Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3699/18.8T9AMD.L1-3
Relator: ISABEL CRISTINA GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
PRESSUPOSTOS
VALORAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ABUSO DE CONFIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário: - A validade da obtenção do meio de prova por declarações para memória futura afere-se em função do preenchimento dos requisitos para a sua admissão e da observância das formalidades prescritas para a sua produção, previstos no artigo 271º do Código de Processo Penal.
- Questão diversa é a da validade das declarações para memória futura enquanto meio de prova e a valoração que o tribunal a quo faz do teor das mesmas no confronto com os demais meios de prova e da convicção que alcança, atento o concreto circunstancialismo em que foram prestadas.
 - Conquanto a lei admita, de forma inequívoca, as declarações para memória futura como meio de prova a valorar em sede de julgamento não se pode ignorar que podem implicar uma compressão do princípio do contraditório e do princípio da imediação e da oralidade.
- Sem prejuízo do direito do arguido de, em audiência de julgamento, se pronunciar e contrariar todos os testemunhos ou meios de prova, pessoalmente e através do seu defensor, nas declarações para memória futura o contraditório é exercido essencialmente no momento em que essa prova é produzida.
-A circunstância de as declarações para memória futura não serem produzidas perante o juiz de julgamento e serem documentadas em formato audiovisual, audiofónico ou escrito, sendo que aquele apenas toma contacto com tal elemento de prova mediante a sua reprodução/leitura, afecta o princípio da imediação e da oralidade em grau crescente segundo a ordem dos formatos mencionados.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. - RELATÓRIO
1. - No âmbito do Processo n.º 3699/18.8T9AMD, do Juízo Local Criminal da Amadora - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em que são arguidos são arguidos CFSS, AGSS e APS, foram estes submetidos a julgamento, tendo, a final, em 24.02.2022, sido proferida sentença, na qual foi decidido o seguinte [transcrição[1]]:
«- Condenar a arguida CFSS na prática, em autoria material e na forma consumada, de crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 1 e n.º 4, al. b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao pagamento à assistente da quantia peticionado no pedido cível, no decurso da suspensão;
- Condenar a arguida AGSS na prática, em autoria material e na forma consumada, de crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 1 e n.º 4, al. b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao pagamento à assistente da quantia peticionado no pedido cível, no decurso da suspensão;
- Condenar o arguido APS na prática, em autoria material e na forma consumada, de crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 1 e n.º 4, al. b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao pagamento à assistente da quantia peticionado no pedido cível, no decurso da suspensão;
- Condenar os arguidos no pagamento à demandante no montante de €63.490,48, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, absolvendo-os do demais peticionado.
- Condenar os arguidos no pagamento das custas do processo com taxa de justiça que se fixa em 2 UC’s;
- Condenar os arguidos e a demandante no pagamento das custas cíveis do processo, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 523º do Código de Processo Penal com remissão para o artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, de acordo com o respectivo decaimento.»
2. - Inconformados com o assim decidido, vieram os arguidos interpor recurso, nos termos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, sendo que, após a motivação, formularam as seguintes conclusões e petitório [transcrição]:
«(A) Entendeu-se que os factos integrantes de infracção criminal, estavam provados com fundamento na prova constituída por declarações para memória futura da assistente;
(B) O despacho que deferiu tal acto violou os artigos 356.º, n.º 2, alínea a) e 271.º do CPP porquanto os respectivos pressupostos manifestamente não existiam;
(C) Sem prejuízo de, em tal acto, os Recorrentes – que ainda não tinha sido constituídos arguidos, quando nada no processo impedia que esse estatuto já lhes tivesse sido concedido – terem sido “representados”, por um defensor oficioso que estava de escala, que não conhecia os arguidos, que não tinha qualquer forma de os contactar, até por os mesmos ainda não terem como tal sido constituídos, que não conhecia, nem era suposto conhecer, os factos nem as razões dos arguidos, e, por consequência, não estava em condições de poder contraditar eficazmente as declarações da assistente, de suscitar o seu confronto com documentos constantes dos autos ou com outros documentos e(ou) meios de prova que carreasse, de forma a lograr obter a descoberta da verdade material;
(D) O que viola o direito fundamental ao processo equitativo, previsto no artigo 20.º, n.º 4, da CRP e 6.º da CEDH, que garante o direito ao contraditório, entendido como o direito a examinar e contraditar os meios de prova invocados contra si;
(E) O que, atenta a natureza self executing de tal direito e o disposto no artigo 18.º, n.º 1, da CRP, o torna directamente aplicável contra ou na ausência de lei e fulmina com a nulidade o acto praticado em sua violação;
(F) Acresce que, ao designar-se defensor oficioso, nos termos descritos na alínea c) destas conclusões, foi violado o direito ao patrocínio judiciário, na vertente que garante a escolha de mandatário, e que é protegida pelo n.º 2 do artigo 20.º da CRP;
(G) Tal determina que os factos dados como provados com fundamento na prova por declarações futuras e que nos termos da sentença são os que constituem infracção criminal, a saber, os pontos 2.1.2, 2.1.3, 2.1.4, 2.1.7, 2.1.9, 2.1.10., 2.1.11 e 2.1.12, nos termos em que estão configurados na mesma, não possam ser dados como provados;
(H) Não pode dar-se como provado que “os arguidos(…) apresentaram junto da assistente uma procuração (…) ao que aquela assinou”, por tal não estar de acordo com o documento de folhas 7 a 11, de onde consta que a procuração foi outorgada pela assistente e seu marido e que configura um instrumento notarial (artigo 116.º, n.º 1, do Código do Notariado), logo, redigido pelo Notário, não estando, ainda, de acordo com o depoimento da arguida CFSS (minutos 00:03:29.2 do seu depoimento);
(I) Devendo, ao invés, o ponto 2.1.2. ter a seguinte redacção:
“No dia 11-02-2014 a assistente CAAS e seu marido ACS, em face da amizade com os arguidos e conforme combinado entre eles, outorgaram a favor destes uma procuração conferindo-lhes poderes gerais de administração civil, podendo reger e gerir todos os bens deles outorgantes atuando em conjunto ou isoladamente, assim, para:
- representar os outorgantes junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas e autoridades, nomeadamente, mas não exclusivamente, Serviços Municipalizados, EDP, nos Serviços de Finanças, requerendo isenções de impostos, reclamando dos indevidos ou excessivos, recebendo títulos de anulação e suas correspondentes importâncias, declarando, liquidando impostos ou contribuições, requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, fazer manifestos, alterá-los ou cancelá-los, apresentar relações de bens, subscrevendo em seu nome quaisquer requerimentos, reclamações, impugnações ou outros documentos;
- renovar, prorrogar ou rescindir contratos de arrendamento de quaisquer prédios de que eles mandantes sejam arrendatários, no todo ou em parte, pelos prazos, rendas e condições que entender convenientes;
- movimentar qualquer conta de que os mandantes sejam titulares no Banco (…), a débito ou a crédito, nomeadamente depositar e levantar dinheiro ou outros valores, requisitar, sacar, endossar e emitir cheques, apresentar pedidos de cartão de débito, efectuar transferências bancárias, constituir, reforçar, liquidar depósitos a prazo ou poupanças, subscrever, resgatar fundos de investimento, constituir, reforçar ou liquidar carteiras de investimento, efectuar pagamentos à segurança social, para receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que pertençam ou venham a pertencer aos mandantes por qualquer via ou título, passando recibos e dando quitações;
- representá-los junto de quaisquer organismos da Segurança Social, Caixa Nacional de Pensões ou outro organismo de assistência social, Serviços de Saúde, Hospitais ou demais entidades públicas ou privadas equivalentes, para tratar de qualquer assunto que seja dos eu interesse no qual os mandantes tenham que assinar documentos ou requisições, requerer a domiciliação do pagamento das prestações de reforma ou qualquer outro tipo de pensão que seja recebido pelos mandantes em qualquer conta por eles titulada, requerer prestações sociais, complementos sociais e demais tipos de prestações sociais, apresentar comprovativos e documentos;
- assinar e expedir correspondência, receber quaisquer quantias, valores e documentos, levantar nas estações de correios, valores declarados, cartas registadas, encomendas postais e outras mercadorias e tudo o mais o que for dirigido aos mandantes, passar recibos, dar quitações, assinar os conhecimentos e endossos, requerendo, praticando e assinando tudo o que for necessário a estes fins;
- celebrar contratos com a PT Telecomunicações ou outros operadores de Telecomunicações, Serviços Municipalizados de Câmaras Municipais, com a EDP, companhias de fornecimento de gás e demais organismos públicos ou não que assegurem serviços considerados essenciais, bem como efectuar os pagamentos de serviços prestados por essas entidades, nomeadamente através de transferências bancárias ou emissão de cheque;
- proceder à rescisão ou alteração de todos os contratos que haviam sido celebrados entre os mandantes e demais instituições públicas e/ou privadas, assim que entender conveniente, nomeadamente, contratos de prestação de serviços, contratos com os Serviços Municipalizados de Água e demais organismos públicos ou não que assegurem serviços considerados como essenciais, como sendo, com a EDP, PT Telecomunicações, Correios de Portugal, Entidades Bancárias, Companhias fornecedoras de gás ou de Seguros, e podendo para o efeito, receber os reembolsos ou estornos de quantias pagas que sejam devidas pelo término dos contratos e/ou outros instrumentos celebrados entre os ora mandantes e demais organismos/entidades públicas ou não;
- para representar os outorgantes, junto de quaisquer tribunais ou juízos, usando para o efeito de todos os poderes forenses em direito permitidos, incluindo os especiais para transigir nos termos e condições que entender convenientes, no todo ou em parte, e devendo substabelecer os odres forenses em advogado ou solicitador sempre que deles tenha de usar;”
(J) O ponto 2.1.3, deve dar-se como não provado, dado que a matéria dali constante, designadamente, um suposto agravamento da doença de ACS como motivo para a abertura da conta em nome dos arguidos, não é referido nem pela assistente – folhas 510 - nem consta dos autos qualquer meio de prova desse suposto “agravamento;
(K) Ao contrário, o que consta é um documento de alta médica, em 29-11-2016 (dois dias antes da ida ao banco), a aguardar colocação em lar – folhas 517 a 523;
(L) Tampouco se pode entender que a assistente transferiu para a conta aberta em nome dos arguidos a totalidade das suas poupanças, pois, como resulta em 16-12-2016, a assistente transferiu 5.642,88€ para outra conta sua (veja-se Transf. Conta ACS - folhas 13.
(M) Os pontos 2.1.4 e 2.1.5, com a redacção que consta da sentença, devem dar-se como não provados, por a tal se oporem os documentos de folhas 105 a 110 (documentos de abertura da conta numero xxxx 403), 113 a 117 (documentos de transferências para a conta numero xxxx 403), 191, 193 e 526 verso (transferências no total de 55.009,52€ efectuadas pelos arguidos para a assistente), as declarações da arguida CS (Minutos 00:43:00.1 a 00:43:53.1 do seu depoimento) e as declarações da testemunha MJJC (minutos 00:00:38.9 a 00:01:26.9, 00:01:54.5 a 00:02:32.2, 00:03:49.4 a 00:05:23.7 do seu depoimento);
(N) Devendo dar-se como provado apenas (ponto 2.1.4):
 “No dia 02-12-2016 os arguidos acompanharam a assistente à agência do Banco (…), sita na Avenida 5 de Outubro, Lisboa, a qual solicitou ao funcionário MJJC a abertura de uma conta à ordem em nome dos arguidos, que este abriu com o número (….), tendo-lhe declarado expressamente não pretender constar da titularidade dessa conta, após o que transferiu para essa conta as quantias de €90.000,00 e de 23.500,00€”
(O) E (ponto 2.1.5):
“A conta bancária n.º (…), não pertence à assistente, mas, segundo seu desejo expresso, é da titularidade dos arguidos”
(P) Os pontos 2.1.11 e 2.1.12 devem dar-se como não provados, por a tal se oporem os documentos de folhas 105 a 108 (documentos de abertura da conta número … ), 110 (documento de transferência de 90.000,00€ para esta conta), 116 e 117 (documentos de transferência de 23.975,00€ para esta conta), 154 (transferência de 113.565,35€ para a CGD), as declarações da assistente extractadas a folhas 511, as declarações testemunhais e MJJC (minutos 00:02:13.3 a 00:02:32.2 e a 00:04.:02.9 dos eu depoimento), o contrato celebrado entre os arguidos e o lar de terceira idade a fim de acolher ACS (folhas 524 a 526), folhas 191 (transferência de 500,00€ feita pela arguida AGSS à assistente em 03-03-2017), folhas 193 (duas transferências de 2.500,00€ cada feitas por AGSS à assistente em 18 e 19-04-2017), folhas 196 (2.500,00€ transferência feita por AGSS à assistente em 20-07-2017), folhas 526 verso (transferência de 50.009,52€ feita pela arguida AGSS à assistente em 25-10-2017);
(Q) O que atesta que os arguidos não só não enganaram nem induziram em erro a assistente, como não se apropriaram de dinheiro, já que a mesma lhes doou sob reserva de dele dispor quando necessitasse, o que os arguidos cumpriram como decorre das entregas de folhas 191, 193, 196 e 526 verso, cumprindo, bem assim, as obrigações de assistência ao falecido ACS, como o demonstram, os documentos de folhas 517 a 523 e 541 e 542 verso;
(R) Os arguidos fizeram entregas à assistente, a seu pedido ou por sua sugestão, no valor total de 58.009,52€, em 03-03-2017, 18-04-2017, 19-04-2017, 20-07-2017 e 25-10-2017 – folhas 191, 193, 196 e 526 verso;
 (S) Porém, apenas e deu como provada a entrega de 50.009,52€ (folhas 526 verso), nada se dizendo quanto ás restantes e muito embora os documentos de folhas 191, 193 e 196, tenham sido considerados como elementos probatórios válidos;
(T) Deve, pois, dar-se como provado o seguinte:
“Em 03-03-2017, a arguida AGSS transferiu 500,00€ para a conta número 0240 8109 0606, titulada à assistente”.
“Em 18-04-2017 e 19-04-2017, a arguida AGSS transferiu o total de 5.000,00€ para a conta número (…), titulada à assistente”
“Em 20-07-2017 e 19-04-2017, a arguida AGSS transferiu o total de 5.000,00€ para a conta número (…), titulada à assistente”
(U) Não estão provados os elementos do tipo do artigo 205.º do Código Penal, quais sejam, a entrega de coisa móvel por título não translativo de propriedade, nem, a ter-se este elemento como provado, a apropriação;
(V) Na verdade, o que se provou foi que a assistente quis que os arguidos abrissem a conta número (…), excluindo-se expressamente da sua titularidade e de qualquer outra forma de movimentação, designadamente, “autorizado” a movimentar a conta;
 (W) E que fez as transferências para a referida conta, sabendo que ficava desapossada desses montantes, dando-os aos arguidos, no âmbito das várias doações que, reconhece, lhes foi fazendo;
(X) Sob condição de os mesmos lhe entregarem essas quantias caso delas carecesse, o que, como acima sucedeu, os arguidos cumpriram de forma espontânea, actuando todos nos termos permitidos pela autonomia da vontade e pelos artigos 405.º, n.º 1 e 940.º do Código Civil;
(Y) Tendo ocorrida a transmissão da propriedade para os arguidos - artigo 954.º, alínea a) do Código Civil – falece o primeiro elemento do crime de abuso de confiança;
(Z) Mas, ainda que o mesmo não ocorresse, não há dolo de apropriação, o que se demonstra quer pelas cinco entregas espontâneas efectuadas pelos arguidos à assistente vários meses antes de ter recebido cartas do mandatário da assistente;
(AA) Bem como pelo facto de os arguidos apenas pretendem que a sua dignidade seja salvaguardada, na medida em que, não se tendo apropriado de coisa alguma, nem actuado deceptivamente para com a assistente, apenas pretendem que a mesma reconheça que eles assim procederam;
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se os arguidos da acusação que lhes é movida e do pedido de indemnização civil.»
3. - A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu ao recurso, apresentando as conclusões que infra se transcrevem:
«1. Os arguidos CFSS, AGSS e APS recorreram da sentença que os condenou pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1, e n.º 4, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao pagamento à assistente da quantia peticionada no pedido cível, no decurso da suspensão.
2. Inconformados com tal decisão, vieram os arguidos interpor recurso, sustentando, em suma, que: a) tomada de declarações para memória futura teve lugar em situação não prevista no artigo 271.º, do Código de Processo Penal; b) a tomada de declarações para memória futura teve lugar antes da constituição dos denunciados como arguidos, o que impediu o defensor oficioso nomeado de concretizar a respectiva defesa em tal acto, o que é violador do direito a um processo equitativo (previsto no artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P. e artigo 6.º da CEDH), do direito ao contraditório (plasmado no artigo 32.º, n.º 5, da C.R.P.) e do direito ao patrocínio judiciário (protegido pelo n.º 2, do artigo 20.º, da C.R.P.); c) tal determina a impugnação da matéria de facto provada com fundamento na prova obtida através das declarações para memória futura. Concluem, assim, que deverá ser proferida sentença que os absolva da prática do crime pelos quais foram condenados.
3. Entende, no entanto, o Ministério Publico que carece de fundamento as pretensões dos recorrentes/arguidos, não merecendo a douta sentença recorrida qualquer reparo.
4. Resulta expressamente dos autos a vulnerabilidade física e psíquica da assistente.
5. Esta questão, aliás, já havia sido suscitada pela arguida CS em sede de Instrução, tendo sido apreciada e decidida pela Mm.ª Juíza de Instrução que julgou válida a tomada de declarações para memória futura à assistente, porquanto esta “havia praticamente completado 86 anos, estava viúva na sequência de grave e célere doença de seu marido, mostrando-se debilitada, não só física, como também psicologicamente, sendo de esperar um agravamento das suas capacidades de discernimento e de testemunho, bem como, sendo a ordem natural da vida e atenta a sua idade avançada, que pudesse vir a falecer antes mesmo da audiência de julgamento”.
6. Razão pela qual não assiste razão aos ora recorrentes, devendo, por isso, valorar-se tais declarações para memória futura em sede de audiência de discussão e julgamento.
7. A prévia constituição do denunciado como arguido não é condição ou requisito para o deferimento da tomada de declarações para memória futura.
8. Prevê o artigo 271.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que apenas é obrigatória a presença do defensor e do Ministério Público, sendo a presença dos demais sujeitos processuais, incluindo o arguido, facultativa.
9. In casu, aquando da realização da diligência de declarações para memória futura, os denunciados estiveram representados por defensor nomeado, que acompanhou o acto e fez questões, permitindo uma intervenção participada do acto, o que se concretizou num contraditório efectivo, sendo que em julgamento tais declarações puderam ser contraditadas.
10. Não configura, por isso, qualquer violação do direito a um processo equitativo, ao contraditório e ao patrocínio judiciário.
11. A impugnação da decisão fáctica é, manifestamente, de improceder, nada justificando a reversão do juízo fáctico proferido pelo Tribunal a quo.
12. De facto, as declarações para memória futura foram prestadas em Tribunal, seguindo o regime processual penal, previsto no artigo 271.º, do Código de Processo Penal, constituindo, por isso, prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º, e 356.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal.
13. A fundamentação da decisão fáctica revela, de forma exaustiva e conseguida, os motivos da decisão que o Tribunal a quo tomou, pelo que deverá a mesma ser mantida nos seus precisos termos.
14. Atento o supra exposto, é entendimento do Ministério Público que não assiste razão aos recorrentes/arguidos, devendo, consequentemente, ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
V. Exas, porém, decidindo farão, como sempre,
JUSTIÇA.»
4. - Na vista a que se refere o artigo 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da manutenção do decidido, pois concorda com os fundamentos de facto e de Direito contidos, quer na resposta do Ministério Público, quer na decisão recorrida.
5. - Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo havido resposta.
6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
*
II. – FUNDAMENTAÇÃO
1. - Decorre das disposições conjugadas dos artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida.
Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[2]].
O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente e, outras, de conhecimento oficioso[3].
No caso concreto, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, e não se vislumbrando quaisquer nulidades, nem (outros) vícios, de conhecimento oficioso, as questões a decidir são as seguintes:
           
- Impugnação da matéria de facto;
- Validade e valor probatórios das declarações para memória futura;
- Preenchimento dos elementos típicos do crime de abuso de confiança.

2. - A sentença recorrida é do seguinte teor, no que respeita à factualidade relevante para a decisão da causa e à respetiva fundamentação, bem como ao seu enquadramento jurídico, determinação da natureza e medida da pena e pedido de indemnização civil [transcrição]:
«II – Fundamentação:
2.1. Matéria de facto provada:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
2.1.1. Desde há vários anos que os arguidos mantinham uma relação de grande proximidade com a assistente CAAS, nascida a 19-01-1933.
2.1.2. No dia 11-02-2014 os arguidos, em face da amizade com a assistente, e conforme combinado entre eles, apresentaram junto da mesma uma procuração com poderes gerais, apondo como mandantes os arguidos, ao que aquela assinou.
2.1.3. Atento o agravamento do estado de saúde do marido da assistente, esta e os arguidos combinaram proceder à transferência dos valores das contas bancárias desta, em titularidade com o seu marido, para uma conta em que fossem titulares os arguidos.
2.1.4. No dia 02-12-2016 os arguidos acompanharam a assistente à agência do BANCO (…), sita na Avenida 5 de Outubro, Lisboa, e apresentaram à mesma um documento de transferência da quantia de €90.000,00 e a transferência da quantia de €23.500,00 para o NIB (…004), o que esta assinou, convencida de que poderia à mesma dispor daquelas quantias monetárias.
2.1.5. A conta bancária nº (…004) não pertence à assistente, mas é apenas da titularidade dos arguidos.
2.1.6. A 25.10.2017 a arguida AGSS transferiu para a conta n.º (…004), titulada pela assistente, a quantia de €50.009,52.
2.1.7. No dia 18-01-2018 a Mandatária da assistente remeteu carta para os arguidos solicitando a prestação de contas e devolução das quantias supra referidas, o que estes não fizeram.
2.1.8. No dia 19-01-2018 a arguida CFSS preencheu o cheque nº xxx.1, no valor de €113.565,35, a ser debitado da conta nº xxxx 403, inscrevendo a conta a creditar, a conta bancária nº xxx430.
2.1.9. Em face da apresentação do referido cheque foi efectuada a transferência no valor de € 113.565,35, para a conta nº xxxx 430, pertencente à arguida ASS.
2.1.10. Após 18-01-2018, a assistente, através do seu mandatário, tentou contactar os arguidos, de modo a solicitar a devolução, o que não logrou porquanto os mesmos não responderam aos contactos daquele.
2.1.11. Com esta conduta os arguidos previram e quiseram, em conjugação de esforços, induzir CAAS a crer que iria poder dispor do dinheiro transferido para a conta referida em 2.1.4., bem sabendo que tal não correspondia à verdade e dessa forma a enganando, levando-a, consequentemente, a efectuar-lhes entrega de dinheiro, de que os arguidos se apropriaram integrando-o no seu património com o consequente empobrecimento da assistente, no montante total de €63.490,48, da forma acima discriminada, gastando-a em seu proveito, bem sabendo que tal montante pertencia à assistente e que actuavam contra vontade desta, o que fizeram ao actuar da forma acima descrita.
2.1.12. Os arguidos actuaram livre, deliberada e conscientemente, sabendo perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.
2.1.13. A arguida CFSS é casada e tem dois filhos.
2.1.14. Aufere cerca de €1.200 por mês e o seu marido ganha €1.200 mensais.
2.1.15. Mora em casa própria pagando €240 de empréstimo.
2.1.16. Tem um mestrado.
2.1.17. A arguida AGSS é casada com o arguido APS e tem dois filhos.
2.1.18. Recebe uma pensão de €290 por mês.
2.1.19. Mora em casa própria.
2.1.20. Tem a 4ª classe.
2.1.21. O arguido APS é casado com a arguida AGSS e tem dois filhos.
2.1.22. Recebe uma reforma de €2.500.
2.1.23. Mora em casa própria.
2.1.24. Tem um veiculo automóvel de matricula XX-XX-LL.
2.1.25. Tem a 4ª classe.
2.1.26. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
*
2.2. Matéria de facto não provada:
Não resultou provado que:
2.2.1. Quando abriu a conta descrita em 2.1.4. a assistente estivesse convencida de que era titular da referida conta bancária.
2.2.2. Em data não concretamente apurada, mas posterior a Janeiro de 2017, a ofendida pretendeu emprestar €2.500,00 a um familiar, o que não conseguiu.
2.2.3. O valor de que os arguidos se apropriaram fosse de €113.500 (cento quinze mil e quinhentos euros).
2.2.4. A assistente tenha sofrido um grande abalo emocional devido à conduta dos arguidos.
*
2.3. Motivação da decisão de facto:
A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência de julgamento, nomeadamente:
- Nas declarações dos arguidos que descreveram as suas condições económicas e sociais.
Quanto aos factos apenas a arguida CFSS prestou declarações.
Assim, a arguida esclareceu a relação que ela e os pais mantinham com a assistente.
Disse que foi com base nessa relação que a assistente insistiu para que eles ficassem com os bens dela em seu nome.
Nessa sequência passou-lhes a procuração dando-lhes os poderes referidos na mesma, sendo que em contrapartida eles tomariam conta dela e do marido.
Esclareceu que a procuração emitida era para ajudar, no caso de os acompanhar e representar, pois seria uma forma de resolverem os problemas da assistente e de ultrapassarem as barreiras legais por não serem familiares da mesma.
Referiu que apenas utilizaram a procuração uma vez nas finanças para fazer uma habilitação de herdeiros, e outra vez para visitarem o marido da assistente no hospital.
Frisou que a assistente apenas lhes deu o dinheiro porque quis, tendo insistido com eles para abrir a conta em nome deles.
Contou que foi a assistente quem marcou para eles iram ao banco não tendo querido ficar como titular da conta, apesar de ter sido alertada para as implicações de tal escolha.
Nesse dia tratou da transferência do dinheiro e das aplicações financeiras para a conta acabada de abrir.
Declarou que depois disto, sempre que a assistente precisava eles davam-lhe dinheiro.
Sendo que posteriormente não lho devolveram porque ela não lhes pediu pessoalmente, tendo deixado de falar com eles.
Afirmou que quando levantou o dinheiro da conta e o transferiu para outra tal se deveu ao facto de o Banco (…) não ser um Banco seguro, não estando tal facto relacionado com a interpelação do advogado da assistente.
Frisou que actualmente não lhe devolvem o dinheiro porque ela não fala com eles pessoalmente e não foi honesta ao longo do processo, sendo que se esta se retratar e lhes pedir o dinheiro eles devolvem-no, apesar de achar que o dinheiro é deles porque a assistente lhes deu o mesmo.
Por fim explicou que em Outubro de 2017 transferiu para outra conta da assistente o montante de €50.000, para umas obras que ela ia fazer em casa.
- Nas declarações para memória futura da assistente, que afirmou que ela e o marido decidiram dar os seus bens aos arguidos, e estes, em troca tomavam conta deles em vida.
Disse que depois de o marido adoecer os arguidos lhe diziam que devia transferir o dinheiro para o Estado não ficar com uma parte ou os familiares.
Contou que nessa altura foi com os arguidos ao banco e transferiu o dinheiro e umas aplicações financeiras para uma conta que ela pensava que estava em nome dela e dos arguidos.
Esclareceu que fez isso com a condição de os arguidos tomarem conta dela e do marido, para que eles não fossem para um lar.
Disse que só descobriu que o dinheiro na conta não estava em nome dela quando fez a transferência de €2.500 para a sobrinha, e a arguida se zangou com ela.
Foi por esse motivo que decidiu retirar o dinheiro dela da posse dos arguidos e pôs o assunto com o advogado.
Confirmou que não pode tirar os arguidos como titulares da conta referida em 2.1.4. porque ela não era titular da mesma.
- No depoimento da testemunha MJJC, gestor de contas da assistente na data dos factos.
Esta testemunha referiu que habitualmente tratava dos assuntos das contas com o marido da assistente, sendo que a primeira vez que o fez com a assistente foi quando ela foi ao banco com os arguidos para abriram uma conta em nome destes, sem que a assistente, fosse titular, com o dinheiro desta e do marido.
Tal devia-se ao facto de a assistente não querer que a irmã dela herdasse o seu dinheiro.
No entanto, a intenção da assistente era o de poder dispor desse dinheiro enquanto fosse viva, apesar de não ser titular da conta.
Posteriormente apercebe-se duma transferência do saldo total da conta para uma outra conta, tendo telefonado para a arguida AGSS que lhe disse que tal deveu-se ao facto de assistente estar a ser influenciada por terceiros que a levavam a levantar o dinheiro que tinha.
- No depoimento da testemunha MLC, vizinha da assistente.
Esta testemunha referiu que a assistente lhe confidenciou que desde que foi ao banco com uns senhores deixou de receber as cartas referentes ao extrato da conta relativos ao seu dinheiro.
Mais disse que nunca viu os arguidos a visitarem a assistente.
- No depoimento da testemunha ST, amiga da assistente.
Esta testemunha disse que viu os arguidos apenas no funeral do marido da assistente.
Confirmou que uma vez pediu dinheiro emprestado à assistente, que lhe emprestou €2.500, sendo que ela já lhe pagou de volta tal quantia.
Esclareceu que antes do marido da assistente morrer ela estava cansada e vulnerável, sendo que a assistente lhe disse que nessa altura tinha sido convencida a transferir o dinheiro dela para os arguidos.
- No depoimento da testemunha CA.
Esta testemunha referiu que os arguidos e a assistente e o marido eram amigos, sendo que este ultimo trabalhava com o arguido A.
- No depoimento da testemunha VC, vizinho da assistente.
Esta testemunha disse que apenas soube que os arguidos conheciam a assistente porque os viu no funeral do marido desta.
- A testemunha AG não tinha conhecimento dos factos.
- No depoimento da testemunha DM.
Esta testemunha referiu que os arguidos e a assistente se davam, sendo que o marido desta trabalhava com ele e o arguido APS.
Disse que, por mais de uma ocasião, ele e o arguido APS tiveram que levar o marido da assistente a casa, porque este estava alcoolizado.
Teve-se também em conta:
- Cópia de procuração, a fls. 7-11;
- Elementos Bancários, a fls. 12-17
- Notificação para devolução das quantias, a fls. 29 e 34;
- Elementos Bancários, a fls. 92-166;
- Elementos Bancários, a fls. 179-203;
- Elementos Bancários, a fls. 247-264.
- No documento junto em sede de audiência de julgamento pela arguida referente à conta n.º …004, titulada pela assistente, que mostra que a arguida AS transferiu mais de €50.000 para aquela
- No Certificado de Registo Criminal, junto aos autos, no que concerne aos antecedentes criminais dos arguidos.
Assim face à prova produzida e dos demais elementos juntos nos autos resulta sem margem para dúvidas que os arguidos praticaram os factos que lhe eram imputados.
Em primeiro lugar a arguida CFSS admitiu que abriu a conta tendo sido efectuado a transferência do dinheiro e das aplicações financeiras do marido da assistente e desta para a mesma, sendo que os arguidos eram os únicos titulares.
Disse que tal foi feito a pedido da assistente, que não queria ser titular da conta.
Declarações estas que foram confirmadas pelo gestor de conta que referiu, por mais de uma vez, que a assistente não queria ser titular da conta.
No entanto esta testemunha também referiu expressamente que a intenção da assistente era a de mesmo assim poder dispor do dinheiro que lhe pertencia.
Face a este depoimento não valorou o Tribunal as declarações da assistente quando afirmou que também queria ser titular da conta aberta com os arguidos.
Quanto ao facto descrito em 2.1.6. o mesmo resultou provado com o confronto das declarações da arguida com o extrato bancário junto em audiência de julgamento, que confirma que nessa data foram transferidos mais de €50.000 para outra conta da assistente.
Por sua vez, das suas declarações resulta que a própria arguida confessa que não devolveu o dinheiro à assistente, quando esta lho pediu através do mandatário.
Sendo que não colhe a justificação apresentada pela mesma, de que não o fez, porque a assistente não lhes pediu pessoalmente e porque não queria falar com eles.
Ou seja, pela arguida foi dito que a assistente lhes deu o dinheiro para eles cuidarem dela em vida.
O que significa que em vida da assistente, os mesmos não poderiam dispor livremente do dinheiro, pelo que se esta lhes pediu o mesmo de volta, os arguidos teriam mais é que devolver.
Aliás a arguida diz, que devolve o dinheiro à assistente se ela lhes pedir pessoalmente e se se retratar.
Ora, daqui só pode o tribunal concluir que os arguidos sabem que têm que devolver o dinheiro à assistente, e que só não o fizeram ainda porque não quiseram.
Assim, duvidas não existem em como os arguidos se apropriaram dos valores supra referidos, tendo agido da forma descrita de forma deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida.
Quanto aos valores em divida para formar a sua convicção o Tribunal baseou-se no teor dos supra referidos documentos nos autos onde resulta de forma clara o modo como se chegou aos valores de que os arguidos se apropriaram.
Quanto aos factos dados como não provados, o descrito em 2.2.1. já foi supra explicado.
Quanto ao facto 2.2.2. o Tribunal baseou-se nas declarações da assistente, em conjugação com o extrato bancário, pois destas resulta que a assistente chegou a fazer a transferência de €2.500.
No que concerne ao valor total em divida, o tribunal teve que descontar ao valor inicial a transferência efectuada pela arguida AGSS para a outra conta da assistente.
Por fim quanto ao facto descrito em 2.2.4. não foi feita qualquer prova.
Quanto aos demais factos alegados pela defesa os mesmos não foram tidos em conta uma vez que não têm ligação directa com os factos em discussão nos autos.
*
III – Enquadramento Jurídico:
3.1. Abuso de confiança
O crime de abuso de confiança vem previsto no artigo 205º do Código Penal que estatui que:
“1. Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O procedimento criminal depende de queixa.
4. Se a coisa referida no n.º 1 for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos ou pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.
5. Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de um a oito anos”.
O crime de abuso de confiança, previsto no art.º 205º, consiste na apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio.
É a violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção.
O abuso de confiança é um delito especial, uma vez que autor só pode ser aquele que detém uma qualificação determinada, resultante da relação de confiança que o liga ao proprietário da coisa recebida por título não translativo da propriedade, e que fundamenta o especial dever de restituição.
Além da falta de subtracção, no abuso de confiança também não existe violência, ameaça, ou qualquer forma de constrangimento, que integram a execução do crime de roubo.
São assim elementos do tipo:
- A apropriação ilegítima
- De coisa alheia móvel
- Entregue por título não translativo de propriedade.
O objecto do crime de abuso de confiança é sempre uma coisa móvel alheia relativamente à qual o agente detinha já a posse ou detenção
Para efeitos penais considera-se coisa toda a substancia corpórea, material, susceptível de apreensão, pertencente a alguém e que tenha um valor qualquer, mas juridicamente relevante.
E considera-se alheia toda a coisa que, segundo o direito civil, pertence, pelo menos em parte, a outra pessoa que não o agente.
O crime de abuso de confiança supõe uma entrega válida de coisa móvel, entrega feita por título não translativo de propriedade e que no caso se não justifique a apropriação, antes se constituindo a obrigação de afectação a um uso ou fim determinado, ou de restituição.
Quanto a este elemento deve entender-se que, para a sua verificação não é necessário um acto prévio material de entrega do objecto, bastando que o agente se encontre investido num poder sobre o mesmo que lhe dê a possibilidade de o desencaminhar ou dissipar, podendo tratar-se de uma entrega directa ou indirecta, cabendo aqui a entrega jurídica da coisa, (neste sentido o Ac. RC de 23-4-98, CJ, II, 60).
Assim o Ac. STJ de 28-2-96, (CJSTJ, I, 214), entendeu que basta que por mandato ou administração o agente fique com a faculdade de dispor da coisa de maneira a ser possível desencaminhá-la ou dissipá-la, como sucede com o gerente de uma cooperativa que tem poder sobre o património desta, sem que tenha havido um acto concreto de entrega.
A lei não refere como exigência típica a licitude da entrega ou recebimento. E como refere o Prof. Figueiredo Dias não se vê que por simples efeito da ilicitude do acto de entrega as exigências político-criminais que se pretende satisfazer através da incriminação desapareçam. Pode mesmo afirmar-se que em caso de ilicitude a exigência de protecção do bem jurídico surgirá em muitos casos acrescida, por isso o carácter ilícito da entrega não tem de excluir por necessidade a relação de fidúcia que sempre deve interceder entre quem entrega a coisa e o agente.
No crime de abuso de confiança o agente não se arrisca, numa actividade mais ou menos complicada tendente a apoderar-se da coisa, uma vez que ela lhe vem parar às mãos, por meio de uma entrega voluntária, do seu proprietário, ou de terceiro.
Com efeito, de início, o agente recebe validamente a coisa, passando a possui-la, ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, mas, posteriormente, vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse, ou detenção, passando a dispor da coisa como dono, uma vez que deixa então de possuir em nome alheio, e faz entrar a coisa no seu património, ou dispõe dela como se fosse sua, com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, ou, sabendo que não mais o poderia fazer. (neste sentido Ac. RC de 8-5-02, CJ, III, 43).
Assim o agente, ilegitimamente, inverte o título de posse em que foi investido pelo titular da coisa, fazendo-a sua, deixando de ser possuidor legítimo em nome alheio e passando a ser possuidor ilegítimo em nome próprio.
Para o Ac. RC de 8-5-02, (CJ, III, 43), a inversão do título de posse tem de resultar de actos objectivos susceptíveis de revelarem que o agente já está a dispor da coisa como se fosse sua.
São assim vários os actos que podem evidenciar ou indicar a apropriação indevida relevante para caracterizar o abuso de confiança, nomeadamente a venda, a doação, o consumo, a dissipação, a cessão, a penhor, a caução, a ocultação, a retenção sem causa legítima ou motivo razoável, etc.
Logo, não basta para caracterizar a apropriação atitudes neutras como a mera recusa de devolução da coisa, pois esta pode ter razões legítimas a fundamentá-la, isto porque o direito de retenção, bem como o direito de compensação podem legitimar a recusa de restituição (art.754º, 755º, art.847ºe 1274ºCC), sendo que em qualquer destes casos ocorre o exercício de um direito e não o cometimento de um crime.
A RE no seu Ac. de 14-3-00 (CJ, II, 280), estabeleceu que continuando a coisa ou coisas em poder do arguido e não havendo nos autos prova da inversão do título de posse, carecem os autos de elementos probatórios indiciários da prática pelo arguido de um crime de abuso de confiança.
Também a jurisprudência tem entendido que a apropriação deve ser evidenciada por actos objectivos, minimamente reveladores de que o agente passou a dispor da coisa que lhe foi entregue a título não translativo, como se fosse sua e com essa intenção.
O dolo é igualmente um elemento do tipo legal do crime, e consiste em que o agente saiba que deve restituir, apresentar ou aplicar a certo fim, a coisa que detêm em seu poder e que queira apropriar-se dela, isto é integrá-la no seu próprio património, bastando por isso o dolo genérico, não sendo possível punir o crime a título de negligência.
O erro, desde que verse sobre os elementos constitutivos, de facto ou de direito, do tipo objectivo de ilícito, exclui o dolo, nos termos do artigo 16º n.º 1. O erro, que verse sobre a valoração jurídica de um qualquer elemento constitutivo daquela ilegitimidade, ou sobre a existência e âmbito da causa justificativa, só pode relevar, pela via da falta de consciência da ilicitude, nos termos do art.º 17º.
O Prof. Eduardo Correia defende que a intenção de restituir exclui o dolo de apropriação e, por conseguinte, o tipo subjectivo do crime de abuso de confiança, revestindo particular importância relativamente a coisas recebidas a título de depósito. Acentua ainda que não basta uma qualquer vontade de restituir, sendo indispensável que o agente represente como seguro que, no prazo e nas condições juridicamente devidas, efectuará a restituição da coisa recebida.
O crime de abuso de confiança consuma-se no momento em que se verifica a inversão do título de posse, isto é, no momento em que o agente passar a dispor da coisa animo domini.
Por isso, deve entender-se que a inversão do título de posse, em princípio, surge com o acto de apropriação, situação que ocorre quando, estando a coisa na posse, ou detenção do agente por modo legítimo, embora a título não translativo de propriedade, ele se aproprie da mesma, actuando como seu dono.
De acordo com o Ac. STJ de 12 -1-94, (CJ, I, 195), o crime de abuso de confiança consuma-se quando o agente, que recebe a coisa por título não translativo de propriedade, para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini. Essa inversão do título de posse carece de ser demonstrada por actos objectivos reveladores que o agente já está a dispor da coisa como se fosse sua.
Não sendo possível determinar um acto material anterior que indicie a apropriação, é forçoso admitir-se que o momento da consumação é o da negativa de restituição, ainda que, verdadeiramente, tenha sido outro, quando o agente, devidamente solicitado, se recusa a devolver a coisa possuída ou detida em nome alheio.
A acção executiva característica do abuso de confiança não tem necessariamente que traduzir-se em condutas positivas, pois a mera omissão pode consubstanciar já o necessário para a consumação deste tipo de ilícito, será o caso de quem recebeu dinheiro para efectuar um pagamento e não o efectua em tempo razoável.
Nos presentes autos estão em causa um crime de abuso de confiança agravado.
Assim, analisando o caso concreto e face à matéria dada como provada, resulta claro o preenchimento pelos arguidos na prática deste crime.
Senão vejamos.
Resultou provado que os arguidos abriram com o dinheiro e aplicações financeiras transferido pela assistente, e decidiram apoderar-se dessas quantias no valor global de € 63.490,48, integrando-as no seu património e assim as fazendo suas.
Para além disso também ficou demonstrado que os arguidos não devolveram tais valores à assistente quando interpelados para o efeito tendo ficado com as mencionadas quantias, utilizando-as como se fossem suas.
Com esta conduta os arguidos apropriaram-se ilegitimamente de uma coisa que não lhes pertencia a título pessoal e que lhes competia orientar apenas no interesse da assistente, bem sabendo que aquelas quantias não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade e sem autorização do respectivo dono.
Uma vez que os arguidos agiram de forma livre e consciente também resulta preenchido o elemento subjectivo deste tipo de crime.
*
IV – Medida Concreta Da Pena:
Impõe-se agora determinar a medida e a espécie de pena a aplicar à arguida, operação que comporta três momentos distintos:
- determinação da moldura penal abstractamente aplicável,
- determinação, em concreto, da medida da pena,
- escolha, de entre as espécies de penas possíveis, da pena a aplicar, segundo o critério que a lei dá (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, Almedina,15ª ed., 2002, p. 245).
Para a respectiva concretização socorre-se o julgador dos critérios orientadores plasmados nos artigos 40º, 70º e 71º, do CP, ou seja, atende à culpa do agente -limite para além do qual não pode situar-se a pena concreta - e aos fins das penas - exigências de prevenção geral e especial.
Vejamos, pois:
O crime de abuso de confiança que o arguido praticou é punido neste caso na pena de prisão de um a oito anos.
Para a escolha e determinação da medida concreta da pena, há que tomar em consideração todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, as necessidades de prevenção e o grau de culpa do mesmo.
Assim, há que ponderar no caso concreto:
- A ilicitude dos factos atendendo às circunstâncias em que os mesmos ocorreram;
- a gravidade das suas consequências – designadamente, o prejuízo que a assistente sofreu;
- A intensidade do dolo - directo;
- O conjunto de solicitações, internas e externas, que determinaram o comportamento dos arguidos;
- A conduta anterior e posterior aos factos: os arguidos não têm antecedentes criminais de idêntica natureza;
- As exigências de prevenção geral que determinam a imposição de medidas que tenham em vista dissuadir a prática deste tipo de infracções que não se podem questionar.
Tudo visto e ponderado, afigura-se justo e adequado aplicar a cada um dos arguidos a pena de 2 (dois) anos de prisão, em relação ao crime praticado.
No entanto, entende o Tribunal que esta pena não deve ser efectiva.
Mas, e conforme resulta do seu CRC a aplicação de uma pena de prisão substituída por trabalho a favor da comunidade não assegura de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. De facto, a gravidade dos factos e o comportamento dos arguidos de total indiferença e ausência de interiorização do mal do mesmo, impedem pois a substituição da pena de prisão por trabalho a favor da comunidade, que não serve pois de forma cabal a necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes.
No entanto, o mesmo não se passa com a suspensão da execução da pena de prisão.
O art.º 50.º Código Penal confere ao tribunal o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão aplicada desde que verificadas determinadas circunstâncias, atinentes quer aos factos quer à personalidade do agente, suas condições de vida, sua conduta anterior e posterior ao facto, que permitam ao julgador formular um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do arguido, por ser de concluir que “a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, previstas no art.º 40.º n.º1 Código Penal (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 337 e ss. e “Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão da execução da pena”, RLJ ano 124, p. 68 e ss.).
Subjacente ao instituto da suspensão da execução da pena “é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio da valoração do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer essa vontade de delinquir” (Acórdão do STJ de 08/05/1997, proc. n.º 1293196).
Como justamente se salientou no Acórdão do S.T.J. de 8-5-1997 (Proc.º n.º 1293/96) “ factor essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio da valoração do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir”.
Não se olvida que, numa perspectiva dogmática, o instituto da suspensão da execução da pena de prisão se liga menos com considerações de culpa e de prevenção especial e muito mais com as exigências de prevenção geral.
Contudo, não se podem levar tão longe as exigências de prevenção geral, nem considerar apenas estas para que opere o instituto da suspensão da execução, sob pena de ultrapassarem o limite da culpa, transformar o arguido em autêntico objecto de expiação social e colocar este instituto à mercê da vontade comunitária.
Face ao exposto, e considerando que a pena de prisão foi fixada em 2 (dois) anos, tudo devidamente ponderado, entendo que deve ser-lhe dada uma nova oportunidade, tudo apontando para que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que se deverá suspender a execução da pena de prisão em que vai condenado o arguido, fixando-se o período de suspensão da execução em 2 (dois) anos.
Porém, dada a personalidade dos arguidos, a suspensão da execução da pena de prisão fica condicionada, ao pagamento do peticionado no pedido cível, no prazo da suspensão, à assistente (artigo 51º n.º 1 alínea c) do Código Penal).
*
IV – Do Pedido De Indemnização Civil:
CAAS deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos pedindo a condenação destes no pagamento de uma indemnização, no montante de €115.500 (cento quinze mil e quinhentos euros), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data dos factos até efectivo e integral pagamento.
Nos termos do disposto no nº 1, do artigo 483º, do Código Civil, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Segundo o art.º 562º do CC “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Existindo obrigação de indemnização apenas em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art.º 563º do CC).
Sendo abrangido na obrigação de indemnização quer os danos emergentes, quer os lucros cessantes (art.564º n.º 1 do CC).
Sendo considerados danos emergentes as despesas necessárias, normais e razoáveis que o demandado teve por causa da lesão.
Já os lucros cessantes compreendem os benefícios que o lesado com probabilidade, teria obtido se não tivesse sofrido a lesão.
Para a determinação exacta da indemnização devida aplicam-se as teorias da causalidade adequada e da diferença.
A obrigação de indemnizar cobre por isso os danos previsíveis que nas condições concretas da causa, segundo as circunstâncias reconhecíveis à data do ilícito, dele resultem, salvo aqueles em relação aos quais o ilícito se possa considerar de todo indiferente.
Ora, resultou provado que devido á conduta dos arguidos a assistente teve um prejuízo de €63.490,48.
Logo, os arguidos devem a título de indemnização por danos patrimoniais esse mesmo montante.
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No que diz respeito aos danos de natureza não patrimonial, o artigo 496º n.º 1 do Código Civil estabelece que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito”.
Salienta Vaz Serra (RLJ 113-96) que o n.º 1 deste art.º tem alcance geral, é aplicável quer se trate de danos não patrimoniais resultantes de lesão corporal, quer de outros, desde que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, I, 2ª edição, pág. 434) a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deve ter em linha de conta as circunstancias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada), enunciando como possivelmente relevantes a dor física, a dor psíquica resultante de deformações sofridas, a ofensa à honra ou reputação de um indivíduo ou à sua liberdade pessoal, e como não justificativas os simples incómodos ou contrariedades.
Está assim estabelecido um critério que consiste em conceder ao ofendido uma quantia em dinheiro considerável, adequada a proporcionar-lhe alegria ou satisfação, que de algum modo contrabalancem as dores, desilusões, desgostos ou outros sofrimentos, que o ofensor lhe tenha provocado; assim, será o Tribunal que, equitativamente, terá de fixar os danos relevantes e qual a indemnização que lhe corresponderá, de harmonia com as circunstancias de cada caso, o que importará numa certa dificuldade de calculo, com o inerente risco de nunca se estabelecer indemnização rigorosa e precisa (Acórdão STJ de 16 de Abril de 1991, BMJ 406-618).
Ora a indemnização por danos não patrimoniais não visa reconstruir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, mas sim compensar, de alguma forma o lesado pelos momentos negativos que passou e sancionar a conduta do lesante. O que se trata é de impor ao ofensor uma sanção em benefício do ofendido (Inocêncio Galvão Telles, Obrigações, 5ª edição, pag.354).
Em face da factualidade dada como provada nos presentes autos, não existe qualquer obrigação que recaia sobre os demandados de ressarcir a assistente pelos danos de natureza não patrimonial por esta sofridos, uma vez que não se mostram preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil previstos no normativo legal supra citado.»

3. - Apreciação do recurso
Através do presente recurso pretendem os recorrentes impugnar a decisão da matéria de facto e da matéria de direito.
No que concerne à matéria de facto, os recorrentes põem em causa a decisão recorrida por diversas vias.
Começam, desde logo, por questionar a validade das declarações para memória futura, essencialmente, por duas ordens de razões que assim se sintetizam:
- A tomada de declarações para memória futura teve lugar em situação não prevista no artigo 271.º do Código de Processo Penal porquanto não foi comprovado que CAAS padecesse de doença grave;
- A tomada de declarações para memória futura teve lugar antes da constituição dos denunciados como arguidos, impedindo o defensor oficioso nomeado de concretizar a respetiva defesa em tal ato, o que é violador do direito a um processo equitativo (previsto no artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P. e artigo 6.º da CEDH), do direito ao contraditório (plasmado no artigo 32.º, n.º 5, da C.R.P.) e do direito ao patrocínio judiciário, na vertente da escolha de mandatário (protegido pelo n.º 2, do artigo 20.º, da C.R.P.).
Tal determina, do ponto de vista dos recorrentes, que «os factos dados como provados com fundamento na prova por declarações futuras e que nos termos da sentença são os que constituem infração criminal, a saber, os pontos 2.1.2, 2.1.3, 2.1.4, 2.1.7, 2.1.9, 2.1.10., 2.1.11 e 2.1.12, nos termos em que estão configurados na mesma, não possam ser dados como provados».
Sucede que, como emerge dos autos e os próprios recorrentes admitem na motivação, tais questões foram já submetidas à apreciação do tribunal, concretamente no requerimento de abertura de instrução formulado pela arguida CFSS, como causa de nulidade da prova obtida em declarações para memória futura que arguiu, tendo sido alvo de decisão judicial [decisão instrutória], que a indeferiu com fundamento na sua falta de razão. Também na contestação apresentada por todos os arguidos foram reiterados tais argumentos como fundamento da pretensão de tomada de declarações à assistente em sede de audiência de julgamento, que foi indeferida por despacho judicial datado de 23.09.2021.
Tais questões prendiam-se, essencialmente, com a validade da obtenção do meio de prova por declarações para memória futura, quer em razão do preenchimento dos requisitos para a sua admissão, quer em razão das circunstâncias em que foram concretamente efetuadas – nomeadamente antes da constituição dos arguidos como tal e a representação destes por defensor não escolhido por si, mas antes por defensor oficioso que lhes foi nomeado que não teve contacto com eles e desconhecia a sua versão dos factos –, não tendo sido interposto recurso das sobreditas decisões judiciais, cujos fundamentos se mantêm válidos.
Questão diversa, porém, como projeção daquelas questões na fase de julgamento, é a validade das declarações para memória futura enquanto meio de prova e a valoração que o tribunal a quo fez das mesmas no confronto com os demais meios de prova e da convicção que alcançou, atento o concreto circunstancialismo em que foram prestadas, que se inscreve no âmbito da apreciação da prova.
Não obstante, estando tais questões claramente interligadas, impõe-se a sua análise conjunta.
Inspirado pelos princípios da imediação e oralidade, por um lado, e da publicidade e do contraditório, por outro, impõe o n.º 1 do artigo 355.º do Código de Processo Penal que “[n]ão valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação de convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”, ressalvando o n.º 2 “as  provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes”, ou seja, nos artigos 356º e 357º.
Uma das ressalvas corresponde, precisamente, às declarações para memória futura tomadas nos termos do artigo 271º e 294º – artigo 356.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
Embora a lei admita, de forma inequívoca, as declarações para memória futura como meio de prova a valorar em sede de julgamento, decorre da alegação dos recorrentes, em suma, que a sua validade e valoração está fortemente comprometida pela circunstância de não ter sido observado o princípio do contraditório na sua plenitude, nos moldes por si esgrimidos ao longo do processo e também no presente recurso nos termos supra sintetizados, e de também o princípio da imediação estar afetado, uma vez que tais declarações não foram produzidas perante o juiz de julgamento.
Vejamos.
Sob a epígrafe «Garantias de processo criminal», estabelecem os n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa que:
«1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
[…]
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.»
Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira[4], em anotação ao citado artigo, «Não é inteiramente líquido o âmbito normativo-constitucional do princípio do contraditório. Relativamente aos destinatários, ele significa: (a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; (b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afetados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efetiva no desenvolvimento do processo; (c) em particular, direito do arguido de intervir no processo, e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; d) proibição por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respetivos fundamentos.
Quanto à sua extensão processual, o princípio abrange todos os atos suscetíveis de afetar a sua posição, e em especial, a audiência de discussão e julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar, devendo estes serem selecionados sobretudo de acordo com o princípio da máxima garantia de defesa do arguido».
Na fase de julgamento o direito de audiência e o direito ao contraditório asseguram ao arguido presente em audiência de julgamento a possibilidade de «se pronunciar e contrariar todos os testemunhos ou meios de prova»[5], pessoalmente e através do seu defensor, em consonância com o disposto no artigo 327º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
No caso da prova por declarações para memória futura, em consonância com o estabelecido no artigo 271º do Código de Processo Penal, o princípio do contraditório é exercido essencialmente no momento em que a prova é produzida, quer através da obrigatória comunicação ao Ministério Público, ao arguido (se já estiver constituído), ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis do dia, hora e local da prestação do depoimento para que possam estar presentes (n.º 3), quer, em especial, da faculdade que, com exceção do arguido, a todos é reconhecida de formular perguntas adicionais àquelas que o juiz de instrução tiver começado por colocar à testemunha (n.º 5).
Todavia, como se assinala no acórdão para fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2017[6], «(…) os depoimentos para memória futura não são excluídos do contraditório, em audiência de julgamento, na medida em que podem ser apresentadas testemunhas ou outras provas para contradizer o que ali foi declarado.»
Como se ponderou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.01.2022[7], “O artigo 32.º, n.ºs 5 e 6, da C.R.P. estabelece que a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar estão subordinados ao princípio do contraditório, e que a lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em atos processuais, incluindo a audiência de julgamento. É o caso da diligência de tomada de declarações para memória futura, em que apenas é obrigatória a presença do defensor e do Ministério Público (artigo 271.º, n.º 3, do CPP). A presença dos demais sujeitos processuais, incluindo o arguido, na diligência de inquirição para memória futura, é facultativa. Para o Conselheiro Henriques Gaspar, relator do Acórdão do STJ de 07.11.07, disponível em www.dgsi.pt, “o princípio do contraditório tem uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspetiva processual significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afete o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que os outros sujeitos processuais (a parte adversa). Na verdade, de acordo com o artigo 271.º, n.º 8, do C.P.P. “A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”. Para além de que, nos termos do artigo 356.º, n.º 2, a), do C.P.P. é permitida a leitura de declarações para memória futura tomadas nos termos dos artigos 271.º e 294.º».
Também no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.11.2009[8] se refere que «(…) o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já se pronunciou diversas vezes no sentido da conformidade com o artigo 6º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de procedimentos em que o arguido não tenha possibilidade de confrontar diretamente a vítima em audiência, desde que o seu defensor possa inquirir a testemunha nas fases prévias ao julgamento, mormente em incidente de produção de prova antecipada Cfr. Casos Saidi c. França, 1993; Doorson c. Os Países Baixos 1996; A.M. c. Itália, 1999; P.S. c. Alemanha, 2001, S.N. c. Suécia, 2002; Rachdad c. França, 2004; e Accardi c Itália, 2005, todos acessíveis em www.echr.coe. Na jurisprudência nacional, cfr. o Ac. do STJ de 07/11/2007, Pº 07P3630, relator Cons. Henriques Gaspar, www.dgsi.pt, como aconteceu nos presentes autos».
O princípio do contraditório não está, pois, diretamente relacionado com a apreciação dos meios de prova efetuada pelo tribunal, embora esta pressuponha, naturalmente, a garantia de que foi facultado o seu exercício de modo cabal aquando da produção e análise de tais meios probatórios.
Já o princípio da imediação está, obviamente, condicionado pela circunstância de as declarações para memória futura – documentadas em formato audiovisual, audiofónico ou escrito (artigos 363º e 364º ex vi do artigo 271º, n.º 6, todos do Código de Processo Penal) – não serem produzidas perante o juiz de julgamento, o qual apenas toma contacto com tal elemento de prova mediante a sua reprodução/leitura, sendo, naturalmente, o grau de comprometimento de tal princípio crescente segundo a ordem dos formatos mencionados.
Com efeito, os princípios da imediação e da oralidade pressupõem que a decisão jurisdicional deve ser proferida por quem tenha assistido à produção das provas e à discussão da causa pela acusação e pela defesa (imediação), através de um debate oral (oralidade), que haja uma relação de proximidade comunicacional entre o juiz e os intervenientes processuais, que permita que aquele adquira uma perceção própria do material probatório.
Isto porque vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Como decorrência, ainda que norteada pela lógica e pelas regras da experiência comum, a apreciação que o juiz do julgamento faz da prova não pode deixar de ser «... uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais –, mas em todo o caso, também ela (deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.»[9]
Existem determinados fatores que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto direto com os intervenientes e que são determinantes da convicção daquele sobre a credibilidade das declarações produzidas, mormente os pertencentes à linguagem não-verbal.
É, pois, evidente que, como se assinalou no aludido acórdão para fixação de jurisprudência, «(…) a utilização das declarações para memória futura importa sempre uma compressão dos princípios de imediação, oralidade, contraditório e publicidade subjacentes à audiência de julgamento, na medida em que a tomada de declarações da pessoa não ocorre em audiência de julgamento, perante o juiz do julgamento.
Todavia, também não se poderá ignorar que esta compressão encontra-se justificada ou legitimada perante outros interesses ou valores, também eles, fundamentais, como a proteção do interesse da vítima - quanto a declarações para memória futura de crimes contra a liberdade ou autodeterminação sexual e crime de tráfico de pessoas - e/ou do interesse público da descoberta da verdade material - mormente quanto às declarações para memória futura por doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento (conservação da prova).
Consideramos que o legislador, com as alterações de 2007, alcançou um equilíbrio nesta dicotomia de interesses e valores envolvidos, numa concordância prática, perante os requisitos a que devem obedecer as declarações para memória futura para poderem valer em julgamento: o caráter pontual e limitado das mesmas (aplicável apenas às situações expressamente previstas na lei); a existência e reforço de contraditório (princípio do contraditório) - seja pela notificação dos sujeitos processuais e pela presença obrigatória do Ministério Público e do defensor do arguido, seja pela formulação direta de questões (principio da oralidade – debate oral); por último, a possibilidade do declarante ser ouvido em audiência de julgamento, mediante determinadas circunstâncias (artigo 271.º, n.º 8, do CPP - princípio da imediação – cross examination).»
No caso vertente, a assistente prestou declarações para memória futura em 15.01.2019, conforme ata de fls. 72, ainda antes de os denunciados serem constituídos arguidos – o que apenas viria a ocorrer em 14.09.2020 [cfr. fls. 275, 279 e 283] –, tendo sido nomeado defensor oficioso para os representar, que esteve presente, tal como o magistrado do Ministério Público e a mandatária da primeira. A diligência foi documentada em formato audiofónico e, posteriormente, foram transcritas as declarações da assistente e as intervenções dos participantes.
Conforme antes decidido no processo e em face das considerações supra expendidas, não foi violada nenhuma disposição legal, mormente as invocadas pelos recorrentes, nada obstando a que se atenda às declarações para memória futura enquanto meio de prova válido, devendo, porém, na valoração das mesmas, ter-se em consideração a incontornável compressão dos princípios do contraditório e da imediação que implicam nos moldes antes explicitados. 
Tal não determina, como consequência direta e necessária, como pretendem os recorrentes, que os factos considerados provados com base nas declarações para memória futura sejam dados como não provados, até porque não o foram exclusivamente com base naquele meio de prova, mas antes em resultado da sua conjugação com outros elementos probatórios.
O circunstancialismo em que foram produzidas as declarações para memória futura será, assim, ponderado no âmbito da impugnação da matéria de facto promovida pelos recorrentes.
Efetivamente, argumentam os recorrentes que alguns segmentos dos pontos da matéria de facto impugnados devem ser dados como não provados e/ou alterada a sua redação pela forma que propõem, em virtude de a prova constituída nos autos e produzida em audiência de julgamento impor decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo.
Antes de analisarmos em concreto as pretensões dos recorrentes, convém esclarecer o cenário em que nos movemos.
Existem duas formas distintas de impugnação da decisão factual:
- Uma, de âmbito mais restrito, comummente designada de revista alargada, contemplando os vícios da decisão recorrida previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal; e
- Outra, a impugnação ampla da decisão da matéria de facto, em consonância com o disposto no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
 Esta última é o mecanismo adequado para tentar reverter o erro de julgamento, o qual resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Tal erro pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, a fundamentação da sentença consta, nomeadamente, da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
Por seu lado, face ao disposto no artigo 368º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a enumeração dos factos provados e não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua aprecia­ção e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização e, ainda, sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa. Com efeito, dispõe expressamente o n.º 4 do artigo 339º do Código de Processo Penal que a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.
A enumeração dos factos provados e não provados revela, assim, aqueles que foram efetivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo de prova.
O recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, sobre este recaindo o ónus de proceder à tríplice especificação elencada no artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal:
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas”.
A referida especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados[10].
Por seu turno, «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado[11].
Finalmente, «a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430º do Código de Processo Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência – havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes»[12], em consonância com o estabelecido nos nºs 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
Ora, no caso em apreço, os recorrentes/arguidos individualizaram os factos que constam na sentença recorrida que consideram incorretamente julgados – os insertos nos itens 2.1.2., 2.1.3., 2.1.4., 2.1.5., 2.1.6., 2.1.11. e 2.1.12 – e procederam às demais especificações legalmente exigidas, mormente a indicação das provas que, na sua ótica, impõem decisão diversa.
Concretizando.
No que respeita ao ponto 2.1.2. [“os arguidos(…) apresentaram junto da assistente uma procuração (…) ao que aquela assinou”], entendem os recorrentes, em síntese, que, para além do mais, por tal não estar de acordo com o documento de folhas 7 a 11, de onde consta que a procuração foi outorgada pela assistente e seu marido e que configura um instrumento notarial (artigo 116.º, n.º 1, do Código do Notariado), logo, redigido pelo Notário, deve, ao invés, ter a redação que propõem:
“No dia 11-02-2014 a assistente CAAS e seu marido ACS, em face da amizade com os arguidos e conforme combinado entre eles, outorgaram a favor destes uma procuração, conferindo-lhes poderes gerais de administração civil, podendo reger e gerir todos os bens deles outorgantes, atuando em conjunto ou isoladamente, assim, para:
- representar os outorgantes junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas e autoridades, nomeadamente, mas não exclusivamente, Serviços Municipalizados, EDP, nos Serviços de Finanças, requerendo isenções de impostos, reclamando dos indevidos ou excessivos, recebendo títulos de anulação e suas correspondentes importâncias, declarando, liquidando impostos ou contribuições, requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, fazer manifestos, alterá-los ou cancelá-los, apresentar relações de bens, subscrevendo em seu nome quaisquer requerimentos, reclamações, impugnações ou outros documentos;
- renovar, prorrogar ou rescindir contratos de arrendamento de quaisquer prédios de que eles mandantes sejam arrendatários, no todo ou em parte, pelos prazos, rendas e condições que entender convenientes;
- movimentar qualquer conta de que os mandantes sejam titulares no Banco (…), a débito ou a crédito, nomeadamente depositar e levantar dinheiro ou outros valores, requisitar, sacar, endossar e emitir cheques, apresentar pedidos de cartão de débito, efectuar transferências bancárias, constituir, reforçar, liquidar depósitos a prazo ou poupanças, subscrever, resgatar fundos de investimento, constituir, reforçar ou liquidar carteiras de investimento, efectuar pagamentos à segurança social, para receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que pertençam ou venham a pertencer aos mandantes por qualquer via ou título, passando recibos e dando quitações;
- representá-los junto de quaisquer organismos da Segurança Social, Caixa Nacional de Pensões ou outro organismo de assistência social, Serviços de Saúde, Hospitais ou demais entidades públicas ou privadas equivalentes, para tratar de qualquer assunto que seja dos eu interesse no qual os mandantes tenham que assinar documentos ou requisições, requerer a domiciliação do pagamento das prestações de reforma ou qualquer outro tipo de pensão que seja recebido pelos mandantes em qualquer conta por eles titulada, requerer prestações sociais, complementos sociais e demais tipos de prestações sociais, apresentar comprovativos e documentos;
- assinar e expedir correspondência, receber quaisquer quantias, valores e documentos, levantar nas estações de correios, valores declarados, cartas registadas, encomendas postais e outras mercadorias e tudo o mais o que for dirigido aos mandantes, passar recibos, dar quitações, assinar os conhecimentos e endossos, requerendo, praticando e assinando tudo o que for necessário a estes fins;
- celebrar contratos com a PT Telecomunicações ou outros operadores de Telecomunicações, Serviços Municipalizados de Câmaras Municipais, com a EDP, companhias de fornecimento de gás e demais organismos públicos ou não que assegurem serviços considerados essenciais, bem como efectuar os pagamentos de serviços prestados por essas entidades, nomeadamente através de transferências bancárias ou emissão de cheque;
- proceder à rescisão ou alteração de todos os contratos que haviam sido celebrados entre os mandantes e demais instituições públicas e/ou privadas, assim que entender conveniente, nomeadamente, contratos de prestação de serviços, contratos com os Serviços Municipalizados de Água e demais organismos públicos ou não que assegurem serviços considerados como essenciais, como sendo, com a EDP, PT Telecomunicações, Correios de Portugal, Entidades Bancárias, Companhias fornecedoras de gás ou de Seguros, e podendo para o efeito, receber os reembolsos ou estornos de quantias pagas que sejam devidas pelo término dos contratos e/ou outros instrumentos celebrados entre os ora mandantes e demais organismos/entidades públicas ou não;
- para representar os outorgantes, junto de quaisquer tribunais ou juízos, usando para o efeito de todos os poderes forenses em direito permitidos, incluindo os especiais para transigir nos termos e condições que entender convenientes, no todo ou em parte, e devendo substabelecer os odres forenses em advogado ou solicitador sempre que deles tenha de usar.”
Conquanto o facto em causa seja inócuo para aferir da existência de ilícito criminal, porquanto os factos praticados pelos arguidos/recorrentes suscetíveis de o integrarem não decorrem do uso da procuração que  lhes foi outorgada – como, de resto, os próprios assumem e asseveram –, certo é que efetivamente estamos perante documento autêntico [cfr. artigo 169º do Código de Processo Penal e 363º, 1 e 2, do Código Civil] necessariamente elaborado no circunstancialismo invocado por aqueles e com o conteúdo que do mesmo consta, denotando a redação dada ao facto clara imprecisão e, também, erro de escrita ao referir os arguidos como mandantes quando os mesmos eram, na verdade, mandatários.
Assim sendo, determina-se a alteração do ponto 2.1.2, que passará a ter a redação proposta pelos recorrentes e que aqui damos por reproduzida.
Quanto ao ponto 2.1.3 [Atento o agravamento do estado de saúde do marido da assistente, esta e os arguidos combinaram proceder à transferência dos valores das contas bancárias desta, em titularidade com o seu marido, para uma conta em que fossem titulares os arguidos], sustentam os recorrentes, em resumo, que deve dar-se como não provado, dado que a matéria dali constante, designadamente, um suposto agravamento da doença de ACS como motivo para a abertura da conta em nome dos arguidos, não é referido nem pela assistente – folhas 510 – nem consta dos autos qualquer meio de prova desse suposto “agravamento, ao contrário, o que consta é um documento de alta médica, em 29-11-2016 (dois dias antes da ida ao banco), a aguardar colocação em lar – folhas 517 a 523; tampouco se pode entender que a assistente transferiu para a conta aberta em nome dos arguidos a totalidade das suas poupanças, pois, em 16-12-2016, a assistente transferiu 5.642,88€ para outra conta sua (veja-se Transf. Conta ACS - folhas 13).
Desde logo não consta do facto dado como provado que foi combinada a transferência da “totalidade das suas poupanças”.
Por outro lado, pese embora não seja referido o circunstancialismo de tempo em que ocorreu tal combinação, resulta das declarações da assistente, de modo consentâneo com as regras da experiência comum, que tal ocorreu, precisamente, em virtude do agravamento do estado de saúde do marido, comprovado pela documentação clínica, sendo certo que, apesar de ter tido alta hospitalar em 29.11.2016, voltou a ser internado e viria a falecer em 12.12.2016 (cfr. assento de nascimento com averbamento do óbito de fls. 316/7).
Como tal, inexiste fundamento para se dar como não provado o teor do ponto 2.1.3.
Relativamente aos pontos 2.1.4 [No dia 02-12-2016 os arguidos acompanharam a assistente à agência do BANCO (…) , sita na Avenida 5 de Outubro, Lisboa, e apresentaram à mesma um documento de transferência da quantia de € 90.000,00 e a transferência da quantia de €23.500,00 para o NIB …606, o que esta assinou, convencida de que poderia à mesma dispor daquelas quantias monetárias] e 2.1.5. [A conta bancária nº …606 não pertence à assistente, mas é apenas da titularidade dos arguidos],  entendem os recorrentes, em suma, que devem dar-se como não provados, por a tal se oporem os documentos de folhas 105 a 110 (documentos de abertura da conta numero xxxx 403), 113 a 117 (documentos de transferências para a conta numero xxxx 403), 191, 193 e 526 verso (transferências no total de 55.009,52€ efetuadas pelos arguidos para a assistente), as declarações da arguida CFSS (Minutos 00:43:00.1 a 00:43:53.1 do seu depoimento) e as declarações da testemunha MJJC (minutos 00:00:38.9 a 00:01:26.9, 00:01:54.5 a 00:02:32.2, 00:03:49.4 a 00:05:23.7 do seu depoimento), devendo dar-se como provado apenas:
Quanto ao ponto 2.1.4:
 “No dia 02-12-2016 os arguidos acompanharam a assistente à agência do Banco (…), sita na Avenida 5 de Outubro, Lisboa, a qual solicitou ao funcionário MJJC a abertura de uma conta à ordem em nome dos arguidos, que este abriu com o número xxxx 403, tendo-lhe declarado expressamente não pretender constar da titularidade dessa conta, após o que transferiu para essa conta as quantias de €90.000,00 e de 23.500,00€”
Quanto ao ponto 2.1.5:
“A conta bancária n.º …606, não pertence à assistente, mas, segundo seu desejo expresso, é da titularidade dos arguidos”.
Não assiste razão aos recorrentes pois, pese embora as dificuldades de expressão oral e de precisão terminológica da assistente que transparecem das declarações para memória futura que prestou, compreensíveis, desde logo, em razão da sua idade avançada, é patente que a mesma, em virtude da sua inexperiência em assuntos bancários, procedeu em conformidade com as instruções e os desígnios dos arguidos, que para tanto a influenciaram, estando convencida de que poderia continuar a dispor das quantias monetárias que lhe pertenciam, ainda que mediante solicitação aos arguidos de movimentação da conta bancária para onde foram transferidas, da exclusiva titularidade destes, para fazer face às suas necessidades. Pese embora a testemunha MJJC, funcionário bancário, que depôs de forma isenta, tenha confirmado que a assistente manifestou que não queria constar como titular da conta para a qual seriam transferidas as quantias monetárias, a fim de evitar que a sua irmã herdasse caso falecesse entretanto, tal não exclui que o tivesse feito por ter sido influenciada – como foi, efetivamente –, pelos arguidos – movidos por patente desígnio apropriativo de, pelo menos, parte dessas quantias. Em causa está, essencialmente, a ideia inculcada pelos arguidos na assistente de que esta poderia continuar a dispor livremente das quantias que lhe pertenciam, bastando que o solicitasse, o que foi corroborado pela testemunha MJJC
Improcede, por conseguinte, a pretendida alteração quanto aos pontos 2.1.4 e 2.1.5.
Prosseguem os recorrentes alegando que também os pontos 2.1.11. [Com esta conduta os arguidos previram e quiseram, em conjugação de esforços, induzir CAAS a crer que iria poder dispor do dinheiro transferido para a conta referida em 2.1.4., bem sabendo que tal não correspondia à verdade e dessa forma a enganando, levando-a, consequentemente, a efectuar-lhes entrega de dinheiro, de que os arguidos se apropriaram integrando-o no seu património com o consequente empobrecimento da assistente, no montante total de €63.490,48, da forma acima discriminada, gastando-a em seu proveito, bem sabendo que tal montante pertencia à assistente e que actuavam contra vontade desta, o que fizeram ao actuar da forma acima descrita] e 2.1.12. [Os arguidos actuaram livre, deliberada e conscientemente, sabendo perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida criminalmente] se devem dar como não provados, por, em síntese, a tal se oporem os documentos de folhas 105 a 108 (documentos de abertura da conta número xxxx 403), 110 (documento de transferência de 90.000,00€ para esta conta), 116 e 117 (documentos de transferência de 23.975,00€ para esta conta), 154 (transferência de 113.565,35€ para a CGD), as declarações da assistente extratadas a folhas 511, as declarações testemunhais e MJJC (minutos 00:02:13.3 a 00:02:32.2 e a 00:04.:02.9 do seu depoimento), o contrato celebrado ente os arguidos e o lar de terceira idade a fim de acolher Arl. S (folhas 524 a 526), folhas 191 (transferência de 500,00€ feita pela arguida AGSS à assistente em 03-03-2017), folhas 193 (duas transferências de 2.500,00€ cada feitas por AGSS à assistente em 18 e 19-04-2017), folhas 196 (2.500,00€ transferência feita por AGSS à assistente em 20-07-2017), folhas 526 verso (transferência de 50.009,52€ feita pela arguida AS à assistente em 25-10-2017), o que atesta que os arguidos não só não enganaram nem induziram em erro a assistente, como não se apropriaram de dinheiro, já que a mesma lhes doou sob reserva de dele dispor quando necessitasse, o que os arguidos cumpriram como decorre das entregas de folhas 191, 193, 196 e 526 verso, cumprindo, bem assim, as obrigações de assistência ao falecido ACS, como o demonstram, os documentos de folhas 517 a 523 e 541 e 542 verso, o que atesta que os arguidos não só não enganaram nem induziram em erro a assistente, como não se apropriaram de dinheiro, já que a mesma lhes doou sob reserva de dele dispor quando necessitasse, o que os arguidos cumpriram como decorre das entregas de folhas 191, 193, 196 e 526 verso, cumprindo, bem assim, as obrigações de assistência ao falecido ACS, como o demonstram, os documentos de folhas 517 a 523 e 541 e 542 verso.
Como antes se assinalou, resulta da conjugação das declarações prestadas pela assistente, apesar da falta de rigor terminológico destas, com o depoimento da testemunha MJJC que aquela foi convencida pelos arguidos de que, enquanto fosse viva, o dinheiro transferido para a conta bancária titulada pelos arguidos pertencia-lhe e podia continuar a dele dispor, ainda que mediante solicitação a estes para que diligenciassem pelos movimentos bancários necessários para o efeito. E é certo que os arguidos efetuaram transferências de algumas quantias a favor da assistente, pela forma infra explicitada, no valor total de 58.009,52€, mas a mais significativa – no valor de 50.009,52€ – destinou-se, segundo a arguida CFSS, a custear obras numa casa que era da assistente e que esta havia doado aos arguidos, pelo que revertia em benefício dos próprios. A atuação dos arguidos descrita nos pontos 2.1.8 e 2.1.9, plenamente documentada nos autos, na sequência da interpelação referida em 2.1.7, também comprovada documentalmente e, bem assim, a recusa dos arguidos em restituírem o valor remanescente – 55.490,48€ – são absolutamente expressivos da intencionalidade com que sempre atuaram e da consciência da ilicitude e punibilidade das suas condutas, não sendo minimente plausível, em face das regras da experiência comum, a explicação avançada para o efeito pela arguida CFSS – única que prestou declarações – em audiência de julgamento.
Porém, mercê das comprovadas transferências efetuadas pela arguida AGSS, no valor total de 58.009,52€ – nos moldes infra explicitados – haverá que alterar o valor de que se apropriaram os arguidos para 55.490,48€.
Ademais, inexiste prova de que esta quantia foi gasta pelos arguidos em proveito próprio, mas tão somente que a integraram no seu património.
Assim, decide-se alterar apenas a redação do ponto 2.1.11 que passará a ser a seguinte:
Com a descrita conduta os arguidos previram e quiseram, em conjugação de esforços, induzir CAAS a crer que iria poder dispor do dinheiro transferido para a conta referida em 2.1.4., bem sabendo que tal não correspondia à verdade, dessa forma a levando a efetuar-lhes a entrega de dinheiro, de que se apropriaram, integrando-o no seu património com o consequente empobrecimento daquela, no montante total de €55.490,48, pela forma acima discriminada, bem sabendo que tal montante pertencia à assistente e que atuavam contra a vontade desta.
Sustentam, por fim, os recorrentes que fizeram entregas à assistente, a seu pedido ou por sua sugestão, no valor total de 58.009,52€, em 03-03-2017, 18-04-2017, 19-04-2017, 20-07-2017 e 25-10-2017 – folhas 191, 193, 196 e 526 verso e que apenas se deu como provada a entrega de 50.009,52€ (folhas 526 verso), nada se dizendo quanto às restantes e muito embora os documentos de folhas 191, 193 e 196, tenham sido considerados como elementos probatórios válidos e, como tal, deve dar-se como provado o seguinte:
“Em 03-03-2017, a arguida AGSS transferiu 500,00€ para a conta número 0240 8109 0606, titulada à assistente”.
“Em 18-04-2017 e 19-04-2017, a arguida AGSS transferiu o total de 5.000,00€ para a conta número 0240 8109 0606, titulada à assistente”
“Em 20-07-2017 e 19-04-2017, a arguida AGSS transferiu o total de 5.000,00€ para a conta número 0240 8109 0606, titulada à assistente”.
Conquanto tais factos não constassem de nenhuma peça processual – acusação, pedido de indemnização civil ou, sobretudo, da contestação, uma vez que são favoráveis aos arguidos – emergiram da discussão da causa e mostram-se relevantes para aferir da responsabilidade, quer criminal, quer civil, dos arguidos/demandados, à semelhança do que foi vertido sob o ponto 2.1.6, onde se deu como provada a transferência no montante de 50.0009,52€.
Resulta da documentação bancária a efetivação de mais quatro transferências, além da considerada provada, a saber: em 03.03.2017, no montante de 500,00€ [fls. 191], em 18.04.2017, no montante de 2.500,00€ [fls. 193], em 19.04.2017, no montante de 2.500,00€ [fls. 193] e em 20.07.2017, no montante de 2.500,00 € [fls. 196], perfazendo o total de 8.000,00€.
Assim, decide-se alterar a redação do ponto 1.1.6 que passará a ser a seguinte:
Foram efetuadas as seguintes transferências:
b) Em 03-03-2017, a arguida AGSS transferiu a quantia de 500,00€ para a conta número …606, titulada pela assistente;
c) Em 18-04-2017 e 19-04-2017, a arguida AGSS transferiu a quantia de 2.500,00€ para a conta número …606, titulada pela assistente;
d) Em 19-04-2017, a arguida AGSS transferiu a quantia de 2.500,00€ para a conta número …606, titulada pela assistente;
e) Em 20-07-2017 e 19-04-2017, a arguida AGSS transferiu a quantia de 2.500,00€ para a conta número …606, titulada pela assistente;
a) Em 25.10.2017, a arguida AGSS transferiu a quantia de 50.009,52 € para a conta n.º …004, titulada pela assistente.
Revela-se, pois, parcialmente procedente a pretensão de modificação da matéria de facto nos moldes supra expostos.
Os arguidos recorrem também da matéria de Direito, alegando, em resumo, que não se verificam os elementos do tipo do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º do Código Penal, designadamente a entrega de coisa móvel por título não translativo da propriedade, nem, a ter-se este elemento como provado, a apropriação, porquanto, em suma, o que se provou foi que a assistente lhes deu as quantias monetárias que foram transferidas para a conta bancária titulada por eles, no âmbito de várias doações que lhes foi fazendo, sob condição de lhe entregarem essas quantias caso delas carecesse, como sucedeu. Sustentam, assim, que ocorreu a transmissão da propriedade das quantias monetárias transferidas para os arguidos, em conformidade com o disposto nos termos dos artigos 405º, n.º 1, 940º e 954º, al. a), todos do Código Civil, falecendo, desde logo, o primeiro dos referidos elementos típicos.
Como decorre com meridiana clareza da motivação e da síntese conclusiva neste conspecto, os recorrentes assentam a divergência quanto à qualificação jurídica dos factos na alteração da matéria de facto provada.
Todavia, como se viu, a impugnação da matéria de facto foi apenas parcialmente procedente e quanto a aspetos não essenciais para efeito de integração dos elementos típicos do crime em causa.
Estatui o artigo 205º, nº 1, do Código Penal, que prevê o crime de abuso de confiança, que “quem, ilegitimamente, se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Constituem, assim, elementos do crime de abuso de confiança: a) - a apropriação ilegítima; b) - de coisa móvel; c) - entregue por título não translativo da propriedade; d) - e o conhecimento e vontade de praticar o facto (dolo genérico).
Entre os crimes que atingem de forma absoluta o direito de propriedade, suprimindo definitivamente os poderes do proprietário, destacam-se o furto (art.º 203º), o abuso de confiança (art.º 205º) e a apropriação ilegítima em caso de acessão ou coisa achada (art.º 209º).
Conforme resulta da análise dos respetivos tipos legais, a diferença entre estes crimes decorre do modo como se dá a apropriação da coisa móvel alheia.
No furto tal apropriação ocorre por subtração, traduzida na prática de um ato físico de posse da coisa contra a vontade do dono. O agente, através de um ato físico, tira a coisa móvel do poder de disposição do seu detentor, contra a vontade deste.
Por seu turno, no abuso de confiança a apropriação ocorre por inversão do título, ou seja, a coisa é entregue livremente ao agente, por título não translativo de propriedade, e ele inverte esse título, passando a agir como dono.
Já no crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou coisa achada, a coisa entra na posse do agente por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer outra maneira independente da sua vontade, não existindo subtração nem quebra da relação de confiança (inversão do título).
A diferença entre o furto e o abuso de confiança está na ausência, no caso do segundo, de um ato físico de acesso à coisa móvel, contra a vontade do dono. A coisa chega ao poder de disponibilidade do agente licitamente, para que este a use para determinado fim, em nome e por conta do proprietário. A ilicitude da conduta ocorre depois de o agente ter a coisa na sua esfera de ação, através de uma inversão do título jurídico que legitimava o uso da coisa. O agente que detém a coisa licitamente desvia o seu uso, arrogando-se desse poder de disposição pessoal. É através desta atividade jurídica, quando o agente passa de representante do proprietário a proprietário que se localiza a lesão do bem jurídico protegido pela incriminação.
Dito de outra forma, no abuso de confiança a apropriação consiste em fazer sua a coisa e implica que haja inversão do título da posse ou da detenção, isto é, que o agente, que recebera a coisa uti alieno, passe em momento posterior a comportar-se relativamente a ela uti dominus (naturalmente através de atos objetivamente idóneos e concludentes, ativos ou omissivos, suscetíveis de revelarem que já está a dispor da coisa como lhe pertencendo), ou seja, que deixe de possuir a coisa em nome alheio e a faça ingressar no seu património, dispondo dela como se de coisa sua se tratasse.
Ao invés do que sucede no furto, em que a apropriação intervém como elemento do tipo subjetivo de ilícito (como intenção de apropriação), no abuso de confiança intervém na sua veste objetiva de elemento do tipo objetivo. Enquanto no furto a apropriação acompanha a posse ou detenção da coisa, no abuso de confiança a apropriação sucede à posse ou detenção. Aqui o agente recebe validamente a coisa, passando a possui-la ou a detê-la licitamente, a título precário ou temporário, mas, posteriormente altera, inverte, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor dela ut dominus, sendo este o momento em que se dá a apropriação e a consumação do crime. Consequentemente, enquanto no furto a consumação ocorre no momento em que a coisa deixa de estar sob o poder de detenção ou guarda do sujeito passivo e se transfere para a esfera jurídica do agente, no abuso de confiança ocorre, em princípio, com o ato de inversão do título de posse.
Também o elemento da “entrega da coisa” distingue o furto (ou o roubo ou a burla) do abuso de confiança. Naqueles há lugar à subtração da coisa, ou seja, uma conduta que faz com que ela saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor, implicando, por conseguinte, a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a mesma[13].
Por seu turno, no abuso de confiança a coisa não é subtraída, mas entregue, ou seja, é confiada ou posta à disposição do agente, por vontade do detentor, podendo, também, tal suceder por força da lei.
Daí que o âmbito de proteção do crime de abuso de confiança seja exclusivamente a propriedade, ao passo que no furto, além desta, se protege também a incolumidade da posse ou detenção. É essencial que a coisa objeto do crime de abuso de confiança tenha sido previamente entregue, por título não translativo da propriedade, ao agente. Torna-se, pois, necessário que, no momento da apropriação, o agente já tivesse a posse ou a detenção da coisa, mas não a propriedade.
Os conceitos de posse e de detenção não têm aqui o exato conteúdo jurídico dos seus homólogos do direito civil, devendo antes ser entendidos mais latamente, fazendo-se equivaler ao recebimento de uma coisa enquanto constitutivo de uma relação fáctica de domínio sobre ela. Para que se verifique o elemento da entrega, exige-se que o agente esteja investido de um poder sobre a coisa que lhe dê a possibilidade de a desencaminhar ou dissipar, não sendo, todavia, necessário um prévio ato material de entrega do objeto. Basta, pois, mas exige-se sempre, que o agente fique com a faculdade de dispor da coisa de maneira a ser possível desencaminhá-la ou dissipá-la[14].
Como refere Cuello Calón, a entrega da coisa pode ter lugar de modo expresso e manifesto, que é o mais normal, ou tacitamente, sendo indiferente que seja efetuada pelo seu proprietário ou possuidor ou por terceiro, sempre que atue em representação daqueles. Em qualquer caso, é necessário que a coisa tenha sido entregue ao agente em razão da confiança que inspirava[15].
A propósito da questão da licitude da entrega e do recebimento, Figueiredo Dias defende ser duvidoso que tenha de existir em todos os casos. Em primeiro lugar, porque a lei não a refere como exigência típica. Depois, porque não se vê que, por simples efeito da ilicitude do ato de entrega e/ou recebimento, as exigências político-criminais que se pretende satisfazer através da incriminação desapareçam. E, de todo o modo, o caráter ilícito da entrega não tem de excluir por necessidade a relação de fidúcia que sempre deve interceder ente quem entrega a coisa e o agente (in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, tomo II, pág. 101 e ss.).
Por seu lado, a ilegitimidade da apropriação ocorrerá quando acarrete uma contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade, nomeadamente quando o agente não detenha sobre o desapropriado uma pretensão jurídico civilmente válida, vencida e incondicional.
No que diz respeito aos elementos do tipo subjetivo, trata-se de um crime doloso.
O dolo desdobra-se nos chamados elementos intelectual (representação, previsão ou consciência dos elementos do tipo de crime) e volitivo (vontade dirigida à realização daqueles elementos do tipo – intenção de realizar o facto típico, aceitação como consequência necessária da conduta, conformação ou indiferença pela realização do resultado previsto como possível, nas três modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal – direto, necessário e eventual), a que acresce um elemento emocional que é dado, em princípio, pela consciência da ilicitude[16].
Analisando o acervo fático provado à luz das considerações precedentes mostram-se claramente preenchidos os elementos objetivos do tipo legal de crime em apreço, mormente a entrega de coisa móvel por título não translativo da propriedade [maxime pontos 2.1.4. e 2.1.5] e a apropriação da mesma [maxime pontos 2.1.8. e 2.1.9], bem como o elemento subjetivo [maxime pontos 2.1.11 e 2.1.12]
Mantém-se, assim, intocado o enquadramento jurídico constante da sentença recorrida.
Na verdade, a única alteração relevante prende-se com o valor das quantias devolvidas à assistente – que ascendem ao valor global de 58.009,52€, e não 50.009,52€, donde resulta a apropriação do valor de 55.490,48€, e não 63.490,48€ –, o que não contende com a integração da factualidade no tipo de crime base previsto no n.º 1 do artigo 205º, nem, sequer, com a agravação em função do valor consideravelmente elevado prevista na al. b) do n.º 4 daquele preceito, por referência à al. b) do artigo 202º, todos do Código Penal.
Tal alteração (do valor) também não tem repercussão em sede de determinação da medida concreta da pena por não ser significativa, tendo, porém, obviamente, reflexos no quantitativo da indemnização – correspondente ao prejuízo sofrido pela lesada/assistente em consequência da conduta dos demandados/arguidos –, a cujo pagamento [em sentido impróprio uma vez que não há que pagar, mas antes restituir] foram condenados, que tem que ser corrigido em conformidade[17].
Em suma, os demandados/arguidos têm que restituir à demandante/assistente a quantia de 55.490,48€, e não 63.490,48€ como constava da sentença recorrida, mantendo-se o demais.
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III. – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em concedendo parcial provimento ao recurso interposto nos autos pelos arguidos e, em consequência, em face da alteração da matéria de facto nos moldes supra expostos, revogar a sentença recorrida no que respeita ao quantitativo do pedido de indemnização civil, substituindo-se, nesta parte, pela condenação nos seguintes termos:
- Condenar os demandados/arguidos a restituírem à demandante/assistente a quantia de 55.490,48€ (cinquenta e cinco mil, quatrocentos e noventa euros e quarenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de notificação do pedido de indemnização civil até efetiva e integral restituição, absolvendo-os do demais peticionado.
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Sem custas por não haver decaimento total (artigos 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal.
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(Elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – artigo 94º, n.º 2, do Código de Processo Penal)
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Lisboa, 25 de janeiro de 2023
Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro
Rui Gonçalves
Maria Elisa Marques

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[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e, nalguns casos, da ortografia utilizada, da responsabilidade da relatora.
[2] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[3] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[4] Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, pp. 522-523
[5] José de Faria Costa, “Um Olhar Cruzado entre a Constituição e o Processo Penal”, A Justiça nos Dois Lados do Atlântico. Teoria e Prática do Processo Penal em Portugal e nos Estados Unidos da América, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 1997, p. 192
[6] DR, I Série, Nº 224, 21.11.2017, págs. 6090 - 6113
[7] Disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[8] Disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[9] Cfr. Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", 1º volume, Coimbra, ed. 1974, págs. 203 a 205.
[10] Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1
[11] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[12] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.05.2015, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[13] Vide “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pág. 43
[14] Cfr., neste sentido, os acórdãos da Relação do Porto de 26.03.2003, in Coletânea de Jurisprudência, II, pág. 208, e do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.1996, in Coletânea de Jurisprudência-STJ, I, pág. 214
[15] In “Derecho Penal”, tomo II (parte especial), 1957, pág. 887
[16] Cfr. Figueiredo Dias, “Jornadas de Direito Criminal”, Fase I, Ed. do Centro de Estudos Judiciários, 1983, pág. 71-72, e Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, 1º, pág. 18-19: “Elemento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo; uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas (…) quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever ser jurídico-penal” (vide, do mesmo autor, “Direito Penal, Parte Geral”, tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 333.
[17] O mesmo não se passa com a condição da suspensão da execução da pena de prisão irrogada aos arguidos, que foi fixada no valor “da quantia peticionada no pedido cível” [sublinhado nosso], e não no valor arbitrado a título de indemnização no âmbito do pedido de indemnização civil, não tendo o recurso recaído sobre aquele segmento decisório, pelo que os recorrentes se conformaram com o assim decidido.