Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9469/2008-3
Relator: CONCEIÇÃO GONÇALVES
Descritores: JOGO CLANDESTINO
JOGO DE FORTUNA E AZAR
MÁQUINA DE JOGO
PRÉMIO
CONTRA-ORDENAÇÃO
CRIME
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. Os jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente da sorte e que estão tipificados no art.º 4º, nº 1 do D.L. 422/89, de 2 de Dezembro.
2. As modalidades de jogos que estão fora desta descrição tipificada, modalidades de jogos cujos resultados também dependem exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não constituem, no quadro da lei, jogos de fortuna ou azar, mas modalidades afins, cuja exploração não autorizada ilegal será de sancionar como contra-ordenação.
Decisão Texto Integral:             Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.

I. Relatório.
           
            1.No Processo comum Singular nº. 104/05.3FJLSB procedente do 1º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, a arguida M, com os sinais dos autos, por sentença proferida em 1 de Julho de 2008, foi condenada nos seguintes termos:
           
            “A) Pela prática de um crime de “exploração de jogo ilícito”, p. e p. pelo artº 108º nºs.1 e 2, do D.L. nº 42/89, de 2.12, na redacção introduzida pelo D.L. nº 10/95, de 19.01, com referência ao artº 4º, nº 1, alínea g), do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) mês de prisão e 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€.
            B) Atento o disposto no artº 44º, nº 1, do C. Penal, substituo-lhe o tempo de 1(um) mês de prisão por 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€.
C) Operando o cúmulo material das penas, condena-se a arguida numa pena única de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€, perfazendo 300,00€ (trezentos euros).
            D) Absolver a arguida da contra-ordenação por que vinha acusada, por força do decurso do prazo de prescrição.
E) Ao abrigo do disposto no artº 109º, nº 1 do C. Penal, declarar perdida a favor do Estado a máquina apreendida e identificada nos autos a fls. 4, bem como os restantes objectos ali identificados.
            F) Ordenar, nos termos do artº 116º, do D.L. 422/89, de 2/12, a destruição daquele jogo”.
           
2.Nessa peça processual o Tribunal considerou provado o seguinte:
“1.No dia 22 de Junho de 2005, a arguida explorava o estabelecimento comercial, tipo bar, sito na Rua …., nº …, no Bairro …, em Lisboa, em Linda-a-Velha;
2.Nessa mesma data, cerca das 14,00 horas e 30.00 minutos, no interior do referido estabelecimento, a arguida tinha expostos, em cima do balcão, em funcionamento e acessíveis ao público que frequentasse o estabelecimento, as seguintes máquinas:
 -Uma máquina extractora de jogo contendo, no seu interior, um número indeterminado de cápsulas de plástico e um cartaz com o Título “XXX”;
-Tal cartaz apresentava dois rectângulos picotados, um contendo 70 quadrados e um outro rectângulo dividido em 45 quadrados com um número e por baixo desses números está impresso o prémio a atribuir;
-O plano de prémios impresso no cartaz corresponde, por experiência adquirida, a prémios a atribuir aos números mencionados no picotado, sendo que dois desses prémios são de 100,00€, cinco de 50,00€, sete de 25,00€, onze de 5,00€ e oitenta e oito de 2,50€;
-Uma máquina extractora de jogo, contendo no seu interior um número indeterminado de cápsulas de plástico e um cartaz expositor de prémios, tendo nele fixados vários objectos à vista que, por sua vez, continham um autocolante onde se encontrava inscrito um número e uma letra;
-Tal número e letra correspondiam sempre a um prémio em espécie que poderia ter valores distintos.
3.As máquinas foram colocadas no estabelecimento por pessoa cuja identificação não foi possível apurar.
4. A arguida, como exploradora do estabelecimento onde era explorado o jogo, sabia que as mesmas se tratavam de máquinas que desenvolviam um jogo de fortuna ou azar e que pagava prémios monetários pelo apostador que ganhava, tendo obrigação de saber que tais tipos de jogos é proibida a sua exploração fora dos locais licenciados para o efeito, agindo livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta é proibida por lei.
5.A arguida é divorciada.
6.Está desempregada.
7.Vive com a filha.
8. Vive em casa própria.
9.Tem, como habilitações literárias, o 2º ano do liceu.
10. Nada consta do seu CRC”

3. Na fundamentação da matéria de facto, fez-se constar o seguinte:
“A convicção do tribunal assentou, na análise crítica de toda a prova produzida em audiência, cotejando todos os elementos, sendo que no que respeita à verificação da existência das máquinas no estabelecimento e apreensão, nas declarações dos guardas que procederam à diligência, que apreenderam a máquina, sendo que a arguida se recusou a assinar o auto de apreensão, tendo-a os agentes identificado.
No que respeita ao modo de funcionamento das máquinas, assentou nos autos de fls. 53 a 60 e que foram arrolados como prova.
No que respeita à situação social e económica da arguida, bem como aos seus antecedentes criminais, nas suas declarações e no C.R.C. junto aos autos”.
                                                                                             
4.Não se conformando com o assim decidido veio a arguida interpor recurso, formulando as seguintes conclusões: (transcrição)
            “1.A sentença não revela o exame crítico das provas, uma vez que se limita a remeter a convicção para o depoimento das testemunhas; para o exame pericial e para o CRC, pelo que é nula, nos termos do disposto no artº 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a), do CPP.
2.Os pontos 1 e 4 da matéria assente foram incorrectamente julgados, uma vez que a exploração do estabelecimento comercial constitui matéria de direito, a qual não é susceptível de ser provada com recurso a prova testemunhal.
3.A ausência de qualquer tipo de prova documental, idónea à sustentação da questão de direito encerrada nestes pontos, conduz ou à absolvição da arguida ou
à baixa dos autos para novo julgamento, restringido à questão de saber se esta era, ou não, exploradora do estabelecimento.

4.O ponto 2 dos factos assentes, quanto ao equipamento pelo qual a arguida foi condenada, revela uma clara insuficiência factual que possa suportar o sentido da decisão. Não é explicado o funcionamento do jogo em causa, limitando-se este ponto a assentar a existência de um cartaz e de prémios em dinheiro.
5.Mesmo a existência de prémios em dinheiro não resulta de qualquer meio de prova, produzido em audiência, mas apenas “da experiência adquirida”, não se sabendo bem de quem.
6.De todo o modo, mesmo admitindo o cartaz e os prémios em dinheiro, a norma aplicável deveria, ao invés da vertida no artº 108º, do DL 422/89, ser a constante nos arts. 160º e 163º, do mesmo diploma, o que implicaria o carácter contra-ordenacional do comportamento imputado à arguida, com a consequente prescrição do mesmo”.

            5. O Ministério respondeu á motivação apresentada, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“1.Analisados os argumentos invocados pela recorrente, não podemos deixar de afirmar que não lhe assiste razão.
2.Foi correcta a apreciação da prova levada a cabo pelo tribunal a quo, não se verificando qualquer erro na sua valoração.
3.A factualidade dada com o assente encontra-se devidamente fundamentada na convicção que o Tribunal criou.
4.Para tanto baseou-se o Tribunal não só no depoimento das testemunhas como na prova documental apresentada pelo MP na acusação e pelo Juiz de Instrução Criminal na pronúncia - prova essa valorada em sede de audiência de julgamento.
5.Mas ainda que assim não fosse, sempre se afirma não ter o recorrente demonstrado, como lhe competia, que o Tribunal tenha cometido o que chama “erro de julgamento” embora recorra da decisão sobre a matéria de facto não expõe os elementos probatórios resultantes das gravações de tais depoimentos.
6.Ao valorar a prova e fundar a sua convicção, o Tribunal não violou qualquer preceito legal não se encontrando a sentença recorrida ferida de qualquer nulidade.
7.Ao contrário do que o recorrente alega não se mostram violadas quaisquer normas legais, designadamente as constantes dos artigos 374º e 379º do CPP.
8.A sentença recorrida fez uma correcta interpretação dos factos e aplicação do direito devendo, portanto, ser confirmada nos seus precisos termos”.

6. O recurso foi admitido pelo despacho de fls.163.

            7.Neste Tribunal, o Srº Procurador-Geral-Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido de que deverá ser alterada a qualificação jurídica dos factos provados, subsumindo antes a conduta da arguida na contra-ordenação prevista no artº 163º, nº 1, por referência aos artigos 159º, 160º, nº 1 e 161º, nº 3, todos do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro, entendendo por isso dever ser a arguida condenada nos termos do artº 77º do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, e não padecer a sentença de qualquer vício ou nulidade.
           
8.Foi cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do CPP, não sendo apresentada qualquer resposta.

            9.Feito o exame preliminar a que se refere o artº 417º, nº 3 do CPP e, colhidos os vistos legais, realizou-se a Conferência.

                                                                       *
            II - Fundamentação.
            O âmbito do recurso, balizado pelas conclusões do recorrente, coloca as seguintes questões que se enunciam por ordem preclusiva:
-Da questão prévia relativa à qualificação jurídica dos factos: crime ou contra-ordenação?
-Da prescrição do procedimento contra-ordenacional.
            -Impugnação da matéria de facto por via do recurso alargado nos termos do artº 410º, nº 2, do CPP com invocação dos vícios previstos nas alíneas a) e c) –  insuficiência da matéria de facto para a decisão e erro de julgamento, e
-Da nulidade da sentença nos termos dos artigos 374º, nº 2, ex vi do artº 379º, nº 1, do CPP (por falta de exame crítico das provas).

 Decidindo.

1.Enquadramento jurídico dos factos.
A recorrente foi condenada pela prática de um crime p. e p. pelo artº 108º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei 10/95, de 19 de Janeiro.
A recorrente discorda da integração dos factos na categoria de ilícito criminal, previsto no citado artº 108º do D.L. nº 422/89, de 2 de Dezembro, defendendo que o jogo em causa, mesmo a existirem prémios em dinheiro, poderia quando muito ser classificado como uma “modalidade afim” de fortuna ou azar, o que implica o carácter contra-ordenacional do comportamento da arguida, conducente assim á sua absolvição, questão que igualmente vem suscitada pelo Exmº Srº PGA no seu parecer.
A decisão recorrida como vimos considerou preenchidos todos os elementos típicos daquela norma incriminadora, explicitando que “estando em questão um tipo de jogo como o definido pela alínea g) do nº 1 do artº 1 do artº 4º, ou seja, o resultado é absolutamente aleatório, dependendo, não de qualquer perícia, mas tão-só, da sorte do apostador face á cápsula em plástico que saía, e na 1ª máquina o apostador tinha direito a um prémio que ia de 2,50€ a 100,00 €”.
A decisão recorrida entendeu assim estar em causa um jogo de fortuna e azar, preenchendo a conduta da arguida o ilícito previsto no artº 108º, em conjugação com o artº 4º, nº 1, al. g) do DL 422/89, de 2 de Dezembro.
No fundo, a questão fundamental a decidir é a de saber se a conduta da arguida, ora recorrente, afinal não integra o crime de exploração ilícita de jogo, previsto no artº 108º do DL 422/89, de 2 de Dezembro, alterado pelo DL 10/95 de 19 de Janeiro, sendo o jogo em causa apenas uma “modalidade afim” dos jogos de fortuna ou azar a que se reporta o artº 159º, nº 1 e 2, do mesmo diploma, pelo que a arguida deverá ser absolvida do crime pelo qual foi condenada?
 
Vejamos.

A disciplina dos jogos de fortuna ou azar mostra-se actualmente regulada pelo Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro, revisto pelo DL nº 10/95, de 19 de Janeiro.
Da extensa legislação sobre o jogo, desde 1927, o legislador, embora sem qualquer conotação ética, sempre entendeu a necessidade de o jogo, enquanto actividade humana, “…ser devidamente regulamentado e objecto de rigorosa fiscalização, com vista à minimização dos resultados que, da sua prática descontrolada, decorrem para a sociedade” (cfr. se escreveu no preâmbulo do DL. nº 22/85, de 17/01, percursor do diploma actual revisto).
E com esta necessidade de regulamentação, tem o legislador criado um sistema com apertadas condições para a prática dos jogos de fortuna e azar, com a definição e precisão das modalidades autorizadas, com a delimitação e concessão das chamadas zonas de jogo e, como garantia de eficácia, veio a tipificar e sancionar comportamentos proibidos nesta matéria.
E com este desígnio estabelecem-se no diploma actual três categorias de jogos: os jogos de fortuna ou azar, as modalidades afins de jogos de fortuna ou azar e os jogos de diversão.
 A cada categoria fez o legislador corresponder uma regulamentação específica, norteada pela natureza do jogo e pelos riscos inerentes da sua prática. E assim é que a prática de jogos de fortuna ou azar fora das zonas próprias em violação da tipicidade prevista nos artigos 108º a 117º, constituem ilícitos criminais, e a prática de jogos afins fora das condições legais constituem meros ilícitos contra-ordenacionais, cuja tipicidade vem prevista nos artigos 158º a 163º do mesmo diploma.
Surge, assim, no quadro da lei, como nuclear a definição de jogo de fortuna ou azar, na distinção de outras modalidades, sendo este o primeiro passo para a integração da tipificação dos comportamentos proibidos.
E vejamos mais de perto os normativos legais com maior relevo para a decisão do caso em apreço.
Desde logo o artº 1º do DL 422/89 começa por fornecer uma fórmula geral, definindo os jogos de fortuna ou azar como “aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte”.
Depois no artº 4º sob a epígrafe “Tipos de jogo de fortuna e azar” faz-se uma enumeração exemplificativa e descritiva do que são jogos de fortuna ou azar.
Dispõe tal preceito o seguinte:
“1.Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
a)Jogos bancados em bancas simples ou duplas….
(….).
f)Jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;
g)Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte”.
Apenas podem ser explorados e praticados nos casinos, ou excepcionalmente em locais determinados previamente autorizados, em locais de interesse turístico (cfr. arts. 3º, 6º e 7º).
A respectiva exploração e prática fora dos locais autorizados é sancionada como crime (cfr. arts. 108 e 110º).
E assim estabelece o artº 108º pelo qual a arguida foi condenada que “Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias…”
Por sua vez, o artº 159º, nº 1 do mesmo diploma define “modalidades afins” dos jogos de fortuna ou azar estipulando o seguinte:
“1.Modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar são as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte e que atribuem como prémios coisas com valor económico”.
2.São abrangidos pelo disposto no número anterior, nomeadamente, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos”
E como elemento negativo de delimitação estipula o nº 3 do artº 161º que “as modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo referidas no artigo 159º, não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, nomeadamente póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto, nem substituir por dinheiro ou fichas, os prémios atribuídos”.
A exploração das modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar fica dependente de autorização sendo a violação deste regime qualificado como contra-ordenação e punido em conformidade (arts. 160º a 163º).
Não desconhecemos as divergências jurisprudenciais em torno do critério de distinção entre jogos de fortuna ou azar e jogos afins, fruto, a nosso ver, da utilização de conceitos muito amplos que geram por si dificuldades de interpretação. A verdade é que o legislador nem sempre consegue ser preciso como devia na estruturação e definição dos elementos constitutivos do crime e como o impõe o princípio da tipicidade.
Podemos numa primeira aproximação dizer que são jogos de fortuna ou azar aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente da sorte (cfr. artº 1º do DL 422/89, de 2/12). Mas seguramente que o cerne da distinção entre os jogos de fortuna ou azar e modalidades afins não está na aleatoridade do resultado. Isto porque também nas modalidades afins de jogo de fortuna e azar em face do disposto no citado artº 159º, o resultado pode também estar “somente na sorte”. Mas uma coisa é certa. O patamar de risco num caso e noutro é diverso. Enquanto nos jogos de fortuna e azar, apenas autorizados em estabelecimentos concessionados, os prémios que podem proporcionar, de forma predominantemente aleatória, induz o jogador, na procura do ganho imediato e fácil, a assumir riscos não controláveis, ao passo que nos “jogos afins” o patamar de risco é muito moderado, em regra com prémios pré definidos.
Também, com todo o devido respeito, não se afigura como critério distintivo a natureza do prémio.
Sobre este particular tem-se gerado alguma controvérsia, perfilhando alguma jurisprudência o entendimento de que na versão revista do DL 422/89, de 2/12, decorrente das alterações introduzidas pelo DL 10/95 (que passou a regular unitariamente a matéria relativa às modalidades afins), o cerne da distinção entre crime e contra-ordenação passou a colocar-se, não já na relevância da sorte ou azar para a obtenção do resultado, mas antes na natureza dos prémios atribuídos. Em suma, quando os prémios consistissem em dinheiro (ou fichas para o receber) estar-se-ia perante ilícito criminal, pelo contrário, a atribuição de prémios de outra natureza (ainda que de valor económico) caracterizaria o ilícito contra-ordenacional[1][1].
Se é certo que este critério traria maior segurança pela sua simplicidade e evidência, mas do nosso ponto de vista não é o que resulta da conjugação das normas legais. A verdade é que se atentarmos na regulamentação que supra enunciamos vemos que nenhuma referência vem feita à natureza dos prémios na diferenciação destas modalidades. Donde, a atribuição de prémios em dinheiro ou em coisas com valor económico não lhe retira a natureza de “jogo afim”, e pela simples razão de que a atribuição de prémios em dinheiro, por si só, e não sendo permitida nos termos do artº 161º, nº 3, do DL 422/89, também não integra a específica configuração em que está definido o pagamento de prémios nos jogos de fortuna ou azar, cujo pagamento pode consistir, pelo menos imediatamente, em fichas e o resultado ser apresentado como pontuações (cfr. algumas modalidades expressamente previstas no artº 4º do DL 422/89).[2][2]
            Diga-se ainda que não temos como curial a interpretação que tende a concluir pela inexistência do requisito de “operação oferecida ao público” típica dos jogos afins (artº 159º) quando a promotora não tenha feito publicidade fora do estabelecimento onde está colocado o jogo, entendendo-se por esse facto que o jogo em causa é de fortuna e azar. Isto porque, com todo o respeito, a publicidade não é do nosso ponto de vista caracterizador nem dos jogos de fortuna e azar nem dos jogos afins.
            Posto isto podemos então olhar com segurança para a questão colocada.
E podemos dizer, considerando a hermenêutica dos preceitos atrás citados, e seguindo de perto, com a devida vénia, os fundamentos do já citado Acórdão do STJ de 28/11/2007, que o conteúdo normativo da noção de jogos de fortuna e azar, por si e na delimitação com as restantes modalidades que a lei prevê, colhe-se da previsão do artº 1º do DL 422/89 que define uma fórmula geral conjuntamente com os elementos que identificam e descrevem as diversas espécies de jogos.
E deste modo, entendemos que os jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente da sorte e que estão tipificados no artº 4º, nº 1 do D.L. 422/89, de 2 de Dezembro.
O que significa, que fora desta descrição, modalidades de jogos cujos resultados também dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não constituem, no quadro da lei, jogos de fortuna ou azar, mas modalidades afins, a sancionar como contra-ordenação.[3][3]

Vejamos agora o caso dos autos.
A infracção penal por que a recorrente foi condenada -artº 108º do DL 422/89, de 2 de Dezembro -prevê como se referiu, “a exploração de jogos de fortuna ou azar”, “fora dos locais legalmente autorizados”.
As características das máquinas em causa estão descritas nos pontos 2 e 4 da matéria de facto.
No essencial funcionavam do seguinte modo:
Uma máquina extractora de jogo contendo, no seu interior, um número indeterminado de cápsulas de plástico e um cartaz com o Título “Tareco”;
Tal cartaz apresentava dois rectângulos picotados, um contendo 70 quadrados e um outro rectângulo dividido em 45 quadrados com um número e por baixo desses números está impresso o prémio a atribuir;
O plano de prémios impresso no cartaz corresponde, por experiência adquirida, a prémios a atribuir aos números mencionados no picotado, sendo que dois desses prémios são de 100,00€, cinco de 50,00€, sete de 25,00€, onze de 5,00€ e oitenta e oito de 2,50€;
Uma máquina extractora de jogo, contendo no seu interior um número indeterminado de cápsulas de plástico e um cartaz expositor de prémios, tendo nele fixados vários objectos à vista que, por sua vez, continham um autocolante onde se encontrava inscrito um número e uma letra;
Tal número e letra correspondiam sempre a um prémio em espécie que poderia ter valores distintos.
Resulta do teor da sentença que a arguida foi condenada pelo cartaz, denominado “Tareco”, sendo que a infracção traduzida na máquina extractora, com o cartaz expositor, foi julgada prescrita.
No caso em apreço considerando o tipo de jogo, proporcionado por cápsulas de plástico e um cartaz atribuindo em certas circunstâncias um prémio, e embora o jogo não esteja do ponto de vista factual suficientemente clarificado quanto ao seu modo total de funcionamento, é o suficiente para afastar a possibilidade de se tratar de um jogo de fortuna e azar.
Embora se retire da factualidade apurada que os resultados dependiam da sorte e não da perícia do utilizador, a verdade é que não explorava temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, nem pagavam directamente prémios em fichas ou moedas.
Pelo que deixamos dito, se conclui que o jogo em causa não oferece as características que permitem qualificar um jogo como sendo de fortuna ou azar, nos termos descritos e definidos no artº 4º, nº 1 do DL 422/89, de 2 de Dezembro.
Tudo indica que as características do jogo em causa poderão quando muito configurar as modalidades afins referidas no artº 159º, do mesmo diploma, estando no fundo em causa uma espécie de sorteio por meio de rifas, com o sentido e a natureza desta modalidade afim do jogo de fortuna ou azar, e mesmo sendo os prémios em dinheiro, não lhe retira só por isso essa natureza de “jogo afim”, como já acima o dissemos.
E a exploração não autorizada deste tipo de jogo constitui mera contra-ordenação.

2. Sempre se dirá, e contrariamente ao que, nesta parte, sugere a recorrente[4][4], que, atenta a data da prática dos factos -22 de Junho de 2005- se não mostra ainda extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional.
È que sendo de 500.00$00 (€2493,99) o limite máximo da coima ao caso aplicável, tal valor cabe ainda no âmbito da alínea b) do artº 27º do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, sendo por isso de três anos o respectivo prazo de prescrição.
Por outro lado, ocorre a causa de suspensão a que se reporta o artº 27º-A, nº 1, al. c), que não pode ultrapassar seis meses, bem como as causas de interrupção do artº 28º, sendo que nos termos do nº 3 deste mesmo preceito a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início se ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
Nesta conformidade, não pode deixar de se concluir que o prazo de prescrição só poderá completar-se em 22 de Maio de 210.

3. Diga-se, contudo, que assiste razão á recorrente quando conclui pela insuficiência da matéria de facto para com rigor poder caracterizar o funcionamento do jogo em causa, importando esclarecer o modo de atribuição dos prémios, designadamente se o jogador obtinha sempre um prémio, e o que se entende “por experiência adquirida” reportada ao plano de prémios a atribuir, e saber desde logo se a recorrente tinha licença de exploração neste caso.
Entendemos assim que a condenação pela contra-ordenação exige o esclarecimento de tais pontos (desnecessários para o apuramento da responsabilidade criminal, objecto do recurso), pelo que restará a necessidade de decidir, com o exercício do contraditório, pela autoridade competente sobre a relevância dos factos no âmbito da responsabilidade por contra-ordenação.
 
4. Em conclusão, os factos provados não integram, pois, o crime previsto no artº 108º do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro.
O recurso merece, assim, provimento.
Nestes termos importa absolver a recorrente do crime pelo qual vinha acusada.

                                                           *

III-Decisão.
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, revogando a sentença recorrida, absolvendo a arguida da prática do crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelo artigo 108º, nº 1 do DL nº 422/89, de 2/12, alterado pelo DL nº 10/95 de 19/01, pelo qual vinha condenada.

Notifique.
Sem tributação.

Lisboa, 22/04/2009
                                                    
                                                                     
Elaborado, revisto e assinado pela relatora Conceição Gonçalves e assinado pela Desembargadora Margarida Ramos de Almeida.


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[1][1] Neste sentido, entre outros, veja-se o Ac. da Relação de Lisboa, 3ª secção, de 27/06/2007 (Relatora Teresa Féria), in CJ, 2007, tomo III, pág.142.
[2][2] Neste sentido veja-se o Ac. deste Tribunal da Relação de Lisboa e desta Secção de 26/10/2005 (Relator Carlos de Almeida), in CJ, Ano XXX, 2005, Tomo IV, p. 147, e mais recentemente o Ac. do STJ de 28/11/2007 (Relator Cons.Henriques Gaspar, in C.J.S.T.J, 2007, Tomo III, p.256, e no sítio do ITIJ.
[3][3] Neste sentido se pronunciaram também, entre outros, os Acs. da Rel Coimbra de 1/02/2007, 10/04/2008 e 22/10/2008, o Ac. Rel Lisboa de 7/02/07, todos publicados no sítio do ITIJ e Ac. da Rel. Lisboa de 1/04/2009, P. nº15/04.0FBFUN  (Relator Rui Gonçalves e por mim subscrito como Adjunta).
[4][4] Motivada até pela decisão recorrida que na parte que conheceu da contra-ordenação que vinha imputada á arguida, foi a mesma declarada prescrita.