Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8768/2006-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: PENHORA
VENCIMENTO
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/02/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: A preocupação do julgador deve ser a da garantia do mínimo de condições de vida do executado, o que passa pela impenhorabilidade de tudo o que possa por em causa a disponibilidade do executado a um rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional.
(CV)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

Na execução ordinária em que é exequente A e em que são executados B e outros, foi ordenada a penhora de 1/3 do vencimento mensal deste executado.

Efectuada a penhora, o executado veio requerer que a mesma penhora incidisse sobre 1/3 do seu vencimento líquido e não ilíquido, como aconteceu.

Tal foi indeferido pelo despacho de 8-7-2005, na consideração de que não resulta da lei que a penhora tenha de incidir sobre a parte líquida do vencimento do executado.

Inconformado com esta decisão, dela o executado interpôs recurso, em cujas conclusões, devidamente resumidas - art. 690º, 1 do CPC -, questiona o valor da percentagem da penhora ordenada sobre o seu vencimento e a sua incidência sobre o montante ilíquido deste.

Não houve contra-alegação e o Sr. Juiz sustentou o seu despacho.

Para lá dos factos constantes do relatório que antecede, há ainda que ter em conta os seguintes:
- a acção executiva foi instaurada em 1999;
- à data da penhora, o salário mensal ilíquido do executado era de € 2.579,96, auferindo o executado o montante líquido mensal de € 1.805;
- a entidade patronal do executado, em cumprimento da ordenada penhora, está a descontar no vencimento iíquido deste a quantia mensal de € 859, correspondente a 1/3 desse vencimento ilíquido.

De acordo com o art. 824º do CPC, na redacção do DL nº 329-A/95, de 12/12, são impenhoráveis 2/3 dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado (nº 1, al. a)), sendo a parte penhorável fixada entre 1/3 e 1/6, segundo o prudente arbítrio do juiz, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as condições económicas do executado (nº 2).
Há ainda que ter em atenção o Ac. nº 177/2002 do TC, de 23-4-2002 (DR, 1ª Série, nº 150, de 2-7-2002), que veio declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da conjugação do disposto na al. b), do nº 1 e no nº 2 do art. 824º do CPC, na parte em que permite a penhora até um terço das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado d direito, e que resulta das disposições conjugadas do art. 1º, da al. a), do nº 2 do art. 59º e dos nºs 1 e 3 do art. 63º da Constituição.
Na atenção do texto da lei, do teor e argumentação do referenciado Ac. do TC e na ponderação do conflito de interesses do exequente e do executado - quanto a este, nomeadamente, a salvaguarda do rendimento mínimo indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna de um qualquer trabalhador, que a lei faz coincidir com o salário mínimo nacional (cfr. preâmbulo do DL nº 217/74, de 27/5, que introduziu o salário mínimo nacional na nossa ordem jurídica) -, temos que a preocupação do julgador deve ser a da garantia do mínimo de condições de vida do executado, o que passa pela impenhorabilidade de tudo o que possa por em causa a disponibilidade do executado a um rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional.
Foi neste espírito que surgiu a alteração do nº 2 do art. 824º do CPC, pelo DL nº 38/2003, de 8/3 - se bem que não aplicável a estes autos (cfr. art. 21º deste diploma legal) -, que veio fixar limites máximos e mínimos à impenhorabilidade prescrita no nº 1 do normativo adjectivo em referência, fazendo coincidir o limite mínimo com o valor do salário mínimo nacional.
Temos, pois, que, quando os 2/3 impenhoráveis do vencimento do executado sejam inferiores ao valor do salário mínimo nacional, a parte impenhorável do seu rendimento terá de se fazer coincidir com o valor deste, nessa medida se limitando a percentagem penhorável.
In casu, a penhora efectuada de 1/3 do vencimento do executado (€ 859), deixa sobrante um rendimento (€ 946) superior ao salário mínimo nacional reportado à data da penhora (€ 374,70, fixado pelo DL 342/2004, de 31/12), pelo que, sem prejuízo da sua eventual redução, ao abrigo do nº 2 do art. 824º do CPC, o que aqui não está em causa, a penhora efectuada respeita o limite que se defendeu, carecendo o agravante de razão quando pretende que a penhora no seu vencimento se atenha ao salário mínimo nacional ilíquidamente considerado.
Todavia, a questão não fica definitivamente arrumada, pois, na atenção do teor do despacho recorrido e só este está em causa, o que, nuclearmente, se discute é se a incidência da penhora se deve fazer no salário ilíquido do executado, como foi feito, ou no salário líquido, o que passa pela interpretação do art. 824º do CPC.
Prescreve o nº 1, do art. 9º do CC que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas e que é essencial a vontade do legislador, captável no quadro do sistema jurídico, das condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, na especificidade do tempo em que são aplicadas.
No nº 2 estabelece-se, por seu turno, que a determinação da vontade legislativa não pode abstrair da letra da lei, isto é, do significado da sua expressão verbal.
Finalmente, no nº 3, dispõe-se, por apelo a critérios de objectividade, que o interprete, na determinação do sentido prevalente da lei, deve presumir o acerto das soluções consagradas e a expressão verbal adequada (Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 3ª ed., págs. 58 e 59).
No fundo, o referido normativo expressa os princípios doutrinários consagrados ao longo do tempo sobre a interpretação das leis, designadamente o apelo ao elemento literal, por um lado, e aos de origem lógica - mens legis ou fim da lei, histórico ou sistemático - por outro.
Interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei (Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, págs. 21 a 26).
Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais do Direito Civil, vol. 1º, 6ª ed., pág. 145).
Daí que, perante as regras de interpretação da lei que resultam do art. 9º do Código Civil, a regra não é a de que onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir, mas, ao invés, a de que onde a lei não distingue deve o intérprete distinguir sempre que dela resultem ponderosas razões que o imponham.
Ora, quando o próprio texto legal fala em vencimento auferido (nº1, a)) e prestações pagas (nº1 b)), só pode ter em vista a penhora do que efectivamente se recebe, aquilo que concretamente é disponibilizado ao executado, ou seja, o seu vencimento, salário ou prestação a título de aposentação líquidos, sob pena, por um lado, de se ultrapassar o limite impenhorável de 2/3 do vencimento, salário ou prestação realmente recebidos, como acontece no caso em apreço (€ 1805 - € 859 = € 946 < € 1203) e, por outro, da própria penhora incidir sobre algo que não constitui rendimento, antes encargo do executado - o correspondente aos respectivos descontos salariais -, o que, há-de convir-se, não se coaduna com os sobreditos princípios subjacentes à boa interpretação das leis e, nomeadamente, com a regra base de que “ na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (nº 3 do art. 9º do CC).
Somos, destarte, de entender que a penhora visada no nº 2 do art. 824º do CPC, na redacção do DL nº 329-A/95, de 12/12, incide nos rendimentos líquidos referidos no nº 1 do mesmo normativo adjectivo.

Pelo exposto, no provimento parcial do agravo, revoga-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, deferindo ao requerido em 10 de Maio de 2005, ordene que a penhora de 1/3 do salário do executado incida apenas sobre a parte líquida deste.

Custas pelo agravante, na proporção de 1/2.
Lisboa, 02-11-2006
Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues