Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2210/12.9TVLSB.L1-1
Relator: EURICO REIS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
DECISÃO DANOSA
TRÂNSITO EM JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não é inconstitucional interpretar o n.º 2 do art.º 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, com o sentido de que o direito a indemnização previsto e regulado nos artigos 22º da Constituição da República e 12º a 14º desse Regime Jurídico, só existe se a decisão ou deliberação criticada (a dita “decisão danosa”) não se tiver tornado definitiva e antes tiver sido derrogada por uma instância superior competente por ter sido considerada manifestamente inconstitucional ou ilegal ou por estar viciada/injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto que a sustentam.
2. Não tendo, como legalmente poderia ter acontecido, o Acórdão do STJ criticado pelo Autor sido objecto de qualquer tipo de recurso e tendo o mesmo transitado definitivamente em julgado, tornando-se, deste modo, inderrogável, não está verificada a exigência legal inscrita nesse n.º 2 do art.º 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, e, por essa razão, o tem Réu E. P. forçosamente de ser absolvido de um tal pedido de indemnização que contra ele tenha sido  formulado na correspondente acção judicial.

(Sumário do Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


1. D.G intentou contra o E. P. a presente acção declarativa com processo comum e forma ordinária que, sob o n.º …, foi tramitada pela ….., e na qual, logo com o despacho saneador, foi proferida a decisão com valor de sentença que se estende por fls 353 a 374 dos autos e cujo decreto judicial tem o seguinte teor:
Decisão: pelo exposto, julgo a presente acção improcedente, por falta de fundamento legal e, em consequência, absolvo o E. P. do pedido de indemnização formulado pelo autor D.G. .
Custas desta acção a cargo do autor, por ter ficado vencido, nos termos do disposto no artigo 527º, nºs 1 e 2 do CPC.
Registe e notifique. ...” (sic - fls 374).

Inconformado com essa decisão, o Autor dela recorreu (fls 377), rematando as suas alegações com o pedido de que seja “… o presente recurso … julgado procedente e a sentença revogada, condenando-se o Réu Estado no pedido – com todas as consequências legais...” (sic - fls 417).
E, para sustentar essa pretensão, formula esse apelante as seguintes 6 saudavelmente sucintas conclusões que constam fls 416 a 417:
“a) - Nenhuma das cláusulas do contrato de fls.222 a 225 …poderiam ser aplicadas, porquanto este contrato não foi rescindido pelo então e ora Autor, nem pela B. , sendo certo que este contrato só vigorou até 30 de Setembro de 2003, sendo substituído pelo contrato de fls. 226 a 228, este sim rescindido por iniciativa do Autor por invocada e provada justa causa.
b) – Verificando-se, como se verificou, uma situação de rescisão da iniciativa do Autor, com justa causa, a situação regular-se-ia pelo Código do Trabalho ou, como vinha sendo, e foi, entendimento do Supremo, pela Lei 28/98 - nunca por quaisquer normas do contrato colectivo de trabalho ou do contrato individual de trabalho, expressamente afastadas pelas partes contratantes.
c) – Todos os titulares dos órgãos que foram chamados a decidir, deram como assente em matéria de facto a revogação do primeiro contrato pelo segundo, ou seja, que a cláusula décima segunda do primeiro contrato foi revogada por aquele segundo contrato, não sendo passível de alteração.
d) – Os senhores Conselheiros que votaram o acórdão de fls. 326 a 344, alteraram ilicitamente a matéria de facto, por eles próprios dada como assente, proferindo uma decisão jurisdicional manifestamente inconstitucional e ilegal e injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
e) – Na sentença recorrida, ao decidir como decidiu, negando fundamento legal ao pedido do Autor, o Mº Juiz violou o artigo 22º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.
f) – O nº 2 do artº 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, na interpretação dada pelo senhor Juiz a quo, enferma de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13º e 22º da Constituição da República Portuguesa.” (sic - corrigindo um evidente lapso de escrita que consta da 1ª conclusão).

O Réu (fls 423 a 449) contra-alegou, pugnando, pela improcedência da apelação e consequente confirmação da sentença recorrida, formulando as seguintes também saudavelmente sucintas 7 conclusões:
“1. Contrariamente ao que o Apelante invoca a douta sentença apelada não enferma de nenhum «erro» quanto à interpretação e aplicação ao caso do art.º 13.º n.º 2 Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.
2. Essa norma tão pouco poderia deixar de ser aplicada ao caso, como foi, pois é certo que ela não comporta, em si, qualquer violação dos princípios consagrados nos artigos 13.º e 22.º da CRP, nem estes resultam ofendidos pela sua concreta interpretação e aplicação ao caso.
 3. Ao invés, será de convir que a exigência legal da prévia revogação da decisão danosa visa subtrair a apreciação e discussão do «erro judiciário» do âmbito da acção indemnizatória, conciliando desse modo as disposições dos artigos 22.º e 205.º n.º 2 da CRP.
4. A douta sentença apelada não merece portanto nenhum dos reparos que o Apelante lhe comete, muito menos a sua peticionada revogação.
5. Mesmo que assim não fosse, nem por isso haveria razão para operar a sua substituição por inversa condenação do Estado no pedido, pois sempre se imporia a improcedência da demanda, atenta a flagrante impossibilidade de ser aqui, e por essa via, sindicada a correcção da decisão final e definitiva da anterior acção laboral, ditada em última instância de recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça, quando ademais seria destinada a obter o reconhecimento de que fosse ali a devida a revogada decisão condenatória das Instâncias, em detrimento da decisão do Supremo, e de molde a que, por essa nova reapreciação do mérito daquela acção, viesse agora, aqui e à custa do Estado/Apelado, a ser atribuída ao Apelante a mesma indemnização que ali não obteve.
6. Acresce em todo o caso que não poderia nunca ser reconhecido o pretenso «erro decisório» da questionada e douta decisão do Supremo, fosse ele traduzido na incorrecta interpretação da lei aplicada, na indevida consideração da matéria de facto provada ou na pretensa aplicação de normas manifestamente inconstitucionais, que em nenhum desses aspectos ocorreu e se poderia alguma vez ter por verificado, tanto mais quanto essas questões foram já suscitadas em indeferida reclamação e rejeitado recurso para o Tribunal Constitucional, pelo que, também por isso e em última análise, se imporia sempre a improcedência da acção.
7. Improcedem, assim, todas as conclusões da apelação em resposta.” (sic - fls 447 a 449).

E estes são os contornos da lide que a este Tribunal Superior cumpre julgar.

2.1. Considerando o conteúdo das conclusões das alegações do ora apelante (as quais são aquelas que delimitam o objecto do recurso, impedindo esta Relação de conhecer outras matérias), as questões a dirimir nesta instância de recurso são, por ordem cronológica, as seguintes:

- ao decidir como decidiu na sentença recorrida, o Mmo Juiz a quo violou o disposto nos artºs 22º da Constituição da República Portuguesa e 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro?

- o nº 2 do artº 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, na interpretação que lhe foi dada pelo Mmo Juiz a quo na decisão recorrida, enferma de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13º e 22º da Constituição da República Portuguesa?

E sendo esta a matéria que compete apreciar, tal se fará de imediato, por nada obstar a esse conhecimento e por estarem cumpridas as formalidades legalmente prescritas, tendo sido oportunamente colhidos os Vistos dos Ex.mos Desembargadores Adjuntos.

3. Em 1ª instância foram declarados provados os seguintes factos:
“1) O autor intentou, no Tribunal do Trabalho do Porto, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente do contrato individual de trabalho, contra “B.”, pedindo, além do mais, que a ali ré fosse condenada a pagar-lhe a indemnização de € 91.300,00, devida pela resolução com justa causa, que operou, do vínculo laboral firmado entre as partes.
2) Instruída e discutida a causa, veio a 1ª instância a lavrar sentença que, na procedência da acção, condenou a ali ré a pagar ao autor, além do mais, a quantia de € 91.300,00, a título de indemnização pela resolução do contrato de trabalho com justa causa, com o acréscimo dos juros de mora, à taxa legal, desde 16/8/2004 até integral pagamento.
3) A ali ré apelou, sendo que o Tribunal da Relação do Porto confirmou na íntegra a sentença impugnada.
4) Novamente inconformada, a ali ré pediu a revista, que foi concedida por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 2009, já transitado em julgado, através do qual a referida ré foi absolvida do pedido indemnizatório deduzido pelo autor, revogando-se, nessa parte, o acórdão impugnado.
5) Este acórdão tem o conteúdo seguinte:
“1- RELATÓRIO
1.1.
D.G. intentou, no Tribunal do Trabalho do Porto, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente do contrato individual de trabalho, contra “B.”, pedindo, além do mais, que a Ré seja condenada a pagar-lhe a retribuição atinente ao mês de Julho de 2004 – € 8.300,0 – e a indemnização de € 91.300,00, devida pela resolução com justa causa, que operou, do vínculo laboral firmado entre as partes.
No seu instrumento contestatório, a Ré nega a verificação da justa causa resolutiva invocada pelo Autor, mais aduzindo que, sem embargo de tal, sempre importaria deduzir, à eventual indemnização que lhe fosse devida, o valor correspondente às remunerações que o demandante recebeu, entre Agosto de 2004 e Junho de 2005, ao serviço do P. .
1.2.
Instruída e discutida a causa, veio a 1ª instância a lavrar sentença que, na procedência da acção, condenou a Ré a pagar ao autor:
“- a quantia de € 8.300,00 (oito mil e trezentos euros) a título de remuneração relativa ao mês de Junho de 2004;
- a quantia de € 91.300 (noventa e um mil e trezentos euros) a título de indemnização pela resolução do contrato de trabalho com justa causa. A estas quantias acrescem juros de mora, à taxa legal, desde 16/8/2004 até integral pagamento”.
Debalde apelou a Ré, porquanto o Tribunal da Relação do Porto confirmou na íntegra a sentença impugnada.
1.3.
Mantendo-se irresignada, a Ré pede a presente revista, onde convoca o seguinte quadro conclusivo:
1 - a dedução dos valores referidos no art. 40º do CTT não contraria em nada o regime legal da cessação do contrato de trabalho. Decorre da responsabilidade civil contratual onde radica este regime. Com ou sem cláusula do CCT, à indemnização estabelecida no n.º 3 do art. 443º do CT sempre seriam dedutíveis os valores percebidos pelo trabalhador em razão da resolução do seu contrato, como o seriam caso se tratasse do seu despedimento ilícito;
2 - na base do art.º 443º estão os arts. 562º e segs. do C. Civil, relativos à chamada “obrigação de indemnização”;
3 - o empregador deve colocar o trabalhador na situação em que este se encontraria se o contrato fosse exactamente cumprindo, maxime indemnizando-o pelo lucro cessante, isto é, pelos benefícios que deixou de obter em consequência da cessação do contrato;
4 - este lucro cessante é, precisamente, a perda das retribuições relativas ao período que medeia entre a data da cessação (neste caso, da resolução unilateral) e a data prevista para a caducidade do contrato;
5 - o art. 40º do CCT, ao admitir que àquele valor deverão ser deduzidas as retribuições que venha a receber no exercício da mesma actividade, consagra, tão-somente, a regra civilística da “compensatio lucri cum damno”, nos termos da qual sempre que o facto constitutivo de responsabilidade tenha produzido ao lesado, não apenas danos, mas também lucros, estes devem compensar-se com aqueles;
6 - ao declarar nulo o art. 40º do CCT dos treinadores de Futebol, a sentença recorrida violou os arts. 383º n.ºs 2 e 3 do CT e 562º e segs. do C. Civil;
7 - o art. 40º n.º 1 do CCT deve, pois, ser considerado incontroversamente legal;
8 - sendo, em consequência, a indemnização que ao recorrido couber deduzida das retribuições que auferiu pela mesma actividade no período em causa, ao serviço do F.C.P. SAD;
9 - o que se traduz na inexistência de qualquer indemnização, porque inexistente qualquer dano ou prejuízo;
Mesmo que assim se não entenda,
10 - à luz do Ac. deste S.T.J. de 24/1/04, proferido no Processo n.º 06S1821, existindo uma lacuna legislativa no que concerne à especificidade da relação laboral desportiva estabelecida com treinadores desportivos profissionais, é, nos termos do art. 10º do Código Civil, aplicável analogicamente aos contratos de trabalho celebrados com estes treinadores o regime jurídico do praticante desportivo, designadamente no que concerne a dois aspectos fundamentais: à temporalidade dos contratos e aos critérios de reparação no quadro da cessação do contrato;
11 - o art. 27º n.º 1 da Lei n.º 28/98, de 26 de Junho (LCTTD) estabelece que no caso de rescisão com justa causa por iniciativa do praticante desportivo, o empregador “incorre em responsabilidade civil pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato, não podendo a indemnização exceder o valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato de trabalho tivesse cessado no seu termo”
12 - ou seja, o cômputo indemnizatório decorrerá da comprovação dos danos causados, não podendo ultrapassar (limite máximo) o montante das retribuições vincendas;
13 - exactamente o inverso do previsto no art. 443º n.º 3 do C.T., na interpretação que lhe foi dada pelo Acórdão recorrido;
14 - ou seja, a indemnização a que o recorrido podia almejar na sequência da sua resolução contratual teria de se fundar na estatuição do art. 27º da LCTTD;
15 - assim sendo, a procedência do pedido indemnizatório dependeria da alegação e prova de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo recorrido;
16 - ao determinar o “quantum” indemnizatório independentemente da existência e prova, a sentença recorrida violou, pois, o referido preceito legal, aplicável analogicamente, nos termos do mencionado art. 10º;
Termos em que deve ser concedida a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e, em consequência, absolvendo-se a recorrente do pedido de indemnização formulado pelo Autor.
1.4.
 O Autor contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
1.5.
No mesmo sentido, e com a expressa discordância da ré, se pronunciou a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta.
1.6.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2 - FACTOS
Sem prejuízo de virem a ser pontualmente convocados os factos tidos por pertinentes, dá-se aqui por inteiramente reproduzida a factualidade firmada pelas instâncias, que não vem censurado nem se afigura passível de alteração – 713º n.º 6 e 726º do Código de Processo Civil.;
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3- DIREITO
3.1.
A controvérsia das partes, nesta fase recursória, mostra-se circunscrita a uma única questão:
- a de saber como deve ser calculada a indemnização devida ao Autor que, na sua qualidade de treinador de futebol profissional, resolveu com justa causa o contrato de trabalho que o ligava à Ré.
Com efeito, é já pacífico, nesta etapa adjectiva, que estamos perante um vínculo laboral a termo e que ao Autor assistia motivo bastante para operar, como fez, a sua resolução.
No que especificamente concerne à vertente indemnizatória, como agora releva, considerou, em síntese, o Acórdão em crise:
- por virtude do disposto no art. 443º n.º 3 do Código do Trabalho de 2003, que entendeu convocável no caso, a resolução do contrato de trabalho a termo, acobertado em justa causa objectiva, confere ao trabalhador uma indemnização que não pode ser inferior à quantia correspondente às retribuições vincendas;
- esse valor mínimo tem natureza imperativa, atento o disposto no art. 383º n.ºs 1 e 3 do mesmo Código, já que os valores das indemnizações só podem ser regulados por instrumento de regulamentação colectiva dentro dos limites fixados no Código do Trabalho;
- por isso, nos termos conjugados dos arts. 14º n.º 1 da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, e 533º n.º 1 al. a) do mencionado Código, deve ser considerado nulo o segmento do art. 40º n.º 1 do CCT aplicável, na parte em que prevê a dedução, no cômputo indemnizatório, das retribuições que o treinador de futebol haja eventualmente auferido durante o período remanescente do contrato resolvido.
Em conformidade com o entendimento assim expresso, confirmou integralmente a sentença da 1ª instância, dado que o valor da indemnização nela fixada respeitou a previsão do falado art. 443º n.º 3.
Censura a recorrente a tese sufragada pelo Acórdão, coligindo, para tal, a seguinte fundamentação:
- como o regime geral da responsabilidade civil – onde se insere a vertente indemnizatória plasmada no Código do Trabalho – consagra o princípio nuclear de que a entidade patronal deve colocar o trabalhador na situação em que este se encontraria se o contrato fosse exactamente cumprido, maxime indemnizando-o pelo lucro cessante, isto é, pela perda das retribuições atinentes ao período que medeia entre a data da cessação e a data prevista para a caducidade do vínculo, sempre seriam dedutíveis, no cômputo indemnizatório, os valores entretanto percebidos pelo trabalhador em momento ulterior à resolução operada;
- o art. 40º do CCT limita-se a consagrar essa dedução, devendo ser considerado, por isso, “incontroversamente legal”;
- sem embargo – e na esteira do Acórdão deste Supremo Tribunal de 24/1/07 (revista n.º 1821/06) – por aplicação analógica, ao caso vertente, do regime jurídico do praticante desportivo, a indemnização devida ao Autor teria de se ancorar no art. 27º n.º 1 da Lei n.º 28/98, de 26 de Junho, segundo o qual não poderá tal indemnização exceder o valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato tivesse cessado no seu termo;
- como o sobredito preceito estabeleceu um valor ressarcitório máximo, a indemnização a que o Autor poderia almejar dependeria da alegação e prova – que ele não fez – dos danos patrimoniais e não patrimoniais efectivamente sofridos.
3.2.
Antes de enfrentar a questão que nos é colocada, importa coligir a factualidade, pacificamente firmada pelas instâncias, que com ela se conexiona directamente:
a) Por documento escrito denominado “contrato de trabalho desportivo” e datado de 1/7/2003, que constitui o documento de fls. 10, cujo teor se dá por reproduzido, o autor obrigou-se a prestar, ao serviço e em representação da ré, a sua actividade de treinador, para exercer as funções de treinador de guarda-redes, durante duas épocas desportivas, com início em 1/7/2003 e termo em 30/6/2005;
b) em contrapartida, a ré obrigou-se a pagar ao autor a remuneração mensal ilíquida de €7.000,00 (sete mil euros), perfazendo o valor total de € 168.000,00 (cento e sessenta e oito mil euros), estando já incluídos os subsídios de férias e de Natal;
c) em aditamento ao contrato referido em a), e na mesma data, a ré, através dos documentos escritos juntos a fls. 11 e 12 dos autos, cujo teor se reproduz, comprometeu-se a providenciar um apartamento até ao valor mensal de €1.300,00, e uma viagem L../N../L… para o autor, esposa e filhas por cada época desportiva;
d) com data de 1/10/2003, o autor e a ré outorgaram documento escrito, denominado “contrato de prestação de serviços”, que constitui o documento de fls. 72 a 74, cujo teor se dá por reproduzido, pelo qual acordaram que o autor prestaria os seus serviços como treinador de guarda-redes junto da equipa principal da Ré, mediante remuneração no montante global de € 174.3000,00, pelo período do contrato, em vinte e uma prestações mensais, iguais e sucessivas, a serem liquidadas no último dia útil do mês a que dissessem respeito;
e) acordaram ainda através do documento referido em d), que o contrato teria o seu início no dia 1/10/2003 e o seu termo no dia 30/6/2005, revogando o contrato referido em a);
f) o autor continuou a exercer a sua actividade de treinador de guarda-redes junto da equipa principal, sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré, nos mesmos termos que vinha exercendo;
g) no dia 16/8/2004, o autor enviou à ré, via fax, a carta que constitui o documento de fls. 13 e 14, cujo teor se reproduz, resolvendo o contrato com efeitos a partir da recepção da carta, com fundamento na falta culposa de pagamento da retribuição de Julho de 2004, na violação de garantias legais e convencionais, na lesão de interesse patrimoniais e na ofensa à sua integridade moral, honra e dignidade;
h) por contrato escrito que constitui o documento de fls. 175 a 177, cujo teor se reproduz, o autor comprometeu-se a prestar à P., em regime de exclusividade, os seus serviços como técnico-adjunto da equipa de futebol sénior, mediante o pagamento da quantia global ilíquida de € 120.000,00 por época desportiva, em doze prestações mensais, por duas épocas desportivas, com início em 19/8/2004 e termo em 30/6/2006;
i) no período compreendido entre Agosto de 2004 e Junho de 2005, a P.  pagou ao autor as quantias descriminadas nos documentos de fls. 188 a 198, cujo teor se reproduz.
3.3.1.
Até á fase alegatória da presente revista, sempre as partes – e também as instâncias – enquadraram normativamente a questão indemnizatória mediante um simples confronto entre o CCT aplicável (Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a A. e a L.) e o Código de Trabalho de 2003, em cuja vigência temporal se operou a questionada resolução vinculística.
Com efeito, só nas vertentes alegações recursórias é que a Ré – convocando o já citado Acórdão deste Supremo de 24/1/2007 – veio admitir, pela primeira vez, a aplicação analógica do novo “regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo”, condensado na Lei n.º 28/98, de 26 de Junho.
Estando, patentemente, no domínio da indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nada impede a incursão deste Supremo Tribunal (que até seria sempre oficiosa – art. 664º do Código de Processo Civil) neste confronto alargado sobre o bloco normativo efectivamente atendível.
O sobredito Acórdão de 24/1/2007 (subscrito por quatro adjuntos, nos termos do art. 728º n.º 1 e 2 do C.P.C., entre os quais o ora relator e o Ex.mo Conselheiro Pinto Hespanhol) começa por afirmar que o contrato de trabalho do praticante desportivo constitui uma espécie própria de vinculação laboral, cujo regime normativo – a anunciada Lei n.º 28/98 – consagra as especificidades da relação jurídica que se propõe regular.
Logo após, e sem embargo de entender que um treinador de modalidades desportivas não deve ser qualificado como praticante desportivo, nos termos e para os efeitos enunciados no aludido diploma, acaba por sufragar o entendimento de que a falta de regulação própria para os contratos de trabalho de outros agentes desportivos, designadamente dos treinadores, não determinava, sem mais, a aplicação da lei geral do trabalho, antes impunha, face a uma reconhecida lacuna de previsão, o recurso aos instrumentos de integração previstos no art. 10º do Código Civil e, por via deles, a aplicação, a tais agentes, do regime vertido na Lei n.º 28/98.
Nesse sentido, ali se exarou como segue:
“... a existência de uma verdadeira lacuna de previsão resulta do facto do próprio legislador reconhecer (...) as especialidades que a actividade desportiva comporta neste preciso domínio e a manifesta dificuldade do regime geral do contrato de trabalho para dar cabal resposta a essas especificidades, o que convoca, por força dos princípios gerais, o recurso aos instrumentos de integração previstos no art.º 10º do Cod. Civil e, por esta via, ao regime especial do CTPD, por valerem na situação em causa as razões justificativas da concreta regulamentação normativa da Lei n.º 28/98”.
Em abono da solução alcançada, discorreu-se que o universo desportivo constitui uma realidade socialmente diferenciada, que tem vindo a ser regulada, numa prática constante e generalizada, em termos que se afastam, nos aspectos fundamentais, das leis gerais do trabalho (seja quanto à temporalidade do vínculo, seja quanto à inexistência do direito à reintegração em caso de despedimento sem justa causa, seja mesmo quanto ao cálculo da indemnização em caso de ruptura unilateral).
Continuamos a subscrever por inteiro a tese acolhida pelo Acórdão em análise e, transpondo-a para o concreto dos autos, somos a rejeitar liminarmente a aplicabilidade ao caso do Código do Trabalho, havendo antes que convocar a normação da Lei n.º 28/98.
3.3.2.
Sob a epígrafe “Cessação do Contrato de trabalho desportivo”, dispõe o artigo 26º daquela Lei:
“1- O Contrato de trabalho desportivo pode cessar por:
a) (...);
b) (...);
c) Despedimento com justa causa promovido pela entidade empregadora desportiva;
d) Rescisão com justa causa por iniciativa do praticante desportivo;
e) (...);
f) (...);
g) (...).
2- (...).
No tocante à “Responsabilidade das partes pela cessação do contrato”, preceitua, por sua vez, o sequente artigo 27º:
“1- Nos casos previstos nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo anterior, a parte que der causa à cessação ou que a haja promovido indevidamente incorre em responsabilidade civil pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato, não podendo a indemnização exceder o valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato de trabalho tivesse cessado no seu termo.
2- (...).
3- Quando, em caso de despedimento promovido pela entidade empregadora, caiba o direito à indemnização prevista no n.º 1, do respectivo montante devem ser deduzidas as remunerações que, durante o período correspondente à duração fixada para o contrato, o trabalhador venha a receber pela prestação da mesma actividade a outra entidade empregadora desportiva”.
Como se vê, o transcrito preceito parifica, no seu n.º 1, as situações de despedimento e de resolução pelo trabalhador, onerando o prevaricador com o pagamento de uma indemnização à parte lesada “pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato”.
Mas vai mais longe: consagra um limite indemnizatório máximo, enquanto guarda absoluto silêncio sobre um seu eventual limite mínimo.
Idêntica paridade já não se antolha, porém, no seu n.º 3: a dedução remuneratória aí prevista vem circunscrita ao “...caso de despedimento promovido pela entidade empregadora”.
É altura de referir que as partes inseriram, no convénio inicialmente aprazado, uma cláusula do seguinte teor:
“Décima segunda”
“Aos casos omissos no presente contrato aplicam-se as disposições do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a A. e a L.”.
Sucede que esse CCT (publicado no BTE, 1ª Série, n.º 27, de 22/7/97 e com PE no BTE, 1ª Série, n.º 37, de 10/10/97) estipula, no seu art. 40º n.º 1:
“A rescisão do contrato com fundamento nos factos previstos no n.º 1 do artigo anterior confere ao treinador o direito a uma indemnização correspondente ao valor das retribuições que lhe seriam devidas se o contrato tivesse cessado no seu termo, deduzidas das que eventualmente venha a auferir pela mesma actividade durante o período em causa”.
Não se vê que esta norma convencional, no confronto com o art. 27º n.º 1, possa ser entendida como mais penalizante para o trabalhador:
- sendo embora certo que manda operar a dedução contemplada na sua parte final – e o texto legal não o faz – não é menos verdade que quantifica expressamente o montante da indemnização, fazendo-o sempre pelo limite máximo estabelecido no mencionado preceito.
Por outro lado, ainda que o art. 27º n.º 3 reserve a sua previsão dedutiva para os casos de despedimento, também se não alcança que a Lei n.º 28/98 contenha alguma normação imperativa que impeça as partes de subscrever, em regulamentação convencional, regime idêntico para os casos de resolução com justa causa por banda do trabalhador.
De resto, sendo notória a similitude entre as situações factuais que suportam um despedimento ilícito e uma resolução com justa causa – ambas se ancoram num comportamento infraccional do empregador – mal se entende que a lei, ao menos expressamente, tenha reservado a faculdade dedutiva para as situações de despedimento.
Somos a concluir, pois, pela directa aplicação da falada norma convencional.
Sendo assim, resta recuperar a factualidade atendível, de onde se evidencia que o Autor:
- auferia, ao serviço da Ré, um vencimento mensal líquido de €8.3000,00 até ao termo do contrato, previsto para 30/6/05, pelo que a indemnização a seu favor ascenderia a €91.300 (€ 8.300 x 11) como, de resto, vem peticionado;
- auferiu, ao serviço do F.C.P., entre 1 de Agosto de 2004 e 30/6/05, a quantia global de €77.357,75, à qual importa adicionar o valor dos “vales” descontados durante o mesmo período, num total de €44.455,14.
O confronto das duas verbas evidencia que as retribuições auferidas pelo Autor, durante o período relevante, excederam o valor da indemnização que lhe era devida pela Ré.
Como assim, nada por esta lhe é devida.
3.3.3.
Mas, a nosso ver, a situação não seria diferente se fosse de convocar apenas o regime legal, enunciado no art. 27º n.º 1 da Lei n.º 28/98.
Nesse caso – já o sabemos – teríamos apenas um tecto para o cômputo indemnizatório mas, ao invés, não teríamos um limite mínimo.
Esse quadro normativo consequencia, naturalmente, que sobre o demandante recaia o ónus de alegar e provar os danos, patrimoniais e não patrimoniais, efectivamente suportados, pois só assim poderá o tribunal conferi-los, relevá-los e quantificá-los.
No caso dos autos, o Autor limitou-se a aduzir, na petição inicial, que:
“18º”
“Os comportamentos da R., que ficaram descritos, constituem justa causa de resolução do contrato pelo A. – art. 441º, 2 do Código de Trabalho:
- falta culposa do pagamento pontual da retribuição;
- violação culposa das garantias legais e convencionais do A.;
- lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador;
- ofensa à honra e dignidade do A.
Em consequência (sublinhado nosso),
19º
E nos termos do art. 443º, 3 do Código do Trabalho, tem o A. direito a uma indemnização não inferior à quantia correspondente às retribuições vincendas, isto é, a Euros 91.300,00 (8.300,00 x 11), acrescida de juros de mora à taxa legal contados da data da citação”.
Como se vê, o Autor não dá a menor notícia dos danos sofridos, quiçá por haver invocado o art. 443º n.º 3 do Código do Trabalho de 2003 e por certamente entender que, à luz desse normativo, a indemnização reclamada decorria, em quantitativo legalmente taxado, do mero reconhecimento de que a resolução se produzira com justa causa.
Mas, com o devido respeito, não é assim.
Por um lado, os danos previstos no art. 443º são apenas os danos conexos com a perda do emprego, havendo que destrinçar entre estes e aqueles que, servindo embora de fundamento à resolução do contrato, emergem de factos ilícitos e culposos causados pelo empregador (cfr. Júlio Vieira Gomes in “Direito do Trabalho”, 2007, 1º vol., pág. 10063).
O mesmo sucede com os danos ressarcíveis à luz do art. 27º n.º 1 da Lei n.º 28/98.
Por outro lado, consigna este preceito que “...a parte que der causa à cessação ou que a haja promovido indevidamente incorre em responsabilidade civil pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato...”.
Comentando tal normativo, escreve João Leal Amado:
“Somos assim remetidos para as disposições civilísticas, designadamente para os arts. 562º e ss. do C. Civil, relativos à chamada “obrigação de indemnização”, sendo que, de acordo com o princípio nuclear consagrado nesse art. 562º, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. Vale isto por dizer que o empregador deve colocar o praticante na situação em que este se encontraria se o contrato fosse exactamente cumprido, maxime indemnizando-o pelo lucro cessante, isto é, pelos benefícios que o praticante deixou deobter em consequência do despedimento ilícito (v. o art. 564º/1 do C. Civil)” (in “Vinculação Versus Liberdade O Processo de Constituição e Extinção da Relação Laboral do Praticante Desportivo”, págs. 304 e 305).
Mais esclarece este Autor que consiste “... este lucro cessante, basicamente, na perda das retribuições relativas ao período que medeia entre a data do despedimento [ou, dizemos nós, da resolução justificada] e a data prevista para a caducidade do contrato”.
No caso vertente – e á míngua de qualquer alegação que justificasse posicionamento diferente – apenas sabemos que a perda das retribuições, decorrente da resolução vinculística, foi compensada pelos proventos auferidos, durante o mesmo período, pela prestação de actividade laboral similar a favor de outra entidade desportiva.
Da assinalada insuficiência probatória sempre haveria de se ressentir a pretensão do Autor – art. 516º do C.P.C. – onerado que estava com o respectivo ónus – art. 342º n.º 1 do C.C.
_____//_____
4- DECISÃO
Em face do exposto:
A - concede-se a revista;
B – absolve-se a Ré do pedido indemnizatório deduzido pelo Autor, revogando-se, nessa parte, o Acórdão impugnado que confirmara, no que a tal respeita, a sentença da 1ª instância.
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Custas da Revista pelo Autor e, nas instâncias, por ambas as partes, na
proporção do seu decaimento”.” (sic - fls 354 a 369).

4. Discussão jurídica da causa.

4.1. Ao decidir como decidiu na sentença recorrida, o Mmo Juiz a quo violou o disposto nos artºs 22º da Constituição da República Portuguesa e 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro?

4.1.1. Ao iniciar a análise crítica do recurso intentado pelo apelante, é útil recordar a argumentação usada pelo Mmo Juiz “a quo” para sustentar o seu decreto judicial absolutório, a qual é a seguinte:
“O regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função jurisdicional rege-se actualmente pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17/07.
A responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional está especialmente inserida no capítulo III, que abrange os artigos 12.º a 14.º, epigrafados de regime geral, responsabilidade por erro judiciário e responsabilidade dos magistrados, respectivamente.
Nos termos do disposto no artigo 13.º, n.º 1 da Lei citada, “sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.”
Por seu turno, o n.º 2 do mesmo artigo dispõe que “o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.”
São, portanto, duas as situações previstas como fundamento da responsabilidade civil do Estado decorrente de decisão judicial cível: em primeiro lugar, que a decisão seja manifestamente inconstitucional ou ilegal (erro de direito); e, em segundo lugar, que tal decisão seja injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto (erro de facto).
É sabido que muitas das decisões impugnadas são revogadas, por via de recurso, em virtude dos tribunais superiores terem entendimento diverso do sufragado pelos tribunais inferiores quanto ao enquadramento jurídico da factualidade apurada, certo que, nos termos da lei processual civil vigente, e sem prejuízo do princípio da proibição de decisões surpresa, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigos 664.º do CPC de 1961 e 5.º, n.º 3 do CPC de 2013). E, algumas vezes sucede que os tribunais de 2ª instância revogam sentenças da 1ª instância e o Supremo Tribunal de Justiça revoga, por sua vez, as decisões das Relações, fazendo vingar as decisões da 1ª instância, tal como sucedeu, no caso presente.
O direito não é uma ciência exacta e a interpretação e aplicação das leis, muitas vezes de sentido pouco claro, demanda diversas sensibilidades e visões da vida por parte de quem tem de as aplicar aos casos concretos. Basta pensar nas divergências jurisprudenciais que existem sobre várias matérias e nos votos de vencido que, por via de regra, são apostos nos acórdãos uniformizadores de jurisprudência.
Pois bem, foi para obviar que o Estado viesse a ser sistematicamente demandado por tudo e por nada que veio a consagrar-se, no já citado artigo 13.º, n.º 1, que aquele só é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões quando estas sejam manifestamente inconstitucionais ou ilegais.
Não basta, portanto, que a decisão judicial contenha algum erro na aplicação de determinado comando constitucional ou legal. Tal resulta claro, desde logo, da letra da lei, ao exigir que o vício seja manifesto. Ademais, na Proposta de Lei n.º 56/X que veio a converter-se na Lei n.º 67/2007, de 31/12, a redacção do artigo 13.º referia-se, genericamente, a “decisões jurisdicionais inconstitucionais ou ilegais” como fundamento do dano indemnizável, omitindo-se a exigência de que estes vícios fossem manifestos. Mas, como se viu, não se manteve essa redacção.
A responsabilidade do Estado fundada em erro judiciário só ocorre, pois, em casos de erro manifesto, patente, inequívoco, evidente, assaz claro das decisões judiciais quanto à aplicação de normas constitucionais ou da legislação ordinária.
Arredada está, por isso, a nosso ver, uma qualquer interpretação mais ousada, peregrina ou original do texto constitucional ou da legislação ordinária, que possa aceitar-se como uma das soluções plausíveis da questão de direito, para fazer incorrer o Estado em responsabilidade civil.
Em suma, exige-se uma especial qualificação do erro de direito, não se bastando o dever de indemnizar com a mera existência da inconstitucionalidade ou ilegalidade da solução jurídica adoptada na decisão judicial.
Outro caso de responsabilidade civil do Estado pela reparação dos danos é o do erro da decisão sobre a matéria de facto. Também aqui não é qualquer erro que justiça tal responsabilidade. Tal como sucede em relação aos danos decorrentes de decisões inconstitucionais ou ilegais, a lei exige aqui que o erro seja “grosseiro”.
Como é sabido, o julgamento da matéria de facto é aquele que mais põe à prova a idoneidade do julgador. Para bem decidir a matéria de facto, o juiz deve conhecer o meio onde se desenrola a acção e avaliar a integridade moral das testemunhas que lhe são apresentadas e a sua razão de ciência, certo que, entre nós, salvo raríssimas excepções, a prova se faz mormente com recurso a testemunhas, cujos depoimentos são apreciados livremente.
Além do emaranhado de depoimentos e de versões contraditórias, é frequente surgirem versões díspares no âmbito da prova pericial, que o tribunal aprecia também livremente, naturalmente em função da experiência e sensibilidade de cada julgador, a quem se exige grande honestidade intelectual e cuidado ao decidir a matéria de facto, de cujo correcto julgamento depende a sentença justa, a decisão legal, a solução correcta e equilibrada, em suma, a pacificação da vida social.
Ora, como se disse já, só o erro “grosseiro” na apreciação dos pressupostos de facto constitui o Estado na obrigação de indemnizar os danos causados. O erro em questão é, assim, aquele que só um juiz desatento, desleixado e desinteressado da matéria que se discute é capaz de cometer. Um juiz normalmente diligente, atento e interessado em prestar um bom serviço à comunidade não comete, por via de regra, um tal erro.
Sucede que, por força do disposto no n.º 2 do artigo 13.º supra citado, o pedido de indemnização deve ser obrigatoriamente fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, naturalmente através dos mecanismos processuais admissíveis ao caso.
Na verdade, não pode atribuir-se qualquer relevo a um alegado erro judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem esse reconhecimento, o erro só poderá situar-se no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo, que é o único que pode relevar para efeitos de constituir o Estado em responsabilidade civil.
Portanto, o lesado não pode intentar acção de indemnização fundada em erro judiciário sem que este tenha sido previamente reconhecido, por decisão transitada em julgado, proferida pelo tribunal competente para o efeito.
Aquela acção não é, pois, o meio processual próprio e idóneo para o lesado invocar e obter o reconhecimento do erro judiciário em que funda a sua pretensão indemnizatória contra o Estado. Antes de a intentar, o lesado tem de demonstrar a existência do erro da decisão pretensamente danosa, para o que se exige que o mesmo esteja reconhecido por outra decisão judicial, transitada em julgado, proferida pela jurisdição competente, através dos mecanismos impugnatórios processualmente admissíveis, e que tenha revogado ou reformado a primeira.
E, na realidade, o Tribunal Constitucional, já pôs em evidência o ilogismo que representaria a solução contrária: um acto judicial consolidado, por não ter sido apreciado pela competente instância de recurso, não pode ser desautorizado, ainda que para os limitados efeitos de verificar a existência de erro judiciário, por um outro tribunal, interveniente na acção de responsabilidade civil, e que, porventura, poderá ser de espécie diferente, ou da mesma espécie, mas de grau inferior àquele que se pronunciou, no âmbito da sua competência material, sobre o direito aplicável ao caso concreto (Cf. Ac. n.º 90/84, de 30/07/1984).
Portanto, é claro o propósito do legislador de excluir a tutela indemnizatória por erro judiciário relativamente a decisões judiciais definitivas, isto é, que tenham fixado, em última instância, sem possibilidade de recurso, nem de reclamação, a solução jurídica do caso.
A exigência deste requisito da prévia revogação ou reforma da decisão danosa como condição de procedência da acção de indemnização não viola qualquer princípio ou norma constitucional, destinando-se a salvaguardar a autoridade da sentença e o instituto do caso julgado, que tem guarida na Constituição, sendo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sufragado o entendimento de que o princípio da intangibilidade tendencial do caso julgado, se bem que admita, como qualquer outro, limitações ou compressões, detém uma inquestionável tutela constitucional, por razões decorrentes do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição).
Ocorre, assim, por opção do legislador, a necessidade de compatibilizar o instituto da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado, preservando a paz social e impedindo a reabertura de conflitos anteriormente dirimidos, que determinem a perda de segurança e confiança no sistema judicial.
Em suma, no regime actual está vedada a possibilidade de instauração de uma acção de indemnização fundada em erro judiciário sem que a decisão pretensamente danosa tenha sido previamente alterada, através do meio processual próprio admissível, e pela jurisdição competente para o efeito.
A não ser assim, ocorreria como efeito colateral, a derrogação da estrutura hierárquica judicial, permitindo-se ao tribunal onde a acção de responsabilidade deva ser instaurada poder sindicar uma decisão de outro tribunal, de hierarquia igual ou superior.
A opção seguida revela, por isso, a confiança do legislador no sistema de recursos e de reapreciação da decisão jurisdicional para eliminar o erro eventualmente cometido no exercício da função jurisdicional, mesmo tratando-se de decisão proferida pela última instância judiciária, o que não briga com o princípio da judicialidade consagrado no artigo 20.º da Constituição, conjugado com o direito à reparação dos danos, que assiste a todos os cidadãos, pois que a lei processual civil prevê mecanismos próprios destinados a suprir erros materiais e de julgamento, abrindo portas à correcção do erro de julgamento mesmo na última instância, além de que é ainda de conceder que da decisão da última instância seja interposto recurso para o Tribunal Constitucional, o que tudo permite que se possa dar como verificado o requisito em questão.
No caso vertente, estamos perante uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que se tornou definitiva, não tendo sido objecto de qualquer reforma, mormente por via da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Como tal, não se verifica o pressuposto legalmente exigido para fundar o direito de indemnização por erro judiciário, qual seja o de que não se trate de decisão definitiva que tenha incorrido em erro de direito ou de facto.
Improcede, por isso, a acção.” (sic - fls 369 a 373, corrigindo-se o assinalado notório lapso de escrita).

4.1.2. Como facilmente se constata pela simples leitura deste texto, o silogismo desenvolvido pelo Tribunal de 1ª instância pode ser sumariado nos seguintes termos:

- o direito a indemnização invocado pelo Autor só existe se a decisão ou deliberação criticada (a dita “decisão danosa”) não se tiver tornado definitiva e antes tiver sido derrogada por uma instância superior competente por ter sido considerada manifestamente inconstitucional ou ilegal ou por estar viciada/injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto que a sustentam,

logo,

- uma vez que o acórdão do STJ invocado pelo Autor ora apelante não foi objecto de qualquer tipo de recurso e transitou definitivamente em julgado, tornando-se inderrogável, essa exigência legal não está verificada na situação sub judice, e o Réu tem forçosamente de ser absolvido do pedido contra ele formulado na presente acção.

Ora, à luz do estatuído no n.º 2 do art.º 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, e não podendo, de acordo com as instruções do Legislador acerca do modo como devem ser interpretadas as normas jurídicas que constam dos três números do art.º 9º do Código Civil - aos quais acrescem, para a construção do conceito “solução mais acertada”, as exigências inscritas nos artºs 335º (proporcionalidade assente na posição que o valor ético que valida a norma e a torna em verdadeiro Direito ocupa na Hierarquia de Valores que enforma e dá consistência ao tecido social comunitário) e 334º do mesmo Código, destacando-se neste último e sem prejuízo de haver de atender também às finalidades económicas e sociais dos direitos em causa, a atenção que é dada, em primeira linha, à boa-fé e aos bons costumes (isto é, novamente e sempre, aos valores éticos que constituem os pilares estruturantes da Comunidade, que validam as normas legais produzidas pela forma prevista na Constituição e que servem de padrão aferidor quando está em causa apreciar a adequação das condutas individuais aos padrões comportamentais reputados exigíveis à vivência em Sociedade) -, ser outra que não a feita pelo Mmo Juiz a quo, a interpretação daquele comando legal, esse argumentário é perfeitamente válido e absoluta e incontornavelmente idóneo para sustentar o julgamento do pleito.

Ou seja, este Tribunal Superior, concorda integralmente com essa linha lógica de raciocínio argumentativo, entendendo, para além disso, que essa fundamentação é, por si só, suficiente para justificar a absolvição decretada - que aqui se mantém e igualmente se sufraga -, ficando deste modo, prejudicadas e assim se tornando dispensáveis, por impertinentes e inúteis, quer a apresentação de outras justificações para esse julgamento, quer, muito menos, a discussão sobre se o Acórdão do STJ transcrito no ponto 3.5) do presente acórdão padece ou não dos vícios apontados pelo Autor - isto a admitir, o que não é o caso, que este Tribunal da Relação estaria habilitado e seria competente para exercer uma tal pronúncia (a referida em último lugar, entenda-se).

4.1.3. E, por tudo o exposto, julgam-se improcedentes as conclusões a) a e) - esta última na parte aplicável - das alegações de recurso do apelante e, consequentemente, confirma-se e mantém-se o decreto absolutório do Réu, relativamente ao pedido contra ele formulado na presente acção pelo Autor, proferido através da aqui sindicada decisão com valor de sentença recorrida.

O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.

4.2. O nº 2 do artº 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, na interpretação que lhe foi dada pelo Mmo Juiz a quo na decisão recorrida, enferma de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13º e 22º da Constituição da República Portuguesa?

4.2.1. No que respeita a esta segunda questão jurídica de que cumpre conhecer nesta sede de recurso, é com muita dificuldade que se acolhe o raciocínio desenvolvido pelo apelante quanto ao que neste momento se discute.

Ou melhor, não se acolhe e antes se repudia totalmente esse entendimento, uma vez que a norma em questão (“O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.”) se aplica indistintamente a todos aqueles que interagem no comércio jurídico - o que salvaguarda inteiramente o cumprimento do princípio da proibição da desigualdade injustificada garantido pelo art.º 13º da Constituição da República - e também porque, não estando expressamente definidos no art.º 22º dessa Lei Fundamental, os termos concretos em que o Estado e as demais entidades públicas podem ser responsabilizados civilmente pelas acções ou omissões praticadas pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes no exercício das suas respectivas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem, tal significa, para um qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário (art.º 236º n.º 1 do Código Civil), que o Legislador Constitucional quis deixar totalmente ao critério do Legislador Ordinário a tarefa de clarificar em que específicas condições esse direito dos lesados resultante desses actos e omissões podia ser exercido - e qual exacta medida do ressarcimento que poderia ser almejado e alcançado por esses titulares de tal direito.

E o estatuído no Regime Jurídico aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, mais não é do que o cumprimento dessa obrigação do Legislador Ordinário, a qual, para este Tribunal Superior, pode e deve ser entendida como equitativa e proporcionada, logo e consequentemente, como não violadora de qualquer preceito constitucional, nomeadamente os invocados pelo apelante ou até o consubstanciado no n.º 4 do art.º 20º da Constituição da República que, em conjugação com o estatuído nos artºs 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da sua Resolução 217A (III), de 10 de Dezembro de 1948, 6º n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950, e 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Anexa ao Tratado de Lisboa, assegura e garante a todos, com força obrigatória directa e geral (art.º 18º n.º 1 da Constituição da República), o direito a um julgamento leal, não preconceituoso (fair and unbiased) e mediante processo equitativo.

4.2.2. Claro que a posição aqui assumida por este Tribunal Superior, como acontece com (quase) todas as opiniões humanas, pode ser objecto de crítica.

Mais, há até que admitir que pode ser considerado razoável afirmar que é eticamente questionável ou reprovável exigir que, para que esse direito a uma indemnização possa ser exercido, a decisão danosa tenha sido previamente revogada pela jurisdição competente e que essa revogação tenha como fundamento a declaração de que se verificam in casu os vícios enumerados no n.º 1 do art.º 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado em análise, já que, por essa via, existirão Tribunais que, por decidirem em última instância, escapam a esse controle por parte de uma qualquer outro órgão jurisdicional.

O que significaria - e essa é a posição sustentada pelo ora apelante - que, em tais situações, ficaria por cumprir o preceito constitucional inscrito nesse aludido art.º 22º da Lei Fundamental.

Todavia, mais do que relativamente ao STJ e até às Relações, quando julgam em definitivo por dos seus acórdão não ser admissível recurso para o Supremo (isto deixando de fora a jurisdição administrativa e fiscal) - ou à 1ª instância, quando o valor da causa é inferior à alçada desse Tribunal e a matéria não permite recurso para a respectiva Relação -, essa ausência total de controlo jurisdicional nacional existe e é manifesta no caso do Tribunal Constitucional, porquanto, relativamente aos demais é sempre formalmente admissível (porventura, em certos casos, com diminutas hipóteses de sucesso porque nem todos os erros de julgamento da matéria de facto e/ou quanto à interpretação e aplicação da norma jurídica reguladora do concreto litígio em apreço são inconstitucionais) a interposição, para este último Tribunal, de recurso contra essas decisões ou deliberações.

Ora, o acórdão criticado foi proferido pelo STJ e, teoricamente, existia uma outra instância de recurso que não foi chamada a apreciar o objecto da lide e na qual esses vícios poderiam, em abstracto, ser declarados verificados.

E, objectivamente, não o foram.

4.2.3. Deste modo, por tudo o exposto, julgam-se igualmente improcedentes as conclusões e) - na parte aplicável - e f) das alegações de recurso do apelante e declara-se que não é inconstitucional a interpretação do n.º 2 do art.º 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, feita pelo Mmo Juiz a quo na decisão recorrida e que aqui se sufraga.

O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.


*

5. Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados nos pontos 4.1. e 4.2. do presente acórdão, julga-se totalmente improcedente a apelação e, consequentemente:

a) confirma-se a decisão absolutória com valor de sentença proferida nos presentes autos pelo Tribunal de 1ª instância;

b) declara-se que não é inconstitucional a interpretação do n.º 2 do art.º 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro,  feita nessa mesma decisão recorrida.


Custas pelo apelante.
Lisboa, 09/07/2014

(Eurico José Marques dos Reis)

(Ana Maria Fernandes Grácio)

(Afonso Henrique Cabral Ferreira)