Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11131/19.3T8LSB.L1-4
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: TRABALHO SUPLEMENTAR
CONDENAÇÃO GENÉRICA
LIQUIDAÇÃO
ARTº 75º DO CPT
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: Muito embora o Código de Processo do Trabalho contenha uma regra especial como a do artigo 75.º, certo é que nem sempre é devidamente atendida e cumprida pelos tribunais do trabalho, ocorrendo outras situações em que tal norma célere e salutar é impossível de levar a bom porto no seio da ação laboral, impondo-se assim uma condenação genérica, nos termos do atual artigo 609.º, número 2, do NCPC e a sua posterior quantificação, por via da liquidação através de meros cálculos aritméticos a fazer no requerimento executivo inicial ou por força da dedução de um incidente de liquidação nos termos dos artigos 358.º a 361.º do atual C.P.C., convindo ainda ter em atenção, no que toca a tal problemática, ao estatuído nos artigos 704.º, número 6, 713.º e 716.º do NCPC.


(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO


AAA,  residente na Rua (…)  veio instaurar, em 27/05/2019, a presente ação declarativa de condenação com processo comum laboral contra BBB, pessoa coletiva (…) com sede na Rua  (…), pedindo, em síntese, a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 99.920,75, acrescida de juros de mora, quantia essa devida a título de trabalho suplementar prestado e não pago – em dia útil, dia de descanso complementar e dia de descanso obrigatório – diferenças salariais e férias não gozadas.
*

Alegou o Autor, para tanto e muito em síntese, que:
«(i)- Esteve vinculado à Ré por contrato de trabalho desde 13 de Outubro de 2008 até 17 de Agosto de 2018, tendo operado a revogação do contrato de trabalho em Junho de 2018, com efeitos a 17 de Agosto de 2018;
(ii)- Exerceu, desde 2012, as funções de chefe de vendas, primeiro em Lisboa e, a partir de 2017, em Cascais;
(iii)- Auferia, ultimamente, a retribuição base de € 1.500,00, acrescida de comissões;
(iv)- Apesar de ter um horário de trabalho compreendido entre as 09h00 e as 18h00, com uma hora de intervalo para almoço, nunca foi este o horário por si cumprido, devido às exigências de trabalho e tarefas desempenhadas, facto que era do conhecimento da Ré;
(v)- Desde 2 de Janeiro de 2014, sempre exerceu as suas funções até às 20h00, sendo que nem o próprio nem os elementos da sua equipa podiam gozar pausas para tomar refeições, tendo, por isso, prestado, em dia útil, 3 horas de trabalho suplementar por dia;
(vi)- Executava também as suas tarefas aos sábados – dia de descanso complementar –, exceto quando existiam outras relacionadas com eventos, bem como exercia as suas funções ao domingo sempre que tinham lugar eventos;
(vii)- Sem prejuízo, nunca a Ré procedeu ao pagamento do trabalho suplementar e nem concedeu descanso compensatório;
(viii)- Existiam chefes de vendas no grupo a que pertence a Ré que auferiam o vencimento base de € 1.500,00, sendo que, no stand da  (…), tinham a referida categoria  (…)  e (…), sendo que ambos tinham menor antiguidade;
(ix)- No período compreendido entre 1 de Janeiro de 2013 até 31 de Janeiro de 2013, auferiu a retribuição de € 850,00 e, no período compreendido entre 1 de Janeiro de 2014 e 31 de Dezembro de 2014, auferiu a retribuição de € 1.200,00, sendo que só no ano de 2015 passou a auferir € 1.500,00;
(x)- Nunca gozou os períodos de férias por inteiro, embora tenha recebido os respetivos subsídios;
(xi)- Em cada ano e desde 2014, apenas gozou 15 dias de férias, e, em 2016, gozou 11 dias de licença para casamento, sendo que, e após ter gozado 34 dias de férias durante o prazo de pré-aviso, ficou em falta o gozo de 24 dias úteis de férias.»
*

Foi agendada data para a realização da Audiência de Partes, conforme despacho judicial de fls. 54 e datado de 30/5/2019, tendo a Ré sido citada para o efeito através da carta registada com Aviso de Receção de fls. 65, assinado em 29/12/2019.

Mostrando-se inviável a conciliação das partes em tal Audiência de Partes (fls. 68 e 68 verso), foi a Ré BBB. notificada para, no prazo e sob a cominação legal contestar a ação, o que a mesma fez, em tempo devido [28/6/2019], e nos termos de fls. 69 a 82 verso + Documentos de fls. 83 a 130, tendo alegado, em síntese, que:
(i)- O Autor começou por estar vinculado contratualmente à sociedade “(…) a qual foi incorporada, por fusão, na ora Ré, tendo as partes, em Julho de 2012, acordado a cessão da posição contratual para a  (…)sendo que o Autor voltou a estar vinculado à Ré em Junho de 2018, por acordo de cessão da posição contratual entre a “ (…) e a Ré;
(ii)- O horário de trabalho do Autor era das 09h00 às 19h00, com duas horas de intervalo para almoço, compreendidas entre as 12h30 e as 14h30, sendo que as tarefas adstritas ao Autor eram perfeitamente compatíveis com um tempo de trabalho de 8 horas de trabalho diárias e 40 horas de trabalho semanal;
(iii)- As funções do Autor eram, sobretudo, de controlo, organização e acompanhamento, sendo que muitas delas ocorriam com periodicidade semanal, mensal ou mesmo trimestral;
(iv)- As validações dos processos de venda – que alegadamente imporiam uma presença até às 20h00 – não são instantâneas, posto que todo o processo de venda também não o é, já que existe um processo administrativo que tem que ser seguido, do mesmo modo que não têm que ocorrer presencialmente;
(v)- Assume-se que o Autor poderá, pontualmente, ter efetuado a montagem de ações com os vendedores; sem prejuízo, nunca o fez em Centros Comerciais – posto que a montagem nestes locais não era da sua responsabilidade ou da responsabilidade dos vendedores – locais onde as montagens eram entregues pela Ré a uma empresa externa, cabendo a supervisão de todo o processo a SM..., do departamento central de marketing da Ré;
(vi)- O Autor apenas registava o ponto aquando da sua entrada ao serviço em virtude de parte substancial das suas tarefas serem desempenhadas fora do local de trabalho, não se justificando que, ao final do dia e tendo estado em visita a clientes, ainda tivesse que se deslocar ao local de trabalho a fim de picar o ponto;
(vii)- O Autor passava muito tempo fora do local de trabalho e seguia diretamente para sua casa, não sendo verdade que ficasse sempre no stand até às 20h00;
(viii)- A responsabilidade pela abertura e fecho do stand de Lisboa cabia aos vendedores e, em Cascais, a abertura cabia ao rececionista e o fecho ao segurança;
(ix)- Não corresponde à verdade que o Autor não tivesse pausa para almoço;
(x)- Ao que a Ré sabe, não existe qualquer razão para que o Autor não gozasse a sua pausa de almoço ou para ficar para além do seu horário de trabalho, sendo certo que o Autor nunca comunicou à sua hierarquia tais necessidades;
(xi)- O Autor desempenhava as suas tarefas com elevada autonomia e parte substancial das mesmas ocorria fora do local de trabalho;
(xii)- Admite-se que possam ter existido situações pontuais em que o Autor tenha tido necessidade de trabalhar até mais tarde, mas sempre se presumiu que, depois, o Autor as compensasse informalmente noutros dias, saindo mais cedo;
(xiii)- O Autor alega ter prestado trabalho suplementar em dias em que esteve de férias;
(xiv)- O Autor não consta das escalas de trabalho prestado ao fim-de-semana, com exceção de um evento na FIL, sendo que tanto sucede por os chefes de vendas não efetuarem escalas de serviço;
(xv)- Em ações externas, quanto muito o Autor passava pelos locais das exposições para se certificar que estava tudo a correr bem, assim procedendo por brio profissional, mas sem que existisse qualquer instrução da Ré nesse sentido;
xvi)- O Autor nada tem a receber a título de férias não gozadas, posto que todos os valores lhe foram pagos;
(xvii)- A diferenciação remuneratória dos chefes de vendas – enquanto existiu – obedeceu sempre a critérios objetivos assentes na maior experiência e responsabilidade de cada um, daí que, numa fase inicial, se justificasse plenamente que o Autor auferisse uma remuneração inferior aos demais.
Conclui a Ré pela improcedência da ação, devendo, em conformidade, ser absolvida dos pedidos.»
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O Autor veio, no dia 15/7/2019 e a fls. 131 a 133, impugnar a genuinidade do Documento n.º 4 junto pela Ré com a sua contestação, tendo, para o efeito, arrolado testemunhas.
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A Ré veio a fls. 134 a 136 e em 16/8/2019, alterar o seu rol de testemunhas.
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Foi proferido, a fls. 137 a 138 verso e com data de 19/09/2019, despacho saneador, no qual foi fixado o valor de € 99.920,75 à ação, entendida como desnecessária a realização de Audiência Preliminar, considerada regular e válida a instância, dispensada a seleção da matéria de facto, admitidos os róis de testemunhas, bem como apreciadas, em termos da rejeição ou da sua admissibilidade [imediata ou condicional], as diligências de prova requeridas pelas partes, tendo sido mantida a data designada na Audiência de Partes para a realização da Audiência Final, cuja prova seria gravada.
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O Autor veio, nessa medida e nos dias 30/9/2019 e 17/10/2019 e a fls. 139 e 140 e 144 e 145, respetivamente, indicar os artigos sobre os quais deveriam incindir as suas Declarações de Parte, bem como alterar o seu rol de testemunhas   
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Procedeu-se à realização da Audiência de Discussão e Julgamento com observância do legal formalismo conforme ressalta das Atas de fls. 146 e 147 [22/10/2019] e 148 a 149 verso [13/11/2019], tendo os depoimentos testemunhais aí prestados sido objeto de gravação.

Foi então proferida a fls. 150 a 177 verso e com data de 06/12/2019, sentença que, em síntese, decidiu o litígio nos termos seguintes:

“Por tudo quanto se deixou exposto, o tribunal julga a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:
(i)-Condena a Ré no pagamento, ao Autor, do trabalho suplementar que prestou em dias úteis no período compreendido entre 28 de Maio de 2014 até, pelo menos, Abril de 2017, a liquidar em incidente de liquidação de sentença, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o transito em julgado da decisão que ali vier a ser proferida até efetivo e integral pagamento, com os limites e ressalvas contidas nas alíneas a) a d), do ponto 3.3.2.;
(ii)-Condena a Ré no pagamento do descanso compensatório pelo trabalho suplementar prestado em dia útil referente ao período compreendido entre 28 de Maio de 2014 até, pelo menos, Abril de 2017, a liquidar em incidente de liquidação de sentença, com o limite de € 5.014,90, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o transito em julgado da decisão que ali vier a ser proferida até efetivo e integral pagamento;
(iii)-Condena a Ré no pagamento, ao autor, do trabalho pelo mesmo prestado aos sábados nos eventos denominados de “porta aberta” ou “stock-off”, realizados no período compreendido entre 28 de Maio de 2014 até, pelo menos, Abril de 2017, trabalho esse prestado entre as 10h00 e as 18h00, bem como, após essa data, pelo trabalho prestado ao sábado, pelo menos uma vez e pelo menos no Sábado, por período não concretamente apurado, em evento de vendas realizado num fim-de-semana no estabelecimento de Cascais, tudo conforme se vier a liquidar em sede de incidente de liquidação de sentença, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o transito em julgado da decisão que ali vier a ser proferida até efetivo e integral pagamento, com os limites e ressalvas contidas nas alíneas a) a c), do ponto 3.3.5.;
(iv)-Condena a Ré no pagamento do descanso compensatório pelo trabalho suplementar prestado em dia de descanso compensatório (sábado) a liquidar em incidente de liquidação de sentença, com o limite de € 3.907,21, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito em julgado da decisão que ali vier a ser proferida até efetivo e integral pagamento;
(v)-Condena a Ré no pagamento, ao Autor, do trabalho pelo mesmo prestado ao Domingo nos eventos denominados de “porta aberta” ou “stock-off” realizados, no período compreendido entre 28 de Maio de 2014 até, pelo menos, Abril de 2017, trabalho esse prestado entre as 10h00 e as 18h00, conforme se vier a liquidar em sede de incidente de liquidação de sentença, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o transito em julgado da decisão que ali vier a ser proferida até efetivo e integral pagamento, com os limites e ressalvas contidas nas alíneas a) a c), do ponto 3.3.8.;
(vi)-Condena a Ré no pagamento do descanso compensatório pelo trabalho suplementar prestado em dia de obrigatório (Domingo) a liquidar em incidente de liquidação de sentença, com o limite de € 459,60, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito em julgado da decisão que ali vier a ser proferida até efetivo e integral pagamento;
(vii)-Condena a Ré no pagamento, ao Autor, da quantia de € 80,80 (oitenta euros e oitenta cêntimos), pelo trabalho por este prestado no dia 9 de Novembro de 2015 (Domingo), acrescida de juros de mora desde o final do mês de Novembro de 2015 até efetivo e integral pagamento;
(viii)-Condena a Ré no pagamento, ao Autor, da quantia de € 40,40 (quarenta euros e quarenta cêntimos), a título de descanso compensatório não gozado e não remunerado, referente ao trabalho enunciado em (vii), acrescida de juros de mora desde o final do mês de Novembro de 2015 até efetivo e integral pagamento;
(ix)-No mais, absolve a Ré dos pedidos.
*
Custas a cargo do Autor e da Ré, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 35% para o primeiro e em 65% para a segunda (art.º 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
*
Registe. Notifique.”
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A Ré BBB, inconformada com a sentença, veio, em 22/01/2020 e a fls. 179 e seguintes, dela interpor recurso, que foi admitido a fls. 221 dos autos, como de Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
Esta Apelante apresentou, a fls. 180 verso e seguintes, alegações de recurso, onde formulou as seguintes conclusões:
(…)
O Autor AAA veio, a fls. 209 a 220, apresentar contra-alegações, tendo formulado, para o efeito, as seguintes conclusões (fls. 210 e seguintes):
(…)
O ilustre magistrado do Ministério Público proferiu parecer no sentido da improcedência do recurso, não tendo as partes se pronunciado acerca do mesmo dentro do prazo legal de 10 dias, apesar de notificadas para o efeito.
*
Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.

II–OS FACTOS

O tribunal da 1.ª instância deu como provados e não provados os seguintes factos:

«A)–OS FACTOS PROVADOS SÃO OS SEGUINTES:
1.–No dia 13 de Outubro de 2008, o Autor foi admitido ao serviço da sociedade “(…).” a fim de, ao seu serviço e mediante o pagamento de uma retribuição mensal ilíquida de € 475,00, acrescida de uma parte variável resultante de comissões de vendas, exercer as funções de vendedor.
2.–A sociedade referida em 1. alterou a respetiva denominação social em 29 de Setembro de 2010 – passando a denominar-se  (…) – e alterou novamente a sua denominação social em 28 de Outubro de 2011 para BBB.
3.–Com data de 1 de Julho de 2012, a Ré, a sociedade “(…).” e o Autor subscreveram o convénio constante de fls. 94v. e 95, denominado “Cessão da Posição Contratual”, sendo o seguinte o seu teor:
«(…)

ENTRE:

BBB. (…) na qualidade de Entidade Cedente e como PRIMEIRA CONTRAENTE;
(…), na qualidade de Entidade Cessionária e como SEGUNDA CONTRAENTE;
e
AAA (…) na qualidade de trabalhador cedido e como TERCEIRO CONTRAENTE,
É celebrado o presente contrato de Cessão de Posição Contratual nos termos e com as cláusulas seguintes:
CLÁUSULA 1.ª
A PRIMEIRA CONTRAENTE celebrou com o TERCEIRO CONTRAENTE um contrato de trabalho por tempo indeterminado, com início em 13 de Outubro de 2008, encontrando-se atualmente a exercer funções enquadradas na categoria profissional de Vendedor e auferindo a retribuição mensal ilíquida de 485,00 Euros (…), acrescida de um subsídio de refeição no montante de 3,74 Euros (…) por cada dia de trabalho efetivo prestado, no mínimo, de 05h30m.
CLÁUSULA 2.ª
1.–A SEGUNDA CONTRAENTE garante, para todos os efeitos, ao TERCEIRO CONTRAENTE: Antiguidade e todas as regalias adquiridas na relação de trabalho entre a PRIMEIRA CONTRAENTE e o TERCEIRO CONTRAENTE.
2.–Quanto à sua atual categoria profissional, o Terceiro CONTRAENTE dá o seu acordo à mudança para a categoria profissional de Chefe de Equipa, mudança que este desde já reconhece necessária, tendo em atenção o enquadramento das suas funções na Empresa SEGUNDA CONTRAENTE.
3.–Em matéria de retribuição, o Terceiro Contraente passará a usufruir ao serviço da Segunda Contraente, uma retribuição mensal ilíquida de 900,00 Euros (…).
CLÁUSULA 3.ª
O TERCEIRO CONTRAENTE após a integração nos quadros da SEGUNDA CONTRAENTE, prestará serviço nos termos e condições fixadas para a generalidade dos trabalhadores desta última, em particular, dos que nela desempenham idênticas funções e se encontram enquadrados na mesma categoria profissional.
(…)».
4.–Pelo menos a partir de Maio de 2017, o Autor ficou vinculado à ora Ré, passando a exercer as funções de chefe de vendas no respetivo stand em Cascais.
5.–Ultimamente, o Autor auferia a retribuição base de € 1.500,00, acrescida de comissões.
6.–Datada de 18 de Junho de 2018 e recebida pela Ré na mesma data, o Autor endereçou-lhe missiva com o seguinte teor:

«(…)
Assunto: Rescisão de Contrato de Trabalho
Exmos. Senhores,
Venho por este meio, rescindir o meu contrato de trabalho iniciado em 13 de Outubro de 2018, cumprindo assim o pré-aviso mínimo de 60 dias de antecedência, definido por Lei, relativamente à data que pretendo que os seus efeitos cessem 17 de Agosto de 2018.
Até à referida data pretendo ainda gozar o período de Férias a que tenho direito (datas a acordar convosco), devendo V. Exas., como é do vosso conhecimento, pagar-me no final do contrato todos os montantes relativos a subsídios de Férias e subsídio de Natal, em proporção à prestação de trabalho durante o corrente Ano de 2018.
(…)».

7.– Com data de 17 de Agosto de 2018, a Ré emitiu certificado de trabalho do autor, sendo o seguinte o seu teor:
«(…)
Para efeitos do disposto no n.º 1 do Art.º 341.º do Código do Trabalho, certificamos que o Sr. AAA (…) trabalhou nesta Empresa desde 13 de Outubro de 2008 até 17 de Agosto de 2018, desempenhando atualmente o seguinte cargo:
- CHEFE VENDAS.           
(…)».

8.–O Autor, enquanto chefe de vendas, executava as seguintes tarefas:
a)-Controlo e acompanhamento diário da equipa de vendas;
b)-Reunião diária com vendedores;
c)-Reunião com gestora de negócios;
d)-Validação dos processos de venda;
e)-Acompanhamento de vendedores em reuniões com clientes particulares e empresas;
f)-Reunião com gestor após venda sobre viaturas parqueadas na oficina;
g)-Controlo e gestão de stocks de viaturas;
h)-Plano semanal e mensal de encomendas de viaturas novas;
i)-Controlo de viaturas de demonstração;
j)-Reunião com gestor de marca sobre objetivos;
l)-Acompanhamento e controlo de processos na secretaria comercial;
m)-Gestor de reclamações;
n)-Reunião com departamento de marketing sobre ações exteriores mensais e trimestrais bem como o seu planeamento (montagem das ações com os vendedores);
o)-Elaboração da escala de serviço todos os meses;
p)-Reunião com a Direção sobre estado semanal e mensal de vendas, análise de vendas por vendedor, stock, encomendas;
q)-Controle de parqueamento de viaturas novas;
r)-Reunião com controlo de crédito para análise de contas correntes.

9.–De 28 de Maio de 2014 até, pelo menos, Abril de 2017, o Autor iniciou a sua jornada de trabalho, de segunda-feira a sexta-feira, pelas 09h00, sendo que, por regra, observou uma hora de almoço diária, e, por regra, exerceu as suas funções até às 20h00, com exceção dos períodos em que gozou férias nos anos de 2014 a 2017 e, naquele período, licença de casamento.
10.–Pelo menos a partir de Maio de 2017, o Autor iniciou a sua jornada de trabalho, de segunda-feira a sexta-feira, pelas 09h00 e terminou-a entre as 18h00/18h30, observando, por regra, um intervalo para refeição de cerca de hora e meia.
11.–O Autor tinha como dias de descanso semanal o Sábado – dia de descanso complementar – e o Domingo, dia de descanso obrigatório.
12.–De 28 de Maio de 2014 até, pelo menos, Abril de 2017, aos fins-de-semana (Sábado e Domingo) em que eram realizados eventos denominados de “porta aberta” ou “stock-off”, que tanto poderiam ser da iniciativa da entidade empregadora como da própria marca e que tinham lugar, em média, uma vez por mês, no período compreendido entre as 10h00 e as 18h00, o Autor, enquanto chefe de vendas, estava nos mesmos presente a fim auxiliar os vendedores na efetivação dos negócios/vendas.
13.–O Autor, no mesmo período e nos demais sábados, passou, por regra, pelos estabelecimentos/stands, podendo aí demorar-se entre uma a duas horas, a fim de verificar se estava tudo bem ou para, a pedido de algum vendedor, estar presente para finalizar um negócio.
14.–De Maio de 2017 em diante, o Autor esteve presente pelo menos uma vez e pelo menos no Sábado, por período não concretamente apurado, em evento de vendas realizado num fim-de-semana no estabelecimento de Cascais, a fim auxiliar os vendedores na efetivação dos negócios/vendas.
15.–De Maio de 2017 em diante e com exceção do ponto 14., o Autor, aos Sábados, poderia passar, querendo, no stand de Cascais, embora raramente assim tenha procedido.
16.–No evento realizado na FIL, nos dias 31 de Outubro de 2015, 2, 4, 6 e 9 de Novembro de 2015, o Autor foi para o mesmo escalado, tendo observado, nesses dias, os seguintes horários: das 15h00 às 23h00, nos dias 4 e 6 de Novembro de 2015 (quarta-feira e sexta-feira, respetivamente); no dia 9 de Novembro de 2015 (Domingo), das 10h00 às 15h00.
17.–Os horários descritos em 9., bem como a presença do Autor, enquanto chefe de vendas, nos eventos referidos em 12. e 14., e com as finalidades aí mencionadas, eram conhecidos da empregadora, sendo que a mesma nunca se opôs a que o Autor assim procedesse.
18.–As picagens de ponto do Autor eram, apenas, efetuadas à entrada e nunca à saída.
19.–No ano de 2013, o Autor auferiu, enquanto chefe de vendas, a retribuição base de € 900,00.
20.–O Autor auferiu, até Abril de 2014, inclusive, a retribuição base de € 900,00, sendo que, a partir de Maio de 2014, a sua retribuição base foi aumentada para € 1.200,00, assim se mantendo até Abril de 2015.
21.–A partir de Maio de 2015, a retribuição base do Autor foi aumentada para € 1.400,00, assim se mantendo até Dezembro de 2015, sendo que, em Janeiro de 2016, a sua retribuição base passou a ser de € 1.500,00.
22.–O chefe de vendas (…)auferiu, no ano d e 2013, a retribuição base de € 1.200,00, sendo que, em Março de 2015, a sua retribuição base ascendia, ainda, a € 1.200,00.
23.–O chefe de vendas  (…) auferiu, a partir de Janeiro de 2016, a retribuição base de € 1.500,00.
24.–O chefe de vendas (…) auferiu, no ano de 2013, a retribuição base de € 1.200,00, sendo que, em Março de 2015, a sua retribuição base ascendia ao mesmo valor.
25.–O chefe de vendas  (…) auferiu, a partir de Abril de 2015, a retribuição base de € 1.400,00.
26.–O chefe de vendas  (…) auferiu, a partir de Janeiro de 2016, a retribuição base de € 1.500,00.
27.–O chefe de vendas (…) era responsável por dois estabelecimentos: Setúbal e Almada.
28.–O chefe de vendas (…) assumiu estas funções em Agosto/Setembro de 2010, sendo responsável, desde 2014, por dois estabelecimentos – Sintra e Cascais – cada um com a sua equipa de vendas, supervisionando ambas e realizando reuniões diárias com ambas.
29.–O Autor era responsável por dois estabelecimentos em Lisboa: Benfica e Fontes Pereira de Melo.
30.–O estabelecimento da Fontes Pereira de Melo era de dimensão mais reduzida do que os restantes, visto não dispor de oficina.
31.–A equipa de vendedores de Benfica e da Fontes Pereira de Melo é uma única equipa para ambos os estabelecimentos, sendo o Autor responsável pela respetiva supervisão e também responsável por realizar, diariamente, uma reunião com a equipa de vendas.
32.–No ano de 2014, o Autor gozou 15 dias úteis de férias (vencidas em 1 de Janeiro de 2014).
33.–No ano de 2015, o Autor gozou 16 dias úteis de férias (vencidas em 1 de Janeiro de 2015).
34.–No ano de 2016, o Autor gozou 15 dias úteis de férias (vencidas em 1 de Janeiro de 2016), tendo gozado, igualmente, 15 dias seguidos de licença de casamento.
35.–No ano de 2017, o Autor gozou 22 dias úteis de férias (vencidas em 1 de Janeiro de 2017).
36.–No ano de 2018, o Autor gozou 38 dias úteis de férias.
37.–Aquando da cessação do contrato de trabalho, a Ré pagou ao Autor, a título de férias não gozadas, o valor de € 2.170,17, correspondente a 31,83 dias.
38.–A validação dos processos de venda tanto poderia ocorrer no próprio dia, em situações de urgência do cliente – entrega, por exemplo em 48 horas, existência do veículo em stock e pronto pagamento –, como no dia seguinte ou mesmo até dois ou três dias depois.
39.–A validação dos processos de venda pode ocorrer via E-mail – caso no E-mail esteja disponibilizado o processo de venda completo – embora depois haja sempre necessidade de o chefe de vendas o validar fisicamente (apor a assinatura).
40.–O Autor efetuou montagens de ações com os vendedores pelo menos pontualmente, cabendo-lhe, juntamente com os vendedores e por vezes, o transporte dos carros e o marketing associado, cumprindo a uma empresa externa a montagem do lay-out, especto exterior da ação.
41.–Nas ações externas o Autor tinha a incumbência de se certificar que tudo estava de acordo com os parâmetros definidos.
42.–Em situação de desempenho de tarefas fora do local de trabalho e sendo ao final do dia, o Autor poderia ir diretamente para casa.
43.–No período em que o autor esteve alocado ao estabelecimento de Benfica quem desempenhou as funções de Diretor, a partir de Outubro de 2014, foi  (…), sendo que no período em que o autor esteve alocado ao estabelecimento de Cascais quem as desempenhou foi  (…)
44.–Quer um quer outro tinham a seu cargo outros estabelecimentos:
–  (…): para além de  (…), também o da  (…)(…)e (…);
(…): (…). e (…)
45.–(…) apenas passou a exercer as funções de Diretor Geral na “(…)” a partir do início do ano de 2018.
46.–O Autor, em datas não concretamente apuradas e por tempo também não concretamente apurado, chegou a ausentar-se do seu local de trabalho para tratar de assuntos pessoais, designadamente relativos ao seu pai.
47.–O Autor, pelo menos duas vezes, ausentou-se durante uma semana em cada uma das vezes a fim de ir ao Salão Automóvel de Genebra, sendo que pelo menos uma vez, e por indicação e com autorização de  (…) , não marcou férias para esse efeito.

48.– O Autor gozou férias nos seguintes períodos:
– Dias 1, 2, 3, 4 e 7 de Abril de 2014;
– Dias 21 a 25 de Julho de 2014;
– Dias 4 a 8 e dias 11 a 14 de Agosto de 2014;
– Dia 24 de Dezembro de 2014;
– Dias 5 a 9 de Janeiro de 2015;
– Dias 22 a 26 de Junho de 2015;
– Dias 17 a 21 de Agosto de 2015;
– Dia 24 de Dezembro de 2015;
– Dia 8 de Fevereiro de 2016;
– Dias 1 a 8 de Março de 2016;
– Dias 10 de Agosto de 2016 a 19 de Agosto de 2016
– Dia 22 de Agosto de 2016;
– Dias 2 a 6 de Janeiro de 2017;
– Dia 5 de Abril de 2017;
– Dias 10 a 13 de Abril de 2017;
– Dia 5 de Maio de 2017;
– Dias 3 a 18 de Agosto de 2017;
– Dias 11 a 15 de Junho de 2018;
– Dias 2 a 6 de Julho de 2018;
– Dias 9 a 20 de Julho de 2018;
– Dias 23 de Julho de 2018 a 17 de Agosto de 2018.
49.–O Autor gozou de licença para casamento no período compreendido entre 26 de Julho de 2016 e 9 de Agosto de 2016.
50.–O Autor não integra as escalas de serviço.
*

III–OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 690.º-A e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
*

A–REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS
(…)
B–IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
(…)
C.1)- MATÉRIA PROVADA
(…)
C - PONDERAÇÃO GLOBAL DA PROVA PRODUZIDA 
(…)
Logo, entendemos que também, esta última parte da impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto promovida pela Ré tem de ser julgada improcedente.
G–OBJETO DO RECURSO DE APELAÇÃO – QUESTÕES DE DIREITO
A Ré, nesta sua vertente jurídica, sustenta o seguinte:
«20)- O julgamento da matéria de direito enferma igualmente de erros;
21)- A sentença ora recorrida padece de deficiência porque não ponderou o modo como o Autor exerceu o seu ónus de alegação: O Tribunal a quo não poderia ter deixado de vincular o Autor à forma sui generis como optou por alegar o trabalhou suplementar que reivindica: ora, se na sua PI, o Autor entendeu organizar diversos “quadros” (um para cada ano civil), onde reproduziu o calendário gregoriano, alegando que prestou trabalho suplementar, invariavelmente, em cada uma dessas datas específicas, em períodos concretos, então, competia-lhe, obrigatoriamente, provar que o trabalho suplementar foi prestado nessas datas específicas que indicou, item por item. Não o tendo logrado fazer, competia ao Tribunal a quo considerar esses factos como não provados – e não, como fez, considerar provado que o A. prestou trabalho suplementar sem que, no entanto, fosse possível apurar em concreto quando e em que quantidade é que esse trabalho suplementar foi prestado, remetendo o seu apuramento para liquidação de sentença.
22)- Ora, de acordo com o entendimento do Meritíssimo Juiz Desembargador da Relação de Lisboa, Senhor Dr. José Joaquim Ferreira Marques, “a remissão para ulterior liquidação (nos termos do atual n.º 2 do art.º 609.º do NCPC), não pode fazer-se em razão da falta de prova de factos, mas tão-somente por inexistência de factos provados, por estes não serem conhecidos ou por estarem em evolução no momento em que foi instaurada a ação ou na data em que foi proferida a decisão que dirimiu a matéria de facto controvertida.

23)-De modo algum se poderá considerar que a ratio legis do (atual n.º 2 do art.º 609.º do NCPC), permite defender teleologicamente uma repetição da realização da instância probatória quanto a factos já produzidos e conhecidos à data da propositura da ação. O incidente de liquidação de sentença não admite a renovação da prova que não se logrou produzir naquela sede.

24)- Como tal, o Tribunal a quo não poderia deixar de ponderar as consequências da decisão tomada – nomeadamente que isso implicará que (depois de deduzidos os dias de férias e as demais deduções previstas na sentença) tudo o resto (e sendo que “tudo o resto” ascende a 67.051,91 €!!!) volta a estar submetido a um novo processo comum declarativo (nos termos do n.º 3 do art.º 360.º do NCPC).
25)-Impõe-se, portanto, a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que declare como definitivamente não provada a existência de trabalho suplementar, absolvendo a Ré do pagamento de qualquer quantia a esse título (com exceção daquele devidamente apurado, o correspondente ao evento realizado na FIL, dado que - aí sim - se trata de trabalho efetivamente determinado pela Ré, posto que ficou provado que o autor estava escalado para o referido evento).»

A posição da Ré, no que toca a esta matéria – que não é somente de direito adjetivo formal mas possui também uma significativa dimensão substantiva, ao nível da natureza dos direitos em presença e do correspondente direito probatório material -, enquadra-se numa postura e perspetiva comuns a muitas entidades empregadoras que, embora conhecedoras atentas e profundas das características específicas, próprias, do setor de mercado onde se movimentam [[1]], continuam a encarar o trabalho suplementar de forma displicente [a picagem do ponto dos autos por metade não é um sinal dessa visão e conduta?], como se se tratasse de algo que lhes passasse ao lado, de uma excrescência exterior ao contrato de trabalho, cuja concretização imputam exclusivamente a uma responsabilidade autogestionária do seu «colaborador» e que, por isso, na defesa de muitas delas, não foi determinada ou autorizada pelas mesmas, assim se escusando a assumi-lo, mesmo quando a atividade que desenvolvem e os compromissos que têm para com terceiros apontam mais ou menos claramente para a sua necessidade e consensualização.

Juntem-se, a tal conduta, a violação do dever de afixação do Mapa do Horário de Trabalho, da elaboração e atualização do registo dos tempos de trabalho e da prestação do trabalho suplementar, a dificuldade que, natural e normalmente, os trabalhadores padecem no que toca à demonstração da sua efetiva realização, em termos de dias de calendário e horas despendidas, com a qual, aliás, as entidades patronais contam e se escudam.

Os tribunais de trabalho não podem pactuar com facilitismos e práticas pouco rigorosas e deficientemente fundadas nos meios de prova produzidos nos autos e na sua interpretação à luz das normas legais, mas também não podem ignorar as regras derivadas do senso e experiência comum e consentir que as entidades empregadoras, as mais das vezes, por força da sua censurável atuação substantiva e processual, sejam premiadas no fim do processo com uma absolvição referente a trabalho extraordinário de que, inegavelmente, beneficiaram e não pagaram como deviam ao trabalhador.

Ora, dito isto e chegados aqui, ao cerne da questão suscitada pela Apelante, não ignoramos que, muito embora o Código de Processo do Trabalho contenha uma regra especial como a do artigo 75.º que determina ao julgador a tramitação dos respetivos autos no sentido de alcançar na decisão final a condenação desde logo líquida, do devedor, certo é que nem sempre é devidamente atendida e cumprida pelos tribunais do trabalho, ocorrendo outras situações em que tal norma célere e salutar é impossível de levar a bom porto no seio da ação laboral [como é o caso dos autos], impondo-se assim uma condenação genérica, nos termos do atual artigo 609.º, número 2, do NCPC (anterior artigo 661.º, número 2, do C.P.C/1961) e a sua posterior quantificação, por via da liquidação através de meros cálculos aritméticos a fazer no requerimento executivo inicial ou por força da dedução de um incidente de liquidação nos termos dos artigos 358.º a 361.º do atual C.P.C (anteriormente, artigos 378.º e seguintes do entretanto revogado Código de Processo Civil), convindo ainda ter em atenção, no que toca à presente problemática, ao estatuído nos artigos 704.º, número 6, 713.º e 716.º do NCPC.

ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA [[2]], quanto ao estatuído no número 2 do artigo 606.º do NCPC, sustentam o seguinte:
«6.- Na ação em que se formule pedido genérico formulado ao abrigo do artigo 556.º é natural que na falta de oportuna liquidação incidental (arts. 358.º e segs.), a sentença culmine com uma condenação também genérica, sujeita a posterior liquidação. Mas não é esta a única situação que pode determinar este resultado. Mesmo em casos em que o autor tenha quantificado a sua pretensão, a ação pode culminar com uma sentença de teor genérico ou ilíquido desde que, sendo apurada a existência do direito e da correspondente obrigação, os elementos de facto se revelem insuficientes para a quantificação, mesmo com recurso à equidade.
7.- Esta é, aliás, uma posição que encontra na jurisprudência um larguíssimo consenso, rejeitando uma argumentação formal que valorizasse o facto de, assim, se conceder ao autor uma dupla oportunidade para o reconhecimento do mesmo direito. Tal não é verdade se considerarmos, como se impõe, que uma sentença de condenação ilíquida pressupõe a demonstração de que existe um direito que apenas carece de concretização suscetível de ser conseguida através do subsequente incidente de liquidação». 
   
Não será despiciendo ouvir também FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, em “Curso de Processo de Execução”, 12.ª Edição, janeiro de 2010, Almedina, páginas 195 e 196, páginas 118 e 119 e 123 e seguintes, com menção apenas das Notas de Rodapé relevantes (ainda que no quadro do anterior Código Processo Civil):
«É ilíquida, para efeitos de execução, a obrigação cujo quantitativo não se encontra ainda determinado ou o seu objeto é uma universalidade, face ao disposto nos arts. 471.º e 805.º.
Como exemplos da primeira modalidade, podemos apontar os seguintes: a obrigação de custear as despesas judiciais e os honorários de advogado, estipulada em contrato de mútuo, constante de escritura pública, para o caso de incumprimento, quando o seu montante não se encontra fixado; a obrigação de indemnizar o lesado pela prática de facto ilícito, quando não seja possível determinar as suas consequências, ou o lesado, no uso da faculdade conferida pelo art.º 569.º do CC, deixa de pedir na ação declarativa a quantia exata em que avalia os danos.
(…)
Os exemplos apontados, excetuado o primeiro, suportam, em ação declarativa um pedido genérico (art.º 471.°, n.º 1, alíneas a) e b)], que deve concretizar-se em prestação determinada por meio do incidente de liquidação dos arts. 378.º a 380.º, a menos que, tratando-se de universalidade, ao caso caiba o processo de inventário (v.g., a partilha de herança indivisa), ou o autor não tenha elementos que permitam a concretização dos elementos que a compõem, observando-se então o disposto no n.º 7 do art.º 805.° (art.º 471.º, n.º 2).
(…)
Não havendo elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condenará, no que vier a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata no que considere já provado (arts. 565.° do CC e 661.°, n.º 2, do CPC).       
(…)
A liquidação feita pelo tribunal configura-se como um verdadeiro processo declarativo destinado a determinar o montante da prestação ou a especificar os elementos da universalidade. Como se infere do n.º 1 do art.º 805.º, no requerimento executivo, o credor indicará os valores que considere compreendidos na prestação devida, concluindo por um pedido líquido.
Sendo o título executivo uma sentença de condenação no que vier a ser liquidado, o requerimento, oferecido em duplicado pelo autor, baseará um incidente de liquidação, a deduzir no próprio processo onde a sentença foi proferida, determinando a sua admissão a renovação da instância extinta (arts. 378.°, n.º 2, e 379.°), com a competência para conhecer do incidente a pertencer ao tribunal que proferiu a condenação e não ao juízo de execução.
A oposição à liquidação, a formular em duplicado (art.º 380.º, n.º 1), será deduzida no prazo de 10 dias (art.º 303.°, n.º 2).
Tanto o requerimento como a oposição à liquidação dispensam a entrega de duplicados quando apresentados por transmissão eletrónica de dados (arts. 379, n.º 2, e 380.°, n.º 1, 2.ª parte).
Não contestando o réu e a revelia for de considerar operante, produzir-se-á o efeito cominatório próprio do processo declaratório (art.º 303.º, n.º 3, com remissão para os arts. 484.º e 485.º); contestando o réu, ou não contestando, a revelia deva considerar-se inoperante, seguem-se os termos subsequentes do processo sumário de declaração (art.º 380.º, n.º 3).
(…)
Tanto no caso de a oposição à liquidação se cumular com a oposição à execução, como no caso de apenas ocorrer a oposição à liquidação, havendo contestação ou sendo a revelia inoperante, seguir-se-á a tramitação própria do processo sumário de declaração (arts. 380.°, n.º 3, 805.º, n.º 5, e 817.º, n.º 2).
Nas duas modalidades de liquidação judicial referidas, sendo a prova produzida pelas partes insuficiente, incumbe ao juiz completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial (arts. 380.º, n.º 4, e 805.°, n.º 5, in fine). Não funcionam consequentemente, aqui, as regras do ónus da prova e também não pode o incidente de liquidação ser julgado improcedente por falta de prova [[3]]

Chegados aqui e tendo como pano de fundo as normas legais aplicáveis e a interpretação que delas faz a nossa melhor doutrina, há que dizer que, na nossa perspetiva, o incidente de liquidação visa apenas transformar num dado montante certo o débito ilíquido que foi objeto da condenação da sentença no âmbito da ação declarativa laboral, onde o autor necessariamente alegou e provou os factos suficientes, essenciais e constitutivos do seu direito creditício, estando-lhe vedado articular e demonstrar, de novo, no dito incidente factos dessa natureza que já ali alegou mas não logrou comprovar na fase declarativa inicial ou factos que ali devia ter invocado e não fez e que, naturalmente não provou, quando também ali o devia ter feito.

O incidente de liquidação não se destina a possibilitar uma nova discussão sobre o litígio inicial mas apenas deve ser utilizado para quantificar as prestações em que o réu ou o autor foram condenados e que não tiveram uma expressão pecuniária certa e líquida. 

Nos presentes autos não somente o Autor foi criterioso na alegação que fez do trabalho suplementar que, na sua perspetiva, foi por si executado entre 2013 e 2018 [cf. artigo 5.º do NCPC e 27.º e 72.º do CPT], indo mesmo ao encontro da nossa jurisprudência mais rigorosa que reclama que seja feita a enumeração concreta dos dias e horas em que o mesmo foi desenvolvido [daí a tal «forma sui generis como optou por alegar o trabalhou suplementar que reivindica: […] na sua PI, o Autor entendeu organizar diversos “quadros” (um para cada ano civil), onde reproduziu o calendário gregoriano…»], como logrou demonstrar os factos essenciais constitutivos do seu direito ao pagamento do trabalho executado para além das 8 horas diárias e 40 horas semanais nos 5 dias úteis da semana [na falta da prova de um horário de trabalho fixado pela Ré ao Autor], tendo apenas ficado por provar que dias e horas em particular, o que impediu o apuramento do valor concretamente devido a esse título pela Ré recorrente.

A Apelante entende que o Autor, pela circunstância de ter alegado, quadro a quadro, tabela a tabela, segundo o calendário gregoriano dos anos de 2013 a 2018, as horas e os dias em que terá desenvolvido trabalho suplementar, estava obrigado a provar nesta ação e na íntegra todos esses factos, sob pena de ver ser julgado improcedente essa sua pretensão de liquidação pela Ré da remuneração corresponde ao mesmo.

A Ré considera que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir que fundam o pedido de liquidação da retribuição correspondente a tal trabalho suplementar integram necessariamente cada um desses dias e horas concretamente articulados e que a falha na sua demonstração hipotecou, irremediavelmente, a consideração e procedência do correspondente pedido.

Não concordamos minimamente com tal argumentação da Ré, pois, na nossa perspetiva e para efeitos de reconhecimento ao seu direito ao pagamento do trabalho suplementar, bastava ao demandante trabalhador, como, de facto, veio a acontecer, provar a existência de um contrato de trabalho, as funções e a retribuição acordada, os períodos normais e semanais de trabalho [dias úteis] em que estava obrigado a desempenhar a sua atividade profissional para a empregadora e a circunstância de o fazer com muita frequência para além de tais limites temporais e em dias que não seriam de trabalho.

Este quadro factual e jurídico permitiu ao tribunal da 1.ª instância reconhecer e declarar o direito em questão, restando ao Autor, em futuro incidente de liquidação – a não ser que as partes cheguem entretanto a um acordo quanto aos montantes devidos a esse título – de aí ir ao pormenor de concretizar e provar as horas e dias em que tal efetivamente se verificou, para efeitos de quantificação da retribuição correspondente que lhe é devida pela empregadora.

Poder-se-á argumentar que não ficou provado nos autos um dos factos essenciais constitutivos do direito do Autor a ver ser-lhe pago pela Ré o reclamado trabalho suplementar, sendo tal elemento factual em falta o horário de trabalho praticado por aquele.

A questão é pertinente mas não decisiva, para tal efeito, como decorre do Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 8/10/2014, Processo n.º 2233/10.2TTLSB.L1, Relator: José Eduardo Sapateiro, não publicado, com o seguinte Sumário:

I–O conceito de documento idóneo para efeitos de prova do trabalho suplementar vencido há mais de 5 anos, na multiplicidade de formas de prestação da atividade laboral que vigoram no nosso tecido económico e empresarial, não pode ser restringido ao registo do trabalho suplementar a que as entidades empregadoras estão legalmente obrigadas, permitindo-se, ao invés e para esse efeito, outros documentos da autoria daquelas, não se vislumbrando, por outro lado, nenhum óbice a que os referidos documentos idóneos possam ter sido produzidos por terceiros (a empresa utilizadora, por exemplo, no caso do trabalho temporário, ou os clientes da entidade patronal, no caso de prestação de serviços em regime de outsourcing), por organismos oficiais (v.g., ACT) ou pelo próprio trabalhador (quando este desenvolve atividade profissional essencialmente no exterior, bastando pensar nos discos do tacógrafo, quando manuais).
              
II–No quadro da relação de trabalho tem de ser estabelecido um horário de trabalho ao trabalhador, quer por consenso com o empregador, quer por iniciativa unilateral deste último, salvo se para o efeito tiver sido celebrado entre ambos um acordo de Isenção do Horário de Trabalho, nos termos legais.

III–O «horário de trabalho»,ao contrário do que acontece com a omissão do «período normal de trabalho», não constitui elemento essencial do contrato de trabalho, não originando a sua falta a nulidade do mesmo.

IV–Logo, inexistindo horário de trabalho definido, está o Autor desonerado de alegar e provar tal pressuposto da relevância jurídica do trabalho suplementar, sendo a alegação e prova conjugadas do seu período normal de trabalho semanal (dias úteis + sábado), da descrição do seu normal e habitual dia de trabalho e das remunerações auferidas durante o período temporal em questão, suficientes para se concluir pelo desempenho de trabalho para além das 40 horas semanais, com um limite máximo de 7,5 horas por semana útil de 5 dias e de 1,5 horas por dia útil e efetivo de trabalho.

V–Atenta a circunstância de não se possuir todos os elementos de facto necessários à quantificação, com exatidão e rigor, da remuneração devida ao Autor em virtude da execução do trabalho suplementar durante a pendência do contrato de trabalho, deve relegar-se a mesma para liquidação de sentença, nos termos dos artigos 661.º, número 1 e 385.º e seguintes do Código de Processo Civil. [sublinhados a negrito da nossa responsabilidade]
Logo, pelos fundamentos expostos, também tem o recurso de Apelação da Ré de ser julgado improcedente nesta sua última vertente jurídica, com a inerente confirmação da bem elaborada e fundamentada sentença do Juízo do Trabalho de Lisboa.                 
IV–DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 662.º e 663.º do Novo Código de Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa, no seguinte:
a)-Em julgar improcedente o recurso de Apelação interposto por BBB na sua vertente de impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto;
b)-Em julgar improcedente o recurso de Apelação interposto por AAA, confirmando-se, nessa medida, sentença recorrida. 
Custas do recurso de Apelação a cargo da Ré - artigo 527.º, número 1, do Novo Código de Processo Civil.

Registe e notifique.



Lisboa, 14 de Julho de 2021   

  

(José Eduardo Sapateiro)
(Alves Duarte)(Votou em conformidade, sendo que não assina por não estar presente em virtude da pandemia)
(Maria José Costa Pinto)



[1]Sendo espelho e reflexo dessas particularidades da atividade económica do setor de venda de veículos automóveis e da forma como as mesmas moldam a própria prestação laboral dos respetivos trabalhadores o regime jurídico constante de diversas cláusulas convencionais dos instrumentos de regulamentação coletiva aplicáveis, como algumas das referidas e analisadas na sentença recorrida.
[2]Em «Código de Processo Civil Anotado – Volume I – Parte Geral e Processo de Declaração – artigos 1.º a 702.º», Almedina, setembro de 2020, 2.ª Edição, em anotação ao artigo 609.º, Notas 6 e 7, a página 755.
[3]«Cf. Acórdão da RC de 4.12.2007, CJ, ano XXXII, tomo V, p. 32.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO.


Decisão Texto Integral: