concluindo-se como o peticionado no pedido reconvencional.

O processo seguiu os seus termos, realizando-se o julgamento e vindo a ser proferida sentença nos seguintes termos:
a)  Julgar a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolver a Ré do pedido.
b)  Julgar a reconvenção procedente por provada e, em consequência:
b1) Condenar o Autor a reconhecer o direito de propriedade invocado pela Ré, relativo ao prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº 02795 e inscrito na matriz predial urbana sob o nº U-04889 da Freguesia de São Domingos de Rana, casa de habitação construída sobre a fracção de 1/12 do prédio descrito na lª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº 02795/270189, freguesia de S. Domingos de Rana.
b2)  Condenar o A. a entregar o supra identificado imóvel à Ré livre e devoluto de pessoas e bens.

Foram dados como provados os seguintes factos:
1. O A. tem a sua residência em casa de habitação construída sobre a fracção de 1/12 do prédio descrito na lª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº 02795/270189, freguesia de S. Domingos de Rana, fracção essa com inscrição de aquisição a favor da R. - inscrição "G-4", "Ap. 15/270189", convertida em definitiva, nos termos constantes do documento (certidão registal) de fls. 146 a 149;
2. O requerente em 1980 entrou em posse do terreno correspondente ao prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº 02795 e inscrito na matriz predial urbana sob o nº U-04889 da Freguesia de São Domingos de Rana.
3. Actualmente a propriedade do prédio em causa encontra-se inscrito a favor de R...
4. Ali foi construída uma moradia, na qual o A. veio a fixar a sua residência conjuntamente com a sua esposa e também com a sua filha, sendo que a casa de habitação foi construída, inicialmente, com o concurso de diversas pessoas, que ajudaram a Ré  Reconvinte e o seu então marido nos trabalhos de edificação da moradia, a que estes procediam, entre essas pessoas se contando o A. e um irmão da R., J..., sendo que era o A. quem executava o trabalho de pedreiro;
5. Ali reside desde, pelo menos, o ano de 1984;
6. Desde então, o vem fazendo pessoalmente e sem pedir autorização a quem quer que seja;
7. Os vizinhos o consideram como dono da dita moradia, já que, desde, pelo menos, o ano de 1984, sempre o A. ali vem residindo com a sua família até ao presente, arrogando-se a qualidade de proprietário da mesma, não tendo constado no local que alguém se lhes opusesse;
8. Desde que passaram a residir no aludido prédio, o A. e o seu agregado familiar não tiveram outra residência, ali habitando à vista de toda a gente, na convicção de se tratar de coisa sua;
9. A reconvinte e seu ex-marido, C..., celebraram com M... e sua mulher, M..., um contrato promessa de compra e venda de um doze avos indivisos de um prédio rústico.
10. Esses um doze avos faziam parte de um lote de terreno para construção, com a área de 3455 m2, situado nos limites do lugar de Tires, freguesia de S. Domingos de Rana, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha 02795 (conforme doc. nº 15 junto à PI.).
11. O preço ajustado foi de 120.000$00, tendo a reconvinte e o seu ex-marido entregue ao referido M... e mulher, as quantias de 30.000$00 e 50.000$00, em dezembro de 1978 e Fevereiro de 1979, respectivamente, em execução da promessa celebrada.
12. Com consentimento dos aludidos M... e mulher, a reconvinte e seu ex-marido, foram construindo uma moradia no dito lote de terreno.
13. As benfeitorias introduzidas no lote de terreno pela reconvinte foram, na altura, do conhecimento do casal M... e do reconvindo.
14. Ora aconteceu que em meados de 1980, começaram a surgir desavenças entre a reconvinte e o seu ex-marido que originaram a separação do casal, sendo a primeira expulsa da casa de morada de família, sita na moradia supra referida.
15. No intuito de prejudicar a reconvinte, veio o seu ex-marido ceder gratuitamente ao seu irmão, A. nos presentes autos, a posição contratual do casal no contrato promessa acima mencionado,
16. sem que a reconvinte desse o seu consentimento para essa cessão.
17. Não obstante, tal cessão veio a celebrar-se com a anuência dos promitentes vendedores, M... e mulher, tendo estes outorgado a escritura pública de compra e venda do supracitado lote de terreno com o reconvindo.
18. O A./Reconvindo vem habitando na moradia com o seu agregado familiar sem o consentimento da R;
19.  O A./Reconvindo nunca manifestou intenção de entregar a moradia à R.
20.  O A. entrou na posse do imóvel, através de um negócio simulado celebrado com o seu irmão e ex-marido da Ré, negócio este que veio a ser declarado nulo, por simulação, através de sentença, transitada em julgado, do processo que com o n° 2488, correu os seus legais termos na antiga 2ª Secção do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cascais.
21. O A. foi citado, em 20/11/1990, da proposição da acção de reivindicação da R. contra o A., que com o n° 162/90, correu os seus legais termos na antiga 2ª Secção do 4° Juízo do Tribunal Judicial de Cascais.
22. Naquela acção, referida no ponto anterior, em 26.5.93, foi declarada interrompida a instância, tendo a instância sido considerada deserta.
23. O R. reconvindo é casado com a Sra. D. A...
24. Na sentença proferida no âmbito do referido processo, supra ponto 20, que declarou nulos, quer o contrato de promessa de compra e venda do lote de terreno em causa entre a reconvinte e o seu ex-marido de um lado e o casal M..., do outro, quer o contrato de compra e venda do mesmo lote de terreno celebrado entre o casal M... e o reconvindo (J...), conferiu à ora reconvinte, o direito de adquirir o lote de terreno em questão, com a moradia nele incorporada, mediante o pagamento de 85.000$00 ao casal M...
25. Alegando a impossibilidade de efectuar o pagamento directo ao casal M... da indicada quantia de 85.000$00, requereu a reconvinte a passagem das guias para depósito daquele montante à ordem do Tribunal competente, tendo o mesmo sido realizado em 01/10/1987.
26. Na sequência de tal depósito foi, no âmbito daquele processo, proferida decisão a considerar extinta a obrigação imposta na sentença.

Inconformado recorre o Autor, concluindo que:
- A questão no presente processo é determinar se o ora RECORRENTE pode, ou não adquirir o lote de terreno objecto dos presentes autos por usucapião, ou se pelo contrário, é reconhecido o direito de propriedade à ora RECORRIDA e o ora RECORRENTE tem de entregar o supra identificado imóvel à ora RECORRIDA livre e devoluto de pessoas e bens.
- O Tribunal a quo dá como provado de forma sucinta que:
- o ora RECORRENTE entrou em posse do terreno objecto da presente acção, desde 1980.
- Terreno no qual foi construída uma moradia, na qual o ora RECORRENTE veio fixar a sua residência com a sua família.
- Que ali reside desde 1984.
- Considerando os vizinhos o ora RECORRENTE como dono da dita moradia, não constando no local que alguém se lhe opusesse.
- Desde que o ora RECORRENTE e o seu agregado familiar ali residem, não tiveram outra residência, habitando a moradia à vista de toda a gente, na convicção de se tratar de coisa sua.
- Por escritura pública de compra e venda, entre o ora RECORRENTE e M... e mulher, o ora RECORRENTE adquiriu o lote de terreno objecto dos presentes autos.
- Em sequência desta aquisição, a ora RECORRIDA intentou uma acção, que declarou nulos, quer o contrato promessa de compra e venda do terreno em causa entre a ora RECORRIDA e o seu ex-marido por um lado e o casal M... do outro; quer o contrato de compra e venda do mesmo lote de terreno entre o casal M... e o ora RECORRENTE.
- Como resulta ido disposto no art. 1287° do Código civil, a usucapião é uma forma de adquisição de direitos reais de gozo.
- A posse boa para a usucapião é somente a que for pública e pacífica, ou seja, a exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados e adquirida sem coacção física ou moral, nos termos do art. 255° do Código Civil (cf. Arts. 1261°, 1262° e 1297° do Código Civil).                                                                    
- Os restantes caracteres da posse - o ser boa ou má-fé, titulada ou não e registada ou não - influem no prazo necessário para a aquisição por usucapião, mas não na aquisição propriamente dita.
- Posse titulada é a que se funda em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico.
- O conceito de posse titulada integra dois requisitos: um positivo - a legitimação da posse através da existência de um título de aquisição do direito em termos do qual se possui - outro negativo, que é, sendo esse título de aquisição um negócio jurídico, a não existência de vícios formais nesse mesmo negócio.
- Salvo melhor opinião, a posse do ora recorrente não só é titulada, como também registada, vide ponto 20 e 24 dos factos provados que constam na Douta Sentença Recorrida, bem assim, como doc. 15, junto com a PI.
 - Não podendo ser ignorado que tais factos que demonstram que a posse é titulada, vieram a ser alegados na Réplica, pelo ora RECORRENTE, nomeadamente nos artigos 4° e 5°, encontrando-se já junto aos autos, a prova desse mesmo facto, cfr. doc. 15 junto com a PI, e doc. 1 que a ora RECORRIDA protestou juntar com a Contestação, que consiste numa certidão de uma sentença.
- A posse diz-se de boa-fé quando, no momento da sua aquisição, o possuidor ignorava que lesava o direito de outrem (art. 1260°, nº 1 do Código Civil).
- A qualificação da posse afere-se e reporta-se ao momento da sua aquisição.
- Sendo certo que a posse titulada se presume de boa-fé, art. 1260°, nº 2 do Código Civil.
- Assim, e salvo melhor opinião, entende o ora RECORRENTE, que para além da sua posse ser titulada e registada, também é uma posse de boa-fé.
- Em finais de 1990, intentou contra o ora RECORRENTE, acção de reivindicação (Proc. 162/90 antiga 2a Secção do 4° Juízo do Tribunal Judicial de Cascais), tendo o RECORRENTE sido citado a 20.11.1990 e em 26.05.1993, foi declarada interrompida a instância, e considerada deserta, por inoperância da ora RECORRIDA.
- Nos termos do disposto, no art. 1292° do Código Civil, são aplicáveis à usucapião, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão e interrupção da prescrição extintiva.
- Assim, e de acordo com o disposto no nº 1 do art. 323° do Código Civil, a prescrição interrompe-se pela citação.
- Nos termos do disposto no nº 2 do art. 327° do Código Civil, quando for considerada deserta, começa a correr um novo prazo prescricional logo após o acto interruptivo, ou seja a 20.11.1990.
- Tendo a presente acção dado entrada em Dezembro de 2005, verifica-se que, desde o facto que originou a interrupção da contagem do prazo da usucapião, passaram 15 anos.
- No que se refere aos bens imóveis, o prazo da posse prescricional é de 10 anos, a contar da data do registo, quando haja registo da mera posse, esta seja de má-fé e a posse continue os ditos 10 anos após o registo (artigo 1295°, nº 1, al. b). Ou, quando haja título de aquisição e registo deste e a posse seja de boa-fé, mas então, conta-se os 10 anos a partir da data do registo (artigo 1294°, al., a).
- Na hipótese de se vir a considerar que a posse é de má-fé, o prazo da posse prescricional é de 15 anos, a contar da data do registo, se há título registado.
- Lapso de tempo suficiente, para que o ora recorrente, possa adquirir o lote de terreno com a moradia, objecto dos presentes autos, por usucapião, nos termos do disposto no art.1295° do código civil, quer se entenda que a posse é de boa ou má-fé.
- Assim, reconhecido o direito de propriedade do ora RECORRENTE por via da prescrição aquisitiva, não poderá ser reconhecido o direito de propriedade da ora RECORRIDA, devendo por esse mesmo motivo, ser absolvido do pedido reconvencional.
- Por todo o exposto, considera o ora RECORRENTE que a Douta Sentença ora em crise, violou nomeadamente o disposto no art. 668° do CPC e os arts. 1287°, 1294° do Código Civil, devendo o presente recurso ter provimento, e como consequência, a acção ser considerada procedente por provada e a reconvenção improcedente por não provada, absolvendo-se o ora RECORRENTE do pedido reconvencional.
- Caso o Tribunal entenda que não estamos perante uma situação de nulidade nos termos da al. c), do nº 1, do art. 668° do CPC, mas perante uma situação de erro de julgamento deverá a Douta Sentença Recorrida ser revogada.

Cumpre apreciar:
Basicamente, a questão que aqui se coloca é a de saber se a posse invocada pelo recorrente é ou não titulada.
Esta questão é fundamental, na medida em que o recorrente assenta a sua pretensão, relativa ao reconhecimento do seu direito de propriedade, na usucapião.
Estando provado que o requerente entrou na posse do terreno em 1980, importa saber a que título o fez.
De acordo com a matéria provada, o ex-marido da Ré – e irmão do Autor – cedeu a este a posição contratual que era dele e da mulher ora Ré, gratuitamente, sem consentimento da mesma Ré, no contrato promessa celebrado com M... e mulher e relativo à aquisição do terreno em causa. Isto já que, havendo desavenças entre a Ré e o seu marido este, em meados de 1980 levou a cabo tal cessão da posição contratual visando prejudicar a mesma Ré.
O ora Autor, na sequência de tal cessão, veio a outorgar a escritura pública de compra e venda do terreno, com os vendedores M... e mulher, passando a ocupar o dito terreno ainda em 1980.
O negócio jurídico celebrado entre o Autor e o seu irmão – ex-marido da Ré – veio a ser declarado nulo, por simulação, por sentença transitada em julgado.
Cumpre pois apurar se a compra e venda, assente numa cessão da posição contratual declarada nula por simulação, pode titular a posse do Autor.
Nos termos do art. 1259º nº 1 do Código Civil, “diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico”.
Como sublinha Menezes Cordeiro, “o título equivale a um acto jurídico aquisitivo, abstractamente idóneo mas que, em concreto, pode ser inválido, desde que a invalidade não seja formal” - “A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais”, pág. 91. Significa isto que foi claramente opção do legislador  considerar titulada a posse desde que o título resulte de negócio jurídico idóneo, como por exemplo a compra e venda. Desde que respeitados os requisitos formais – escritura pública, no caso de imóveis – o negócio mostra-se apto para titular a posse mesmo que viciado por erro, dolo, coacção, simulação ou até no caso de a coisa vendida não pertencer ao vendedor.
 Esta opção legislativa a que se opõe Menezes Cordeiro na obra já mencionada, pág. 92, considerando que ela “mantém o Direito das Coisas pejado de categorias meramente conceptuais e formais, sem uma poderação dos interesses e valores subjacentes” conduz a que, num caso como o dos autos, haja que considerar titulada a posse, mesmo que o negócio jurídico de compra e venda de que resulta o título padeça do vício de simulação, já que este é um vício de fundo e não de forma. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado” III, pág. 16, “o título não é a simulação, mas o negócio jurídico simulado, como uma venda ou uma doação, e estes negócios são qualificativos de uma posse em nome próprio. A simulação não é senão um vício substancial do contrato e esse vício está genericamente previsto no nº 1 do art. 1259º”.

No caso dos autos, provou-se que a cessão da posição contratual a favor do ora Autor efectuada pelo seu irmão e com intuito de prejudicar a ex-mulher deste e ora Ré, redundou no contrato de compra e venda do imóvel. Logo, a posse do Autor seria titulada, já que simulação afecta a substância do contrato e não a sua forma.
Contudo, coloca-se aqui um outro problema, a que de resto o Mº juiz a quo parece aludir, no seu despacho de fls. 323, na resposta à invocada nulidade da sentença. É que o negócio jurídico em que assenta o título invocado pelo Autor veio a ser declarado nulo, por sentença datada de 17/07/1985, junta a fls. 58 a 64 dos presentes autos. A decisão tem o seguinte teor:
“1º – Declaro nula a cessão da posição contratual que a A. e o 3º R. conjuntamente supunham deter relativamente ao lote de terreno dos autos, celebrada entre 2º e 3º Réus.
2º – Declaro nulo o contrato de compra e venda celebrado entre os 1ºs Réus, por um lado, e os 2ºs Réus por outro, por escritura pública lavrada no 2º cartório Notarial de Cascais, a fls. 63 vs – 64 vs do Livro de escrituras diversas nº 67.
3º – Declaro que a A. tem direito a adquirir o lote em questão, com a moradia nele incorporada, mediante o pagamento de 85.000$00 aos 1ºs RR.”

O contrato de compra e venda declarado nulo, em 2 da aludida sentença, é o celebrado entre o ora Autor e M... e M... e é nele que assenta o título a que vimos fazendo referência.
A declaração de nulidade por sentença transitada em julgado tem efeitos retroactivos – art. 289º nº 1 do Código Civil.
Tal significa, “que tudo se deve passar como se o acto não existisse, pelo que, em regra, são destruídos ab initio, isto é, desde o momento da celebração, todos os efeitos que, porventura, se hajam entretanto produzido” - Luís Carvalho Fernandes, “Teoria Geral do Direito Civil” II, pág. 509. Salvaguardam-se, no tocante à posse, efeitos relativamente a frutos, benfeitorias ou perda ou deterioração da coisa, mas não relativamente ao título, que pura e simplesmente deixa de existir.
Uma coisa é a existência de um vício na substância do negócio jurídico em que assenta o título da posse, outra é a declaração de nulidade de tal negócio, independentemente de o vício causador da nulidade afectar a forma ou a substância do negócio.
Assim, logo que transitada a sentença que declarou nula a compra e venda do imóvel pelo Autor, a posse deste passa a carecer de título e isto desde o seu início, atenta a retroactividade da declaração de nulidade.
Além disso, mesmo a considerar-se como titulada a posse do Autor, nem por isso poderá a mesma ser qualificada como de boa-fé. É certo que o art. 1260º nº 2 do Código Civil refere que a posse titulada se presume de boa fé. Contudo, tal presunção pode ser ilidida.
A simulação consiste no acordo entre declarante e declaratário, em que ocorre divergência entre a declaração negocial e vontade real do declarante no intuito de enganar terceiros, nos termos do art. 240º nº 1 do Código Civil. Ora um acordo de vontades visando o prejuízo de um terceiro – no caso a Ré – é necessariamente incompatível com a previsão do art. 1260º nº 1. Ao adquirir a posse, na sequência do negócio jurídico simulado e celebrado com o intuito de prejudicar a Ré, o Autor encontrava-se de má fé, sendo assim a sua posse, mesmo que titulada, de má fé.

Já vimos que, com a declaração de nulidade do negócio, a posse do Autor, que sempre seria de má fé, se converte em posse não titulada.
A declaração de nulidade afecta o carácter titulado da posse mas não a posse em si mesma, que corresponde ao exercício pelo titular de um poder sobre a coisa, actuando por forma correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real – art. 1251º.
A posse prolongada confere ao possuidor o direito a adquirir o direito a cujo exercício corresponde a sua actuação. Todavia, o modo como a posse é exercida, as suas características, determinarão diferentes prazos aquisitivos.
E assim, não havendo registo do título nem da mera posse, e sendo esta de má fé, o prazo para a usucapião é de vinte anos (art. 1296º do Código Civil).
A posse do Autor iniciou-se em 1980. Todavia, tendo a ora Ré deduzido acção de reivindicação sobre o imóvel, para a qual o ora recorrente foi citado em 20/11/1990, há que considerar interrompido o prazo de prescrição com tal citação, nos termos do art. 323º nº 1 do Código Civil. Na medida em que essa  acção veio a terminar com a deserção da instância, há que ter em consideração o disposto no nº 2 do art. 327º, ou seja, o novo prazo aquisitivo inicia-se logo após o acto interruptivo, ou seja, a citação.
Assim, o novo prazo para usucapião iniciou-se em 21/11/1990.
Tendo o ora recorrente interposto a presente acção em 12/12/2005, verifica-se que decorreram apenas 15 anos, pelo que tal período não é susceptível de conferir ao Autor a aquisição por usucapião.

Saliente-se ainda que a insistência do recorrente afirmando que “a qualificação da posse afere-se e reporta-se ao momento da sua aquisição”, embora inteiramente aceitável, não impede que, em virtude de tal aquisição se ter operado no âmbito de negócio simulado com vista a prejudicar os direitos da Ré, tal posse sempre tivesse de ser considerada, desde o início, de má fé pelas razões que atrás expusemos.
Quanto ao título, sendo certo que a simulação, em si mesma, enquanto vício substancial do negócio, não impede que a posse se considere titulada, há que ter em conta que foi deduzida acção judicial na qual foi proferida sentença declarando a nulidade do negócio jurídico que titulou tal posse. Ora, uma vez que a declaração de nulidade, tem efeitos retroactivos, a mesma afecta o acto corresponde ao início da posse como se o mesmo nunca tivesse ocorrido.
 A sentença recorrida não é nula. Embora o Mº juiz a quo não se debruce especificamente sobre o negócio jurídico celebrado entre o Autor e o seu irmão – cessão da posição contratual – e o posterior negócio jurídico de compra e venda do imóvel pelo Autor é manifesto, pelo teor da mesma sentença, que esta não considerou tal negócio jurídico para efeitos de titular a posse.
Seja como for, sempre cumpriria a este tribunal da Relação apreciar a questão, como se fez, suprindo-se pois a eventual nulidade.

Quanto à procedência do pedido reconvencional, o recorrente limita-se a afirmar que a procedência do seu pedido de que lhe seja reconhecido o direito de propriedade, por via da usucapião, torna inviável o pedido reconvencional. Na medida em que o pedido do Autor, pelas razões aduzidas, não pode proceder, limitamo-nos assim a retomar as considerações feitas na sentença recorrida no tocante à procedência da reconvenção.

Sublinhe-se, a terminar, que a declaração de nulidade do negócio jurídico, por sentença transitada em julgado, torna a posse não titulada mas não afecta o elemento da má fé. O Autor sabia – a simulação pressupõe um acordo de vontades entre ambos os celebrantes do negócio jurídico - que ao efectuar um negócio simulado - a cessão da posição contratual com o seu irmão - estava a prejudicar o direito da ora Ré e isto, independentemente de o negócio ser ou não declarado nulo. Tal torna a posse de má fé, nos termos do já citado art. 1260º nº 1 do Código Civil.

Conclui-se assim que:
-  Decorrendo a posse do Autor de um negócio simulado, celebrado entre ele e o irmão com vista a prejudicar o direito da Ré, há que considerar tal posse como de má fé.
-  Contudo, uma vez que a simulação é um vício que afecta a substância do negócio e não a forma, a posse deveria ser tida como titulada.
-   Tendo sido interposta acção judicial na qual foi declarado nulo o aludido negócio jurídico, e tendo a nulidade efeito retroactivo, tudo se passa como se o negócio nunca tivesse sido celebrado, pelo que a posse do Autor passa a carecer de título, e isto desde o início.
-   O prazo para aquisição do imóvel por usucapião, no caso de posse não titulada e de má fé, é de 20 anos.

Termos em que se julga a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.

LISBOA, 26/03/2015

António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais