Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18143/20.2T8LSB-A.L1-7
Relator: CRISTINA LOURENÇO
Descritores: VIATURA AUTOMÓVEL
LOCALIZAÇÃO DO SEU PARADEIRO
PEDIDO DE INFORMAÇÃO À VIA VERDE
ESCUSA DE PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÃO
LEVANTAMENTO DO DEVER DE SIGILO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.–A “Via Verde Portugal – Gestão de Sistemas Eletrónicos de Cobrança, S.A.”, não tem competência para dar informações sobre o paradeiro de viaturas a apreender.

2.–Os registos de passagens de veículos com identificador “via verde”, em portagens, constituem dados pessoais e elementos da reserva da vida privada dos aderentes aos serviços.

3.–No âmbito das suas funções, e enquanto responsável pelo tratamento dos dados pessoais referentes aos utilizadores que são seus clientes, aquela sociedade está vinculada ao dever de sigilo por força do Regulamento (UE) 2016/679 Do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, e da Lei 58/2019, de 8/08.

4.–Deduzida escusa de prestação de informação sobre a passagem de viaturas em pontos de cobrança de portagens, a coberto do dever de sigilo, este só poderá ser levantado em incidente intentado para o efeito nos termos e ao abrigo do disposto no art. 417º, nº 3, al. c), e nº 4, do Código de Processo Civil, e art. 135º, do Código de Processo Penal, se do confronto dos interesses em conflito - interesse na realização da justiça, por um lado, e interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, por outro - se concluir que aquele assume preponderância no caso concreto, o que não se verificará se a informação pretendida não se revelar essencial ou mesmo útil com vista à apreensão duma viatura.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I.–Relatório

O presente incidente de quebra de sigilo segue por apenso aos autos de procedimento cautelar comum que corre termos sob o nº 18143/20.2T8LSB, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Cível – Juiz 7,  que o BANCO BPI, S.A.”, com sede na Rua Tenente Valadim, n.º 284, no Porto, move contra V(…), residente na Av. (…),  no âmbito da qual, e invocando incumprimento do contrato de aluguer e promessa de compra (ALD)  celebrado com a Requerida em 27 de junho de 2016, concluiu, pedindo: a) a entrega judicial do veículo automóvel de marca Volvo, modelo XC60 Diesel, Versão XC60 2.4 D4 Vor Geartronic, com a matrícula (…), presumivelmente encontrado junto ao domicílio da Requerida; b) com dispensa de caução e efetuada sem audiência prévia da Requerida; c) e antecipando o juízo sobre a causa principal, nos termos do disposto no artigo 369.º do Código de Processo Civil.

***

Foi determinada a citação da requerida para, querendo, deduzir oposição, nos termos dos arts. artigos 293.º e 294.º (aplicáveis por remissão dos artigos 365.º, n.º 3, e 376.º, n.º 1) e do disposto no artigo 366.º, n.º 5, todos do Código de Processo Civil; e ainda para, querendo, deduzir oposição à pretendida inversão do contencioso, nos termos dos artigos 369.º e 376.º, n.º 4, ambos do mesmo código).

***

Posteriormente, ao abrigo do disposto no art.º 366.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, foi dispensada a citação prévia da requerida e tomaram-se declarações às testemunhas indicadas pela Requerente, após o que foi proferida decisão nos seguintes termos:

“Pelo exposto, julgo procedente o presente procedimento cautelar, e, consequentemente:

i)-

Ordeno a apreensão e entrega ao requerente “Banco BPI, S.A.” (através da empresa por este indicada no artigo 39º) do automóvel, da marca “Volvo”, modelo “XC60 Diesel versão XC60 2.0 D4 VOR Geartronic” com a matrícula (…).

ii)-

Dispenso o requerente da propositura da ação principal, decretando a inversão do contencioso.

Custas pela requerente (art.º 539º, n.º 1 do Código de Processo Civil)”.

*

Em 25 de fevereiro de 2022 a Polícia de Segurança Pública, mediante ofício dirigido à Mmª juíza do tribunal de 1ª instância deu conta que não lhe foi possível proceder à apreensão da viatura (referência citius 31799529 do processo principal).

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O Banco requerente solicitou que se oficiasse junto da “Via Verde”, por forma a averiguar se o veículo tem identificador, e em caso afirmativo, verificar se o mesmo tem movimentos, o que foi deferido.

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A “Via Verde Portugal” endereçou aos autos a seguinte resposta: “(…) confirma-se que o veiculo de matricula (…) está associado a um identificador via verde.

Relativamente ao detalhe das passagens, a Via Verde Portugal encontra-se adstrita aos deveres de sigilo e de confidencialidade, nos termos do Regulamento (UE) 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 (“RGPD”), que a proíbe de revelar, a terceiros, quaisquer dados suscetíveis de violar a privacidade do seu titular, salvo autorização concedida por este ou por Lei, e também ao Princípio da Finalidade (artigo 5º, n.º 1, al. b) do citado diploma) que a impede de utilizar as informações recolhidas para outros fins que não os determinantes da recolha.

Face ao exposto, nos termos e para os efeitos da alínea c) do número 3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, de acordo com a Deliberação n.º 547/2009 da CNPD, de 13 de Julho de 2009 e com o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/02/2011, disponível em www.dgsi.pt, vem a Via Verde Portugal informar V/ Exas. que não pode fornecer informação referente aos registos de portagem (data, hora e local), por integrar o conceito de reserva da vida privada a qual apenas poderá ser enviada, mediante o consentimento do titular dos dados.

Caso venha a ser enviado tal consentimento, deve ser indicado o período temporal sobre o qual se pretende informação.”

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Já depois desta informação, o Banco solicitou que se diligenciasse pela localização da viatura junto de uma nova morada, que indicou – Avenida (….), em Lisboa (referência citius 32760599 do processo principal).

Nessa sequência, foi determinada a apreensão do veículo nas imediações da dita morada, que não logrou ser concretizada pela PSP, tendo esta força policial informado, além do mais, que a viatura em causa tem seguro de responsabilidade ativo desde 14 de outubro de 2019 no tomador de seguro, A(…), com residência na Rua (…) (referência citius 33367437, do processo principal).

Não foi realizada qualquer diligência de apreensão na sequência desta informação e o Requerente solicitou ao tribunal que a Via Verde prestasse “(…) informações adicionais referentes ao veículo em questão”, tendo a Mmª juíza do tribunal a quo ordenado que se oficiasse junto da “Via Verde”, solicitando informação sobre o paradeiro do veículo a apreender.

A sobredita entidade respondeu nos mesmos termos acima expostos.

*

O requerente, veio, então, deduzir o seguinte pedido:

“BANCO B.P.I., S.A., Requerente nos presentes autos, em que é Requerida V(…), vem solicitar a V.Exa. que diligencie pelo levantamento do sigilo, a que a via verde se encontra adstrita, nos termos do Regulamento (UE) 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 (“RGPD”), uma vez que é essencial à localização do veículo, base da presente providência cautelar.”

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E nessa sequência, foi proferido o seguinte despacho:

“Tendo sido notificada para prestar informação acerca do paradeiro do veículo de matrícula (…), veio a “Via Verde Portugal – Gestão de Sistemas Eletrónicos de Cobrança, S.A.”, por requerimento de 12.09.2022, confirmando que o veículo está associado a um identificador da “Via Verde”, escusar-se a prestar a informação pretendida por se tratar de informação que se integra no conceito de reserva da vida privada do utilizador, e que foi recolhida para fins diferentes dos que se pretendem atingir com o pedido de informação.

Invoca o disposto no artigo 417º, n.º 3, alínea c) do CPC e as disposições do Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 (RGPD).

O requerente, o “Banco BPI, S.A.” veio solicitar o levantamento do sigilo por ser essencial à localização do veículo.

Apreciando e decidindo:

A Lei n.º 58/2019 de 8 de agosto, que assegura a execução no ordenamento jurídico nacional do referido Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016, sujeita os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais a sigilo profissional e a um dever de confidencialidade que se mantêm mesmo após a cessação dessas funções – artigo 10º, n.º 1 e n.º 2.

Consequentemente, e ao abrigo do disposto no artigo 417º, n.º 3, alínea c) do CPC, julgo legítima a escusa de prestação da informação pela “Via Verde Portugal – Gestão de Sistemas Eletrónicos de Cobrança, S.A.”.

Notifique.

*

O pedido de levantamento do sigilo apresentado pelo requerente implica que se tramite o incidente previsto no art.º 417º, n.º 4 do CPC e no art.º 135º do CPP.

Assim, e ao abrigo do disposto no art.º 135º, números 2 e 3 (ex vi do artigo 182º, n.º 2) do Código de Processo Penal, ex vi do art.º 519º, n.º 4 do CPC, elabore apenso do incidente, instruído com certidão da decisão proferida em 04.02.2022, do requerimento de 02.09.2022, do requerimento da “Via Verde” de 12.09.2022, do requerimento de 28.09.2022 e do presente despacho, e remeta ao Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do referido art.º 135º, n.º 3 do C.P.P.”

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O incidente foi instruído por apenso e subiu em separado a este Tribunal, mostrando-se instruído com as peças processuais que se entenderam necessárias à tomada de decisão.

Foram dispensados os vistos.

II.–Do objeto do processo 

O objeto do presente incidente consiste em saber se em face dos motivos apresentados pelo Requerente deve ser levantado o sigilo profissional.

III.–Fundamentação de Facto

A matéria de facto apurada é a que resulta do relatório, e que resulta quer das peças que integram a certidão remetida a este Tribunal, quer da consulta aos autos principais que nos foi concedida.

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IV.–Enquadramento Jurídico

Dispõe o art. 417º, do Código de Processo Civil:

1– Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.

(…)

3– A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:

a)- Violação da integridade física ou moral das pessoas;

b)- Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;

c)- Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.

4– Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”        

Deste modo, invocada recusa de colaboração nos termos e ao abrigo do disposto na dita alínea c), do nº 3, do art. 417º, como ocorre nos autos, pode ser concedida dispensa do sigilo se verificados os pressupostos contidos no nº 3, do art. 135º, do Código de Processo Penal, segundo o qual,O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.”

“O incidente de quebra de sigilo profissional (art. 135º, nº 3, do CPP) pressupõe uma escusa legítima para depor, fundada em sigilo efectivamente existente. Nesse contexto, cabe ao tribunal superior decidir se poderá justificar-se a quebra de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, parametrizado pela imprescindibilidade do depoimento/informação para a descoberta da verdade e pela necessidade de proteção de bens jurídicos”[1].

Sob a epígrafeAcesso ao Direito e tutela jurisdicional efetiva”, o art.  20º, nº 1, da CRP proclama que a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

O art. 18º da mesma Lei Fundamental, no seu nº 2, diz-nos, porém, que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”

Finalmente, o art. 26º, da mesma Lei consagra que:

1.– A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar (…).

2.– A lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.”

O Regulamento (UE) 2016/679 Do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, considera a proteção das pessoas singulares relativamente ao tratamento de dados pessoais um direito fundamental, constando das respetivas considerações prévias que “(4) O tratamento dos dados pessoais deverá ser concebido para servir as pessoas. O direito à proteção de dados pessoais não é absoluto; deve ser considerado em relação à sua função na sociedade e ser equilibrado com outros direitos fundamentais, em conformidade com o princípio da proporcionalidade. O presente regulamento respeita todos os direitos fundamentais e observa as liberdades e os princípios reconhecidos na Carta, consagrados nos Tratados, nomeadamente o respeito pela vida privada e familiar, pelo domicílio e pelas comunicações, a proteção dos dados pessoais, (…).”.

A Lei nº 58/2019, de 8/08 (RGPD) assegura a execução, na ordem jurídica nacional, daquele Regulamento.

De acordo com o seu art. 3,A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) é a autoridade de controlo nacional para efeitos do RGPD e da presente lei.”, e os seus membros, “…bem como os seus trabalhadores, prestadores de serviços ou pessoas por si mandatadas, estão obrigadas ao dever de sigilo profissional, nomeadamente quanto aos dados pessoais, segredo profissional, segredo industrial ou comercial ou informações a que tenham acesso no exercício das suas funções” – cf. art. 8º, nº 3.  

Acrescenta o art. 10º:

1– De acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 38.º do RGPD, o encarregado de proteção de dados está obrigado a um dever de sigilo profissional em tudo o que diga respeito ao exercício dessas funções, que se mantém após o termo das funções que lhes deram origem.

2–O encarregado de proteção de dados, bem como os responsáveis pelo tratamento de dados, incluindo os subcontratantes, e todas as pessoas que intervenham em qualquer operação de tratamento de dados, estão obrigados a um dever de confidencialidade que acresce aos deveres de sigilo profissional previsto na lei.”

O dever de sigilo não é, porém, absoluto e pode ceder no confronto com o dever de prestar informações obrigatórias, designadamente, às autoridades judiciárias (neste sentido, art. 8º, da mencionada Lei 58/2019).

A “Via Verde Portugal – Gestão de Sistemas Eletrónicos de Cobrança, S.A.”, enquanto responsável pelo tratamento dos dados pessoais referentes aos utilizadores que são seus clientes, está vinculada ao dever de sigilo por força do sobredito Regulamento e da Lei 58/2019, o que significa que só poderá fornecer informação sobre tais dados com o consentimento daqueles ou para cumprimento de obrigações legais.

No caso dos autos, e na sequência do deferimento do procedimento cautelar intentado pelo Requerente, foi ordenada a apreensão e a entrega da viatura, marca Volvo, com matrícula (…).

Na sequência de dois pedidos dirigidos à PSP para proceder à apreensão da viatura, não logrou a mesma ser concretizada.

O Requerente solicitou, assim, e num primeiro momento, que se oficiasse junto da “Via Verde”, por forma a averiguar se o veículo tem identificador, e em caso afirmativo, verificar se o mesmo tem movimentos; num segundo momento que se obtivesse informação adicional junto daquela entidade, referente ao veículo em questão (não, indicou, sequer, que informação pretendia obter), tendo a Mmª juíza do tribunal a quo determinado, na sequência deste último pedido, que se solicitasse informação junto da Via Verde sobre o paradeiro do veículo a apreender.

A “Via Verde Portugal – Gestão de Sistemas Eletrónicos de Cobrança, S.A.”, perante cada uma das ditas solicitações prestou a informação supra reproduzida, no âmbito da qual, e em síntese, confirmou que o veículo está associado a um identificador via verde, e escusou-se a prestar informações relativamente ao detalhe das passagens do mesmo (necessariamente, pelas estradas sujeitas a portagens e em que é acionado o mecanismo com vista ao respetivo pagamento), acolhendo-se, para tanto, no sigilo profissional a que está vinculada por força do invocado Regulamento (EU) nº 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016.

Em primeiro lugar, cumpre dizer que inexiste fundamento para solicitar à “Via Verde Portugal – Gestão de Sistemas Eletrónicos de Cobrança, S.A.”, pedidos de informação sobre a localização de viaturas, porquanto tal averiguação/informação extravasa o seu objeto de atividade.

Trata-se de pedidos que devem ser pedidos à PSP ou outra força de segurança, a quem cabe diligenciar pela apreensão de viaturas, com base em elementos a que podem diretamente ter acesso por força do exercício das suas funções, ou que lhe podem ser fornecidos, nomeadamente, por terem sido solicitados, no âmbito do processo em curso pelo interessado na realização da diligência, designadamente, entre outros, elementos atinentes não só à residência do detentor do veículo, como ao seu local ou locais de trabalho, sendo que, no caso, e na sequência do segundo pedido de apreensão da viatura, a PSP forneceu um dado que não foi avaliado nem objeto de apreciação/ ponderação, para efeitos de ser pedida a apreensão, tendo por referência a morada do tomador do seguro (que não a Requerida), desde 14 de outubro de 2019, ou seja, depois da celebração do contrato de ALD invocado pelo Requerente, a indiciar, que o veículo pode até já não estar na posse daquela, mas de terceiro.

A “Via Verde Portugal – Gestão de Sistemas Eletrónicos de Cobrança, S.A.”, tendo em consideração o leque de serviços prestados, e que são do conhecimento comum, pode informar se determinado veículo está associado a um identificador via verde (informação que prestou nos autos) e informar sobre os locais de passagem da dita viatura, em concreto, naqueles em que é exigido o pagamento de portagens, sendo que no caso concreto, nem sequer foi esse o pedido que lhe foi endereçado, tendo apenas sido solicitado, para além do já referido pedido de paradeiro da viatura, que informasse se a viatura em causa registava movimentos, informação completamente inócua à pretendida apreensão de viatura.

De todo o modo, tendo em consideração a resposta dada pela Via Verde e o incidente que foi remetido a este Tribunal – ainda que tendo por pressuposto a recusa em informar sobre o pedido de paradeiro da viatura, que de per si estava justificada, por extravasar a função da Via Verde -, cabe dizer que a obtenção de informação sobre os locais de passagem das viaturas a que a referida sociedade tem necessariamente acesso no âmbito da sua atividade, e independentemente do período temporal a que respeite (e que no caso nem sequer foi indicado) acarretará, sempre, uma intrusão na privacidade do cliente Via Verde, na medida em que permitirá obter dados sobre a sua vida privada através da circulação da viatura.

Como se salientou em recente acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa (proferido em 21 de junho de 2022, no âmbito do processo nº 7159/08.7TBCSC-A.L1-7, relatado pela Srª Juíza Desembargadora, Drª Ana Rodrigues da Silva, acessível, em www.dgsi.pt); “(…) importa não esquecer que a Via Verde Portugal é a responsável pela actividade de cobrança de taxas de portagem através de sistema electrónico, razão pela qual monitoriza a passagem de veículos em determinados pontos de cobrança instalados na via para esse efeito, efectuando o registo desse tráfego automóvel. Ou seja, nessa sua actividade recolhe dados pessoais dos seus clientes, sendo a entidade responsável pelo tratamento desses dados. Ora, esses registos, especificando a data e hora em que determinado veículo automóvel passou num desses pontos de cobrança, são dados pessoais, integrando o conceito de reserva da vida privada e sob o qual existe um dever de sigilo.”

A dispensa de sigilo pode ser ordenada quando seja imprescindível ao apuramento de factos, ou, em caso como o dos autos, ao apuramento de informações que permitam realizar a apreensão duma viatura e dependerá, sempre, da ponderação dos interesses em jogo e que devem ser sopesados, de modo a tomar-se decisão sobre aquele que deverá prevalecer.

E para tanto, e mesmo com referência a casos como o presente, é pertinente invocar Lopes do Rego[2], quando salienta que o tribunal perante quem é suscitado o incidente, : “ (…) ao realizar o juízo que ditará qual o interesse que, em concreto, irá prevalecer, carece de actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção de prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, “maxime” o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão.”.

No caso vertente, para se aferir sobre o interesse preponderante, deve ser sopesada, de um lado, a dita relação de confiança estabelecida entre a Via Verde e os clientes que aderiram aos seus serviços; do outro, o direito dum Banco em obter informação que no seu entender pode conduzir à apreensão duma viatura e, assim, efetivar o seu interesse no cumprimento de decisão judicial que lhe foi favorável.

Ora, tendo em consideração os elementos apurados nos autos e aquilo que sobre eles já se deixou expendido, é evidente que não se mostram esgotadas as possibilidades de o Requerente obter a concretização dos seus objetivos com recurso aos meios  adequados – através das entidades policiais ou forças de segurança -  e que não colidem com o direito de reserva da intimidade da vida privada da requerida, que a Via Verde deve salvaguardar, reiterando-se que os pedidos concretamente formulados pelo Requerente nestes autos mostram-se irrelevantes para a satisfação do seu interesse.

Nestes termos, e por apelo ao princípio da proporcionalidade ínsito no sobredito nº 2 do supra referido art. 18º, da CRP, no confronto entre o interesse na administração da justiça e o dever de sigilo, e porque o interesse do Requerente pode ser alcançado por outras vias, designadamente, por atuação direta das entidades competentes, impõe-se considerar legítima a recusa da “Via Verde Portugal – Gestão de Sistemas Eletrónicos de Cobrança, S.A.”, em prestar as informações pretendidas pelo Requerente.

V.–Decisão

Pelo exposto, e no âmbito do enquadramento jurídico traçado, acordam as Juízas da 8ª Secção Cível deste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o presente incidente; considerar legítima a recusa da “Via Verde Portugal – Gestão de Sistemas Eletrónicos de Cobrança, S.A.” em prestar as informações solicitadas pelo Requerente; e consequentemente, não autorizar o levantamento do sigilo profissional a que está vinculada.

Custas pelo requerente (art. 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Notifique.

Lisboa, 27 de outubro de 2022


Cristina Lourenço - (Relatora)
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
Ana Paula Nunes Duarte Olivença


[1]António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 513.
[2]“Comentários ao Código de Processo Civil”, Volume I, pág. 457.