Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
978/17.5T8CSC.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: ALD
RESTITUIÇÃO DE VEÍCULO
PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
CONTRATO DE LOCAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - Pretendendo o locador, perante a recusa da entrega da viatura no fim de um contrato de aluguer de locação financeira, a respectiva restituição, deve utilizar o procedimento cautelar comum e não o especificado previsto para o contrato de locação no art.º 21º do DL 149/95 de 24/6.
II - A causa de pedir a utilizar mostra-se complexa, aglutinando o direito do locador à restituição do veículo - que lhe pode advir, alternativamente, e enquanto proprietária que dele continua a ser, da resolução do contrato, ou da caducidade do mesmo sem o exercício do opção de compra pelo locatário – e do fundado receio de que este, com a recusa da restituição, lhe cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito.
III - Quando pela carta enviada ao locatário e junta aos autos se verifica que o Locador/Requerente, ao invés de ter alegado, como alegou, os pressupostos da resolução do contrato, poderia ter alegado a sua caducidade sem o exercício da opção de compra pelo Locatário, deve o tribunal, perante a recusa deste na restituição da viatura, proceder à consideração oficiosa dos factos em causa, ao abrigo do disposto no art 5º/2 al. b) do CPC.
IV -Porque nessa situação a recusa da restituição do veículo, atenta a natureza perecível do objecto da providência, causa lesão grave e dificilmente reparável ao direito de propriedade do locador, deve julgar-se procedente, com inversão do contencioso, a providência cautelar comum em causa.
V - A diferença entre a utilização do procedimento cautelar comum ou do procedimento cautelar especificado do art.º 21º do DL 149/95, residirá, afinal, nos termos da restituição, não podendo no âmbito daquele, como está previsto para este, ser entregue a viatura ao próprio locador, devendo, pois, a locadora, proceder à indicação de depositário para a guarda e conservação do veículo a apreender.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

  I - Mercedes-Benz Financial Services Portugal – Sociedade Financeira de Crédito, S.A., intentou contra A, ao abrigo do disposto no artigo 21º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira (Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho), providência cautelar de entrega judicial, sem audiência prévia do Requerido, do veículo automóvel da marca Mercedes-Benz, modelo A 180 CDI Urban, com a matrícula 02-....-..., a qual havia sido entregue ao Requerido, através de contrato de aluguer de longa duração (ALD).

Pede que seja decretada a apreensão imediata do referido veículo automóvel e respectivos documentos (documento único automóvel), entregando-se-lhe os mesmos,  seja a providência comunicada às autoridades policiais para efectiva e imediata apreensão do aludido veículo, ainda que o mesmo se encontre em circulação, e seja ordenado o ofício das autoridades policiais no sentido de inserirem a matricula 02-....-... na base de dados nacional de viaturas a apreender.

Alega, em síntese, que o Requerido não pagou algumas prestações do aluguer referente à dita viatura, pelo que se constituiu em mora, e que, em face dessa situação, em 13/2/2017 lhe enviou uma carta registada com aviso de recepção, interpelando-o ao cumprimento pontual das obrigações contratualmente assumidas e concedendo-lhe o prazo de 8 dias para a regularização dos valores em dívida, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo e de o contrato se considerar automática e imediatamente rescindido, e com a indicação das respectivas consequências, designadamente a obrigação de proceder à imediata devolução do veículo automóvel objecto do mesmo, remetendo para o doc nº 5 junto com a petição inicial (cfr art 13º da petição). No entanto, o Requerido não procedeu ao pagamento necessário para colocar fim à mora, nem procedeu à restituição da viatura, sendo que esta, nos termos da Cláusula 14ª do contrato, obriga a essa restituição. A não efectuação da restituição  prejudica o direito de propriedade da Requerente, implicando ainda a desvalorização do veículo. Pediu ainda, nos termos do art 21º/7 do DL 149/95, a antecipação do juízo sobre a causa principal, declarando-se como válida a resolução contratual operada.

Dispensado o exercício do contraditório e designado dia para a produção da prova testemunhal, teve esta lugar.

No acto da produção dessa prova a Requerente requereu a inversão do contencioso, nos termos do art 369º do CPC, caso fosse decidida a inadmissibilidade do procedimento previsto no art 21º do DL 149/95.

Produzida a prova, foi proferida decisão, em que o tribunal, depois de convolar  o presente processo cautelar em processo cautelar comum, por entender não ser de aplicar o regime jurídico estabelecido no DL 149/95  de 24/6 a contratos de ALD, entendeu que a Requerente não tinha logrado demonstrar a séria probabilidade da existência do direito à declaração como válida da resolução do contrato e, em consequência, julgou  improcedente a pretensão por ela deduzida.

II – Do assim decidido apelou a Requerente que concluiu as respectivas alegações do seguinte modo:

A) O presente recurso vem interposto da sentença que julgou improcedente o procedimento cautelar, uma vez que julgou não se encontrar verificado um dos requisitos exigidos para o decretamento de um procedimento cautelar, nomeadamente a probabilidade séria da existência do direito – “fumus boni iuris”

B) O Tribunal a quo fundamenta a sua decisão com base na interpretação efectuada à missiva enviada, em 13 de Fevereiro de 2017, pela ora Recorrente ao Requerido e no facto do mesmo não ter recepcionado a dita comunicação.

C) Ora, e salvo o devido respeito, que é muito, não pode a Recorrente conformar-se com o entendimento plasmado na douta sentença do Tribunal a quo.

D) A sentença proferida pelo Tribunal a quo considerou provado que a ora Recorrente celebrou com o Requerido, um Contrato de ALD n.º 74728, tendo dado em locação ao mesmo o veículo automóvel da marca MERCEDES-BENZ, modelo A 180 CDI URBAN, com a matrícula 02-....-....

E) Deu igualmente como provado que para a celebração do supra referido contrato, obrigou-se a Recorrente a adquirir a respectiva viatura, tendo esta sido adquirida e paga, em 18-02- 2014, ao fornecedor “Santogal M – Comércio e Reparação de Automóveis, Lda.”, pelo valor líquido de € 25.543,02.

F) Consequentemente, deu-se igualmente como provado que a propriedade da referida viatura se encontra devidamente registada a favor da Recorrente.

G) Por sua vez, ficou provado que o Requerido se obrigou a pagar à ora Recorrente os alugueres contratados, bem como as despesas e encargos inerentes à utilização e circulação do veículo objecto do contrato, tendo, contudo, o Requerido não pago os alugueres vencidos desde 20-10-2016 a 20-01-2017, conforme discriminados no ponto 9 dos factos provados da sentença ora recorrida.

H) Por fim, também resulta dos factos dados como provados, nos pontos 10, 11 e 12 da sentença proferida pelo Tribunal a quo, que a Recorrente remeteu para o Requerido uma carta, registada com aviso de recepção, a interpelar o mesmo para o cumprimento dos alugueres vencidos, a comunicar a resolução do contrato, a comunicar a obrigação de devolução da viatura e a possibilidade da Recorrente proceder à “venda” da dita viatura, mediante o pagamento da quantia global de EUR 18.846,62, caso o Requerido assim o quisesse.

I) Apesar do teor da supra referida missiva, o Tribunal a quo interpretou-a de maneira diferente, uma vez que no entendimento do mesmo, a prova documental apresentada pelo Recorrente, vulgo a carta enviada em 13 de Fevereiro de 2017, não logra provar os factos expostos no artigo 13.º da petição inicial apresentada pelo Recorrente: “Ora, em face da situação acima descrita, em 13 de fevereiro de 2017, a Requerente enviou uma carta registada com aviso de receção ao Requerido, interpelando-o para o cumprimento pontual das obrigações contratualmente assumidas e concedendo o prazo de 8 (oito) dias para a regularização dos valores em dívida, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo e de o contrato se considerar automática e imediatamente rescindido, e com a indicação das respectivas consequências, designadamente a obrigação de proceder à imediata devolução do veículo automóvel objecto do mesmo (Cfr. Documento. n.º 5 que se juntam e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).”

J) Ora, salvo o devido respeito pela interpretação efectuada pelo Tribunal a quo, esta não se apresenta correta. Vejamos,

K) O procedimento cautelar comum visa, na sua essência, assegurar a efectivação de um direito ameaçado.

L) Contudo, o decretamento de um procedimento cautelar está dependente do preenchimento de dois requisitos essenciais e legalmente previstos no artigo 362.º do CPC.

M) Assim, o n.º 2 do artigo do artigo 362.º do CPC exige que o pedido da Requerente seja fundado num direito já exigente ou direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, que se traduz na expressão “fumus boni iurus”.

N) Por sua vez, o n.º 1, primeira parte, do mesmo artigo exige que o pedido da Requerente seja fundado num receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, que se traduz na expressão “periculum in mora”.

O) Conforme refere o Tribunal a quo, a existência do direito funda-se num juízo, meramente, indiciário, cumprindo à Recorrente provar, somente, os indícios dessa mesma existência.

P) Tendo isso presente e após analisar os factos dados como provados, verifica-se que o Tribunal a quo julgou como assente que a Recorrente é a proprietária do veículo, objecto do contrato de ALD, e que o Requerido só é possuidor do dito veículo em resultado da celebração do respectivo contrato de ALD.

Q) Isto significa que o Tribunal a quo colocou em causa o direito da Recorrente em tomar a posse do veículo, face à resolução do contrato de ALD, tendo julgado que a prova documental aduzida pela Recorrente, na sua petição inicial, não permite aferir que esta tenha fixado qualquer prazo cominatório para que o Requerido fizesse cessar a mora, sob pena de, nos termo do artigo 808.º do Código Civil, o contrato se considerar definitivamente incumprido e automaticamente resolvido e com a consequente obrigação do Requerido em restituir imediatamente a viatura dada em aluguer.

R) Acresce que o Tribunal a quo julgou que o depoimento da testemunha da ora Recorrente não se mostrou susceptível de colmatar a insuficiência de prova verificada.

S) A Recorrente não pode concordar com o Douto entendimento do Tribunal a quo, uma vez que na missiva enviada pela Recorrente para o Requerido é possível constatar, no segundo parágrafo, que a seguinte expressão “… o mencionado contrato e encontrando-se o mesmo caducado em virtude de se ter atingido o termo do respectivo prazo de vigência”, sendo no mesmo parágrafo referido “pelo que deverá(ão) V/Exa(s). proceder à devolução  de tal veículo no termo do contrato, nas nossas instalações, sitas no lugar da Abrunheira, S. Pedro de Penaferrim, Sintra, sob pena de ficar obrigado a pagar a quantia de 16,02 €, por dia, de atraso na devolução da viatura.”

T) É igualmente verdade que, apesar da caducidade do contrato, a Recorrente possibilitou ao Requerido proceder à aquisição da viatura, mediante a regularização dos montantes em dívida, acrescido do montante global de EUR 18.846,62.

U) Saliente-se que o objecto social da Recorrente é a actividade de locação financeira mobiliária e de aluguer de viatura sem condutor, pelo que é do seu interesse e dos seus clientes possibilitar-lhes a aquisição da viatura que os mesmos usufruíram ao longo do contrato de ALD, pelo que, em prol das boas relações comerciais, o contrário não seria expectável.

V) Apesar da boa vontade da Recorrente, demonstrada no terceiro parágrafo, resulta da sua missiva que foi imposto ao Requerido um prazo admonitório de 8 dias para a regularização da situação de débito, sob pena de recurso aos meios judiciais para cobrança coerciva dos montantes em dívida e satisfação dos demais direitos contratuais, nomeadamente o direito de exigir a devolução do aludido veículo automóvel.

W) Nestes termos, a missiva enviada pela Recorrente ao Requerido não deixa qualquer margem para dúvidas que face ao incumprimento se operou a caducidade do contrato e a obrigação de restituição do veículo.

X) Tal culminação resulta da Cláusula 14.ª, n.º 1 das Condições Gerais do contrato de ALD, que prevê que decorridos que sejam 8 dias sobre a comunicação admonitória aí prevista sem que as rendas já vencidas se mostrem integralmente liquidadas, o contrato considera-se automaticamente resolvido.

Y) Saliente-se que o contrato de ALD em causa terminou, independentemente da situação de incumprimento, em 20-02-2017 (início em 20-02-2014 a 20-02-2017), pelo que, segundo a cláusula 11.ª do respectivo contrato, não sendo exercida a opção de compra, o locatário, ora Requerido, deverá proceder à devolução do veículo.

Z) Tal devolução nunca ocorreu.

AA) Recorde-se que a única razão que justificava a posse do veículo por parte do Requerido era existência de um contrato de ALD.

BB) Contudo, seja pelo incumprimento, seja pelo término contratualmente previsto, a verdade é que o contrato de ALD já não existe, caducou.

CC) Assim, face aos elementos já aduzidos não restam dúvidas da existência do direito da Recorrente em ver o seu veículo restituído, resultado da caducidade do contrato de ALD.

DD) Face ao supra exposto, no entendimento da ora Recorrente, os factos ii) e iv) deviam ter sido dados como provados, resultado da ilação lógica e das regras de experiência comum, aliados à prova documental aduzida pela Recorrente e à prova testemunhal produzida na diligência de inquirição de testemunhas.

EE) A Recorrente também não concorda com as considerações tecidas pelo Tribunal a quo na sua Douta sentença, na qual afirma que a Recorrente nunca estabeleceu contacto com o Requerido, uma vez que o depoimento da testemunha da Recorrente atestou que foram realizados vários contactos, via correio electrónico, que cessaram pouco antes do envio da carta, datada de 13 de Fevereiro de 2017, remetida pela Recorrente.

FF) Contudo, é compreensível que o Requerido, confrontado com a hipótese de devolver a viatura, objecto do contrato, tenha cessado todas as comunicações, nem tendo, aliás, reclamado a supra referida carta, conforme se verifica no aviso de recepção que consta no Documento n.º 5 junto com a petição inicial.

GG) Ora, tendo a respectiva carta sido enviada pelo Recorrente, de forma correta e adequada, para a morada aposta no contrato de ALD, não se pode considerar como não notificado o Requerido, pelo facto deste não ter reclamado a dita correspondência, conforme dispõe o artigo 224.º do CC.

HH) Se o Requerido não reclamou a dita carta foi porque não o quis, não podendo tal “omissão” ser imputável à Recorrente.

II) Em suma, salvo o devido respeito pelo entendimento diverso do Tribunal a quo, a Recorrente logrou provar a existência do seu direito em lhe ser restituída a viatura objecto do contrato de ALD.

JJ) É igualmente importante salientar que, face às similitudes existentes entre o contrato de ALD e o contrato de locação financeira, não é descabido aplicar o regime vertido no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho (Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira), que não exige ao locador/requerente do procedimento cautelar o preenchimento dos dois requisitos supra referidos, com vista ao decretamento da respectiva providência.

KK) Também não deixa de ser preponderante referir que, tendo o Tribunal a quo dúvidas sobre a existência do direito da Recorrente, podia ter solicitado novos elementos de prova ou em última facie, notificado o Requerido, nos termos do artigo 366.º do CPC, para este exercer, querendo, o seu direito de contraditório, colmatando-se, assim, quaisquer dúvidas existentes. Por fim,

LL) A Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo não se pronunciou quanto ao segundo requisito necessário para o decretamento da providência cautelar, a saber “periculum in mora”, pelo que não poderão as presentes alegações de recurso versar sobre uma temática não debatida pelo Douto Tribunal a quo.

MM) Contudo, salientamos, somente, que a Douta sentença recorrida, deu como provado, nos pontos 13 a 15, que a utilização da viatura deprecia-a, o decurso do tempo desvaloriza a viatura e que a Requerente se encontra impedida de dispor da viatura, pelo que é de crer que o Tribunal a quo iria julgar como provado o segundo requisito necessário para o decretamento da providência cautelar.

III – O tribunal da 1ª instância julgou indiciariamente provados os seguintes factos:

1. A Requerente é uma sociedade comercial anónima que tem por objecto, entre outras, a actividade de locação financeira mobiliária e de aluguer de viaturas sem condutor;

2. No exercício da sua actividade, a Requerente celebrou com o Requerido, o contrato de aluguer de longa duração (ALD) n.º 74728;

3. Pelo contrato, a Requerente deu em aluguer ao Requerido um veículo automóvel, da marca Mercedes-Benz, modelo A180 CDI Urban, com a matrícula 02-....-...;

4. Para celebração do referido contrato, obrigou-se a Requerente a adquirir a referida viatura;

5. A viatura objecto do mencionado contrato de aluguer de longa duração foi adquirida e paga pela Requerente, pelo preço de €25.543,02;

6. A propriedade da referida viatura encontra-se registada a favor da Requerente;

7. Ao abrigo do referido contrato de ALD, obrigou-se ainda a Requerente a ceder ao Requerido o gozo e fruição de tal equipamento, o que fez;

8. O Requerido obrigou-se a pagar à Requerente os alugueres contratado, bem como a de suportar todas as despesas e encargos inerentes à utilização e circulação da viatura supra identificada;

9. O Requerido não efectuou o pagamento dos seguintes alugueres:

Data de vencimento Valor
20.10.2016 €199,94
20.11.2016 €242,52
20.12.2016 €242,52
20.01.2017 €242,54

10. Em 13.02.2017, a Requerente enviou uma carta registada com aviso de recepção ao Requerido, interpelando-o para o cumprimento dos alugueres em dívida, referidos no ponto anterior;

11. Nessa mesma carta, a Requerente expressou que, em virtude do incumprimento, o contrato de ALD estava caducado, pelo que o Requerido deveria devolver a viatura supra identificada à Requerente no termo do contrato, porém, a Requerente admitia ponderar a “venda” da viatura ao Requerido, caso este efectuasse o pagamento da quantia global de €18.846,62, no prazo de oito dias;

12. Até à presente data, o Requerido não procedeu ao pagamento dos valores em dívida, nem procedeu à restituição da viatura;

13. A utilização da viatura deprecia-a;

14. O decurso do tempo desvaloriza a viatura;

15. A Requerente encontra-se impedida de dispor da viatura.

E julgou como indiciariamente não provados os seguintes factos:

i. O Requerido obrigou-se a pagar um aluguer no valor de € 17.709,17, com data de vencimento em 20.02.2017;

ii. Na carta enviada ao Requerido em 13.02.2017, a Requerente concedeu àquele um prazo de oito dias para regularização dos valores em dívida, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo e de o contrato se considerar automática e imediatamente rescindido, e com a indicação das respectivas consequências, designadamente a obrigação de proceder à imediata devolução da viatura supra identificada;

iii. O Requerido recepcionou a carta referida no ponto anterior;

iv. A Requerente fixou um prazo cominatório para que o Requerido fizesse cessar a mora, sob pena do contrato se considerar definitivamente incumprido e comunicou que, nesse caso, a declaração de resolução produzia efeitos.

IV – Do confronto da decisão recorrida com as conclusões das alegações, decorre serem as seguintes as questões a decidir no presente recurso, correspondendo as mesmas ao seu objecto - se os factos ii) e iv) deviam ter sido dados como provados; se, em face desses factos, a Requerente logrou provar a existência do direito a ser-lhe restituída a viatura objecto do contrato de ALD; e se, por assim se dever entender, e porque dos factos provados resulta também provado o “periculum in mora, se deveria ter julgado procedente o procedimento cautelar comum.

  

Na 1ª instância, por se ter aderido à jurisprudência maioritária, segundo a qual, o procedimento cautelar específico previsto no art 21º do DL 149/95 de 24/6 (“procedimento cautelar de entrega judicial”) não se adequa às situações em que o veículo cuja apreensão e entrega se pede foi objecto de contrato de aluguer de longa duração (ALD), antes se devendo lançar mão, nessas situações, do procedimento cautelar comum, convolou-se aquele procedimento neste[1]. O que se fez, naturalmente,  no pressuposto de que os factos alegados pela Requerente seriam bastantes para a demonstração do “periculum in mora”, não se aderindo, também e  consequentemente, à jurisprudência, de acordo com a qual, aquele risco nas situações como as dos autos teria de advir de alegações de que decorresse ainda que o locatário não tinha disponibilidade financeira para solver a dívida  e/ou que era sua intenção dissipar o bem.

Subsequentemente, concluiu-se na 1ª instância não se mostrar verificado o primeiro dos pressupostos constitutivos do decretamento da providência cautelar comum -  a probabilidade séria da existência do direito, o chamado “fumus boni iuris” - na medida em que a Requerente não teria logrado demonstrar a séria probabilidade da existência do direito à resolução do contrato, referindo-se para o efeito: «A requerente baseia o seu pedido no facto de ter interpelado o Requerido para que este cumprisse com as obrigações contratualmente assumidas, concedendo-lhe um prazo de oito dias “para a regularização dos valores em dívida, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo e de o contrato se considerar automática e imediatamente rescindido, e com a indicação das respectivas consequências, designadamente a obrigação de proceder à imediata devolução do veículo automóvel” – artigo 13º do Requerimento apresentado, com sublinhado nosso. Ora, tal não resulta da prova documental junta pela Requerente, designadamente do teor da carta de fls. 14, enviada ao Requerido. Diversamente, conforme resulta da factualidade provada (ponto 11), a Requerente, após referir que o contrato já se encontrava caducado, expressou na carta enviada ao Requerido que admitia a “venda” da viatura em causa, caso este procedesse ao pagamento de determinada quantia, no prazo de oito dias. Assim, ao contrário do que a Requerente alega nos artigos 15º a 17º do Requerimento apresentado, não se encontra demonstrado que esta tenha fixado, portanto, qualquer prazo cominatório para que o Requerido fizesse cessar a mora, sob pena de, nos termos do art.º 808 do CC, o contrato se considerar definitivamente incumprido e automaticamente resolvido, com a consequente obrigação, decorrente do contrato celebrado, do Requerido em restituir imediatamente a viatura dada em aluguer».

É, pois, neste contexto, que a Requerente, aqui apelante, pretende a alteração da decisão da matéria de facto no que se refere aos factos ii) e iv) que, no seu entender, «em resultado da ilação lógica e das regras de experiência comum, da prova documental e da prova testemunhal produzida na diligência de inquirição de testemunhas», se deveriam ter dado como provados.

Estão em causa, concretamente, os seguintes factos: 

 ii. Na carta enviada ao Requerido em 13.02.2017, a Requerente concedeu àquele um prazo de oito dias para regularização dos valores em dívida, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo e de o contrato se considerar automática e imediatamente rescindido, e com a indicação das respectivas consequências, designadamente a obrigação de proceder à imediata devolução da viatura supra identificada;

iv. A Requerente fixou um prazo cominatório para que o Requerido fizesse cessar a mora, sob pena do contrato se considerar definitivamente incumprido e comunicou que, nesse caso, a declaração de resolução produzia efeitos.

O presente tribunal desconhece o depoimento da testemunha inquirida – e não tem que conhecer, uma vez que a apelante não fez valer o conteúdo da mesma em função do cumprimento dos ónus que lhe são para tanto impostos pelo art 640º CPC  para a impugnação da decisão da matéria de facto.

 Não pode, por isso, articular tal depoimento com o conteúdo da prova documental, fazendo-o em função das regras lógicas e da experiência comum, para reapreciar a valoração da prova no que se refere aos referidos pontos fácticos e, por assim ser, sempre a pretendida alteração daquela matéria de facto se teria que ter como improcedente.

Mas sempre se dirá que a referida prova documental – e a apelante está-se a reportar ao conteúdo da carta de fls 14, correspondente ao doc nº 5 junto com a petição - não permitiria, decerto, qualquer que tivesse sido o conteúdo daquele depoimento testemunhal, que se desse como provada a matéria a que se reportam os factos não provados em ii) e iv), que, por sua vez, reproduzem o conteúdo do art 13º da petição.

Basta para tanto atentar ao conteúdo da referida carta cujo teor, no que aqui se mostra relevante, se transcreve:

«Exmo Senhor A – R ... 2775-116 Parede

Abrunheira, 13 de Fevereiro de 2017

Carta Reg. c/ A.R:

Assunto: Incumprimento do Contrato de Aluguer de Longa Duração nº 74728

Exmos Senhores

Informamos que se encontram por liquidar os alugueres relativos aos contratos identificados em assunto

Vencidos em  Valor de vencimento
20.10.2016 €199,94
20.11.2016 €242,52
20.12.2016 €242,52
20.01.2017 €242,54

Os quais, acrescidos dos juros de mora e despesas, ascendem, nesta data  ao montante total global de 994,28 €, através de envio de cheque ou transferência bancaria para o IBAN (….).

Assim, não tendo V. Exa(s) cumprido pontual e integralmente o mencionado contrato e encontrando-se o mesmo caducado em virtude de ter atingido o termo do respectivo prazo de vigência, verifica-se a impossibilidade legal  de exercício da opção de compra do veiculo automóvel objecto do Contrato de Aluguer de Longa Duração, pelo que deverão V. Exc(s)  proceder à devolução de tal veiculo  no termo do contrato, nas nossas instalações, sitas (…) sob pena de ficar obrigado a pagar a quantia de € 16,02, por cada dia de atraso na devolução da viatura.

No entanto, e considerando que V. Excia cumpriu, com excepção dos alugueres acima indicados, o Contrato de Aluguer de Longa Duração em apreço, informamos que a Mercedes (…), admite ponderar, pensando no interesse de V. Excia, a venda do veiculo automóvel objecto de tal contrato, contando que V, Excia proceda no prazo máximo de 8 dias, ao pagamento dos alugueres indicados no primeiro parágrafo, acrescidos dos respectivos encargos, ao imposto único de circulação de 12/2/2017 no valor de 143,17 € e ainda do pagamento da quantia de 17.709,17 € , correspondente ao valor da compra e venda, tudo no valor global de 18.846,62 €.

Informamos que, caso V. Excia não cumpra as obrigações a que está adstrito, acima melhor destacadas, procederemos ao imediato preenchimento da livrança  subscrita por V. Excias e demais avalistas, nos termos do pacto de preenchimento estabelecido, e instruiremos os nossos advogados para promoverem judicialmente a satisfação dos nossos direitos contratuais, dos quais se salienta o direito de exigir a devolução do aludido veiculo automóvel.

Relembramos que todos os contratos de prestação de serviços e seguros associados ao contrato referido em assunto, cessaram na data de vencimento do respectivo valor residual.

Por último, caso o pagamento ora solicitado tenha sido efectuado entretanto ou venha a ser efectuado dentro do prazo referido anteriormente, solicitamos a V. Excia o favor de nos comunicar (…)».

A carta em causa foi expedida registada com aviso de recepção em 14/2/2017 e não foi recepcionada.

Do conteúdo desta carta e por reporte à matéria de facto que a apelante pretendia ver provada, apenas resulta que a Requerente concedeu ao Requerido um prazo de oito dias para regularização dos alugueres em dívida e que lhe comunicou a obrigação de proceder à imediata devolução da viatura. 

Mas já não resulta a cominação de que, não procedendo a essa regularização, a mora se converteria em incumprimento definitivo e o contrato se consideraria automática e imediatamente rescindido, matéria essa que era a essencial na referida alegação da Requerente enquanto prova da resolução do contrato.

Diga-se, porém, que atenta a data dessa carta, nenhum sentido fazia – ou faz – pretender tal resolução.

É que o contrato foi celebrado em 20/2/2014, por 36 meses, e por isso atingiu o seu termo em 20/2/2017  –  cfr fls 8 vº.

O teor da carta – enviada um pouco antes do termo do contrato- revela essa realidade, só se compreendendo a proposta de venda nela incluída, em função da circunstância, nela aludida, do Requerido ter cumprido, «com excepção dos alugueres acima indicados, o Contrato de Aluguer de Longa Duração».

Assim, bem andou a 1ª instância ao considerar que a Requerente não tinha logrado demonstrar a séria probabilidade da existência do seu direito em função da resolução do contrato.

Entende, porém, este Tribunal que a Requerente logrou demonstrar a séria probabilidade da existência do seu direito à restituição do veículo em função da caducidade do contrato.

Com efeito, no ALD, não apenas a resolução do contrato, mas também a caducidade do mesmo, quando associada ao não exercício pelo locatário da “opção de compra”, implica o direito para a locadora de se ver imediatamente restituída relativamente à posse e gozo do veículo. Como decorre da Cláusula 11ª do contrato, cujo teor aqui se reproduz na parte relevante: «1- No final do prazo do presente Contrato e desde que nessa data não estejam por liquidar ao locador rendas vencidas, o locatário poderá proceder à aquisição do veículo mediante o pagamento do valor da compra e venda, ficando a transferência da propriedade do veículo condicionada ao efectivo pagamento daqueles valores. Caso o locatário não pretenda exercer a opção de compra deverá comunicar tal facto ao locador por carta registada enviada com a antecedência mínima de 60 dias relativamente à data de vencimento do valor da compra e venda. 2- Não sendo exercida a opção de compra o locatário deverá proceder à imediata devolução do veículo, bem como de toda a documentação que lhe foi entregue…».

O direito que está em causa por parte do locador é, evidentemente, o direito à restituição do veículo, direito esse que lhe advém da propriedade, que mantém na sua esfera jurídica daquele bem, e por isso só tem que fazer prova que permita um juízo de verosimilhança relativamente aos factos que contratualmente lhe facultam que ponha termo ao gozo temporário e retribuído do veículo implicado no ALD.

No caso da resolução, teria de fazer prova, como é sabido, não apenas da mora, mas também do incumprimento definitivo do contrato resultante da interpelação admonitória do devedor associada à manutenção do não pagamento das prestações que implicaram a referida mora, no prazo que lhe houvesse sido dado para pôr termo à mesma, como resulta da Cláusula 14ª do contrato.

 Na caducidade, basta que se mostre findo o período contratual  acompanhado do não exercício atempado pelo locatário da opção de compra, o que vem expresso na já referida Cláusula 11ª.

 

Dir-se-á em detrimento do que se vem sustentando, que as alegações da Requerente não permitiriam a prova do direito à restituição do veículo em função da caducidade do contrato, mas apenas em função da resolução do mesmo.

 É verdade que o que alegou no art 13º da petição apenas se coaduna com a resolução do contrato e não com a respectiva caducidade.

Mas esta resulta do teor acima transcrito da carta enviada ao requerido para a morada contratual - Rua... 2775-116 Parede, cfr fls 8 vº e  fls 14 –, da circunstância objectiva de que o contrato atingiu o seu termo, e de ter ficado provado que o requerido não entregou o veiculo objecto do mesmo.

Como é sabido, e resultava já expressamente assumido no anterior CPC, nos factos essenciais é possível destacar os factos essenciais nucleares, também ditos “stricto sensu”, dos factos complementares e concretizadores.

Essa distinção é feita em função da fattispecie normativa geradora do efeito pretendido com a acção, e em função dos concretos factos que o autor (ou réu, quando esteja em causa uma excepção), tenha alegado, e aqueles cuja alegação omitiu.

 Lebre de Freitas[2] refere a propósito da alegação fáctica suficiente para evitar a ineptidão da causa de pedir, «mas não completa, por não terem sido alegados todos os factos necessários à integração da previsão normativa», que, «qualquer destes factos integradores da previsão da norma pode surgir em acto de instrução, sendo todos entre si permutáveis no papel de complementares». Acrescentando e esclarecendo: «O facto só é complementar por não ter sido inicialmente alegado, não tendo natureza diversa dos que as partes alegaram nos articulados».

Os factos alegados, quer ao nível da causa de pedir, quer ao nível da excepção, hão-de ser tais que permitam a identificação/individualização dessa causa de pedir ou dessa excepção, potenciando a sua compreensão, assim resultando excluída a ineptidão da petição inicial ou a nulidade da excepção.

Mas, cumprida essa função, os factos alegados podem mostrar-se insuficientes para conduzirem à procedência da causa de pedir ou da excepção, sendo que essa insuficiência pode ser suprida, no âmbito do actual CPC, pela consideração oficiosa dos factos complementares ou concretizadores do tipo legal que esteja em causa.

Já não é necessário, como sucedia no anterior CPC que, resultando tais factos da instrução e discussão da causa, «a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contraria tenha sido facultado o exercício do contraditório» - cfr art 264º/3 parte final desse diploma - bastando, como resulta da al b) do nº 2 do art 5º do actual CPC que «resultem da instrução da causa» e que sobre eles as partes tenham tido «a possibilidade de se pronunciar».

È essa a opinião expressa de Paulo Pimenta [3] que refere: «Acerca da consideração dos factos complementares ou concretizadores prevista no art 5º/2 b), importa sublinhar que o juiz pode e deve conhecer de tais factos quando “resultem da instrução da causa” e “desde que sobre eles as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciar”. Quer isto significar que, agora e nos termos da lei, o conhecimento desse factos passa a ser oficioso e deixa de estar dependente da vontade do interessado, ao contrário do que sucedia antes do CPC de 2013».

São também peremptórios nesse sentido, Paulo Ramos Faria/Ana Luísa Loureiro [4] referindo, depois de evidenciarem várias características do actual modelo do processo comum de declaração que, «um modelo com estas características exige, de modo a assegurar o seu equilíbrio, que a matéria litigiosa possa ser densificada na fase do julgamento, através da aquisição de factos relevantes meramente apendiculares – instrumentais e essenciais complementadores ou concretizadores  dos alegados pelas partes, - com naturalidade. A matéria litigiosa é definida pelas partes – com a alegação dos factos essenciais caracterizadores da causa de pedir e das excepções-, concretizando o princípio do dispositivo, sendo da natureza do processo equitativo, heurístico e dirigido à justa composição do litígio que a factualidade relevante  - logo, compreendida na causa de pedir ou na matéria da excepção invocadas – adquirida durante a instrução, seja considerada pelo tribunal, sem mais formalidades – respeitando o principio da audiência contraditória (art 415º)- e falam a este respeito da «consideração oficiosa dos factos essenciais que resultem da instrução da causa».

Este entendimento – que, curiosamente, parece não ser o de Lebre de Freitas, que continua a entender ser necessária manifestação de vontade da parte interessada [5] – é o que resulta de modo necessário do confronto entre o nº 3 do art 264º do CPC de 1961 e a referida al b) do nº 2 do art 5º do CPC 2013. 

 

Na situação dos autos, e como já se deixou reflectido, a causa de pedir utilizada mostra-se complexa, aglutinando o direito do locador à restituição do veículo - que, como já se viu, lhe pode advir, alternativamente, e enquanto proprietária que dele  continua a ser,  da resolução do contrato de ALD, ou da  caducidade do mesmo sem o exercício do opção de compra pelo locatário – e do fundado receio de que o locatário, com a recusa da restituição do veículo, lhe cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito  – cfr art 362º CPC.

Os factos que a requerente alegou (mesmo que neles se considerassem excluídos os referentes à resolução do contrato), seriam suficientes para individualizarem a fattispecie normativa geradora do efeito pretendido pela locadora, de tal modo que, se tivesse sido exercido o contraditório, o requerido não teria dificuldade em compreender o pretendido pela requerente – a restituição do veículo por ser dele proprietária e por ele, locatário, não ter cumprido integralmente o contrato, cujo termo não poderia desconhecer - e por conseguinte, a referida insuficiência de factos não afectaria a sua defesa, não havendo lugar a falar de ineptidão da petição inicial.

    A insuficiência desses factos essenciais detectada pela 1ª instância e que justificou a improcedência do procedimento cautelar comum, deve, no entanto, ser oficiosamente suprida pelo Tribunal na consideração factual da caducidade do contrato, associada ao não exercício pelo locatário da opção de compra, factos que resultaram da instrução da causa, tendo tido a Requerente oportunidade para sobre eles se pronunciar, o que, aliás, fez, expressamente, nas conclusões do presente recurso, em que não deixa de os configurar como constitutivos do seu direito («Saliente-se que o contrato de ALD em causa terminou, independentemente da situação de incumprimento, em 20-02-2017 (início em 20-02-2014 a 20-02-2017), pelo que, segundo a cláusula 11.ª do respectivo contrato, não sendo exercida a opção de compra, o locatário, ora Requerido, deverá proceder à devolução do veículo. Tal devolução nunca ocorreu. Recorde-se que a única razão que justificava a posse do veículo por parte do Requerido era existência de um contrato de ALD. Contudo, seja pelo incumprimento, seja pelo término contratualmente previsto, a verdade é que o contrato de ALD já não existe, caducou»conclusões Y a CC.

À consideração oficiosa dos factos acima referidos não obsta, por um lado, a circunstância da requerente ter erradamente invocado a resolução do contrato, pois, como se referiu, essa referência incorrecta não colocaria o Requerido, se tivesse sido ouvido, na impossibilidade se defender adequadamente, e não obsta, por outro, a circunstância de, não tendo aquele sido ouvido, não ter tido possibilidade de se pronunciar relativamente aos factos sobre os quais se entende aqui dever-se alargar os poderes de cognição do tribunal, pois que não deixará de sobre eles se poder pronunciar quando for notificado da decisão, no cumprimento do contraditório subsequente à mesma.

Já acima se aludiu ao conteúdo do que se entende que se deve fazer corresponder ao segundo requisito para o decretamento de procedimento cautelar comum em circunstâncias factuais como as dos presentes autos – o “periculum in mora” analisa-se, nessas circunstâncias, no fundado receio do locador, de que o locatário, com a recusa da restituição do veículo, lhe cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito de propriedade.

    Ainda que muito justificadamente, e como foi decidido na 1ª instância, não se possa, em função do princípio da legalidade das formas processuais[6], utilizar para o ALD o procedimento cautelar de entrega judicial, não pode deixar de se admitir que o requisito do “periculum in mora”, resulta aqui tão evidente, feita a prova do direito à restituição do veículo, como o é neste outro procedimento, em função do disposto no art 21º DL 149/95 de 24/6, ou na apreensão de veículos automóveis, em função do disposto no art 16º/1 do DL 54/75 de 24/2. Em qualquer dos três casos, se verifica, como se acentuou no Ac RC de 23/9/2008 [7] «uma presunção actuante de que a contínua desvalorização do veículo equivale, enquanto preenchimento dos requisitos de um procedimento cautelar comum, ao fundado receio estabelecido no nº1 do art 381º do CPC». Como é lógico, também no âmbito da não entrega da viatura no fim de um contrato de ALD – como se verifica nos autos – se mostra do «senso comum» a «inferência de ser evidente que a protecção do locador contra o periculum quod est in mora não se compadece com a espera de uma decisão definitiva, no caso de um bem sujeito a uma contínua desvalorização, como sucede com um automóvel».

De todo o modo, a Requerente nos autos - embora disso não tivesse necessidade em face do procedimento cautelar que se propunha utilizar, na medida em que o legislador no âmbito do mesmo prescinde da prova da existência do prejuízo - não deixou de alegar factos tendentes à prova efectiva do “periculum in mora”, na decorrência dos quais resultou provado que, não tendo até à presente data o Requerido  procedido ao pagamento dos valores em dívida, nem à restituição da viatura, a utilização desta deprecia-a, o decurso do tempo desvaloriza-a e a Requerente encontra-se impedida de dispor da mesma – cfr factos provados 13 a 15.

Por isso, mesmo para quem entenda que na situação substantiva/processual dos autos, não obstante a natureza perecível do objecto da providência, seria ainda necessária tal alegação, ela foi feita, e dos factos provados decorre a lesão grave e dificilmente reparável do direito (de propriedade) da Requerente se não for o mais cedo possível restituída à posse e gozo da viatura.

Note-se ainda que a circunstância da carta acima referida, que exortava o locatário a restituir a viatura no termo do contrato, não ter sido por ele recepcionada, desde o momento em que a mesma foi endereçada para a morada contratual, não obsta a que se entenda que o mesmo dela tomou conhecimento, pelo que a não entrega da mesma no referido prazo equivale a uma recusa dessa entrega.

Do que se conclui pela procedência do procedimento cautelar comum.

Porém, porque no âmbito desta genérica providência, não tem o locador direito, como no procedimento cautelar de entrega judicial a que se reporta o art 21º DL 149/95 de 24/6, à entrega directa da viatura à sua esfera jurídica, apenas se deferirá a normal apreensão da mesma, a efectuar pelas autoridades policiais, sem embargo de se admitir que lhes seja oficiada a inserção da concreta matricula na base de dados nacional de viaturas a apreender. No entanto, a ordem dessa apreensão ficará sujeita a que a Requerente traga aos autos a indicação de depositário para a sua guarda e conservação.

Do que se veio de dizer, haver-se-á de se concluir que, afinal, estando em causa a não entrega da viatura no fim de um contrato de ALD, a grande diferença entre a utilização do procedimento cautelar comum ou do procedimento cautelar especificado daquele art 21º do DL 149/95 reside nos termos da restituição – à utilização desta especial providência corresponde a indiscutível mais-valia do automóvel ser entregue ao próprio locador, que recupera assim mais rápida e eficazmente a capacidade de uso fruição e disposição da viatura, o que lhe é assegurado também pela circunstância de poder dispor do mesmo, independentemente da interposição de recurso pelo locatário, como decorre do nº 6 daquele art 21º.

A diferença assinalada não é, porém, de molde a afastar a verificação dos pressupostos de que depende a inversão do contencioso[8], nos termos em que tal inversão está genericamente prevista no art 369º CPC, deferindo-se, pois, a mesma.

V – Pelo exposto, acorda este tribunal, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente com a da apelante, em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, julgando procedente, com inversão do contencioso, o procedimento cautelar comum em que foi convolado o procedimento cautelar previsto no art 21º do DL 149/95 de 24/6, ordenando a apreensão do veículo a que os autos se reportam através das autoridades policiais, que inserirão a matrícula do mesmo na base de dados nacional de viaturas a apreender, ainda que em circulação, e às quais se oficiará nesse sentido, na 1ª instância, logo que a Requerente traga aos autos a indicação de depositário para a guarda e conservação do mesmo.

Custas na 1ª instância pela requerente, nos termos do art 539º CPC.

Lisboa, 6 de Julho de 2017

Maria Teresa Albuquerque                                      

Jorge Vilaça

Vaz Gomes

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[1] Cfr por todos o Ac RL 20/1/2011 (Henrique Antunes), acessível em www.dgsi.pt
[2]- «Código de Processo Civil Anotado», vol I , 3ª ed  Setembro de 2014, p 17
[3] - «Processo Civil Declarativo», 2014, p 19
[4]«Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil», 2014, 2ª ed , vol I, p 43/44
[5] - «A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013», 3ª ed, p 141 nota de rodapé nº 2, onde refere: «Os factos que completem ou concretizem a causa de pedir ou as excepções deficientemente alegadas podem também ser introduzidos no processo quando resultem da instrução da causa; mas, neste caso, basta à parte a quem são favoráveis, declarar que quer deles aproveitar-se, assim observando o ónus da alegação. A necessidade desta declaração, decorrente do princípio do dispositivo, estava expressa no anterior art 264º/3 (…) e está implícita na formulação do actual art 5º/2 b) (…): a pronúncia das partes (ou de uma delas normalmente a que é onerada com a alegação do facto: “a parte interessada”) terá de ser positiva (no sentido da introdução do facto no processo), pois de outro modo seria violado o princípio do dispositivo, em desarmonia com a norma paralela do art 590-4. A alteração de redacção tem apenas o significado objectivo de frisar que a alegação pode provir de qualquer das partes, atendendo a que o facto em causa não altera nem amplia a causa de pedir (como o do art 265º/1) ou uma excepção, apenas completando ou concretizando uma causa de pedir ou excepção já identificada».
No mesmo sentido, em «Introdução…», p 166, nota de rodapé nº 33-b e em «Código de Processo Civil Anotado», 3ª ed Set 2014, p 17/18
[6] Cfr neste sentido, Abrantes Geraldes, «Temas da Reforma do Processo Civil- Procedimentos Cautelares Especificados», Nov 2008, IV vol, p 283   
[7] - Relator Teles Pereira, acessível em www.dgsi.pt
[8] - Cfr art 21º/7 do DL 149/95 de 24/6 na redacção que lhe foi conferida pelo DL 30/2008 de 25/2, que refere que «decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso».