Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27851/19.0T8LSB.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: CONFIADORES
OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS
SUBROGAÇÃO LEGAL
DIREITO AO REEMBOLSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.A satisfação do crédito por um dos confiadores não prejudica, interfere ou desvirtua o regime legal das relações entre os confiadores, por excesso ou por defeito, como decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 6/2021, publicado no DR nº 251/2021, Série I, de 29/12/2021, pgs. 76-91.

II.Em consequência, a aplicação das regras das obrigações solidárias, por determinação da 2.ª parte do n.º 1 do art. 650º do Código Civil, não é afastada pela alegada extinção por «confusão» do crédito, improcedendo a excepção invocada a este respeito.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa


I.O relatório:


A intentou a presente acção declarativa com processo comum contra B, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 50 071,11 (cinquenta mil e setenta e um euros e onze cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.

Para tanto invocou o seguinte:
I - Dos Factos

O Autor e o Réu eram sócios da sociedade comercial C, Lda.", pessoa colectiva n.° ---- cfr. certidão da matrícula da referida sociedade que se junta como Doc. n.° 1.


A sociedade comercial C contratou com a seguradora "Companhia de Seguros D, S.A." um seguro do Ramo Cauções, titulado pela apólice n.° ___, com início em 19.12.1990 - cfr. Docs. n.°s 2 e 3 que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.


Nos termos das Condições Especiais do referido Contrato de Seguro - cfr. Doc. n.° 4 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais -, a seguradora obrigou-se a garantir ao segurado (E - Sociedade Financeira de Locação, S.A.) o encargo de satisfazer as rendas em dívida em virtude da ocorrência de sinistro que seja consequência do incumprimento das obrigações que o Tomador do Seguro assume por força do contrato de locação financeira n.° 17.611/90, celebrado entre a beneficiária e segurada E Sociedade Financeira de Locação, S.A." e a tomadora do seguro, ou seja, a C ".


O capital máximo segurado era de 50.000.000$00, a que corresponde o contravalor em EUROS de € 249.398,95 (duzentos e quarenta e nove mil trezentos e noventa e oito euros e noventa e cinco cêntimos).


A sociedade comercial C não pagou, nas datas de vencimento nem posteriormente, as rendas acordadas no âmbito do contrato de locação financeira n.° 17.611/90 celebrado com a E ".


Motivo pelo qual a beneficiária do seguro exigiu, em 29.01.1993, da "Companhia de Seguros D", o pagamento da indemnização devida em virtude do incumprimento do contrato de locação financeira celebrado entre a Ce a beneficiária do seguro, ou seja, a E - cfr. Doc. n.° 5 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.


A "Companhia de Seguros D", em cumprimento das obrigações resultantes da celebração do contrato de seguro titulado pela apólice n.° ____, pagou em 27.10.1993, à beneficiária do seguro, a E, a quantia de € 97.050,76 (19.456.930$00), a título de indemnização - cfr. cópia do recibo de indemnização, emitido pela E que se junta como Doc. n.° 6 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.


O Autor e o Réu assumiram-se, perante a "Companhia de Seguros D ", como fiadores, comprometendo-se a reembolsar ilimitada e solidariamente todas as quantias que esta fosse obrigada a pagar a terceiros no âmbito de todos e quaisquer contratos de seguro do Ramo Cauções celebrados entre esta e a sociedade comercial C " - cfr. Docs. n.°s 7 e 8 que se juntam e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.


Em 04.10.1993, a "Companhia de Seguros D" comunicou à "C" e aos fiadores, aqui Autor e Réu, que iria proceder ao pagamento à "E" da indemnização, no montante de € 97.050,76 (19.456.930$00), exigindo daqueles o seu reembolso - cfr. comunicações que se juntam como Docs. n.°s 9, 10 e 11 e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.

10°
Nos termos do artigo 13.° das Condições Gerais da Apólice n.° 96/63.631 - cfr. Doc. n.° 12 que se juntam e se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais -, a "Companhia de Seguros D" exerceu o seu direito de regresso contra o ora Autor e o ora Réu pelo valor pago ao abrigo da referida apólice de seguro.

11°
Tendo para o efeito a "Companhia de Seguros D" intentado acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra a "C" e contra o ora Autor e o ora Réu, que correu os seus termos na 1.° Secção da 13.° Vara do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, sob n.° 364/95 - cfr. cópia da petição inicial que se junta como Doc. n.° 13 e que se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

12°
Na referida acção, foram os ali Réus condenados a pagar solidariamente à "Companhia de Seguros D" a quantia de € 97.050,76 (19.456.930$00), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos sobre aquela quantia, à taxa legal de 15% até integral pagamento - cfr. cópia da Sentença, proferida em 19.01.1999, que se junta como Doc. n.° 14 e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

13°
A condenação do ora Autor e do ora Réu foi integralmente confirmada por Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 14.11.2000 - cfr. cópia do Acórdão que se junta como Doc. n.° 15 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

14°
Em consequência, a "Companhia de Seguros D" propôs contra a "C", o ora Autor e o ora Réu, execução sumária para pagamento de quantia certa com base na referida Sentença condenatória - cfr. cópia do requerimento executivo que se junta como Doc. n.° 16 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

15°
No âmbito da referida execução, o ora Autor celebrou com a "Companhia de Seguros C", em 30.12.2002, um Acordo de Pagamento e Cessão de Créditos - cfr. cópia certificada do referido acordo que se junta como Doc. n.° 17 e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

16°
Nos termos do referido acordo, a "Companhia de Seguros C" reduziu o pedido formulado na execução para a quantia de € 99.759,58 (noventa e nove mil setecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), comprometendo-se o ora Autor a proceder ao seu pagamento fraccionado em diversas prestações - cfr. Doc. n.° 17.

17°
Foi estipulado que, no acto de outorga do acordo, o ora Autor procederia ao pagamento da quantia de € 25.000,00, sendo que o remanescente seria pago em cinco prestações bimensais de € 5.000,00 e o restante valor de € 49.759,58 seria pago em 10 prestações trimestrais, nove no valor de € 5000,00 e a última no valor de € 4.759,58 - cfr. Doc. n.° 17.

18°
Ficou ainda acordado que a "Companhia de Seguros C" cedia ao ora Autor o crédito reclamado na execução até ao montante de € 99.759,58, com todos os direitos e garantias que o acompanham, nomeadamente as garantias prestadas por terceiros - cfr. Doc. n.° 17.

19°
No âmbito do referido acordo, o ora Autor procedeu ao pagamento de todas as prestações estipuladas - cfr. comprovativos de pagamento que se juntam como Docs. n.°s 18 a 33 e que se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

20°
Tendo a última prestação sido paga a 28.04.2006.

21°
Em virtude do cumprimento do Acordo de Pagamento e Cessão de Créditos, celebrado entre o Autor e a "Companhia de Seguros D", em 30.12.2002, o Autor passou a ser titular do crédito que a "Companhia de Seguros D" detinha sobre o Réu, até ao montante de € 99.759,58.

22°
Encontrando-se na posse do Réu os documentos que titulam o referido crédito, que se juntam como Doc. n.° 34 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.


23°
O Autor requereu, ao abrigo do disposto no artigo 583.°, n.° 1, do Código Civil, a notificação judicial ao Réu da Cessão de Créditos, celebrada entre o Autor e a "Companhia de Seguros D", em 30.12.2002 - cfr. cópia do requerimento de notificação judicial avulsa que se junta como Doc. n.° 35 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

24°
Por despacho proferido em 28.08.2019, foi ordenada a notificação judicial avulsa do ora Réu, no âmbito do processo n.° 17176/19.6T8LSB, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 13 - cfr. cópia do despacho que se junta como Doc. n.° 36 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

25°
Em 28.10.2019, foi o ora Réu notificado, no âmbito do processo n.° 17176/19.6T8LSB, da Cessão de Créditos, celebrada entre o Autor e a "Companhia de Seguros D", em 30.12.2002 - cópia da certidão de notificação que se junta como Doc. n.° 37 e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

26°
Considerando-se, na mesma data, atento o teor da notificação judicial avulsa, interpelado para proceder ao pagamento do crédito cedido, no montante de € 49.879,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), correspondente a metade do valor pago pelo Autor à "Companhia de Seguros D", sendo essa a medida da responsabilidade do Réu enquanto co- fiador.

27°
Apesar de ter sido interpelado para o efeito, o Réu não procedeu, até à presente data, ao pagamento da quantia em dívida, no montante de € 49.879,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos).

IIDo Direito

28°
Nos termos do artigo 577.°, n.° 1, do Código Civil, o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.

29°
Dispõe o artigo 582.°, n.°1, do Código Civil, que, na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente.

30°
Pelo que, inexistindo convenção que afaste a transmissão das garantias, estando, aliás, tal transmissão expressamente prevista no contrato de cessão de créditos, a cessão do crédito a favor do Autor operou a transmissão da garantia de fiança prestada pelo Réu.

31°
Estipula o artigo 583.°, n.° 1, do Código Civil, que a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite.

32°
A cessão de créditos foi notificada ao Réu, em 28.10.2019, produzindo, assim, efeitos em relação a este.

33°
Tendo, na mesma data (28.10.2019), o Réu sido interpelado para proceder ao pagamento ao Autor do crédito cedido, no montante de € 49.879,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), correspondente a metade do valor pago pelo Autor à "Companhia de Seguros D", sendo essa a medida da responsabilidade do Réu enquanto co-fiador.

34°
Nos termos do artigo 805.°, n.° 1, do Código Civil, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.

35°
A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor - artigo 804.°, n.° 1, do Código Civil.

36°
Estabelecendo o artigo 806.°, n.° 1, do Código Civil, que na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.

37°
O Réu foi interpelado em 28.10.2019, data em que se constituiu em mora.

38°
Pelo que os juros devidos, contabilizados à taxa civil, desde 28.10.2019 até 02.12.2019, ascendem à quantia de € 191,32 (cento e noventa e um euros e trinta e dois cêntimos).

39°
Perfazendo, assim, a quantia em dívida o montante de € 50.071,11 (cinquenta mil e setenta e um euros e onze cêntimos).

O Réu contestou, propugnando pela improcedência da demanda e excepcionando a extinção por confusão do crédito em causa, a sua inexigibilidade em virtude da omissão da sua reclamação no seu processo de falência, a liberação por impossibilidade de sub-rogação, o abuso de direito do Autor e a ineficácia da cessão de créditos.

O autor respondeu por escrito às excepções, propugnando pela respectiva improcedência, invocando, em particular, o seguinte:
I.Extinção do Direito de Crédito
1°.
No acordo celebrado em 31.12.2012, a seguradora D obriga-se a fazer cessar a execução apenas contra o ora A.;

2°.
E isto ocorre porque quer a sociedade executada, quer o ora R., foram ambos declarados falidos, previamente à celebração desse acordo.

3°.
Ocorrendo redução da dívida exequenda, não há crédito remanescente algum que a Seguradora possa ter mantido na sua titularidade, ao contrário do alegado no ponto 12 (e aliás a cláusula 1§ do Acordo nem sequer individualiza qualquer dos devedores).

4°.
Também em momento lado algum se expressa uma assunção da dívida a título principal, ao contrário do que o R. conclui no art.° 16.

5°.
E nem isso resulta do art.° 5° do identificado Acordo: posto embora que independentemente de se verificar o pagamento, sempre a Seguradora estava obrigada a fazer extinguir a execução, a verdade é que aquele acordo não constitui uma novação da dívida exequenda, na medida em que em caso de não pagamento, a materialidade subjacente a essa nova pretensa dívida seria, sempre, a fiança assumida, acessória na sua natureza.

6°.
E assim chegamos à pretensa extinção da dívida por confusão.

7°.
Elemento típico nuclear e essencial da cessão de créditos é que o cessionário seja um «terceiro», diferente, por conseguinte, do próprio devedor.

8°.
Neste sentido, a figura da cessão consiste na substituição do credor originário por outra pessoa, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional,

9°.
isto é, não se produz a substituição da obrigação antiga por uma nova, mas uma simples modificação subjectiva que consiste na transferência daquela pelo lado activo.

10°.
Estes pressupostos obstam a uma cessão de crédito ao próprio devedor, obviamente,

11°.
Mas não obstam a uma cessão ao fiador, atenta a acessoriedade da fiança, que significa que a obrigação do fiador é distinta, embora se apresente na dependência estrutural e funcional da obrigação do devedor (Artigo 634.° do C.C.).

12°.
Nesse caso, o objecto do acordo é o pagamento pelo A. da dívida, que aparenta operar em simultâneo com a cessão do crédito; mas o que na realidade ocorre é que o pagamento efectuado ao Credor se refere ao preço da cessão, que o precede necessariamente (pela lógica e porque assim foi de facto) sendo alheio a qualquer assunção de dívida, que de facto, não encontra respaldo no texto desse acordo.

13°.
E equacionando que o negócio entre credor e devedor susceptível de ser interpretado no sentido de um cumprimento da obrigação, hipótese, realmente, em que a extinção do crédito impossibilitaria a cessão, sempre ao caso dos autos seria aplicável o disposto no artigo 650.°, do C.C.:
(Relações entre fiadores e subfiadores)
1.- Havendo vários fiadores, e respondendo cada um deles pela totalidade da prestação, o que tiver cumprido fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor e, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, contra os outros fiadores.

14°.
Portanto, se «A extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança.»: art.° 651.°, não deixa de dela (extinção) nascer uma obrigação entre o fiador que respondeu pela totalidade da prestação, e os demais.

15°.
Materialmente, é isto que determina a procedência da presente acção e a responsabilidade do R. perante o A. - que não é a responsabilidade daquele perante a Seguradora D.

Com data de 8/7/2021, foi proferido despacho saneador de apreciação do mérito da causa, com o seguinte teor decisório:
Em face do exposto julga-se a presente acção improcedente e, em consequência, absolve-se o Réu do pedido.
Custas pelo Autor.
Valor da causa : o indicado na petição inicial.
Registe e notifique.
*

Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

a)- A sentença recorrida declarou improcedente a acção, com a fundamentação (de Direito) seguinte: «(...) no caso em análise o crédito cedido ao Autor já se extinguiu em virtude de cumprimento pelo mesmo Autor, também devedor face ao cedente (artigo 762° , n° 1 , do C. Civil ).
b)-No tocante a interpretação, o artigo 236° do C.C., determinado por razões de protecção ao declaratário e de segurança do trafico, consagrou a denominada teoria da impressão do destinatário, vindo privilegiar o sentido objectivo da declaração negocial temperado por um elemento de inspiração subjectivista: aquele sentido deixa de prevalecer quando não possa razoavelmente ser imputado ao declarante (n° 1, in fine). O mesmo sentido objectivo igualmente e inatendível quando não coincida com a vontade real do declarante e esta seja conhecida do declaratário (n° 2).
c)-A integração dos negócios jurídicos postula, por seu turno, duas exigências: investigar o que as partes teriam querido se houvessem previsto o ponto omisso, e o que os ditames da boa-fé impõem.
d)-O negócio dos autos conforma uma transacção, em que o ora A. teve como intenção fazer cessar a execução contra si pendente; E sendo, conjuntamente com o R., fiador da obrigação assumida pelo devedor principal, pretendeu não renunciar à solidariedade que, entre ambos, pré-existia.
e)-A Sentença recorrida considera, textualmente, que a cedência do crédito detido pela "--- Companhia de Seguros", não ocorreu, conclusão que, salvo o devido respeito, se afigura apressada, pois atravessa o negócio dos autos obliterando aquele que foi o seu escopo, máxime, aquela que foi a intenção do A., ora Recorrente, ao prover o pagamento de uma dívida de que era fiador, conjuntamente com o aqui R..
f)- Desde logo, numa primeira perspectiva, há a considerar o facto de a declaração de cedência ter ocorrido no mesmo acto, e portanto, no mesmo momento, a que corresponde a declaração de pagamento, constituindo um acto jurídico complexo, que tem como subjacente um determinado objectivo para ambas as partes.
g)-Acresce que - por outro lado - a matéria de facto provada afigura-se insuficiente para justificar a decisão, na medida em que, o facto provado aqui relevante, é aquele que consta do ponto «7° - Foi estipulado que, no acto de outorga do acordo, o ora Autor procederia ao pagamento da quantia de € 25.000,00, sendo que o remanescente seria pago em cinco prestações bimensais de € 5.000,00 e o restante valor de € 49.759,58 seria pago em 10 prestações trimestrais, nove no valor de € 5000,00 e a última no valor de € 4.759,58 ».
h)-Ou seja, aquilo que decorre do probatório em causa, não é o efectivo pagamento da dívida "cedida"; mas sim o estabelecimento de um plano de pagamento de dezasseis prestações, das quais, mesmo a inicial, de €25.000,00, não consta como paga, mas sim como vencida.
i)-Do que resulta que, de forma alguma, é possível concluir que, com tal acordo, a dívida se extinguiu; apenas que o A. ficou obrigado a extingui-la, através de uma transacção que não constitui em si mesma o pagamento da dívida exequenda, tão só determinando a extinção da execução em que foi celebrada.
Sem conceder,
j)-Por outro lado, em consequência do pagamento, ficará o A. titular da metade do crédito, que ao R. caberia suportar, nos termos do disposto no artigo 650.°, do C.C. que dita, literalmente, que «Havendo vários fiadores, e respondendo cada um deles pela totalidade da prestação, o que tiver cumprido fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor e, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, contra os outros fiadores.».
k)-É essa relação de sub-rogação que está subjacente ao negócio dos autos e que a Sentença recorrida atravessa e não acautela, e que determina que, e tendo em conta o disposto nos art.°s 589° e 593°, ambos do Cód. Civ., o ora Autor, por via da sub- rogação voluntária do credor, -- e independentemente da qualificação jurídica dada ao contrato pelas partes nele intervenientes -- ficou sub-rogado nos direitos que a firma Companhia de Seguros D detinha sobre o principal devedor, a C e sobre os restantes responsáveis solidários pelo pagamento da dívida, também executados na Execução para pagamento de quantia certa, por aquela movida.
l)-O que significa que o ora Autor, ao assumir a posição da anterior credora, Companhia de Seguros D S.A., tem o direito a haver tanto da principal devedora C- Comércio, Exportação e Importação, Lda. (E só não o tem porque esta foi extinta após declaração de falência), como do Réu, que, enquanto fiador, assumiu contratualmente a posição de devedor solidário e principal pagador da dívida da referida C, o montante do crédito que solveu, e juros de mora, o que pode exigir, individualmente, a cada um dos destes (C; E Réu), à primeira por ser principal devedora, e ao segundo por ser fiador que assumiram solidariamente e como principais pagadores a dívida da primeira (art.°s 518°, 519°, 627°, 634° e 640°, todos do Cód. Civ.).
m)-Com o que, além do mais, foram violados os artigos 236°, 634.°, 650.°, e 762° , n° 1 , todos, do C. Civil.
Termos em que deverá o presente recurso proceder e em consequência, ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que, declarando a accção procedente, por provada, condene o Réu no pagamento ao A. do valor peticionado, de € 50 071,11 (cinquenta mil e setenta e um euros e onze cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, contados desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento Assim se fazendo sã e serena JUSTIÇA!
*

O réu contra-alegou, rematando com as seguintes conclusões:

I.O acordo celebrado entre o recorrente e a D consubstanciou um contrato de transacção, pelo qual o primeiro assumiu a obrigação de pagar parte da obrigação objecto do processo de execução que corria por apenso ao processo n.° 364/95 — o que chegou efectivamente a ocorrer, conforme ficou provado nos presentes autos —, tendo-lhe, em contrapartida, a segunda cedido o direito de crédito correspectivo dessa mesma obrigação.
II.A invocação, pelo recorrente, da sub-rogação, traduz-se numa inadmissível ampliação da causa de pedir (cf. os artigos 260.° e 265.° do Código de Processo Civil), que, como tal, não pode ser considerada pelo tribunal ad quem. 
III.Para além da sua inadmissibilidade adjectiva, a sub-rogação é substantivamente inexistente, pois que, em virtude da transacção celebrada com a D, o recorrente assumiu a dívida em causa a título principal, de modo que, quando a cumpriu, não o fez já na qualidade de fiador, mas sim de devedor propriamente dito — e isto apenas prima facie, dado que na realidade a obrigação já se tinha extinguido por confusão, pelo que, aquilo que verdadeiramente ocorreu, foi o cumprimento de uma obrigação natural, razão pela qual também não se poderia ter verificado a sub-rogação voluntária, que tão-pouco foi declarada negocialmente pelas partes.
IV.Por força do acordo celebrado entre a D e o recorrente, este tornou-se simultaneamente credor e devedor de uma mesma obrigação, que, destarte, se extinguiu por confusão — assim como, nesta medida, a fiança prestada pelo recorrido (artigo 651.° do Código Civil).
V.A falta de reclamação, pela D, do crédito em causa no processo de falência do aqui recorrido, fez precludir a possibilidade de o vir fazer posteriormente, seja porque a obrigação, e, logo, a fiança, se extinguiu, seja porque se modificou em mera obrigação natural.
VI.O mesmo vale, mutatis mutandis, para a não reclamação do crédito no processo de falência da devedora principal — a que acresce o irremediável prejuízo daí adveniente para a possibilidade de os fiadores reaverem, em caso de cumprimento e consequente sub- rogação, aquilo que prestassem, pelo que, por força do disposto no artigo 653.° do Código Civil (directamente ou por analogia), ficaram desonerados da sua obrigação garantística, por extinção da mesma.
VII.Uma actuação como a do recorrente, que, sabendo que o recorrido pagou pessoalmente várias dívidas sociais, nomeadamente a referida no artigo 93 da presente contra- alegação, inclusivamente superior à aqui em causa, pela qual tinha sobre ele um direito de regresso, que nunca exerceu e que por isso entretanto prescreveu, vem, volvidos quase dezassete anos, e sem que nada o fizesse prever, exercer um direito de crédito que sobre ele adquiriu em virtude do pagamento de uma outra dívida social, é manifestamente atentatória tanto dos bons costumes como da boa fé, havendo, por isso, abuso do direito.
VIII.Enfim, não tendo a cessão sido notificada à devedora propriamente dita, é ineficaz, seja quanto a esta, seja, em virtude da acessoriedade da fiança (artigo 627.°, n.° 2, do Código Civil), quanto ao fiador, aqui recorrido — que é um terceiro, ainda que garante —, independentemente da sua notificação, que, de resto, só ocorreu em 28-10-2019, com a sua citação para a presente acção.
Por tudo quanto fica exposto, deverão Vossas Excelências negar provimento à presente apelação, confirmando a douta decisão recorrida, ou, caso assim não venham a entender, julgando procedente alguma das excepções peremptórias invocadas pelo recorrido.
*

O autor respondeu, concluindo o seguinte:

a)- A causa de pedir através da qual o A. fundamenta o pedido formulado nesta ação consiste no invocado facto de o A., em virtude de contrato de cessão de crédito, ter pago à "D" a dívida por esta reclamada em Execução instaurada contra o Réu, tendo celebrado um contrato de cessão de créditos, e passando a ser titular do crédito que a aí exequente detinha contra esse Réu.
b)- Daqui decorre que a qualidade de credor do A. lhe advém de duas formas distintas - precisamente porque nisso se quis garantir: sub-rogação; e cessionário do crédito, inexistindo, por ambas as razões, qualquer modificação da causa de pedir no recurso interposto.
c)- Se «A extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança.»: art.° 651.°, não deixa de dela (extinção) nascer uma obrigação entre o fiador que respondeu pela totalidade da prestação, e os demais, cfr,. resulta do art.° 650° do Código Civil
d)-O art.° 188/3 do CPEREF não determina a extinção dos créditos não reclamados no processo de falência.
e)- O art.° 653° do C.C. tem em vista a desvinculação do fiador, quer nos casos em que a sub- rogação não é de todo possível, quer nos casos em que, em termos práticos, o direito do credor já não possa ser exercido ou não o possa ser com as mesmas garantias, mas, como resulta expresso da norma, tal só ocorre quanto essa impossibilidade advenha de «facto positivo ou negativo do credor», o que não é o caso.
f)-A notificação da cessão ao devedor constitui apenas uma condição de eficácia da cessão perante si, nos termos do artigo 583° n° 1 do Código Civil, tornando a cessão eficaz em relação ao devedor, dando-lhe a conhecer a identidade do cessionário e evitando que o cumprimento seja feito perante o primitivo credor.
g)-Por isso mesmo, a cessão é eficaz perante o R., não obstante não o ser perante a devedora C, precisamente porque na relação jurídica subjacente ele é devedor solidário, mais a mais, atenta a falência da devedora principal, questão que, de resto, nem sequer se coloca sequer se o Contrato celebrado entre o A. e a Seguradora Tranquilidade for apreciado à luz da sub-rogação entre fiadores, atento o disposto no art.° 650°, n°1, do C.C.
h)-Quanto ao abuso de direito invocado pelo R. consubstancia, não tendo sido ultrapassado o prazo de prescrição de 20 anos, inexiste notícia nos autos de qualquer conduta do A. que permitisse ao R. ter a expectativa de não ser responsabilizado pela quota-parte da dívida totalmente suportada pelo A. e de que era co-responsável - antes pelo contrário, ao R. foi dada notícia da expectativa do A. de cobrança do crédito, não havendo nos autos notícia, também, de qualquer oposição activa do R..
Termos em que se conclui como nas alegações de Recurso apresentadas, devendo o mesmo proceder, e em consequência, ser a sentença recorrida substituída por Acórdão que, declarando a acção procedente, por provada, condene o Réu no pedido,
Assim se fazendo sã e serena JUSTIÇA!
*

O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
*

II.–Objecto e delimitação do recurso

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Apreciação da excepção de extinção do crédito peticionado, por confusão.
*

III.–Os factos

Recebeu-se da 1ª instância a seguinte fundamentação de facto:

Factos Provados (com interesse para a decisão da causa)


A Companhia de Seguros D S.A. intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra C-Comércio, Exportação e Importação , Lda. e contra o ora Autor e o ora Réu, que correu os seus termos na 1.a Secção da 13.a Vara do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, sob n.° 364/95.


Na referida acção, foram os ali Réus condenados a pagar solidariamente à Companhia de Seguros D a quantia de € 97.050,76 (19.456.930$00), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos sobre aquela quantia, à taxa legal de 15% até integral pagamento.


A condenação do ora Autor e do ora Réu foi integralmente confirmada por Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 14.11.2000 .


A Companhia de Seguros D propôs contra a sociedade C, o ora Autor e o ora Réu, execução sumária para pagamento de quantia certa com base na referida sentença condenatória .


No âmbito da referida execução, o ora Autor celebrou com a Companhia de Seguros D”, em 30.12.2002, um acordo , que intitularam de “ Acordo de Pagamento e Cessão de Créditos “ .


Nos termos do referido acordo, a “Companhia de Seguros D” reduziu o pedido formulado na execução para a quantia de € 99.759,58 (noventa e nove mil setecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), comprometendo-se o ora Autor a proceder ao seu pagamento fraccionado em diversas prestações .


Foi estipulado que, no acto de outorga do acordo, o ora Autor procederia ao pagamento da quantia de € 25.000,00, sendo que o remanescente seria pago em cinco prestações bimensais de € 5.000,00 e o restante valor de € 49.759,58 seria pago em 10 prestações trimestrais, nove no valor de € 5000,00 e a última no valor de € 4.759,58 .


Ficou ainda acordado que a “Companhia de Seguros D” cedia ao ora Autor o crédito reclamado na execução até ao montante de € 99.759,58, com todos os direitos e garantias que o acompanham, nomeadamente as garantias prestadas por terceiros .


No âmbito do referido acordo, o ora Autor procedeu ao pagamento de todas as prestações estipuladas , tendo a última prestação sido paga a 28.04.2006.

10°
O Autor requereu a notificação judicial do Réu da cessão de créditos celebrada entre o Autor e a Companhia de Seguros D e para proceder ao pagamento do crédito cedido, no montante de € 49.879,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), correspondente a metade do valor pago pelo Autor à referida Companhia de Seguros D , e por despacho proferido em 28.08.2019, foi ordenada a notificação judicial avulsa do ora Réu, no âmbito do processo n.° 17176/19.6T8LSB, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 13 , sendo o ora Réu notificado em 28.10.2019.

Factos Não Provados ( com interesse para a decisão da causa)

Não existem Factos Não Provados com interesse para a decisão da causa .
*

Ao abrigo do disposto no art. 662º, nº1 do Código Processo Civil, resulta ainda provado, por acordo das partes, a seguinte factualidade alegada na petição inicial, com referência aos documentos juntos:

11. O Autor e o Réu eram sócios da sociedade comercial "C - Comércio, Exportação e Importação, Lda.".

12. A sociedade comercial "C" contratou com a seguradora "Companhia de Seguros D, S.A." um seguro do Ramo Cauções, titulado pela apólice n.° 96/63.631, com início em 19.12.1990.

13. Nos termos das Condições Especiais do referido Contrato de Seguro, a seguradora obrigou-se a garantir ao segurado (E- Sociedade Financeira de Locação, S.A.) o encargo de satisfazer as rendas em dívida em virtude da ocorrência de sinistro que seja consequência do incumprimento das obrigações que o Tomador do Seguro assume por força do contrato de locação financeira n.° 17.611/90, celebrado entre a beneficiária e segurada "E- Sociedade Financeira de Locação, S.A." e a tomadora do seguro, ou seja, a "C".

14. O capital máximo segurado era de 50.000.000$00, a que corresponde o contravalor em EUROS de € 249.398,95 (duzentos e quarenta e nove mil trezentos e noventa e oito euros e noventa e cinco cêntimos).

15. A sociedade comercial "C" não pagou, nas datas de vencimento nem posteriormente, as rendas acordadas no âmbito do contrato de locação financeira n.° 17.611/90 celebrado com a "E".

16. Motivo pelo qual a beneficiária do seguro exigiu, em 29.01.1993, da "Companhia de Seguros D", o pagamento da indemnização devida em virtude do incumprimento do contrato de locação financeira celebrado entre a "C" e a beneficiária do seguro, ou seja, a "E".

17. A "Companhia de Seguros D", em cumprimento das obrigações resultantes da celebração do contrato de seguro titulado pela apólice n.° 96/63.631, pagou em 27.10.1993, à beneficiária do seguro, a "E", a quantia de € 97.050,76 (19.456.930$00), a título de indemnização.

18. O Autor e o Réu assumiram-se, perante a "Companhia de Seguros D", como fiadores, comprometendo-se a reembolsar ilimitada e solidariamente todas as quantias que esta fosse obrigada a pagar a terceiros no âmbito de todos e quaisquer contratos de seguro do Ramo Cauções celebrados entre esta e a sociedade comercial "C".

19. Em 04.10.1993, a "Companhia de Seguros D" comunicou à "C" e aos fiadores, aqui Autor e Réu, que iria proceder ao pagamento à "E" da indemnização, no montante de € 97.050,76 (19.456.930$00), exigindo daqueles o seu reembolso.

20.Para o efeito, a "Companhia de Seguros D" intentou a acção judicial referida no ponto 1º.
*

IV.– O Direito

Da extinção do crédito cedido, por confusão.

A decisão recorrida assentou nos seguintes fundamentos:

No âmbito dos presentes autos reclama o Autor a condenação do Réu com fundamento em contrato de cessão de crédito .
Para tanto alegou que em virtude de contrato de cessão de créditos adquiriu o crédito reclamado no processo de execução contra o aqui Réu ,e tendo procedido ao pagamento à cedente de todas as prestações estipuladas nesse contrato passou a ser titular do crédito que a aí exequente detinha contra esse Réu.
Dispõe o artigo 577° , n° 1 , do C. Civil , que o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito , independentemente do consentimento do devedor , contando que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja , pela própria natureza da prestação , ligado à pessoa do credor.
A cessão de crédito “ é uma forma de transmissão do crédito , no todo ou em parte , que opera entre o credor e terceiro.” ( Menezes Cordeiro , Tratado de Direito Civil Português- II, Direito das Obrigações , tomo IV , pág. 217 ) .
Deste modo , “ ocorrida uma cessão de crédito , opera , imediatamente a transferência do direito à prestação do cedente para o cessionário , com todas as faculdades que lhe sejam inerentes “ .     ( Menezes Cordeiro , Tratado de Direito Civil Português- II, Direito das Obrigações , tomo IV , pág. 222 ) .
Isto sem prejuízo da cessão apenas ser oponível ao cessionário quando lhe for notificada ( artigo 583° , n° 1 , do C. Civil ).
No entanto no caso em análise o crédito cedido ao Autor já se extinguiu em virtude de cumprimento pelo mesmo Autor , também devedor face ao cedente ( artigo 762° , n° 1 , do C. Civil ).
Efectivamente o Autor já satisfez ao cedente o crédito que o mesmo detinha solidariamente sobre esse Autor e sobre o Réu.
Com efeito , “ a obrigação extingue-se normalmente pelo cumprimento , ou seja quando o devedor realiza a prestação a que está vinculado “ . ( P. Lima e A. Varela , Código Civil Anotado , volume II , 4a ed. ,pág. 1 )
Como tal , e face ao disposto no artigo 762° , n° 1 , do C. Civil, pagando o Autor ao credor cedente o crédito que o mesmo detinha simultaneamente sobre ele e sobre o Réu o crédito cedido extinguiu-se , deixando de existir .
Ora “ cessão de crédito significa transmissão da titularidade de um direito de crédito “ e se esse direito entretanto se extinguiu não pode o Autor reclamar do Réu a satisfação desse crédito .( Código Civil Anotado , direcção Ana Prata , Volume I , 2017 , anotação Tiago Azevedo Ramalho , pág. 740)
Aliás , a extinção do crédito cedido ocorrera ainda antes dessa cessão ser oponível ao Réu. Improcede assim a pretensão do Autor , ficando por conseguinte a apreciação das demais questões suscitadas- 608° , n° 2 , do C.P.C..
*

A argumentação da extinção do crédito por confusão, enquanto obstativa ao exercício do direito de regresso entre fiadores, não é nova.

Mas a discussão ou controvérsia encontra-se resolvida por via do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 6/2021, publicado no DR nº 251/2021, Série I, de 29/12/2021, pgs. 76-91 – em data posterior à decisão recorrida:
A existência de uma declaração sub-rogatória pelo credor, de acordo com o artigo 589.º do Código Civil, no confiador solidariamente responsável que satisfez o crédito, não afasta a aplicação do regime da sub-rogação legal e do direito ao reembolso pelos outros confiadores, na medida das suas quotas, resultante da conjugação dos artigos 650.º, n.º 1, e 524.º do Código Civil.

Da fundamentação do aresto, retiramos o seguinte trecho:
A questão que importa dilucidar, face à oposição verificada entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido, é a de saber se o regime da sub-rogação voluntária pelo credor, previsto no artigo 589.º do Código Civil, se aplica à posição jurídica do confiador solvens, perante os demais confiadores, depois daquele satisfazer a dívida garantida, mediante acordo celebrado com o credor, no qual este declarou que sub-rogava o confiador solvens no crédito satisfeito.
Dispõe o artigo 589.º do Código Civil que o credor que recebe a prestação de terceiro pode sub-roga-lo nos seus direitos, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação.
Este preceito inicia uma secção autónoma do capítulo do nosso Código Civil dedicado à transmissão de créditos e de dívidas, nela se acolhendo uma figura jurídica de utilidade muito discutida, face à liberdade de cessão de créditos, e de difícil enquadramento dogmático, tendo a eliminação da sua vertente voluntária sido ponderada nos trabalhos preparatórios daquele diploma (1).
Com origem na combinação de duas distintas instituições romanas, sendo uma delas o beneficium cedendarum actionum, que colocava o fiador que cumprisse a obrigação afiançada na posição do credor, foi no direito francês, no século XVI, com o renascimento do direito romano, que se desenvolveu a construção de um princípio geral de substituição da pessoa do credor, por efeito do pagamento por terceiro, possibilitando-se ao solvens a utilização da relação obrigacional originária, como meio de obter o reembolso do pagamento de dívida alheia. Esta corrente doutrinária culminou na consagração, no Código de Napoleão, na secção respeitante ao pagamento das obrigações, nos artigos 1249. a 1252. (2), de um regime próprio de extinção de créditos denominado "pagamento com sub-rogação" (3).
Este acolhimento do mecanismo da sub-rogação pessoal no Código de Napoleão veio a ser seguido pela maioria das codificações posteriores, incluindo o nosso Código de Seabra (artigos 778.º a 784.º), tendo, contudo, o direito alemão se limitado a adotar, em determinadas situações, algumas manifestações deste princípio, atribuindo, designadamente, ao fiador solvens o direito de crédito por este satisfeito, contra o devedor principal (§ 774 do B.G.B.).
Através da figura da sub-rogação, a ordem jurídica admite que, aquele que satisfaz a obrigação de outrem utilize a relação obrigacional primitiva como um meio para obter o reembolso do que despendeu com o cumprimento.
Seguindo de perto o articulado proposto por Vaz Serra (4), o nosso Código Civil, nos artigos 589.º a 594.º, prevê duas espécies de sub-rogação: a voluntária e a legal, conforme a sua fonte constitutiva.
A sub-rogação voluntária tem na sua origem uma declaração de vontade do credor, prevista no artigo 589.º do Código Civil, ou do devedor, a qual pode, neste último caso, assumir duas modalidades distintas, diferenciadas nos artigos 590.º e 591.º do Código Civil.
A sub-rogação legal é a que resulta diretamente da lei, estando genericamente regulada no artigo 592.º do Código Civil e especialmente prevista noutras disposições deste diploma, como sejam os artigos 477.º, n.º 2, 717.º e 956.º, n.º 4, assim como em legislação avulsa (v.g. artigo 54.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, ou o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio).
Quando a sub-rogação se encontra prevista na lei é desnecessária qualquer declaração do credor ou do devedor, para que o solvens fique sub-rogado no direito de crédito satisfeito, passando a ocupar a posição do credor originário. Essa substituição da pessoa do credor decorre ope legis da satisfação do crédito, pelo que, numa situação dessas, co-existindo uma declaração sub-rogatória, a mesma é inócua, ocorrendo a sub-rogação por "vontade" da lei e não pela vontade manifestada nesse sentido pelo credor ou pelo devedor.
Relativamente às situações de pluralidade de fiadores, em que um deles paga o crédito afiançado, dispõe o artigo 650.º do Código Civil, no seu primeiro n.º (5), dedicado às situações de pluralidade de fianças, em regime de solidariedade:
Havendo vários fiadores, e respondendo cada um deles pela totalidade da prestação, o que tiver cumprido fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor e, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, contra os outros fiadores.
Este preceito, inspirado no disposto no § 774 do B.G.B. (6), provém do artigo 26.º do Anteprojeto sobre a matéria apresentado por Vaz Serra (7), resultando a sua redação, no essencial, da 1.ª Revisão Ministerial, dela constando que, em caso de pluralidade de fiadores, em regime de solidariedade, o confiador que satisfizer o crédito afiançado, fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor, reafirmando a solução que já resulta, quer do disposto no artigo 592.º, n.º 1, do Código Civil (regime geral da sub-rogação legal), quer do artigo 644.º do mesmo diploma, e também contra os outros fiadores, nos termos do regime das obrigações solidárias.
Se esta remissão para o regime das obrigações solidárias é coerente com o tipo de obrigação plural que unia os diferentes fiadores perante o credor, ao ter-se optado por aí consagrar um direito de regresso sobre cada um dos condevedores (artigo 524.º do Código Civil), sem que, neste domínio, exista uma sobreposição das figuras do direito de regresso e da sub-rogação, como havia idealizado VAZ SERRA (8), tal remissão criou um problema interpretativo sobre qual o tipo de direito que é conferido ao confiador solvens.
Na doutrina, alguns autores referem esse direito como um direito de regresso, conforme as regras da solidariedade (9). Explica ALMEIDA COSTA (10):
A redação do artigo 650.º não se apresenta muito feliz. Dados os seus termos, poderia pensar-se que o fiador que cumpriu fica sub-rogado nos direitos do credor tanto contra o devedor como contra os outros fiadores. Mas não oferece dúvidas que, em relação a estes últimos, se trata de um simples direito de regresso segundo as normas de solidariedade.
Já VAZ SERRA entende que estamos perante uma situação de sub-rogação legal (11), no que é seguido por JANUÁRIO GOMES que afirma (12):
Não nos parece, porém, que o artigo 650.º/1 consagre um 'mero' direito de regresso como pretensão alternativa à sub-rogação contra o devedor. Conforme resulta da própria letra do artigo 650/1, o fiador que, respondendo pela totalidade da prestação, tenha cumprido integralmente, ganha uma dupla sub-rogação: uma sub-rogação, digamos, total contra o devedor e, em alternativa, tantas subrogações parciais quantos os restantes confiadores.
Se é verdade que no nosso ordenamento jurídico o direito de regresso e a sub-rogação são figuras distintas (13), em que o primeiro é um direito constituído ex novo, na titularidade daquele que extinguiu um direito de crédito anterior, enquanto a sub-rogação coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito crédito por ele satisfeito, relativamente ao âmbito do direito que assiste ao confiador que satisfez o crédito afiançado sobre os outros confiadores as consequências do recurso a uma ou à outra figura são as mesmas.
Com efeito, independentemente do direito do confiador solvens ser um novo direito de regresso sobre os outros confiadores ou o anterior direito satisfeito, em cuja titularidade ele ingressou por sub-rogação legal, a obrigação de reembolso dos outros confiadores é limitada às quotas de cada um na garantia prestada, quotas essas determinadas pela especificidade das relações internas entre eles (14), presumindo-se, nos termos do artigo 516.º do Código Civil, a igualdade de quotas, na ausência de estipulação em contrário.
Na verdade, aqueles que entendem que estamos perante o direito de regresso previsto no artigo 524.º do Código Civil leem essa limitação do direito de reembolso sobre os outros confiadores na parte final deste preceito legal, utilizando depois a presunção estabelecida no artigo 516.º do mesmo diploma, enquanto aqueles que entendem que estarmos perante uma sub-rogação legal, conferem sentido à remissão para o regime das obrigações solidárias, constante do artigo 650.º do Código Civil, restringindo essa remissão precisamente para a referida parte final do artigo 524.º do Código Civil, limitando, assim, de igual modo, a sub-rogação apenas à quota de cada um na fiança plúrima prestada (15).
O disposto no artigo 650.º, n.º 1, do Código Civil, se, relativamente à sub-rogação contra o devedor, se limita a repetir o que já constava de outras disposições deste diploma (artigos 592.º, n.º 1 e 644.º), no que respeita ao direito de reembolso do confiador solvens contra os outros confiadores, prevê um regime específico ao remeter para as regras das obrigações solidárias.
Por isso, a existência de uma declaração sub-rogatória emitida pelo credor, aquando da satisfação do crédito por um dos confiadores, se é inócua relativamente à sub-rogação legal contra o devedor, prevista, não só na 1.ª parte do n.º 1, do artigo 650.º, do Código Civil, mas também, nos referidos artigos 592.º, n.º 1, e 644.º do mesmo diploma, no que respeita ao direito de reembolso do confiador solvens contra os outros confiadores, é ineficaz face à aplicação das regras das obrigações solidárias, por determinação da 2.ª parte do n.º 1, do artigo 650.º do Código Civil.
Apesar do conceito de terceiro abranger toda a pessoa que à data do cumprimento não ocupe a posição de devedor, quando esse terceiro tiver garantido o cumprimento, como sucede com o fiador, ou quando, por outra causa, estiver diretamente interessado na satisfação do crédito, este transmite-se por sub-rogação legal para o terceiro solvens (artigo 592.º, n.º 1, do Código Civil) e não por sub-rogação convencional (16).
A simples vontade do credor, mesmo que tenha o acordo do confiador solvens e até do devedor, não é suficiente para afastar o regime definido na lei para as consequências que resultam da satisfação do crédito por um dos confiadores.
O princípio da autonomia privada se, nos domínios onde a lei não dispõe de modo imperativo, confere às partes o direito de definirem as relações jurídicas entre elas, também exige a sua livre participação nessa definição, não admitindo que ela resulte de atos de terceiro ou de acordos a que elas são alheias. Na dimensão do princípio da relatividade dos contratos, estes são res inter alios acta, não sendo idóneos a prejudicar a posição de terceiros, apenas produzindo efeitos entre as partes. Como consta do artigo 406.º, n.º 2, do Código Civil, em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei.
Daí que a sub-rogação voluntária, por declaração do credor, não seja idónea a afastar a aplicação do regime previsto no artigo 650.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Civil, nem sequer a constituir um meio alternativo do confiador solvens obter o reembolso do pagamento efetuado, uma vez que a vontade destes não é suficiente para impor aos restantes confiadores um regime diferente daquele que a lei prevê para estas situações.
Se é lícito aos confiadores definirem entre si as relações internas, designadamente as quotas da contribuição de cada um na satisfação do crédito afiançado, não pode uma simples declaração sub-rogatória do credor permitir que o confiador solvens exija de qualquer um dos outros confiadores a satisfação integral do crédito que foi objeto da sub-rogação, interferindo e desvirtuando o regime das relações entre os confiadores (17).
*

Aplicando esta jurisprudência obrigatória ao nosso caso, resulta cristalina a solução: a satisfação do crédito por um dos confiadores não prejudica, interfere ou desvirtua o regime legal das relações entre os confiadores, por excesso ou por defeito.

Em consequência, a aplicação das regras das obrigações solidárias, por determinação da 2.ª parte do n.º 1 do art. 650º do Código Civil não é afastada por  alegada extinção por «confusão» do crédito, improcedendo a excepção invocada a este respeito.

E já isso nos ensinava Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 7ª edição, vol. I, pg. 771:
Regime especial tem o caso da confusão entre a qualidade de credor e de condevedor solidário. (…) Os (condevedores restantes) continuam devedores solidários, agora perante (o condevedor que satisfez), mas deduzindo à prestação integral a quota correspondente ao antigo devedor (art. 869º, 1). Trata-se, assim, de um facto pessoal que, todavia, pode ser invocado pelos outros obrigados, a quem aproveita na medida da quota correspondente ao devedor a quem o facto se refere.

E não se invoque qualquer limitação emergente da causa de pedir, na medida em que, desde o início, desde a petição inicial, que o autor circunscreve o seu pedido à alegada quota-parte da obrigação do réu, enquanto condevedor solidário, em virtude da fiança assumida.

Recorde-se, para tanto, o seguinte trecho da petição inicial:
25°
Em 28.10.2019, foi o ora Réu notificado, no âmbito do processo n.° 17176/19.6T8LSB, da Cessão de Créditos, celebrada entre o Autor e a "Companhia de Seguros D", em 30.12.2002 - cópia da certidão de notificação que se junta como Doc. n.° 37 e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

26°
Considerando-se, na mesma data, atento o teor da notificação judicial avulsa, interpelado para proceder ao pagamento do crédito cedido, no montante de € 49.879,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), correspondente a metade do valor pago pelo Autor à "Companhia de Seguros D", sendo essa a medida da responsabilidade do Réu enquanto co- fiador.

Determinar se, no caso, o invocado direito de reembolso do confiador solvens contra o outro confiador é exigível e pelo valor peticionado, depende, contudo, da apreciação das restantes excepções invocadas, que extravasam o âmbito deste recurso.
Daí a procedência da apelação, devendo os autos prosseguir para apreciação das restantes excepções invocadas..
*

V.–A decisão
                                           
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na procedência da apelação, revogar a decisão recorrida, julgar improcedente a excepção de extinção, por confusão, do crédito peticionado e determinar o prosseguimento dos autos, para apreciação das restantes excepções invocadas.
Custas pelo apelado.
*


Lisboa, 7 de Abril de 2022



Nuno Lopes Ribeiro
Gabriela Fátima Marques
Adeodato Brotas