Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3167/06.0TJLSB.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: RESPONSABILIDADE
HERDEIRO
DÍVIDA
HERANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Em observância do disposto no n.º 7 do art.º 663º, do Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, da responsabilidade do relator, como segue:

I - No caso de herança indivisa, não podem os herdeiros ser condenados a pagar os encargos daquela, mas sim a reconhecer a existência dos correspondentes débitos e a vê-los satisfeitos pelas forças da herança. II – O objeto do pedido e o objeto da decisão devem coincidir, não podendo a sentença determinar efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide. III – Assim, pedida a condenação dos primitivos RR., enquanto herdeiros do de cujus, a pagar ao A., o montante de uma dívida, contraída por aquele, acrescida de juros, não podem aqueles ser condenados a reconhecerem a existência da dívida e a vê-la satisfeita pelos bens da mesma herança, devendo a ação improceder. IV – Porém, requerida a habilitação dos sucessores do primitivo Réu – enquanto herdeiros daquele – é de considerar estar implicada pela decorrente reconfiguração da titularidade da relação material controvertida, a reconformação do pedido inicial – de condenação do primitivo Réu no pagamento de dívida para com a A. – em função dessa nova vertente subjetiva. VI – Nesta hipótese, devem os sucessores/herdeiros habilitados, ser condenados a reconhecerem a existência da dívida e a vê-la satisfeita pelas forças da mesma herança.”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação


I – U, intentou ação declarativa, com processo comum, então sob a forma sumária, contra HV, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 8.409,57, acrescida dos juros moratórios que se vencerem desde 18-08-2006, sobre o capital de €6.268,95, até efetivo e integral pagamento.

Alegando, para tanto e em suma, que no exercício da sua atividade, e em três ocasiões, a solicitação do Réu, contratou com este a atribuição ao mesmo de três cartões de crédito.

Ora o Réu deixou de proceder ao pagamento à A. das quantias mínimas a que em cada mês, estava obrigado, sendo que o último pagamento efetuado em relação ao primeiro contrato ocorreu em 23-12-2004 e em relação ao segundo e terceiro contrato em 01-01-2005.

Estando assim em dívida, e conforme Extratos das suas Contas-Cartão, o supra referido montante global de capital e correspondentes juros de mora vencidos.

Verificando-se que o Réu tinha já falecido à data da propositura da ação, e declarada suspensa a instância, deduziu a A. incidente de habilitação de herdeiros daquele.

Sendo, em apenso, proferida sentença declarando “A, B, C, D e E habilitados como sucessores do Réu falecido para com eles e no lugar do falecido prosseguirem os termos da acção.”.

Na sequência do que, declarada cessada a suspensão da instância…e citados os herdeiros habilitados para os termos da causa, contestaram os mesmos, alegando não ter a herança aberta por óbito do primitivo Réu…quaisquer bens, não existindo, em bom rigor, herança.

Concluindo com a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.

Houve “resposta” da A. sustentando que a questão da inexistência de bens integrantes de herança deixada por HV apenas importará em caso de ação executiva, caso haja lugar à mesma, sendo os herdeiros habilitados daquele, parte legítima para a presente ação.

O processo seguiu seus termos, procedendo-se, em audiência prévia, a tabelar saneamento, sendo ainda identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Vindo, realizada que foi a audiência final, a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Em consequência do anteriormente exposto decide-se:

A)

Julgar procedente, por provada, a acção e, consequentemente, condenar o primitivo Réu HV - ora representado por A, B, C, D e E - a pagar à Autora a quantia de 8.409,57 Euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos a contar de 18 de Agosto de 2006, à taxa de 21,624% e até integral pagamento.”.

Inconformados, recorreram os RR., formulando, nas suas alegações as seguintes conclusões:

“1ª A douta sentença incorreu em erro de julgamento de facto quando julgou como não provada a inexistência de bens da herança.

2ª A convicção formada quanto à prova documental trazida aos autos pelos Recorrentes é fundamentada de forma vaga, uma vez que o Tribunal "a quo" não justificou devidamente o facto de rejeitar o valor probatório de certidões emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira após a citação dos Recorrentes para a presente acção e valorou um documento particular assinado pelo primitivo Réu 10 anos antes do seu falecimento.

3ª A certidão a atestar a inexistência de quaisquer bens imóveis em nome do falecido Réu e a certidão a atestar que não foi instaurado o processo de imposto de selo provam a inexistência de bens da herança, uma vez que a não instauração do processo de imposto de selo demonstra que não foram partilhados quaisquer bens e caso existissem bens em nome do "de cujus" os mesmos teriam de constar ou da certidão que atesta a inexistência de bens ou da participação de imposto de selo.

4ª O Tribunal "a quo" ao não justificar e fundamentar a sua convicção quanto à prova apresentada pelos Recorrentes violou o disposto no artigo 607º, n.º 4 do CPC.

5ª A convicção formada pelo Tribunal "a quo” quanto aos depoimentos das testemunhas apresentadas pelos Recorrentes é fundamentada de forma vaga e generalizada, catalogando-as como sendo interessadas no desfecho da causa por serem familiares dos Recorrentes e do primitivo Réu.

6ª O Tribunal "a quo" considerou que o depoimento das testemunhas em nada contribuiu para a prova por possuírem uma relação de parentesco com os demandados e alega interesse na causa por parte das testemunhas sem nunca o justificar.

7ª O simples facto das testemunhas serem familiares ou possuírem interesse na causa (se o tiverem) não implica que os seus depoimentos não sejam credíveis, pois tal não implica uma "capitis diminutio" e se o implicasse obrigaria a que as mesmas não pudessem depor.

8ª O Tribunal ao não referir-se a cada uma das testemunhas com especificação concreta das razões objectivas porque desconsiderou os seus depoimentos, não dando nota da convicção que formulou de cada um dos depoimentos, violou o disposto no artigo 607°, n.º 4 do CPC.

9ª A testemunha FT, nas passagens transcritas do seu depoimento, confirmou a inexistência de bens da herança e a ausência de um processo de partilha, sendo o seu depoimento credível, consistente e de acordo com a prova documental junta aos autos.

10ª A testemunha JC, nas passagens transcritas do seu depoimento, também confirmou a ausência de um processo de partilha e a inexistência de bens, sendo o seu depoimento credível e estando de acordo com toda a prova produzida nos autos.

11ª Tendo em conta toda a prova produzida pelos Recorrentes, concretamente a documental e a testemunhal, o Tribunal "a quo" só poderia dar como provada a inexistência de bens da herança.

12ª A alegada dívida foi contraída pelo primitivo Réu, não sendo, por isso, os Recorrentes os seus devedores.

13ª Do disposto nos artigos 2068º e 2071º do Código Civil decorre que só os bens da herança é que respondem pelas dívidas do "de cujus", nunca podendo os herdeiros ser condenados a título pessoal pelo pagamento das dívidas da herança.

14ª A existir condenação esta apenas poderia ser a dos Recorrentes reconhecerem a dívida e a vê-la satisfeita pelos bens da herança, o que acaba por ser inútil.

15ª Os Recorrentes provaram a inexistência de bens da herança e, por isso, a única decisão possível na presente acção seria a da sua absolvição do pedido.

16ª A douta sentença incorreu em erro de julgamento de direito ao condenar os Recorrentes no pagamento da quantia reclamada, por errada interpretação dos artigos 2068º e 2071º do Cciv.”.

Rematam com a revogação da sentença recorrida a substituir por outra “que determine a absolvição dos Recorrentes do pedido”.

Contra-alegou a Recorrida, pugnando pela manutenção do julgado.

II- Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.

Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do novo Código de Processo Civil – são questões propostas à resolução deste Tribunal:

- se se verifica “insuficiente fundamentação” da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto;

- se é caso de alteração da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto, nos termos pretendidos pelos Recorrentes;

- se, em qualquer caso, não podiam os Recorrentes, enquanto herdeiros do primitivo Réu, ser condenados no pagamento de dívida da herança daquele.


***

Considerou-se assente, na 1ª instância, a factualidade seguinte:

“1 - A Autora atribuiu a HV, em data não apurada de 1994, um cartão de crédito visa gold, sem prévio pedido de adesão apresentado pelo falecido, cartão de crédito que o falecido recebeu, com o n° 4532393003095625.

2 - Na sequência do referido em 1 - o falecido HV passou a usar o cartão aludido em 1 -, utilizando-o, designadamente, na aquisição de produtos em supermercados, e restaurantes, para pagar abastecimento de combustíveis e para pagar portagens em auto-estradas.

3 - Face ao aludido em 1 - e 2 - a Autora enviava ao falecido HV, por correio, extractos mensais de que constavam as operações pelo mesmo efectuadas com o cartão aludido em 1 -.

4 - Dos extractos mensais aludidos em 3 - constava o valor total utilizado pelo falecido com o aludido cartão e qual o valor mínimo que o mesmo deveria pagar.

5 - Com data de 16.201995 o falecido HV assinou pedido de adesão dirigido à U, pedido esse de adesão ao cartão …Clube…, tendo desse pedido de adesão sido feito constar, além da morada do falecido e o seu contacto telefónico, o n° do seu B. I. e data de emissão do mesmo, o seu estado civil, a sua actividade profissional e local/locais de trabalho, os seus rendimentos mensais e possuir o falecido habitação própria no valor de 15.000.000$00, entre outras indicações.

6 - Na sequência do aludido em 5 - a Autora atribuiu ao falecido HV o cartão n° 4908631004046329 e este passou a utilizar o cartão aludido, tal como aludido em 2 -, emitindo a Autora e enviando ao falecido os extractos mensais como referido em 3 -.

7 - As condições gerais de utilização do cartão aludido em 5 - e 6 - constavam do verso do pedido de adesão referido em 5 -, tendo HV aposto a sua assinatura na frente do pedido de adesão e sob a menção " „. declara ...tomar conhecimento e aceitar as condições gerais: direitos e deveres do titular constantes no verso... ".

8 - O cartão aludido em 5 - a 7 - permitia, além do mais, o levantamento, pelo seu titular, de quantias em dinheiro em Portugal e no estrangeiro, ao balcão de bancos para tal identificados e em caixas automáticas identificadas como visa.

9 -Das condições gerais aludidas em 7 - constava, designadamente, que o titular do cartão, ao utilizar o mesmo na aquisição de produtos, deveria apresentar o cartão devidamente assinado, conferir e assinar, de acordo com o cartão, a factura que lhe fosse apresentada pelo estabelecimento comercial em causa, guardando uma cópia da mesma e que ao assinar a factura e ou digitar o Código Pessoal Secreto, reconhecia a dívida e o seu valor e que a mesma se transferia para a U, a quem teria de pagar o valor correspondente, traduzindo a mera utilização do cartão a concordância do titular do cartão com as condições gerais do mesmo.

10 - Das condições gerais aludidas em 7 - constava ainda que os extractos dos cartões enviados aos titulares dos mesmos constituía o documento de dívida pelo seu titular à U e que se consideraria o mesmo extracto correcto caso não fosse recebida, pela U, qualquer reclamação escrita no prazo de 10 dias.

11 - Os extractos enviados pela Unicre continham a indicação do valor a pagar pelo titular do cartão em cada mês àquela, valor esse que não podia ser inferior a 15% do saldo mensal, com um mínimo de 2.500$00 e que o saldo referiria, sendo nesse caso os valores pagos imputados a juros, impostos e eventuais encargos de serviço, sendo o remanescente a abater divida.

12 - A taxa de juro era calculada pela seguinte forma:

Taxa de juro nominal (indexada à taxa AP: a 90 dias) + taxa de penalização (12%) * Imposto de selo — Art° 120-A (9% sobre os juros) + Imposto de selo — artº. 120 (7% sobre o capital em dívida).

13 - Das condições gerais aludidas em 7 - e segs. constava ainda que a Autora se reservava o direito de alterar as mesmas condições gerais, comunicando tal facto ao titular do cartão e que a sua utilização, após tal comunicação pelo titular do cartão, implicava a aceitação dessas alterações pelo mesmo.

14 - Em 2004 a U emitiu em nome de HV, sem prévio pedido de adesão por este àquela dirigido, outro cartão de crédito, Mastercard, cartão esse com o n° 54400516000024507, cartão de crédito esse ao falecido entregue e que o mesmo passou a utilizar como referido em 1 - a 4 - supra.

15 - Até Dezembro de 2004 o falecido HV pagou à Autora, mensalmente e por norma, os valores mínimos ou a esses valores aproximados, indicados nos extractos mensalmente ao mesmo remetidos pela demandante relativamente aos três cartões de crédito em causa nos autos.

16 - À data referida em 15 - a taxa de juro em vigor no concernente aos cartões de crédito em causa nos autos cifrava-se em 21,900 %.

17 - A partir de Janeiro de 2005 não voltaram a ser pagos quaisquer valores à Autora por conta dos débitos dos valores dos cartões de crédito aludidos em 1 - a 14 -., tendo os últimos movimentos efectuados a débito em tais cartões de crédito sido efectuados no mês de Dezembro de 2004.

18 – HV faleceu no dia 12 de Janeiro de 2005.

19 - Decorridos três meses sobre a cessação de pagamentos a crédito relativamente aos cartões por si atribuídos a clientes seus a Autora suspendia, em regra, os mesmos cartões.

20 - Os valores em débito à data da cessação/suspensão dos cartões aludidos sob 1 - a 14 - cifravam-se nos seguintes valores na sequência da sua utilização: 2.537,88 Euros quanto ao cartão …Clube…, aludido em 5 - supra, em 3.173,93 Euros no que ao cartão aludido em 1 - respeitava e em 557,14 Euros no que ao cartão aludido em 14 – respeitava.

21 - Com data de 7 de Outubro de 2013 CV solicitou ao Chefe da Repartição de Finanças de Braga 1 que certificasse se em nome da herança de HV existiam quaisquer bens imóveis e, em caso afirmativo, qual a sua identificação.

22 - Na data aludida em 21 - e na sequência do requerimento referido foi emitida certidão pela funcionária do Quadro da Autoridade Tributária e Aduaneira a exercer funções no Serviço de Finanças de Braga 1, certidão de que foi feito constar que após consulta aos elementos existentes naquele serviço de finanças, não constava, em nome do requerente referido em 21 -, a existência de quaisquer bens imóveis inscritos nas matrizes prediais.

23 - Em 7 de Outubro de 2013 CV dirigiu ao Chefe do Serviço de Finanças de Braga 1 requerimento a solicitar a informação sobre se relativamente ao óbito de HV fora ou não instaurado o respectivo processo de imposto de selo de transmissões gratuitas.

24 - Na sequência do referido em 23 - foi emitida, em 7 de Outubro de 2013, certidão pela Autoridade Tributária (Direcção de Finanças de Braga) de que consta não ter sido apresentada a participação modelo 1 para efeitos de liquidação de imposto de Selo Transmissões Gratuitas, no que concerne ao óbito de HV.

25 - HV era professor e advogado, não exercendo esta última actividade.

26 - A Autora pagou aos comerciantes a quem o falecido adquiriu bens e ou serviços com os cartões aludidos em 1 - a 13 - o preço desses bens e ou serviços.

27 - A Autora dedica-se à emissão e comercialização de cartões de crédito, nos sistemas Visa, Mastercard e outros.”.


*

“Não se provaram os seguintes factos:

1 — Que à data da morte de HV o mesmo não possuísse quaisquer bens imóveis ou móveis sujeitos a registo.”.


***

Vejamos.

II – 1 – Da fundamentação da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto.

Começam os Recorrentes por suscitar a questão da insuficiente fundamentação da decisão da 1ª instância – na parte relativa ao não provado de que à data da morte de HV o mesmo não possuísse quaisquer bens imóveis ou móveis sujeitos a registo – quer “quanto à apreciação da prova documental” quer “sobre a apreciação da prova testemunhal”, para concluir ter sido violado o disposto no artigo 607º, n.º 4, do Código de Processo Civil.

De acordo com o assim convocado normativo, “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência. “.

Sendo que a não se mostrar “devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa”, determinará a Relação que “o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”, cfr. artigo 662º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.

Como das alegações dos Recorrentes se alcança, não pretendem aqueles um tal suprimento por parte da 1ª instância, diversamente propugnando, com fundamento na “pobreza e insuficiência” da decisão sobre a matéria de facto, “por inexistência de análise crítica” dos documentos e depoimentos referenciados, a revogação daquela, cfr. folhas 4/28 a 9/28 das alegações de recurso.

Efeito que a lei de processo, e como visto, não comina para a eventual insuficiência da fundamentação da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto.

Sempre se dirá, porém, que a decisão da 1ª instância, quanto ao segmento da matéria de facto assim visado, se mostra fundamentada, em termos que permitem a um espírito mediano – independentemente de concordar ou não com a valoração feita – acompanhar a análise crítica das provas, destarte operada.

Com efeito, consignou-se na motivação daquela decisão:

“No que à não prova do facto elencado em B) concerne, a não prova desse facto decorreu das seguintes circunstâncias:

a) do facto de da certidão constante de fls. 150 dos autos resultar apenas que à data de 7 de Outubro de 2013 não existiam bens imóveis em nome do falecido, ignorando-se se à data do seu óbito tal sucederia ou não e,

b) da circunstância de as testemunhas arroladas pelos demandados sucessores e inquiridas em julgamento serem interessados no desfecho da causa, por serem casados com duas das sucessoras do falecido, sendo o seu depoimento, por consequência, insuficiente ou relativamente inócuo para prova desse facto.

Com efeito, a certidão de fls. 150 dos autos é, de per si, insuficiente (atento inclusive o teor de fls. 287 dos autos, em que se refere a existência de habitação própria) para se saber se não existiriam bens à data do óbito de HV, sendo que a não instauração do competente processo de imposto de selo na sequência da morte do de cujus (primitivo Réu nestes autos) tem única e exclusivamente o significado de o mesmo não ter sido instaurado, o que, de per si, não significa a ausência de bens do mesmo à data da morte.

Na realidade, muitas são as situações em que as pessoas desconhecem as obrigações que sobre si impendem ou em que, conhecendo-as, as não cumprem...

Por outro lado, não teria sido difícil aos sucessores do falecido Réu terem arrolado nos autos, como testemunhas, pessoas que conhecessem e se relacionassem com o falecido e que com o mesmo - e com eles sucessores - não tivessem qualquer relação de parentesco, de modo a que as mesmas esclarecessem se ao falecido eram conhecidos bens, designadamente móveis sujeitos a registo, prova essa que os demandados não trouxeram a este tribunal.

Aliás, e no que ao documento emitido pelo Serviço de Finanças de Braga 1 e que refere a inexistência de bens do falecido concerne, deveria o mesmo ter sido pedido e emitido relativamente ao momento do óbito e não à data em que foi emitido.”.

Sendo que a identificação das “testemunhas arroladas pelos demandados sucessores e inquiridas em julgamento”, nenhuma dificuldade oferece, dado que apenas duas testemunhas daqueles foram inquiridas na audiência final, a saber, FT e JC, o primeiro sendo casado com a herdeira habilitada CT, e a segunda vivendo em união de facto com a sucessora habilitada CV.

Improcedendo pois nesta parte, e sem necessidade de maiores considerações, as conclusões dos Recorrentes.

II – 2 – Da impugnação da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto.

1. Propugnam os Recorrentes o provado da inexistência de bens deixados por HV, à data do seu falecimento.

E, desse modo, com apelo aos depoimentos das já referidas testemunhas FT e JC, na sua conjugação com as certidões emitidas pelo Serviço de Finanças de Braga 1 e pelo Serviço de Finanças 1.

No que respeita à certidão do Serviço de Finanças de Braga 1 – reproduzida a folhas 150, o que dela rigorosamente resulta, é que à data de 07 de Outubro de 2013 – ou seja, quase sete anos e nove meses após o óbito de HV, ocorrido em 12 de Janeiro de 2005“não foi verificada a existência de quaisquer bens imóveis, inscritos nas matrizes prediais”, em nome daquele.

Sem que tal exclua a existência de bens imóveis na herança daquele à data do óbito respetivo – sabido sendo que os herdeiros podem de comum acordo e independentemente da partilha da herança, proceder à alienação de bens que integrem aquela – nem, desde logo, a existência de outros bens, designadamente móveis.

Por outro lado, da certidão do mesmo Serviço, reproduzida a folhas 151, 152, e a folhas 44 a 52, apenas decorre que por óbito de HV, não foi apresentada a participação Mod. 1 para efeitos de liquidação de Imposto de Selo – Transmissões Gratuitas.

O que também não implica a inexistência de bens no património do de cujus, à data do óbito respetivo.

Nem cabendo – como pretendem os Recorrentes – desvalorizar a circunstância de, em pedido de Adesão ao …Clube…, datado de 16-02-1995, haver o falecido HV declarado viver em habitação própria, no valor de 15.000.000$00, livre de hipoteca.

Conquanto entre tal declaração e o ulterior óbito do declarante hajam decorrido dez anos e um mês, a normalidade das coisas aponta para que a não existir tal bem no património do falecido à data do seu óbito, outros bens hajam substituído aquele – quando não tenha sido objeto de transmissão a título gratuito – no referido património.

Para além do surpreendente de nenhuma viatura do falecido ser referida… mas já constarem registados em nome do cônjuge sobrevivo – e herdeira habilitada do primitivo Réu – MF, desde pelo menos 2008 – “os seguintes veículos automóveis: Mercedes Benz, matrícula…; Ford… e Alfa Romeo…” (com matrículas dos anos de 2007, 1996 e 1993, respetivamente, conforme consulta efetuada in http://www.imtt.pt/sites/imtt/Portugues/Veiculos/IdentificacaoVeiculos/Numeromatricula/Paginas/NumeroMatricula.aspx).

2. Finalmente e no que concerne aos depoimentos das duas testemunhas dos Recorrentes, temos que a 1ª – FT, cuja atitude foi objeto de reparo por parte da Senhora Juíza logo aquando do interrogatório preliminar – se afirmou “próxima” do falecido sogro, respondendo, a pergunta da advogada dos RR. “Acho que não deixou nada tirando pequenas coisas, roupas, livros”, e “julgo que não houve partilhas”, especificando que o primitivo Réu não deixou nada, nem de móveis nem de imóveis e “não tem conhecimento” de que tenha deixado contas bancárias.

O que não deixa de ser notável, pelo que aos móveis e saldos bancários respeita, quando é certo que a mesma testemunha refere ter sido o primitivo Réu, professor do ensino secundário, e ter falecido em situação que, se não era já de reforma, seria pelo menos de baixa, recebendo necessariamente o seu vencimento, ou pensão, através de depósito ou transferência bancária…

Ao que não obstaria a circunstância de aquele viver, por último, e segundo aquela testemunha, em casa da filha mais nova…

Sendo que umas vezes aquela o levava de carro para a escola, outras…ia de transporte público, embora em tempos o Sr. HV conduzisse…

Admitindo a instâncias da Srª advogada da A., que o falecido “às vezes ia a Espanha”, mas referindo, quanto ao meio de transporte para o efeito utilizado, e apesar de se afirmar muito próximo do seu sogro, que “Não faço a mínima ideia”

Também, e apesar da sua proximidade com o falecido sogro, não se lembrando da data do falecimento daquele, e apenas “achando” que antes de viver com a filha, o mesmo habitava numa casa arrendada.

Embora já seja perentório quanto a ser aquele pessoa que “O que ganhava gastava”

Mais referindo, a mesma testemunha, ser “próximo” da viúva, sua sogra, que “conduz…agora já não”, e que os seus sogros viviam separados mesmo antes de o seu sogro ir viver com a filha mais nova.

Confrontando-nos pois com um depoimento pouco consistente…mas muito “conveniente”.

A testemunha JC - que vive em união de facto com a herdeira habilitada CV – quando o pai da sua companheira faleceu já o conhecia “há bastante tempo”, dando-se “muito bem” com aquele.

Desconhecendo porém dívidas que aquele tenha deixado: “Que eu saiba, não!”.

Referindo que “Eu quando conheci o Dr. Hernâni, ele vivia num apartamento”, depois teve um “problema grave” e “deixou de ter determinados trabalhos”.

Escusando-se a admitir o conhecimento de que o falecido passava férias em Espanha…mas referindo saber que aquele “Ia muitas vezes a Espanha”.

Manifestando desconhecer como o mesmo se deslocava àquele País: “Não sei, não faço ideia”, “provavelmente ia de boleia” (sic).

Sendo quanto à viúva, que “A D.ª… vivia noutra casa onde sempre a conheci”.

E que “conduz”, mas “Eu acho que ela não tem nenhum veículo”. Afirmação que não sendo incompatível – por via do tempo verbal utilizado – se não casa da melhor maneira com o informado pelo Serviço de Finanças, conforme referido supra em 1., parte final.

Desconhecendo a testemunha seja a data do óbito de HV, seja o regime de bens do seu casamento com MF.

Apresentando assim o seu depoimento consistência idêntica ao da anterior testemunha…

Não oferecendo pois aqueles, e ainda que conjugados como os documentos referidos supra, sustentação bastante para o provado da inexistência de bens ou direitos na titularidade – exclusiva ou conjunta – do falecido HV, à data do óbito deste.

A tudo acrescendo a não documentação do regime de bens do casamento respetivo…


*

Improcedendo assim, e sem necessidade de maiores considerações, também nesta parte, as conclusões dos Recorrentes.

II – 3 – Da condenação dos Recorrentes, enquanto herdeiros habilitados do primitivo Réu, no pagamento de dívida da herança daquele.

1. Considerou-se na sentença recorrida:

“Não obstante e ainda que os sucessores do falecido tivessem provado a ausência de bens da herança do falecido, a verdade é que a acção teria de proceder.

Com efeito, o pedido formulado nos autos e deduzido contra o falecido cifra-se no de condenação do mesmo a pagar à Autora a quantia de 8.409,57 Euros, acrescida de juros de mora vincendos até integral pagamento, sendo este o pedido em apreciação.

A circunstância de os contestantes serem meros sucessores do falecido significa, efectivamente, que os mesmos não podem ser pessoalmente condenados a pagar à Autora qualquer montante mas a verdade é que nunca foi esse o fim da sua habilitação.

Na realidade, a habilitação dos sucessores de parte falecida na pendência da causa – mesmo antes da sua propositura – visa apenas obter a condenação do falecido, representado pelos seus sucessores, a pagar os valores peticionados, por força dos bens pelos sucessores recebidos do falecido.

É que se não há dúvida de que a obrigação incidente sobre os herdeiros de pagar as dívidas do falecido se verifica apenas na exacta medida das forças da herança também a não há de que em momento algum foi pedida a condenação dos sucessores do demandado falecido, de per si, a pagar o valor peticionado.

Na verdade, os sucessores do falecido, como tal, não são efectivamente responsáveis principais do cumprimento da obrigação peticionada e apenas têm legitimidade directa para com os mesmos prosseguir a lide, devendo ser o primitivo falecido - ora representado pelos seus sucessores - a ser condenado - embora por aqueles representado -, se os factos constitutivos do direito do demandante se provarem.

A não ser assim, careceria de qualquer utilidade a habilitação dos sucessores de parte falecida na pendência da causa (ou até antes da sua propositura ).

Efectivamente, nunca poderiam ser os sucessores do falecido a ser condenados no pedido, porque contra eles não dirigido, mas tal não obsta à condenação do primitivo demandado, por eles representado e até ao limite dos bens por eles recebido daquele, por força do óbito, sob pena de, a não ser assim, ser absolutamente inútil a habilitação - em acções declarativas de condenação - dos sucessores de partes falecidas.

Aliás, refira-se que aos sucessores do falecido resta, em caso de execução da decisão, demonstrar que os bens cuja penhora eventualmente seja requerida em execução contra os mesmos, na qualidade de sucessores do falecido, àquele não pertenciam ou lhes não advieram do mesmo.”.

Não se desconhece o teor dos Acs. do T. R. Lisboa e do Porto, respectivamente de 20.2.2014 e de 28.1.2010, in http://www.dgsi.pt mas a verdade é que com a tese pelos mesmos propugnada se não concorda.

Na verdade, não se vislumbra como se compagina a posição defendida em tais arestos com a faculdade e a finalidade legal de previsão do requerimento de habilitação dos sucessores de parte falecida na pendência da causa (e até antes da sua propositura) por esta permitir a condenação ou a absolvição da parte falecida, representada pelos seus sucessores habilitados.”.

2. Não colhe, salvo o devido respeito, tal ordem de argumentação.

Com efeito:

De acordo com o disposto no artigo 269º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, “A instância suspende-se nos casos seguintes: Quando falecer ou se extinguir alguma das partes, sem prejuízo do disposto no artigo 162º, do Código das Sociedades Comerciais.”.

Note-se que a personalidade jurídica da pessoa física “cessa com a morte”, nos termos do artigo 68º, n.º 1, do Código Civil.

E que quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária, consistente, esta, “na suscetibilidade de ser parte”, cfr. artigo 11º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Como assinala Artur Anselmo de Castro,[1] “Dado o referido princípio da coincidência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, gozam de personalidade judiciária todas as pessoas físicas e jurídicas não exceptuadas por lei”.

Sem prejuízo de a lei estender, todavia, a personalidade judiciária a entes que, segundo a lei civil, não têm (ou é pelo menos muito duvidoso que a tenham) personalidade jurídica, como se verifica nos artigos 12º e 13º, do Código de Processo Civil.

Assim, e no que agora interessa, porque falecida a parte, pessoa física, cessa a sua personalidade jurídica e a sua personalidade judiciária, a lei de processo determina a suspensão da instância – que não poderia prosseguir com uma única parte.

Suspensão que cessará com a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, ou antes da propositura da ação, mas quando só depois dela se torna conhecido esse falecimento, cfr. artigo 351º, n.ºs 1 e 2, e 276º, n.º 1 alínea a), do Código de Processo Civil.

NÃO visando assim a habilitação dos sucessores da parte falecida, e muito menos APENAS – obter a condenação do falecido, representado pelos seus sucessores.

Com efeito, a habilitação incidental respeita à transmissão da posição jurídica litigiosa, operando-se, por via dela, e como anotam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre,[2] uma modificação subjetiva da instância.

Não podendo os sucessores habilitados representar…quem já não tem personalidade jurídica nem judiciária.

Nem ser condenado no pagamento do que quer que seja…quem já não pertence ao mundo dos vivos…

Determinados os herdeiros do primitivo Réu HV, confrontamo-nos com uma herança, que não é jacente, e que, face aos elementos dos autos constantes, não podemos concluir ter sido repudiada ou partilhada.

Ora, como se decidiu no Acórdão desta Relação de 2014-02-20,[3] 2. «Como é sabido, a herança é um património autónomo,[4] que sendo vários os herdeiros é também um património coletivo, e que responde pelas dívidas do falecido, cfr. art.º 2068º.

Quanto ao qual, e até à integral liquidação e partilha, vale a regra, estabelecida no art.º 2074º, de não confusão dos poderes e vinculações próprios do herdeiro com os próprios da herança.

Respondendo “Os bens da herança indivisa colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos.”, vd. art.º 2097º.

Ou seja, “a herança, porque consiste num verdadeiro património autónomo, responde toda ela sem discriminação de bens pelo cumprimento dos respectivos encargos.”.[5]

Por isso e consonantemente, a regra é a de que “os direitos relativos à herança (indivisa) só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.”, cfr. art.º 2091º.

Sendo que, como assinala Oliveira Ascensão, “esta forma de responsabilidade não é alterada no caso de o autor da sucessão ser solidariamente responsável”,[6] já que nem nessa hipótese o já citado art.º 515º, n.º 1, estabelece a responsabilidade solidária dos herdeiros do devedor solidário, mas apenas a sua responsabilidade coletiva até a efetivação da partilha.

Frisando, por seu lado, Rabindranath Capelo de Sousa,[7] no confronto do disposto nos art.ºs 2068º e 2069º, que “Pelos encargos da herança é directamente responsável (…) a massa patrimonial que constitui a herança” (o itálico, aqui, é nosso).

Sendo “Esta tónica objectivista na determinação da responsabilidade pelos encargos da herança (…) um reflexo da autonomia patrimonial da herança e do seu carácter de universalidade de direito.[8] O que é sobretudo patente no caso de herança indivisa, em que se está perante um património autónomo directamente responsável (…) e em que os herdeiros apenas têm que intervir como co-titulares desse património.”.

E, nessa mesma hipótese, que é a dos autos, de herança indivisa “os herdeiros não detêm direitos próprios sobre cada um dos bens hereditários e nem sequer são comproprietários desses bens mas apenas titulares em comunhão de tal património.”.

Pretendendo-se com “a nova formulação legislativa do art.º 2097º do Código Civil actual[9] (…) exactamente clarificar que são os bens da herança, como partes integrantes do património autónomo que é a herança indivisa, quem responde em conjunto. Mesmo quando o de cujus fosse um co-devedor solidário, cada um dos herdeiros só responde, dentro do respectivo grupo solidário, em proporção da parte que lhe coube na herança.” (sublinhado nosso).

“Os co-herdeiros (de herança indivisa) têm que ser demandados apenas porque aquela massa de bens não tem personalidade judiciária, mas não têm sequer um direito a uma «quota ideal» sobre a herança. Agem de certo modo como «representantes» da herança. Estamos perante um caso de legitimidade imposta por lei, apesar de não existir um interesse directo em contradizer, nem tão-pouco são titulares de um direito a uma «quota ideal» e muito menos a uma fracção da herança. A regra é de que as partes são legítimas quando têm interesse directo em demandar ou contradizer. Mas tal regra sofre excepções, porque há hipóteses em que existe legitimidade sem haver interesse. Isso acontece sempre que a lei o impõe.”.[10]

Considerando José Martins da Fonseca,[11] em comentário a uma decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, que “Os herdeiros são sempre parte legítima como «representantes» da herança indivisa, na acção em que se pede a satisfação de encargos desta. Se se pretender, porém, responsabilizá-los directamente pela dívida, o problema já não será de legitimidade, mas sim de mérito, pelo que deviam os herdeiros ser absolvidos do pedido e não da instância.”

E “No caso, o artigo 2091º impõe aos «herdeiros» a representação e a legitimidade para contradizerem. Ora os herdeiros são parte legítima na acção contra eles intentada, para os credores da herança verem os seus créditos pagos pelos bens da mesma. No entanto, não podem ser condenados a pagar as dívidas pelas razões já várias vezes referidas. Acentua-se, de novo: «não são devedores», mas tem de se ter em consideração que a herança não pode ser demandada nem condenada porque não tem personalidade. Os herdeiros serão demandados e condenados, mas não a pagar os créditos, tão somente a reconhecerem a sua existência, ou a verem satisfeitos pelos bens da herança os créditos dos credores do de cujus.”.

Nesta linha, em que nos incluímos, havendo o Supremo Tribunal de Justiça decidido, em Acórdão de 19-03-1992,[12] relatado pelo antecedentemente citado Juiz Conselheiro, que “I - Os herdeiros deverão ser demandados e condenados, não a pagar as dívidas de herança indivisa, mas simplesmente a reconhecerem a existência delas ou a vê-las satisfeitas pelos bens da mesma herança.”.

E, convergentemente, em Acórdão de 29-01-2003,[13] julgado que “"ex-vi" do estatuído nesses citados artºs 2097º e 2098º, nº 1, antes da partilha não existe propriamente responsabilidade do herdeiro pelo cumprimento dos encargos do «de cujus»”.

Tendo aquele Tribunal, mais recentemente, reiterado tal entendimento, no seu Acórdão de 09-02-2012,[14] em cujos considerandos ler-se pode: “No caso de herança indivisa cabe apenas aos seus herdeiros intervir em nome próprio para fazer valer os seus direitos e que só por todos eles podem ser exercidos; e, quando determinados os seus herdeiros, não devem eles ser condenados a pagar os encargos da herança, mas sim reconhecer a existência dos débitos que devam ser satisfeitos pelas forças da herança.”.

3. A sentença recorrida, e como visto, julgando a ação parcialmente procedente, condenou “o primitivo Réu HV - ora representado por A, B, C, D e E - a pagar à Autora a quantia de 8.409,57 Euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos a contar de 18 de Agosto de 2006, à taxa de 21,624% e até integral pagamento.”.

Quando e na conformidade do exposto, apenas poderia ter condenado os RR. a, reconhecendo a existência do crédito da  A. sobre a herança aberta por óbito de HV, verem aquele satisfeito pelos bens de tal herança.

Mas isso, desde que um tal efeito jurídico, não inteiramente coincidente com o pedido formulado pelo A., resulte afinal considerável.

Com efeito, o pedido – efeito jurídico que se pretende obter, cfr. art.º498º, n.º 3, do Código de Processo Civil de 1961 e 581º, n.º 3, do novo Código de Processo Civil – é o ponto de partida de toda a tramitação processual, posta ao serviço das pessoas para a resolução do conflito de interesses que trazem a juízo.    

Ele “determina o conteúdo da decisão. Ele é o objeto do processo.” e, por isso, “o objeto do pedido e o objeto da decisão coincidem, como resulta da articulação dos art.ºs.552-1-e, 607-2, 609-1 e 651-1-e: o juiz deve apreciar a pretensão e só em função dela pode condenar o Réu. A ideia de que o objeto do processo, definido pelo pedido, e o objeto da sentença divergem, por o segundo incluir também a qualificação jurídica ou fundamentação de direito que não entre na composição do primeiro, é de rejeitar.”. [15]

Não podendo assim a sentença determinar efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide, como se reflete na cominação da nulidade da sentença que condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, cfr. art.º 615º, n.º 1, alínea e), do novo Código de Processo Civil. 

 

No sobredito Acórdão desta Relação de 2014-02-20, considerou-se que o objeto “possível” da sentença recorrida, na conformidade do que se vem de expor, não seria assimilável ao objeto do pedido.

«Uma coisa é a condenação dos RR., ainda que enquanto herdeiros do falecido (…), a pagar ao A., a quantia de €42.398,46, acrescida de juros.

Outra a condenação dos mesmos RR. a reconhecerem a existência da dívida e vê-la satisfeita pelos bens da mesma herança.

Nem sendo exato, o que apenas marginalmente se assinala, que a sentença recorrida haja estabelecido “os limites da condenação dos Réus ora recorrentes às forças da herança”.

O que naquela peça se consignou a propósito foi, e por um lado, que “Nos termos do art.º 515º, n.º 1 do C.C. são os herdeiros de devedor quem, coletivamente respondem pela dívida, sendo que, após a partilha, cada co-herdeiro responde apenas nos termos do art.º 2098º.”, ou seja, e como visto já “em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.”.

Mas também, e por outro, que:

“São os bens da herança indivisa que respondem coletivamente pelos seus encargos, ou seja pelas suas dívidas (…). Mas a herança indivisa, aceita pelos respetivos herdeiros conhecidos não tem personalidade jurídica e, portanto, também não tem personalidade judiciária (…). Em consequência, o exercício de direitos relativos à herança deve ser feito necessariamente contra todos os herdeiros (…)

Foi isso mesmo que o A. fez ao demandar os R.R. na qualidade de únicos herdeiros legítimos do falecido (…), como consta do artigo 4º da petição inicial, sendo também só nessa qualidade que pode obter a sua condenação no pedido.”.

E ainda: “No caso concreto, como já vimos, os R.R., enquanto herdeiros do devedor, só respondem perante o A., em via de direito de regresso, na mesma medida em que a herança está obrigada a reembolsar aquele. O que, como já vimos, corresponde apenas à obrigação de pagamento do valor de €42.398,46.”.».

A situação, nos presentes autos, é porém diversa do ponto de vista processual.

Tenha-se presente que nos autos em que proferido foi aquele outro acórdão, não teve lugar qualquer habilitação incidental, que assim operasse uma modificação subjetiva da instância.

Diversamente ali nos confrontando com o que Alberto dos Reis[16] designava de habilitação – legitimidade, em que “a parte ou partes iniciais são desde logo os transmissários do direito ou situação jurídica”,[17] face aos termos da petição ou requerimento inicial.

Ora, no caso da habilitação legitimidade, nada ocorre na instância que afete supervenientemente os termos da adequação da formulação do petitório inicial à vertente subjetiva da relação processual.

Revelando-se a desadequação/improcedência do pedido – na hipótese naquele outro processo – ab initio.

Já no caso – que é o destes autos – da habilitação incidente, o pedido inicialmente formulado – de condenação do primitivo Réu no pagamento de dívida para com a A. – mostra-se conforme à invocada causa de pedir.

Sendo que – na sequência da certificada impossibilidade de citação daquele, na circunstância do seu pretérito falecimento – requerida que foi a habilitação dos ora Recorrentes como sucessores do primitivo Réu – enquanto herdeiros daquele – é de considerar estar implicada pela decorrente reconfiguração da titularidade da relação material controvertida, a reconformação do pedido inicial – de condenação do primitivo Réu no pagamento de dívida para com a A. – em função dessa nova vertente subjetiva.

Conquanto tratando-se de situação diversa, não deixa de ser sugestivo, no sentido assim concluído, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 2015-12-17:[18]

“Nos termos gerais do art. 554°, n.º 2, do CPC de 1961, a oposição entre pedidos subsidiários não impede a sua dedução. A reconfiguração da titularidade da relação material controvertida que uma tal dedução subsidiária do pedido implica mais não é do que a consequência normal da previsão do art. 31°-B, do CPC de 1961. Não pode, por isso, constituir fundamento de uma alegada contradição entre o pedido e a causa de pedir.”.

De resto – e sem embargo do mais que se criticou já – como na sentença ora recorrida se reconhece, “A circunstância de os contestantes serem meros sucessores do falecido significa, efectivamente, que os mesmos não podem ser pessoalmente condenados a pagar à Autora qualquer montante mas a verdade é que nunca foi esse o fim da sua habilitação.”.

Em suma, é de conformar os termos da condenação dos RR. com o que se deixou exposto quanto às balizas da responsabilidade dos herdeiros.

Nessa estrita conformidade procedendo – assim apenas parcialmente – as conclusões dos Recorrentes.

Apenas, e por último, se assinalando, no confronto do considerado na sentença recorrida quanto à hipótese de execução requerida contra os sucessores do falecido, que apenas no caso de a herança ter sido aceite pura e simplesmente, e – havendo mais do que um herdeiro – partilhada, é que opera o ónus da prova estabelecido no artigo 2072º, n.º 2, 2ª parte, do Código Civil.

III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação parcialmente procedente, e revogam correspondentemente a sentença recorrida, condenando os sucessores habilitados do primitivo Réu HV, a reconhecerem o crédito da A. sobre a herança deixada por aquele, no montante de € 8.409,57, acrescido de juros de mora vencidos desde 18 de Agosto de 2006 e vincendos, à taxa de 21,624%, até integral pagamento, e a vê-lo satisfeito pelas forças da mesma herança.

Custas na 1ª instância pelos sucessores habilitados do primitivo Réu e, nesta Relação, pela A. e por aqueles, na proporção de 5% para esta e 95% pra aqueles.


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Lisboa, 2016-04-07

(Ezagüy Martins)

(Maria José Mouro)

(Maria Teresa Albuquerque)


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[1] In “Processo Civil Declaratório”, Vol. II, Almedina, 1982, págs. 104, 105.
[2] In “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. 1º, 3ª Ed., Coimbra Editora, 2014, págs. 681 e 683.
[3] Proc. 747/12.9TVLSB.L1, e que teve o mesmo Relator, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
[4] Apud Oliveira Ascensão, in “Direito Civil-Sucessões”, Coimbra Editora, Ld.ª, págs. 470-473 e 480.
[5] Idem, págs. 480-481.
[6] Idem, págs. 481-482.
[7] In “Lições de direito das sucessões”, II, Coimbra Editora, Ld.ª, 1980/82, págs. 109-111, 113-114, e nota 742.
[8] Oliveira Ascensão, sem tomar posição definitiva a propósito, considera que a consideração da herança como património autónomo, é noção que permitirá por si só explicar o regime jurídico daquela, vd. op. cit., págs.474, 475.
[9] Nova relativamente à do art.º 2115º do Código Civil de Seabra.
[10]  Cfr. Adelino Palma Carlos, In “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. I, Procural, Lisboa, 1940 pág.132.
[11] In R.O.A., Ano 46, Vol. II – Setembro de 1986, págs. 581-582, e aliás também citado pelos Recorrentes.
[12] Proc. 081315, in www.dgsi.pt/jstj.nsf. Com texto integral publicado in BMJ 415º, págs. 658-665.
[13] Proc. 02B4447 Relator: FERREIRA DE ALMEIDA, no mesmo sítio da internet.
[14] Proc. 8553/06.3TBMTS.P1.S1, Relator: SILVA GONÇALVES, in www.dgsi.pt/jstj.nsf
[15] Assim, Lebre de Freitas, in “Introdução ao processo civil”, 3ª ed., Coimbra Editora, 2013, pág. 56 e nota 3.
[16] In “Código de Processo Civil, Anotado”, 3ª Ed., Vol. I, pág. 574.
[17] João de Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, Vol. II, Ed. da FDL, 1974, págs. 251, 252.
[18] Proc.1399/12.1TVLSB.L1.S1, Relatora: Maria da Graça Trigo.