Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
94052/17.7YYPRT.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: INJUNÇÃO
CAUSA DE PEDIR
APERFEIÇOAMENTO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO
Sumário: 1. O requerente da injunção não está dispensado de invocar, no requerimento, os factos jurídicos concretos que integram a respectiva causa de pedir, pois que a lei só flexibiliza a sua narração em termos sucintos, sintéticos e breves.
2. Como a pretensão do requerente só é susceptível de derivar de um contrato ou de uma pluralidade de contratos, a causa de pedir, embora sintética, não pode deixar de envolver o conteúdo das respectivas declarações negociais e os factos negativos ou positivos consubstanciadores do seu incumprimento por parte do requerido.
3. A causa de pedir, segundo o princípio da substanciação, que continua a vigorar à luz do C.P.C./13, traduz-se no facto jurídico constitutivo do direito, sendo o seu âmbito delimitado pelos factos preenchentes das normas substantivas concedentes da pretensão do demandante, independentemente da sua valoração jurídica, sendo suas características a inteligibilidade, a facticidade, a concretização, a veracidade, a compatibilidade, a juridicidade e a licitude.
4. Não satisfaz, evidentemente, à exigência legal de indicação dos factos integradores da causa de pedir, a utilização da expressão «fornecimento de bens ou serviços», a referência a um período temporal e a afirmação de que «vem o aqui requerente apresentar requerimento de injunção, fundado na falta de pagamento das facturas constantes em Extrato de Conta Conferência, conta (fornecedor): 2211103028, no montante de € 29.183,64, deduzindo o valor que o aqui requerente deve ao requerido pela falta de pagamento das facturas constantes no Extrato de conta (cliente): 2111023 no montante de € 16.535,27».
5. Se o requerente não puder expor sucintamente os factos integrantes do contrato ou dos contratos em causa e da omissão re­lativa ao respectivo incumprimento no espaço que o impresso de modelo oficial do requerimento injuntivo lhe reserva, então a solução não pode deixar de ser a de apresentar um requerimento autónomo, isto é, à margem do impresso modelo legalmente definido.
6. A mera junção de documentos em momento posterior, não cumpre a obrigação legal daquele elemento, porque a causa de pedir se traduz em factos concretos previstos pelas normas jurídicas referentes aos direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos que se pretendem fazer valer, e os documentos se limitam a provar os factos.
7. Perante um tal quadro, não poderia o juiz escudar-se no argumento de que «no âmbito de um procedimento de injunção, a exigência na exposição da factualidade que constitui causa de pedir é menor, bastando-se o legislador com a exposição sucinta dos fundamentos da pretensão».
8. Não sendo caso de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, desde logo por ocorrer a situação prevista no art. 186.º, n.º 3, do C.P.C., era dever do juiz, nos termos impostos pelo art. 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4, do mesmo código, convidar a requerente a aperfeiçoar a peça processual inicial, ou seja, dada a transmutação do procedimento injuntivo em ação declarativa comum, convidar a autora a apresentar petição inicial com a alegação de factos integradores da respetiva causa de pedir.
9. O enunciado fático contido na sentença de que «na sequência de fornecimento de bens/serviços celebrado entre as partes, está por pagar pela requerida à requerente o valor de 12 648,37 €», é, não apenas deficiente, por manifestamente insuficiente e impreciso, mas também obscuro, por conclusivo e equívoco.
10. A sentença que condena a ré a pagar tal quantia à autora, com base exclusivamente naquele enunciado, em vez de trazer a certeza e a segurança jurídicas que lhe devem estar subjacentes, é, antes, suscetível de criar uma situação de instabilidade jurídica, por se desconhecerem os exatos contornos do decidido, pondo em causa o efeito e alcance do caso julgado, tanto na sua função positiva como negativa.
11. Tendo o tribunal a quo omitido a prolação daquele despacho de convite ao aperfeiçoamento, cabe à Relação, em respeito pelo que vem sendo denominado princípio da proibição da oneração da parte pela Relação com o risco de improcedência, anular a decisão de facto com fundamento, precisamente, na deficiência e obscuridade do julgamento da matéria de facto, ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 1, al. c), do C.P.C., por referência à matéria de facto que podia constar da causa se a autora tivesse seguido o convite que lhe deveria ter sido dirigido pelo tribunal de 1.ª instância.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
Massa Insolvente de A…, Lda., instaurou procedimento injuntivo contra Z…, ACE, nos seguintes termos:
«O(s) requerente(s) solita(m) que seja(m) notificado(s), no sentido de lhe(s) ser paga a quantia de € 13.686,58 conforme discriminação e pela causa a seguir indicada:
Capital: € 12.648,37                      
Juros de mora: € 1.038,21
(...)
Contrato de fornecimento de bens ou serviços                      
Contrato n.º
Data do contrato: 01-08-2016      
Período a que se refere: 01-08-2016 a 02-10-2017
Vem o aqui requerente apresentar requerimento de injunção, fundado na falta de pagamento das facturas constantes em Extrato de Conta Conferência, conta (fornecedor): 2211103028, no montante de € 29.183,64, deduzindo o valor que o aqui requerente deve ao requerido pela falta de pagamento das facturas constantes no Extrato de conta (cliente): 2111023 no montante de € 16.535,27».
O requerido ACE deduziu oposição, começando por alegar, em matéria de exceção dilatória:
- que, tratando-se de um consórcio, carece de personalidade jurídica e judiciária.
- que ocorre a nulidade de todo processo por ineptidão do requerimento injuntivo, com fundamento na falta de causa de pedir.
No mais, defende-se por impugnação, concluindo assim o articulado de oposição:
«Nestes termos, e nos mais de direito:
1. Devem ser conhecidas e julgadas procedentes as invocadas exceções e a requerida absolvida da instância;
2. Deve a presente ação ser julgada improcedente, por não provada, e a requerida absolvida do pedido.
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Na sequência da apresentação da oposição, o procedimento injuntivo transmutou-se na presente ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, nos termos do art. 10º, nº 4 do Decreto-Lei nº 62/2013, de 10.05, e 17º, nº 1, do anexo ao regime dos procedimentos a que se refere o art. 1.º do Dec. Lei n.º 269/98, de 01.09.
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A autora respondeu à matéria de exceção, pugnando pela sua improcedência.
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Por despachos de fls. 21 e 24-25 foram jugadas improcedentes as exceções dilatórias invocadas pela autora.
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Na sequência da normal tramitação dos autos realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Em virtude do exposto, considero procedente o presente requerimento de injunção, condenando a requerida “Z…, ACE”, a pagar à requerente “Massa Insolvente de A…, Lda.”, a quantia de 12.648,37 euros devida a título de capital e o valor de 1.035,78 euros de juros de mora».
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Inconformado com o assim decidido, o réu interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
I. Os factos considerados como provados pelo Tribunal a quo contrariam a prova produzida em sede de audiência de julgamento.
II. O Tribunal a quo formou a sua convicção apenas e tão só no depoimento da testemunha MM, que não demonstrou ter conhecimento direto do acordo celebrado entre A. e R. para elaboração dos autos de medição.
III. Bem como em documentos juntos em sede de audiência de julgamento pela A., não tendo sido dada oportunidade ao R. de se pronunciar sobre os mesmos.
IV. Impugna-se assim a fatura junta aos autos, quer quanto aos efeitos que dela pretende retirar a A., quer por a mesma não ser devida, não se mostrando sequer assinada.
V. O Tribunal a quo desconsiderou por completo o depoimento da testemunha AL, gerente da empresa, e do diretor de obra, PO, sem qualquer fundamento – únicas testemunhas que têm realmente conhecimento direto e pessoal dos fatos.
VI. As testemunhas AL e PO explicaram a boa relação comercial existente entre A. e R., e que foi com base nessa relação de confiança e, por forma a ajudar a A. a manter-se no mercado e cumprir as suas obrigações, que a R. lhe adiantava valores através dos autos de medição de trabalhos ainda não executado.
VII. Em consequência da declaração de insolvência da requerente, esta deixou a obra inacabada e a Recorrente teve de contratar outras pessoas para a sua finalização.
VIII. A testemunha AL, único sócio e gerente da empresa, declarou que, aquando da declaração de insolvência, não existiam quaisquer valores por receber da recorrente.
IX. O depoimento destas testemunhas, conforme supra transcrito, resulta coerente e consentâneo entre si e com toda a prova carreada para os autos.
X. Deve assim ser reapreciada a matéria de facto, produzida em audiência de julgamento, nomeadamente, os depoimentos das testemunhas AL e PO.
XI. Devendo, em consequência, dar-se como não provados os fatos 1 e 2 que o Tribunal a quo considerou provados.
XII. O Tribunal a quo errou assim na apreciação da prova, existindo desconformidade entre a prova produzida (o que foi afirmado pelas testemunhas) e a matéria dada por provada, não tendo o Tribunal a quo feito um juízo crítico das provas, em violação do disposto no artigo 659º, nº 3 do CPC.
XIII. A douta sentença enferma ainda de falta de fundamentação ou fundamentação insuficiente.
XIV. Deve assim ser concedido provimento ao presente recurso, e em consequência, deve revogar-se a decisão recorrida.
Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, a sentença recorrida revogada e substituída por outra que julgue o pedido totalmente improcedente, e absolva a recorrente do pagamento da quantia de 12.648,37 euros, a título de capital, e do valor de 1.035,78 euros a título de juros de mora.
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A autora não apresentou contra-alegações.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, será objeto de apreciação por este tribunal de recurso, a nulidade da sentença recorrida por deficiência e obscuridade da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art. 662.º, n.º 1, al. c), do C.P.C., o que prejudicará o conhecimento de quaisquer outras questões suscitadas no presente recurso (arts. 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do C.P.C.).
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
Afirma-se na sentença recorrida, em sede de fundamentação de facto, que «resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1. Na sequência de fornecimento de bens/serviços celebrado entre as partes, está por pagar pela requerida à requerente o valor de 12 648,37 € .
2. Dá-se por reproduzida a factura junta a folhas 30.
Não se provou:
1. Que todos os trabalhos executados foram pagos;
2. Que a requerente não executou a totalidade dos trabalhos que lhe foram adjudicados;
3. Que o quantitativo do valor reclamado na presente injunção corresponde tão só a parte dos trabalhos não executados e/ou executados deficientemente e que o dono da obra se tivesse recusado a recebê-los;
4. Que foi acordado entre as partes que os pagamentos seriam efetuados com a boa execução, completa e regular, e com a aceitação subsequente do dono da obra, bem como sujeitos à não reclamação dos trabalhos por parte dos donos de obras dos serviços e trabalhos prestados pela requerente –o que não veio a acontecer».
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3.2 – Do mérito do recurso:
A autora Massa Insolvente de A…, Lda., instaurou o presente procedimento injuntivo contra Z…, ACE, solicitando que lhe seja paga a quantia de € 13.686,58, sendo € 12.648,37, a título de capital, e € 1.038,21, a título de juros de mora.
A título de causa de pedir limita-se a fazer referência a «contrato de prestação de bens ou serviços» (desconhecendo-se, assim, e desde logo, se está em causa fornecimento de bens ou de serviços) e a um período temporal, que vai desde 1 de agosto de 2016 a 2 de outubro de 2017, afirmando depois, no campo destinado à exposição dos factos que fundamentam a pretensão, conforme também se viu, que «vem o aqui requerente apresentar requerimento de injunção, fundado na falta de pagamento das facturas constantes em Extrato de Conta Conferência, conta (fornecedor): 2211103028, no montante de € 29.183,64, deduzindo o valor que o aqui requerente deve ao requerido pela falta de pagamento das facturas constantes no Extrato de conta (cliente): 2111023 no montante de € 16.535,27».
Dispõe o art. 10.º, n.º 2, al. d) do anexo ao regime dos procedimentos a que se refere o art. 1.º do Dec. Lei n.º 269/98, de 01.09, que no requerimento de injunção deve o requerente, além do mais, «expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão».
Conforme afirma Salvador da Costa[1], a exposição sucinta dos factos que à pretensão processual do requerente servem de fundamento assume particular relevância no contexto do normativo em análise, porque se trata, no fundo, da causa de pedir prevista em geral nos arts. 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, al. d), do C.P.C., susceptível de apreciação jurisdicional no caso de o procedimento de injunção se transmutar em acção declarativa, como ocorreu no caso concreto.
O requerente da injunção não está dispensado de invocar, no requerimento injuntivo, os factos jurídicos concretos que integram a respectiva causa de pedir, pois que a lei só flexibiliza a sua narração em termos sucintos, sintéticos e breves.
Como a pretensão do requerente só é susceptível de derivar de um contrato ou de uma pluralidade de contratos, a causa de pedir, embora sintética, não pode deixar de envolver o conteúdo das respectivas declarações negociais e os factos negativos ou positivos consubstanciadores do seu incumprimento por parte do requerido.
A indicação, pela requerente, como causa de pedir, de “contrato de fornecimento de bens ou serviços” não passa de mera qualificação jurídica, ou seja, nada tem a ver com a factualidade concreta que deve integrar a pertinente causa de pedir.
O número do contrato é susceptível de relevar na respectiva identificação no quadro de uma pluralidade de contratos da mesma espécie, mas não constitui facto integrante da pertinente causa de pedir.
No caso sub judice, não é sequer indicado qualquer número de contrato.
A data do contrato é, porém, susceptível de relevar em sede de causa de pedir, porque funciona como elemento temporalmente delimitador da constituição do direito de crédito invocado.
No caso sub judice, a requerente indica um período temporal que vai de 1 de agosto de 2016 a 2 de outubro de 2017.
Mas o que verdadeiramente releva como causa de pedir é a descrição da origem do direito de crédito invocado pelo requerente, mas, contra a natureza das coisas, porventura sob o desígnio desajustado da máxima simplificação, o impresso só lhe reserva o espaço de sete linhas.
Esta anomalia é, porém, atenuada para o requerente no caso de optar pela apresentação do requerimento de injunção através de ficheiro infor­mático ou correio electrónico, em que inexiste limite de linhas relativas à descrição dos factos integrantes da causa de pedir.
De qualquer modo, se o requerente não puder expor sucintamente os factos integrantes do contrato ou dos contratos em causa e da omissão re­lativa ao respectivo incumprimento no espaço que o impresso lhe reserva, então a solução não pode deixar de ser a de apresentar um requerimento autónomo, isto é, à margem do impresso modelo legalmente definido.
Ainda que o desígnio de quem pensou o modelo do impresso em causa fosse o de subverter os princípios gerais de processo civil relativos ao pedido e à causa de pedir, não é isso que resulta, nem podia resultar, da lei.
Em consequência, se o requerimento não expressar, embora sucintamente, os factos integrantes da causa de pedir, certo é que o requerente corre o risco, na eventual apreciação jurisdicional subsequente, seja na acção declarativa de condenação com processo especial acima referida, seja nos embargos de executado, de ser confrontado com uma decisão desfavorável, isto é, não lograr êxito na sua pretensão.
Assim, adaptando em sede de procedimento de injunção os comandos contidos nos arts. 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, al. d), do C.P.C., significa que o requerente deve expor no requerimento, no local a tal destinado e por forma necessariamente sucinta, adequada ao próprio impresso de modelo oficial, os factos que servem de fundamento à sua pretensão, devendo considerar-se como tais os que, em regra, se afiguram constitutivos do seu direito.
Ainda de acordo com Salvador da Costa[2], a causa de pedir, segundo o princípio da substanciação, traduz-se, no fundo, no facto jurídico constitutivo do direito, ou seja, em determinada factualidade concreta vista à luz do direito (art. 581.º, n.º 4, do C.P.C.)
O seu âmbito é delimitado pelos factos preenchentes das normas substantivas concedentes da pretensão das partes, independentemente da sua valoração jurídica.
As suas características são a inteligibilidade, a facticidade, a concretização, a veracidade, a compatibilidade, a juridicidade e a licitude.
O autor deve indicar na petição inicial, a título de causa de pedir, os factos concretos que fundamentam o pedido.
A lei não exige a pormenorizada alegação de facto, certo que se basta com a alegação sucinta dos factos, ou seja, em termos de brevidade e concisão.
Todavia, a alegação fáctica breve e concisa não significa a postergação dos princípios gerais da concretização fáctica em termos de integração dos pressupostos da respectiva norma jurídica substantiva.
Não satisfaz, evidentemente, à exigência legal de afirmação dos factos consubstanciadores da causa de pedir, a utilização da expressão «fornecimento de bens ou serviços», a referência a um período temporal e a circunstância de se acrescentar, em seguida, que «vem o aqui requerente apresentar requerimento de injunção, fundado na falta de pagamento das facturas constantes em Extrato de Conta Conferência, conta (fornecedor): 2211103028, no montante de € 29.183,64, deduzindo o valor que o aqui requerente deve ao requerido pela falta de pagamento das facturas constantes no Extrato de conta (cliente): 2111023 no montante de € 16.535,27»
No requerimento injuntivo a requerente não esclarece, desde logo, se objeto do fornecimento foram bens ou serviços e, por conseguinte, muito menos esclarece, a natureza dos bens ou serviços e as respetivas quantidades; ou seja: não esclarece quais os concretos bens ou serviços que a sociedade A…, Lda., forneceu à ré e que por esta não lhe foram pagos; não esclarece as datas em que foram fornecidos os bens ou serviços não pagos; não esclarece os preços dos bens ou serviços não pagos.
Por outro lado, a mera junção, em momento posterior, de documentos não cumpre a obrigação legal daquele elemento, porque a causa de pedir se traduz em factos concretos previstos pelas normas jurídicas referentes aos direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos que se pretendem fazer valer, e aqueles se limitam, nos termos dos arts. 341º e 362º do Cód. Civil, a provar os factos.
Importa, com efeito, ter presente que a alegação ou afirmação de factos e a sua prova correspondem a ónus distintos a cargo das partes, e que a alegação fáctica insuficiente é insusceptível de ser suprida pela ilação a extrair de documentos juntos.
No entanto, tal como referido pela juíza a quo no despacho de fls. 21, a verdade é que, no articulado de oposição, imediatamente seguir à arguição da exceção dilatória consistente na nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial com fundamento na falta de causa de pedir, revela que interpretou corretamente o requerimento injuntivo (cfr. o art. 21.º daquele articulado).
Por isso, nos termos do art. 186.º, n.º 3, do C.P.C., a invocada exceção dilatória consistente na nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial com fundamento na falta de causa de pedir.
No entanto, o que a juíza a quo não poderia, no descrito contexto, era ter deixado de convidar a requerente a aperfeiçoar a peça processual inicial; ou seja, dada a transmutação do procedimento injuntivo em ação declarativa comum, não poderia a juíza a quo, nos termos impostos pelo art. 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4, do C.P.C., ter deixado de convidar a autora a apresentar petição inicial com a alegação de factos consubstanciadores da respetiva causa de pedir.
Mas foi o que fez, escudando-se, no argumento de que «no âmbito de um procedimento de injunção, a exigência na exposição da factualidade que constitui causa de pedir é menor, bastando-se o legislador com a exposição sucinta dos fundamentos da pretensão».
Se, em tese, as coisas são assim, a verdade é que, no caso concreto, como se deixou expresso, a requerente do procedimento injuntivo não cumpriu, por assim dizer, “o mínimo dos mínimos” no que respeita à alegação factológica.
Foi neste quadro de insuficiência de alegação factológica que os autos foram tramitados até à audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que condenou a ré a pagar à autora «a quantia de 12.648,37 euros devida a título de capital e o valor de 1.035,78 euros de juros de mora».
Afirma-se na sentença recorrida, em sede de fundamentação de facto, que «resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1. Na sequência de fornecimento de bens/serviços celebrado entre as partes, está por pagar pela requerida à requerente o valor de 12 648,37 €.
2. Dá-se por reproduzida a factura junta a folhas 30.»
Nada mais consta da sentença recorrida como tendo ficado provado.
Quanto à reprodução da fatura junta a fls. 30:
Os documentos são “meros” meios de prova, não são factos, incumbindo ao julgador discriminar na sentença os factos que considera efetivamente provados, o que poderá implicar interpretação do teor dos documentos.
A indicação dos factos provados deve ser feita de forma clara, inequívoca e completa para que seja possível uma correcta aplicação dos preceitos legais, o que apenas se compadece com uma matéria de facto completa e inteligível.
Os documentos não são mais do que:
- “meros” meios de prova destinados a demonstrar a realidade de certos factos;
- “simples” escritos que corporizam declarações de ciência, pelo que na descrição da matéria de facto provada só há que consignar os factos eventualmente provados por esses documentos.
Em suma, pois, a mera remissão para documentos tem apenas o alcance de dar como provada a existência desses documentos, meios de prova, e não o de dar como provada a existência de factos que com base neles se possam considerar como provados; dar como reproduzido um documento significa apenas dar como provado que ele se encontra nos autos.
Na fundamentação de facto da decisão só podem ter assento os factos, ou seja, a matéria produtora ou desencadeadora do efeito jurídico pretendido pela parte.
Portanto, dar «por reproduzida a factura junta a fls. 30». não é forma de, numa sentença, se enunciarem factos desencadeadores de efeitos jurídicos.
A isto acresce a circunstância de, no caso concreto, nem sequer se compreender a razão pela qual a juíza a quo dá «por reproduzida a factura junta a fls. 30».
O documento que se encontra a fls. 30 é a cópia de uma fatura com o n.º FA…/…, emitida a 29 de junho de 2016 e com vencimento a 29 de julho de 2016, no valor de € 27.457,25, com o seguinte descritivo:
Artigo                        Descrição                            Quant.           Preço Unitário
A00                Execução e aplicação        1,00                27.457,2500
de condutas (2ª fase)
Ora, tal documento não é sequer referido no requerimento injuntivo, onde apenas se faz alusão a um «Extrato de Conta Conferência, conta (fornecedor): 2211103028, no montante de € 29.183,64», acrescentando-se que «deduzindo o valor que o aqui requerente deve ao requerido pela falta de pagamento das facturas constantes no Extrato de conta (cliente): 2111023 no montante de € 16.535,27».
Esse denominado «Extrato de Conta Conferência» é o documento de fls. 32, onde são lançados valores a débito e a crédito, relativos a notas de créditos e a faturas que ali se encontram numeradas, com referência ao período compreendido entre 31.03.2016 e 01.07.2016, onde surge apurado um saldo final credor de € 29.183,64.
Trata-se de um documento sem qualquer suporte factual suscetível de tornar compreensível a causa de pedir de uma qualquer ação.
Em suma, pois, não se compreende sequer a razão pela qual, em sede de fundamentação de facto, a juíza a quo deu por reproduzida a fatura cuja cópia consta de fls. 30.
E quanto ao enunciado «na sequência de fornecimento de bens/serviços celebrado entre as partes, está por pagar pela requerida à requerente o valor de 12 648,37 €»?
Não pode alguém ser condenado, por sentença proferida num processo judicial, a pagar a outrem a quantia de € 12.648,37, acrescida de juros de mora no valor de € 1.035,78, com base exclusivamente num tal enunciado.
Trata-se de um enunciado fático, não apenas deficiente, por manifestamente insuficiente, impreciso, mas também obscuro, por conclusivo e equívoco, pois não se sabe:
a) se objeto do fornecimento da sociedade A…, Lda., à ré, foram bens ou serviços;
b) a natureza dos bens ou serviços fornecidos pela sociedade A…, Lda., à ré, e as respetivas quantidades;
c) quais os concretos bens ou serviços fornecidos pela sociedade A…, Lda., à ré, e que esta não lhe pagou;
d) as datas em que a sociedade A…, Lda., forneceu à ré, os bens ou serviços que não foram objeto de pagamento;
e) o preço de cada um dos bens ou serviços que a sociedade A…, Lda., forneceu à ré, e que não foram objeto de pagamento.
A sentença que condena a ré a pagar à autora a quantia de € 12.648,37, acrescida de juros de mora no valor de € 1.035,78, com base exclusivamente naquele enunciado, em vez de trazer a certeza e a segurança jurídicas que lhe devem estar subjacentes, é suscetível de, eventualmente, acarretar consigo o efeito contrário, ou seja, de criar uma situação de instabilidade jurídica, por se desconhecerem os exatos contornos do decidido.
Falamos, naturalmente, do efeito e alcance do caso julgado da decisão proferida na sentença recorrida, com base exclusivamente naquele enunciado, em qualquer uma das suas funções:
- positiva: opera o efeito da autoridade do caso julgado, que vincula o tribunal e as demais entidades públicas e privadas, nos precisos termos em que julga;
- negativa: opera por via da exceção dilatória de caso julgado, impedindo que uma nova causa possa correr sobre o mesmo objeto (delimitado pelo pedido e pela causa de pedir) e entre as mesmas partes, cuja identidade se afere pela sua qualidade jurídica, ainda que em posição diversa da anteriormente assumida.
Tal como refere Castro Mendes, para quem os efeitos de autoridade do caso julgado e a exceção dilatória de caso julgado, não obstante constituírem duas formas distintas desta figura, outra coisa não constituem do que duas faces da mesma moeda, «a necessidade de respeito pelo caso julgado exige que a afirmação ou afirmações nele contidas não sejam no futuro colocadas de modo juridicamente relevante numa situação de incerteza»[3].
O enunciado a que nos vimos reportando é, pois, pela sua insuficiência e obscuridade, insuscetível de conduzir à condenação da ré no pagamento à autora da quantia de € 12.648,37, acrescida de juros de mora no valor de € 1.035,78, sendo certo, reitera-se, que se impunha à juíza a quo proferir despacho de aperfeiçoamento, convidando a autora a precisar, a concretizar, através da alegação de concretos factos materiais, os itens atrás descritos sob as als. a) a e).
Ora, tendo o tribunal a quo omitido a prolação de tal despacho, cabe a este tribunal de recurso, em respeito pelo que vem sendo denominado princípio da proibição da oneração da parte pela Relação com o risco de improcedência, anular a decisão de facto proferida pela 1.ª instância com fundamento, precisamente, na deficiência e obscuridade do julgamento da matéria de facto, ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 1, al. c), do C.P.C., por referência à matéria de facto que podia constar da causa se a autora tivesse seguido o convite que lhe deveria ter sido dirigido pelo tribunal de 1.ª instância.
Traz-se, a este propósito, à colação o texto de Miguel Teixeira de Sousa intitulado «A proibição da oneração da parte pela Relação com o risco da improcedência: um novo princípio processual?», onde o Autor escreve: «A pergunta envolve uma questão fundamental, que é a seguinte: perante a insuficiência da matéria de facto alegada pelas partes, cabe ao tribunal de 1.ª instância convidar a parte a completar o seu articulado (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, nCPC); se esse tribunal não realizar esse convite, cabe perguntar se, no recurso interposto, a Relação pode julgar a acção improcedente com base numa por ela mesma entendida insuficiência da matéria de facto. Pode também perguntar-se se a Relação pode extrair outras consequências dessa insuficiência da matéria de facto.
Ao impor ao tribunal de 1.ª instância o dever de convidar as partes a completarem os seus articulados incompletos ou deficientes, a lei pretende repartir entre as partes e o tribunal o risco da improcedência da causa por insuficiência da matéria de facto, ou seja, pretende salvaguardar as partes, através de uma função assistencial do tribunal, do risco de não obterem a condenação ou a absolvição que solicitam por insuficiência dessa matéria. No entanto, se se considerar que essa insuficiência é irrelevante para a Relação e, portanto, se se admitir que este tribunal pode considerar a acção improcedente atendendo a essa insuficiência, então o risco da improcedência da causa passa a recair exclusivamente sobre a parte que não foi convidada a aperfeiçoar o seu articulado. Noutros termos: se se entende que a insuficiência da matéria de facto não obsta ao proferimento de uma decisão de improcedência pela Relação, então o risco da improcedência que o convite ao aperfeiçoamento procura retirar à parte passa a recair exclusivamente sobre esta mesma parte. Em suma: o que a lei pretende evitar na 1.ª instância é o que, não tendo sido evitado, passa a constituir fundamento da decisão da 2.ª instância.
O sumariamente descrito basta para que se possa concluir que uma insuficiência da matéria de facto não detectada na 1.ª instância não pode constituir fundamento de uma decisão de improcedência decretada pela 2.ª instância (e, a fortiori, não pode constituir justificação para extrair outras consequências, como, por exemplo, a não obrigação de uma das partes se submeter a um exame hematológico).
Se se pretender teorizar um pouco a situação, poderá dizer-se que a 2.ª instância não pode onerar a parte com o risco da improcedência decorrente da insuficiência da matéria de facto. Se esse risco deve ser combatido na 1.ª instância com o convite dirigido à parte para aperfeiçoar o seu articulado, então a Relação não pode fazer recair sobre essa parte esse mesmo risco. Numa época em que se generaliza a construção de novos princípios processuais, talvez se possa falar do princípio da proibição da oneração da parte pela Relação com o risco da improcedência.
A lei fornece a solução para evitar esta oneração pela Relação do risco da improcedência: a solução é a anulação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância com base na deficiência do julgamento da matéria de facto (art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC), desde que essa deficiência seja entendida, não por referência à matéria de facto constante da causa, mas por referência à matéria de facto que podia constar da causa se a parte tivesse seguido o convite que lhe deveria ter sido dirigido pela 1.ª instância»[4].
Trata-se de um entendimento inteiramente conforme aos princípios que atualmente regem o direito processual civil português, nomeadamente o princípio da cooperação na sua vertente de dever de prevenção (art. 7.º, n.º 1, C.P.C., igualmente vigente no tribunal de segunda instância[5].
*
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes da 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa:
4.1 - Em anular, por deficiência e obscuridade, a decisão proferida pelo tribunal recorrido sobre a matéria de facto;
4.2 - Em determinar a devolução do processo ao tribunal de 1.ª instância, onde a juíza a quo deverá proferir despacho de aperfeiçoamento relativamente à matéria vertida no requerimento injuntivo, à luz dos itens acima descritos sob as als. a) a e), prosseguindo posteriormente os autos seus regulares termos até julgamento dos concretos factos materiais que neles vieram a ser incorporados na sequência do convite ao aperfeiçoamento, caso a autora a ele corresponda;
4.3 - Em considerar prejudicado, face ao decidido em 4.1 e 4.2, o conhecimento de quaisquer outras questões objeto do presente recurso.
Sem custas.

Lisboa, 19 de fevereiro de 2019
(Acórdão assinado digitalmente)
Relator
José Capacete
Adjuntos
Carlos Oliveira
Diogo Ravara

[1] A Injunção e as Conexas Acção e Execução, Processo Geral Simplificado, Almedina, 2001, págs. 145-156.
[2] Ob. cit., pp. 51 a 56.
[3] Limites Objectivos do Caso Julgado, Edições Ática, 1968, pp. 34 ss.
[4] Texto datado de 29.01.2014, acessível na internet em https://blogippc.blogspot.pt/2014/01/a-proibicao-da-oneracao-da-parte-pela.html.
[5] Neste sentido, cfr. o Ac. desta Relação e Secção, proferido no Proc. n.º 298/13.4TBSCR-L1-7 (Luís Filipe Sousa), in www.dgsi.pt.