Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2821/15.0T8BRR.L1-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: FACTOS PESSOAIS
FACTO NOTÓRIO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA
NEGLIGÊNCIA GRAVE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 – Factos pessoais do devedor, que não só não são do conhecimento geral como, por regra, apenas são do seu conhecimento e do seu círculo familiar mais restrito, como o facto de viver e trabalhar fora de Portugal e as condições de vida nesse local, não são factos notórios nem podem ser considerados do conhecimento do tribunal em virtude do exercício das suas funções, para os efeitos previstos no art.º 412º do CPC.
2 - O dolo e a negligência correspondem a representações internas do agente avaliadas pela exteriorização das respetivas ações, ou seja, são factos que se extraem das ações ou omissões dos agentes, não sendo suscetíveis de prova direta, como representações internas que são.
3 – Apurado que o devedor que tinha conhecimento dos deveres que sobre si impendiam e não os cumpriu, tanto basta para que se possa qualificar a respetiva conduta, ao não proceder à entrega do rendimento disponível ou não prestar informações solicitadas como uma conduta voluntária.
4 - A segunda parte do nº 3 do art.º 243º do CIRE constitui uma causa autónoma de cessação antecipada e de recusa de exoneração que não se subsume aos requisitos previstos no nº1 do mesmo preceito. Trata-se de uma sanção para o exonerando que se coloca em situação de não permitir sequer que se averiguem os referidos requisitos: violação das obrigações dolosa ou cometida com negligência grave e causa de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
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1. Relatório
FLC foi declarado insolvente por sentença de 02/11/2015.
Formulou pedido de exoneração do passivo restante na oposição.
O pedido de exoneração mereceu a concordância do Administrador da Insolvência em relatório.
Realizou-se assembleia de apreciação do relatório, na qual os credores Banco… e Banco… declararam opor-se à exoneração do passivo restante.
Em 04/02/2016 foi proferido o despacho previsto no art.º 239º do CIRE, fixando-se como valor para assegurar o sustento do insolvente em valor equivalente a um salário mínimo nacional.
Por despacho de 22/09/2022 o tribunal decidiu: «Em suma, verificando-se que, durante o período de cessão, o devedor incumpriu o dever imposto pelos n.ºs 2 e 4, alínea c) art.º 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, decido, nos termos nos termos dos artigos 237.º, al. d), 244.º, n.ºs 1 e 2, e 245.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, recusar a exoneração definitiva do passivo restante de FLC.
Inconformado apelou o insolvente pedindo a procedência do presente recurso e a revogação da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
“A. A douta sentença recorrida não fez a adequada e justa ponderação dos factos de acordo com os elementos fornecidos pelo processo como não fez a boa aplicação do direito competente, que imporia decisão diferente;
B. A douta decisão recorrida é nula, porque não houve nem procedeu a uma análise critica da prova.
C. Não considerou, e é facto publico e notório que, em Angola, um cidadão igual e circunstancias iguais ao insolvente, num trabalho de quase sobrevivência, mas que é o que permite as suas poucas e fracas habilitações de canalizador, num país com um custo de vida muito elevado, para mais quem está deslocado e sem habitação e onde não há nem existem serviços de correios e postal e as comunicações. quando há, quando não falte a luz, quando seja possível ao insolvente acesso a locais onde existe serviços de internet e quando ao mesmo, pela sua entidade patronal sejam disponibilizados os suportes que lhe foram exigidos proceder à entrega à Exma. senhora fiduciária, já não falando nos próprios pagamentos do ordenado, possa cumprir pontualmente e escrupulosamente as injunções que estas circunstancias exógenas impedem em sede das obrigações impostas pelo Art.º 243 Nº 1 al a) do CIRE.
D. O recorrente nunca actuou com grave negligência ou sequer dolo, o que aliás nem sequer foi ou está provado ou resulta sequer da fundamentação da decisão recorrida;
E. O valor a ceder em sede de rendimento disponível tem como referência o valor de três ordenados mínimos nacionais;
F. O recorrente nunca se subsumiu ao incumprimento dos deveres consignados na al. a) Nº 1 do Art.º 243 do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de 14/11/2022 (ref.ª 420525442).
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº 3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- nulidade da decisão recorrida;
- verificação de se estão reunidos os requisitos para que seja recusada a exoneração do passivo restante ao insolvente, nos termos do disposto no art.º 244º do CIRE.
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3. Fundamentos de facto:
Foi proferida, em 1ª instância, a seguinte decisão relativa à matéria de facto[1]:
“Dos relatórios apresentados pela sra. fiduciária e documentos anexos e dos dados dos autos resulta que:
1 - por despacho de 10/01/2019, na sequência do relatório apresentado pela sra. fiduciária, foi determinada a notificação do insolvente para entregar à sra. Fiduciária comprovativos dos rendimentos auferidos desde Julho de 2017 até essa data, bem como cópia da declaração e nota de liquidação do IRS de 2017;
2 - por despacho de 09/10/2019, na sequência do relatório apresentado pela sra. fiduciária, foi determinada a notificação do insolvente para entregar à sra. Fiduciária comprovativos dos rendimentos auferidos desde Agosto de 2018 até essa data, bem como cópia da declaração e nota de liquidação do IRS de 2018;
3 - na sequência destas notificações, o insolvente apenas entregou à sra. Fiduciária comprovativos dos rendimentos auferidos de Agosto de 2017 a Outubro de 2017;
4 - por despacho de 04/12/2019, na sequência da informação apresentada pela sra. fiduciária, foi determinada a notificação do insolvente (pessoalmente e através do ilustre mandatário constituído) para, no prazo de 10 dias, entregar à sra. fiduciária comprovativos dos rendimentos auferidos desde Novembro de 2017, bem como cópia da declaração e nota de liquidação do IRS de 2018;
5 - por requerimento de 03/01/2020, o insolvente juntou aos autos cópia da declaração e da nota de liquidação do IRS do ano de 2018;
6 - por despacho de 28/09/2020, na sequência da informação apresentada pela sra. fiduciária, foi determinada a notificação do insolvente para, no prazo de 10 dias, entregar à sra. fiduciária comprovativos dos rendimentos auferidos desde Janeiro de 2020 até então;
7 - na ausência de entrega dos documentos, foi renovado o despacho de 28/09/2020, determinando-se a notificação, também pessoal, do insolvente;
8 - nessa sequência, o insolvente entregou à sra. fiduciária cópia dos recibos de vencimento de Janeiro a Julho de 2019;
9 - por despacho de 10/12/2020, na sequência da informação apresentada pela sra. fiduciária, foi determinada a notificação do insolvente para, no prazo de 10 dias, entregar à sra. fiduciária comprovativos do recebimento dos subsídios de férias de 2018 e de 2019 e dos subsídios de Natal de 2017 e de 2018, nada havendo sido entregue;
10 - por despacho de 25/01/2021, na sequência da informação apresentada pela sra. fiduciária, foi determinada a notificação do insolvente para, no prazo de 10 dias, entregar à sra. fiduciária comprovativos do recebimento dos subsídios de férias de 2018 e de 2019 e dos subsídios de Natal de 2018, nada havendo sido entregue;
11 - por requerimento de 15/02/2021, o insolvente juntou aos autos cópia dos recibos de vencimento de Outubro de 2020 e Janeiro de 2021;
12 - foi renovado o despacho de 25/01/2021 no que respeita ao comprovativo do recebimento do subsídio de férias de 2019, não havendo sido entregue;
13 - no relatório apresentado em 12/08/2021, apurou-se o rendimento disponível total de €2.075,30;
14 - por requerimento de 31/08/2021, o insolvente juntou aos autos cópia da declaração de IRS do ano de 2020 e do recibo de vencimento de Outubro de 2020;
15 - por despacho de 06/10/2021, foi determinada a notificação do insolvente (pessoalmente e através do ilustre mandatário constituído) para, no prazo de 10 dias, entregar à sra. fiduciária comprovativos dos rendimentos auferidos em Novembro e Dezembro de 2020, Janeiro a Julho de 2021, a nota de liquidação do IRS de 2020 e recibos de vencimento respeitantes ao Subsídio de Férias de 2019 (2.º ano de cessão) e ao Subsidio de Natal de 2017 (1.º ano de cessão), bem como para proceder ao pagamento da quantia já apurada em dívida à fidúcia ou apresentar proposta de regularização que se contivesse no período de cessão;
16 - por requerimento de 18/10/2021, o insolvente juntou aos autos cópia dos recibos de vencimento de Outubro a Dezembro de 2020, Janeiro a Julho de 2021, da declaração de IRS do ano de 2019 e da nota de liquidação de IRS do ano de 2020;
17 - no relatório apresentado em 20/12/2021, apurou-se o rendimento disponível total de €2.667,15;
18 - por despacho de 18/01/2022, foi determinada a notificação do insolvente para, no prazo de 10 dias, entregar à sra. fiduciária comprovativos do recebimento do subsídio de Natal de 2017, do subsídio de férias de 2019, do subsídio de Natal de 2020 e do subsídio de férias de 2021, bem como para proceder ao pagamento da quantia já apurada em dívida à fidúcia ou apresentar proposta de regularização que se contivesse no período de cessão;
19 - na sequência desta notificação não foram entregues os documentos em falta, nem o montante em dívida à fidúcia;
20 - por despacho de 21/03/2022, foi renovado o despacho de 18/01/2022, determinando-se a notificação, também pessoal, do insolvente;
21 - por requerimento de 31/03/2021, o insolvente juntou aos autos cópia do recibo de vencimento de Dezembro de 2021;
22 - no relatório apresentado em 20/04/2022, apurou-se o rendimento disponível total de € 3.206,32;
23 - por despacho de 16/05/2022, foi determinada a notificação do insolvente (pessoalmente e através do ilustre mandatário constituído) para, no prazo de 10 dias, entregar à sra. fiduciária comprovativos dos rendimentos auferidos desde Agosto de 2021 a 11/04/2022, bem como comprovativo do recebimento dos subsídios de Natal de 2017, 2020 e 2021 e dos subsídios de férias de 2019 e 2021, bem como para proceder ao pagamento da quantia já apurada em dívida à fidúcia (€ 3.206,32), com a advertência da possibilidade de recusa da exoneração do passivo restante;
24 - na sequência desta notificação, o insolvente não entregou à sra. Fiduciária documentos comprovativos dos rendimentos auferidos desde Agosto de 2021 a 11 de Abril de 2022, nem comprovativos do recebimento dos subsídios de Natal de 2017, 2020 e 2021 e dos subsídios de férias de 2019 e 2021;
25 - não entregou também o rendimento disponível de € 3.206,32, voluntariamente, nem quando para tanto notificado;
26 - não foi, oportunamente, apresentada justificação cabal para a omissão de entrega.
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Nos termos do disposto nos artigos 662º nº 1, 663º nº 2 e 607º nº 3, do CPC, consideram-se apurados ainda os seguintes factos, com relevância para a decisão do recurso, que resultam dos termos dos autos:
27 - Foram verificados por sentenças de 31/03/2016 e de 23/12/16, transitadas em julgado, créditos garantidos e comuns sobre o insolvente no valor de € 859.560,09 (teor dos apensos E e F).
28 – A liquidação de bens não se mostra encerrada tendo sido informado, por requerimento da administradora da insolvência de 27/11/2022 que, naquele momento a conta da massa insolvente apresentava um saldo no montante de 183.334,76 €, faltando vender um imóvel, entretanto vendido[2] e estando pendentes ações para cobrança de rendas (teor do apenso D).*
4. Nulidade da sentença
O recorrente entende ser nula a sentença proferida por não ter procedido a uma análise crítica da prova.
Aponta que, vivendo o insolvente em Angola, que é um país de custo de vida elevado, para quem está deslocado e sem habitação, num trabalho de quase sobrevivência, que é o que permitem as suas habilitações de canalizador, é do conhecimento público que não há serviços postais de correio e comunicações apenas quando não falta a luz e apenas quando o insolvente tenha acesso a locais com internet e que fica dependente da entrega de comprovativos pela entidade patronal e até dos próprios ordenados, pelo que entregou tudo o que lhe foi possível, não tendo atuado com negligência ou dolo.
Apreciando:
Dispõe o n.º 1 do art.º 615º do CPC:
«1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»
O art.º 615º do CPC prevê o elenco taxativo de nulidades que podem afetar a sentença.
Como é uniformemente prevenido pela doutrina e jurisprudência, importa sempre distinguir as nulidades de processo e as nulidades de julgamento, sendo que o regime deste preceito apenas se aplica às segundas.
Quanto à previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC relativa à falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, importa ter em conta que a elaboração da sentença deve respeitar determinadas exigências formais, que o legislador contempla no art.º 607º do CPC.
O nº 3 deste artigo impõe ao juiz que na sentença faça a discriminação autónoma dos factos que considera provados e que indique, interprete e aplique as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final, acrescentando o nº 4 a exigência de análise crítica das provas.
Esta obrigação de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão reflete o dever de fundamentação das decisões imposto pelo nº 1 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa (nos termos do qual «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei»), também regulamentado no art.º 154º do CPC[3].
As partes têm o direito de saber as razões da decisão do tribunal, o que lhes permitirá avaliar a mesma e ponderar a sua impugnação. O dever de fundamentação assenta na necessidade de esclarecimento das partes e constitui uma fonte de legitimação da decisão judicial.
O grau de fundamentação exigível dependerá tanto da complexidade da questão sobre a qual incide a decisão, como da controvérsia revelada pelas partes sobre a situação a decidir. Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros[4], a fundamentação das decisões judiciais, além de ser expressa, clara, coerente e suficiente, deve também ser adequada à importância e circunstância da decisão. Quer isto dizer que as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos exigente (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão.
Tem vindo a ser entendido, que só a absoluta falta de fundamentação pode determinar a nulidade da sentença, não se bastando tal vício com uma fundamentação menos exaustiva - neste sentido, entre muitos outros, os Acs.[5] STJ de 10/05/2021 (Henrique Araújo), 06/07/2017 (Nunes Ribeiro), de 10/07/2008 (Sebastião Póvoas) e os Acs. TRL de 11/03/2021 (Inês Moura) e de 05/11/2020 (Carlos Castelo Branco)[6]
A fundamentação da sentença deve ser de facto e de direito: com a indicação dos factos provados e não provados e com a indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes. Só assim poderá ser compreensível pelos destinatários.
Assim, além da total ausência ou inexistência de fundamentação, esta nulidade ocorrerá também se a referida fundamentação, pela sua formulação, não permite de todo apreender qual o processo lógico seguido pelo julgador na formação da sua convicção, não sendo possível aferir as razões que levaram a decidir de um determinado modo, colocando em crise a construção do silogismo judiciário (e não o erro de julgamento, que leva à alteração ou revogação e não à nulidade), em defeito equivalente à total falta de fundamentação.
No caso concreto a sentença enumerou os factos provados, todos processuais, e justificou a respetiva motivação – resultaram dos relatórios apresentados pela sra. fiduciária e documentos anexos e dos dados dos autos.
Tendo em conta a decisão a proferir, trata-se de fundamentação bastante e claramente percetível.
O que se mostra alegado em recurso como causa de nulidade será a não apreciação dos argumentos alegados pelo insolvente no seu requerimento de 22/04/2022[7], de que vive em Angola, que ali não existem serviços postais, que contacta, quando pode o TOC que o auxilia em Portugal para que este colha os elementos e lhos envie para depois enviar ao mandatário para apresentar em tribunal, procedimento que lhe é oneroso e alheio.
No entanto, o tribunal apreciou a matéria ali alegada, nos seguintes termos, que justificaram a não prova de qualquer dos factos alegados:
“Não colhe a versão do insolvente de que inexiste serviço postal em Angola, o que terá obstado à entrega de documentos, porquanto pontualmente foi entregando documentos nos autos, nem que vive em situação precária, que, aliás, não prova.”
Alega agora o insolvente que é facto público e notório que um cidadão com o trabalho que pode ser feito por um canalizador praticamente só sobrevive e que não há serviços postais naquele país, dificuldades no acesso a locais com internet e dependência da entrega de elementos pela entidade patronal.
Tendo em conta a pronúncia do tribunal sobre a matéria, não temos, claramente, qualquer inexistência ou incompreensibilidade de fundamentação quanto a esta matéria. O tribunal pronunciou-se, apreciou e enunciou os motivos pelos quais não deu qualquer da factualidade alegada como provada.
A alegação ora produzida reconduz-se antes a uma discordância dessa decisão que deve ser conhecida em sede de mérito, caso, efetivamente, os factos alegados se possam ter por notórios, nos termos do art.º 412º do CPC.
Sem que, quer a motivação, quer as conclusões, sejam claras a esse respeito, pode ainda interpretar-se a alínea D destas últimas como alegação de nulidade por falta de fundamentação da decisão proferida pela alegada não prova do dolo ou negligência e não menção da mesma na fundamentação.
Sucede que, tal como resulta da decisão recorrida, a mesma se pronunciou expressamente sobre tal matéria enunciando a não prestação de informações por parte do insolvente, a obrigação de prestação de informações que sobre este impendia e a voluntariedade da conduta do mesmo, nos seguintes termos:
“Ora, resulta claro, em face dos relatórios apresentados pela sra. fiduciária, que o insolvente não lhe prestou, sem justificação, as informações necessárias por esta solicitadas, referentes aos meses de Agosto de 2021 a 11 de Abril de 2022, nem comprovativos do recebimento dos subsídios de Natal de 2017, 2020 e 2021 e dos subsídios de férias de 2019 e 2021, sendo patente a violação do especial dever de colaboração a que estava vinculado.
O insolvente estava obrigado a prestar informações ao tribunal e à fiduciária sobre os seus rendimentos, no prazo em que isso lhe fosse requisitado, e a informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de condições de emprego.
Não cumpriu o insolvente estas obrigações voluntariamente, nem quando para o efeito contactado pela sra. fiduciária, nem quando notificada (diversas vezes ao longo dos vários anos do período de cessão, diga-se) pelo tribunal, nem mesmo quando confrontado com a possibilidade de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.”
E concluiu:
“Em suma, perante todo o exposto e as possibilidades que, ao longo dos quase cinco anos do período de cessão, foram oferecidas ao devedor para cumprir – o que, afinal, significava dar ao devedor a oportunidade para melhor saber gerir os seus rendimentos -, a violação do dever de ceder o rendimento disponível e de prestar as informações que lhe foram repetidamente solicitadas deve considerar-se, pelo menos, gravemente negligente.”
Consta, assim, claramente, da fundamentação, a conclusão, com base nos factos apurados, pela existência de negligência grave por parte do devedor no incumprimento dos seus deveres.
Improcede, assim, a alegada nulidade por falta de fundamentação.
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5. Fundamentos do recurso:
A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start.
Nos termos do disposto no art.º 235.º do CIRE: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.»
“A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[8]
É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor, mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente.
Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art.º 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.[9]
Essa tensão entre dois interesses opostos reflete-se nas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do earned start, ou reabilitação (por contraposição ao fresh start puro), ou seja, fazendo o devedor passar por um período de prova e concedendo o benefício apenas se o devedor o merecer.
É também o modelo eleito a nível europeu, como resulta da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas)[10], já transposta[11], e que, em matéria de exoneração ou perdão, na linguagem da diretiva, prevê o acesso ao perdão total da dívida aos empresários, deixando aos Estados a opção de o aplicar aos consumidores (cfr. considerando 21), após um prazo não superior a três anos, possibilitando a reserva a devedores de boa-fé e à verificação do cumprimento de determinadas condições – cfr. art.ºs 20º a 24º da diretiva, em especial o artigo 22º.
A ponderação destes interesses contrapostos deve ser considerada como guião para a interpretação das normas dos arts. 235º e ss. do CIRE, como resulta, entre outros, do Ac. STJ de 02-02-2016 e TRP de 15-09-2015[12], entre as quais os arts. 243º e 244º.
Estabelece o art.º 244º do CIRE[13], sob a epígrafe Decisão final da exoneração:
«1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
(…)»
Por sua vez o artigo anterior, ou seja, o art.º 243º, prevê como fundamentos da cessação antecipada do procedimento de exoneração:
«1 – (…):
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
(…)
3 – Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do nº1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
(…)»
Este preceito deve ser lido em conjunto com a regra do art.º 246º do CIRE, que regula a revogação da exoneração e que estabelece:
«1 - A exoneração do passivo restante é revogada provando-se que o devedor incorreu em alguma das situações previstas nas alíneas b) e seguintes do n.º 1 do artigo 238.º, ou violou dolosamente as suas obrigações durante o período da cessão, e por algum desses motivos tenha prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência.
2 - A revogação apenas pode ser decretada até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado do despacho de exoneração; quando requerida por um credor da insolvência, tem este ainda de provar não ter tido conhecimento dos fundamentos da revogação até ao momento do trânsito.
3 - Antes de decidir a questão, o juiz deve ouvir o devedor e o fiduciário.
4 - A revogação da exoneração importa a reconstituição de todos os créditos extintos.»
Resulta do confronto entre os preceitos que a violação das obrigações impostas ao devedor durante o período de cessão é fundamento, tanto da cessação antecipada do procedimento de exoneração e da recusa da exoneração como de revogação da exoneração[14], após concedida, mas com as seguintes assinaláveis diferenças:
- no caso da cessão antecipada e de recusa da exoneração a violação das obrigações deve ser dolosa ou cometida com negligência grave e deve ser causa de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
- no caso da revogação da exoneração a violação das obrigações impostas ao devedor deve ser dolosa e causa de prejuízo relevante para a satisfação dos créditos sobre a insolvência[15].
Vejamos, então, em concreto, os fundamentos do despacho recorrido e os argumentos trazidos a recurso.
Sintetizando, a decisão recorrida imputa ao recorrente o incumprimento da entrega à fidúcia de € 3.206,32, apurados de acordo com os elementos obtidos e ainda o incumprimento da obrigação de prestação de informações solicitadas, pela administradora da insolvência e pelo tribunal, quanto aos rendimentos auferidos nos meses de agosto de 2021 a 11 de abril de 2022 e quanto aos subsídios de férias auferidos em 2019 e 2021 e aos subsídios de Natal de 2017, 2020 e 2021. Conclui ter o devedor agido com grave negligência, frisando o facto de ter estado sempre devidamente representado, as múltiplas oportunidades que lhe foram dadas e ter ocorrido prejuízo para os credores relativamente ao incumprimento apurado, que seria superior se todas as informações houvessem sido prestadas.
A apelação não coloca em causa os incumprimentos apurados, de entrega e de prestação de informações, centrando-se na justificação dessas condutas com base no que considera factos notórios: i) que  devedor vive em Angola; ii) que tem um trabalho de quase sobrevivência; iii) que o custo de vida em angola é muito elevado; iv) que não tem ali habitação; v) que em Angola não existem serviços de correios e postal; vi) que as comunicações apenas são possíveis em locais com acesso à internet e quando não falte a luz; vii) que depende da entidade patronal para lhe disponibilizar os suportes cuja entrega lhe é exigida e os próprios pagamentos do ordenado.
Importa aferir se os factos apontados se podem subsumir ao conceito de factos notórios, os quais, nos termos do art.º 412º nº1 do CPC, aplicável ex vi art.º 17º nº1 do CIRE, não carecem de prova nem de alegação.
Nos termos do nº1 do art.º 412º do CPC, são factos notórios os que são do conhecimento geral.
Como já ensinava Alberto dos Reis “Facto notório é, por definição, facto conhecido”. Mas não basta qualquer conhecimento; é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau de difusão que o facto apareça, por assim dizer, revestido de carácter de certeza”[16], não podendo, porém, qualificar-se de notório um facto que seja apenas conhecido pelo juiz ou por um círculo restrito de pessoas[17].
Assim, o conhecimento geral que torna um facto notório “é um conhecimento com um elevado grau de divulgação do facto, que permita afirmá-lo como sabido da generalidade, ou grande maioria, das pessoas que possam considerar-se regularmente informadas, e por estas reputadas como verdadeiro.”[18] exigindo-se “extensão e difusão do conhecimento à grande maioria dos cidadãos.”[19]
Castro Mendes e Teixeira de Sousa[20] apontam a existência de factos de conhecimento geral (como o facto de Lisboa ser a capital de Portugal) e de conhecimento local ou regional (como a localização de uma rua), bem como factos que qualquer pessoa pode conhecer (como a correspondência entre uma data e um dia da semana).
Na síntese de Luís Filipe Pires de Sousa, citando Comoglia e Luca Ariola [21] “facto notório é o facto de conhecimento comum e de experiência comum, que integra a cultura média da coletividade de um dado tempo e lugar, (…) adquirido com tal grau de certeza que se apresenta indubitável e incontestável, sendo uma realidade diversa de um evento ou situação objeto do conhecimento apenas do juiz.”
A exigência do conhecimento geral materializa-se[22] em vários níveis: na esfera pessoal tem que constar como certo ou falso para a generalidade das pessoas de cultura média entre os quais o juiz; na esfera cognoscitiva tem que se tratar de um conhecimento acessível em geral, e não ser privativo de um reduzido número de pessoas que se dedica a uma atividade comum; na esfera espacial tem que ser conhecido no território que integra as instâncias de recurso.
“Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos.”[23]
Aplicando o conceito de facto notório, assim caraterizado, ao caso dos autos temos  que, com muita clareza, nenhum dos acervos de factos alegados é do conhecimento geral: não é do conhecimento geral que o devedor, uma pessoa que não é uma celebridade, viva em Angola, não é do conhecimento geral a que tipo de trabalho se dedique ou o que ganhe, quanto ao custo de vida em Angola, será do conhecimento geral dos angolanos, mas não dos portugueses ou do tribunal, a inexistência (ou existência) de serviços postais em Angola, idem, as circunstâncias em que o devedor tem acesso à internet são do seu exclusivo conhecimento pessoal e a sua relação com a sua entidade patronal facto do conhecimento apenas deste e da entidade patronal. No essencial, estamos ante factos pessoais do devedor, que não só não são do conhecimento geral como, por regra, apenas são do seu conhecimento e do seu círculo familiar mais restrito.
Vejamos agora se, eventualmente, e apesar de não ter sido expressamente alegado, poderemos estar ante factos de que o tribunal tem conhecimento em virtude do exercício das suas funções, dado que, nos termos do nº2 do mesmo art.º 412º do CPC, tais factos também não exigem alegação.
Estes são factos que necessariamente se passaram no tribunal ou perante ele[24] e cuja condição de utilização é a de serem factos que podem ser provados documentalmente.
E começando pelo facto base, que o devedor vive em Angola, um facto pessoal do devedor, verificamos, tal como afirmado pela decisão recorrida, que a primeira vez que o devedor exonerando comunicou ao tribunal que se encontrava em Angola foi no requerimento de abril de 2022, após notificado para os efeitos previstos no nº1 do art.º 244º do CIRE. Até aí, a única referência efetuada foi num requerimento de 03/01/2020, onde se alude a uma presença em Portugal, e implicitamente a uma ausência de Portugal, sem qualquer outro pormenor.
Os documentos relativos aos salários do devedor que foram sendo juntos são emitidos por uma empresa portuguesa e com sede em Portugal, a mesma desde que começaram a ser fornecidos.
Assim, não pode considerar-se como um facto do conhecimento do tribunal que o devedor vivesse noutro país que não Portugal e, obviamente, indemonstrados ficam todos os factos que dependem deste[25].
Assim sendo, nenhum dos factos alegados se pode considerar independentemente de alegação e prova, improcedendo assim, as alegações do recorrente quanto a tal matéria.
Defende também o recorrente que não se mostra apurado que o devedor tenha agido com dolo ou grave negligência.
Como já referimos, foram dois os fundamentos da decisão de recusa: não entrega à fidúcia de € 3.206,32, apurados de acordo com os elementos obtidos e ainda o incumprimento da obrigação de prestação de informações solicitadas, pela administradora da insolvência e pelo tribunal, quanto aos rendimentos auferidos.
Relativamente ao apurado incumprimento da obrigação de entrega do rendimento excedente ao fixado como indisponível, como já referido, o incumprimento objetivo não foi posto em causa.
São requisitos da recusa da exoneração nos termos conjugados do nº 2 do art.º 244º e da alínea a) do nº1 do art.º 243º:
i) A violação das obrigações previstas no art.º 239º do CIRE;
ii) Com dolo ou negligência grave;
iii) Prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; e
iv) Nexo de causalidade entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do insolvente e o dano para a satisfação dos credores da insolvência[26].
O art.º 239º enumera, no seu nº 4 as obrigações do devedor durante o período da cessão, entre os quais entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; (alínea c).
O recorrente alega que o valor a ceder em sede de rendimento disponível tem como referência o valor de três ordenados mínimos nacionais.
Sucede que não reagiu à decisão que fixou como rendimento indisponível do devedor um salário mínimo nacional, pelo que estava obrigado, em concreto, a ceder tudo o que excedesse aquele valor, independentemente da previsão legal e abstrata de que o montante a ceder não deverá exceder, salvo decisão fundamentada em contrário, três salários mínimos nacionais.
A violação das obrigações impostas está, assim, e como concluiu a decisão recorrida, verificada.
Passando ao segundo elemento exigível, recordemos que o dolo tem no nosso direito civil uma dupla aceção como aponta Menezes Cordeiro[27], o dolo-vício e o dolo-culpa, correspondendo o dolo previsto no art.º 243º do CIRE ao dolo culpa referido no art.º 483º nº1 do Código Civil, que ali se contrapõe à mera culpa ou negligência.
Não cremos necessário o recurso às categorias correspondentes do direito penal[28], que correspondem genericamente às categorias do direito civil, com maior e compreensível depuramento, não havendo que distinguir entre dolo direto, necessário ou eventual, mas fixando que o dolo compreende conhecimento e intenção, ou seja, o agente tem conhecimento dos deveres que sobre ele recaem e age de forma desconforme bem sabendo que assim viola tais deveres.
A negligência ou mera culpa consiste na violação de deveres de cuidado a que o agente está obrigado e de que é capaz, conduzindo a um resultado desconforme que pode ou não ter sido representado como possível.
Correspondem, quer o dolo, quer a negligência, a representações internas do agente avaliadas pela exteriorização das respetivas ações, ou seja, são factos que se extraem das ações ou omissões dos agentes, não sendo suscetíveis de prova direta, como representações internas que são.
O devedor não coloca em causa que tinha conhecimento dos deveres que sobre si impendiam e claramente não os cumpriu pelo que, ciente, tanto basta para que se possa qualificar a respetiva conduta, ao não proceder à entrega do rendimento disponível ou não prestar informações solicitadas como uma conduta voluntária.
Se os rendimentos e despesas do devedor foram analisados no despacho inicial, sem impugnação e o devedor não conseguiu dispor do excedente ao indisponível, foi porque agiu de forma negligente, não adequando as suas despesas ao período de cessão de rendimentos que atravessava.
A exoneração é uma benesse conferida aos devedores em sacrifício dos credores e importa para os devedores também a realização de sacrifícios, nomeadamente, a adequação do nível de despesas às obrigações impostas no despacho inicial durante o período de cessão do rendimento disponível. É o decurso do período de cessão e a conduta do devedor durante o mesmo, mantendo o cumprimento das obrigações impostas, com sacrifícios envolvidos, que justifica se ganhe a exoneração (o earned fresh start), a final do mesmo.
O tribunal recorrido frisou ainda, e bem, que em tempo útil (antes da decisão recorrida) apesar concedido prazo para o efeito, nunca foi sequer esboçada uma proposta de reposição dos valores em falta o que também contribui para o cenário de negligência grave.
Conclui-se, assim, tal como na decisão recorrida, pela existência de negligência grave no não cumprimento parcial da obrigação de entrega do montante excedente ao rendimento fixado como indisponível.
No tocante ao prejuízo, já se explicitou, citando jurisprudência, que o prejuízo só terá que ser relevante para a revogação da exoneração concedida nos termos do art.º 246º, apenas sendo exigível, para o preenchimento da alínea a) do nº1 do artigo 243º o próprio prejuízo.
Estamos cientes de jurisprudência que afasta a aplicação do 243º nos casos em que o prejuízo é insignificante[29] o que é coisa bem diversa de afirmar que o prejuízo terá que se mostrar relevante.
O prejuízo apurado – e que recorde-se, se refere apenas aos elementos de informação que foram prestados, havendo elementos relevantes que o não foram - não pode ser qualificado de insignificante, sendo absolutamente correto enquadrar o prejuízo nos valores em jogo no caso concreto. É certo que o valor dos créditos por satisfazer é muito alto, mas não é isso que torna o prejuízo sofrido com a não entrega do que devia ser entregue insignificante.
Por fim, o incumprimento do insolvente foi causa direta do prejuízo sofrido pelos credores.
Acresce, quando ao segundo fundamento de recusa, ou seja, o não fornecimento de elementos comprovativos dos rendimentos auferidos que, no caso, sendo imputada a violação dos deveres previstos nas alíneas a) e c) do nº4 do art.º 239º, o tribunal notificou o insolvente para os efeitos previstos na segunda parte do nº3 do art.º 243º do CIRE por várias vezes sem que nunca tenha obtido uma resposta completa[30].
O nº 3 do art.º 243º do CIRE constitui uma causa autónoma de cessação antecipada e de recusa de exoneração que não se subsume aos requisitos atrás anunciados. Trata-se de uma sanção[31] para o exonerando que se coloca em situação de não permitir que se averiguem os requisitos já enunciados: violação das obrigações dolosa ou cometida com negligência grave e causa de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Nas palavras de Letícia Marques Costa[32] trata-se de uma causa de cessação antecipada “obrigatória e judicialmente determinada em dois casos específicos (artigo 243º nº3, 2ª parte): quando o devedor não forneça, no prazo que lhe for fixado, informações que comprovem que cumpriu as suas obrigações; e quando o devedor, tendo sido para o efeito devidamente convocado, falte à audiência em que deveria prestar essas informações. Nos demais casos, em que os legitimados carreiam para os autos informações acerca de circunstâncias que possam conduzir à cessação antecipada terá que ser por eles produzida a respetiva prova a fim de que o juiz possa decidir em conformidade.”
Neste sentido cfr. o Ac. TRP de 09/09/2021 (Filipe Caroço), no qual, após análise da conduta dos insolventes que nunca prestaram qualquer informação nem instados a fazê-lo remata: “Mais…, o nº 3 do art.º 243º limita a exigência prevista nas al.s a) e b) do nº 1, ao determinar que “a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações (…)”. Fica, assim, dispensada a demonstração de prejuízo económico para os credores.”
No mesmo sentido o Ac. TRL de 23/02/2020 (Vera Antunes), no qual se decidiu:
“I- Para o preenchimento da previsão do art.º 243º, n.º 1, a) do CIRE é necessário, para além da violação dos deveres aí previstos por parte do insolvente, que se verifique em concreto um prejuízo para os credores da insolvência e da omissão de informações resulta que não se pode avaliar da existência desse prejuízo.
II - Mas já o mesmo não se pode dizer quanto à previsão do art.º 243º, n.º 3, parte final do CIRE, que se julga consistir na previsão pelo julgador das consequências aplicáveis a casos como o dos autos, em que há omissão de informação, sem que seja possível enquadrar a mesma nas previsões anteriores, precisamente por não ser possível apurar do concreto prejuízo para os credores.
III - A não ser assim, resultaria que a omissão de informações por parte dos insolventes redundaria num benefício para os mesmos – bastava nada dizer ou informar (sendo este um ónus que a Lei impõe a seu cargo, como contrapartida do benefício que supõe a exoneração do passivo restante) e, já agora, nenhum rendimento entregar, para que não se pudesse concluir pela verificação de todos os requisitos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, uma vez que não seria possível averiguar do concreto prejuízo para os credores.”
Partilhamos desta opinião – a conduta dolosa ou gravemente negligente apenas terá que ser aferida em relação à própria recusa de colaboração do exonerando, cometendo a este o ónus de alegar um motivo razoável para o não fornecimento das informações ou para o não comparecimento. Porque, na verdade é esta conduta omissiva do devedor que impede que se averigue, sequer, a existência de incumprimentos.
Nesse aspeto o presente caso é exemplar – o insolvente nunca forneceu todos os elementos pedidos. Não se logrou saber, ainda no decurso do período de cessão e após findo o mesmo, ou seja, em tempo útil para a decisão, quais exatamente os rendimentos do insolvente.
Essa não é uma conduta que paute com a postura de um devedor que está a forçar os seus credores a um sacrifício considerável para obter o perdão das suas dívidas e um recomeço financeiramente desimpedido. Os deveres de informação resultam da lei, são especificamente impostos e comunicados aquando do despacho liminar e são absolutamente instrumentais a todos os demais deveres e, no fundo aos direitos que daqui vão emergir para o devedor.
Recorde-se que o equilíbrio entre o interesse do devedor e os interesses dos credores é a pedra de toque do instituto da exoneração do passivo restante. A ponderação exige que os atos do devedor que a lei erige como representando a boa-fé do mesmo ou falta dela sejam objetivamente apreciados. O que exceda esta averiguação é do foro interno do devedor, e os credores, que já estão prejudicados pelo incumprimento, não poderão sê-lo mais por circunstâncias do devedor às quais são alheios.
Aqui chegados só nos resta concluir, tal como no despacho recorrido, que se encontram reunidos e verificados todos os pressupostos da recusa da exoneração, pelo que deve ser mantida a decisão proferida.
*
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário – art.ºs 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil.
*
6. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar integralmente improcedente a apelação, decidindo-se manter a decisão recorrida.
*
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Notifique.
*
Lisboa, 24 de janeiro de 2023
Fátima Reis Silva
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
_______________________________________________________
[1] Numeração inserida por este tribunal para melhor compreensão e referência.
[2] Por €100 e a dividir com a massa insolvente da ex-mulher do insolvente.
[3] O art.º 154.º do CPC sob a epígrafe “dever de fundamentar a decisão”, estabelece:
“1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”
[4] Em Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, pgs. 72 e 73.
[5] Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Este último com exaustiva citação de doutrina e jurisprudência.
[7] Onde alegou, sem indicar qualquer meio de prova:
“lº O insolvente está a viver e a fazer vida em Angola.
2º Esta contingência leva e determina que, quando lhe são solicitados dado, elementos e suportes pela Ex.ma Snra Fiduciária, num país em que nem sequer há serviços de correio,
3º tenha de contactar, quando lhe é possível e tenha acesso aos serviços da Internet, o TOC que o auxilia em Portugal, para que este, colha os elementos pedidos, envie-lhe para, depois,
4º por sua vez, enviar ao seu mandatário em Portugal que os faz apresentar em Tribunal.
5º Todo este procedimento é-lhe oneroso e alheio, sendo falso e injurioso o que lhe está a ser imputado,
6º dado que não só entrega e disponibiliza tudo o que lhe é pedido e solicitado como não oculta rendimentos e, infelizmente, porque não pode, porque vive e sobrevive numa situação muito precária senão quase miserável, 
7º não cede o que não pode ceder,”
[8] Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pg. 560.
[9] Neste sentido Catarina Serra, local citado, pgs. 562 e 563.
[10] Texto disponível in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L1023&from=PT
[11] Pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, que entrou em vigor no dia 11 de abril de 2022.
[12] Todos disponíveis em www.dgsi.pt, tal como os demais arestos citados sem referência.
[13] Na versão dada pela Lei nº 9/2022, de 11/01, que entrou em vigor no dia 11/04/2022.
[14] Propondo Catarina Serra uma leitura corretiva do artigo 246º por considerar que a remissão deste deveria ser para o art.º 243º e não para o artigo 239º - “Lições…”, pg. 574.
[15] Neste sentido ver Ac. TRP de 06-04-2017 (relatora Judite Pires), no qual se sumariou: “Enquanto a revogação da exoneração pressupõe uma actuação dolosa do devedor faltoso, da qual resulte um prejuízo relevante para a satisfação dos credores da insolvência, a cessação antecipada do procedimento da exoneração basta-se com a culpa grave, sem necessidade de a conduta infractora revestir a modalidade de dolo, não se exigindo que o prejuízo seja relevante.” e Ac. TRL de 23-03-2017 (relatora Ondina Alves) onde se concluiu: “Ao contrário da revogação da exoneração do passivo, na cessação antecipada da exoneração não se exige que a violação das obrigações impostas ao insolvente haja prejudicado, de forma relevante, a satisfação dos credores da insolvência.”
[16] Em Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 4ª edição, 1985, Coimbra Editora, pg. 260.
[17] Ac. STJ de 23/01/2020 (Rosário Morgado) disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:12.15.0TNLSB.L1.S1/, citando Alberto dos Reis (nota anterior).
[18] Ac. STJ de 01/04/2014 (Gregório Silva Jesus).
[19] Ac. TRG de 12/01/2012 (Raquel Rego).
[20] Em Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, pg. 472.
[21] Em Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, pgs. 21 e 22.
[22] Continuamos a seguir Pires de Sousa, local citado na nota anterior.
[23] Ac. TRC de 22/06/2010 (Carvalho Martins).
[24] Cfr. Castro Mendes e Teixeira de Sousa, em Manual…, pg. 472.
[25] O devedor declarou na oposição ter a sua residência efetiva em Queluz, na morada que ficou consolidada nos autos e da qual nunca veio devolvida qualquer correspondência a si dirigida.
[26] Neste sentido ver Ac. TRP de 04-11-2019 (relator Manuel Domingues Fernandes) e Ac. TRL de 23-03-2017 (relatora Ondina Alves), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[27] Em Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, 2020, pg. 745.
[28] Como faz Luís M. Martins em Recuperação de Pessoas Singulares, Vol. I, Almedina 2011, pg. 86.
[29] Cfr. Ac. STJ de 11/02/2020 (Relatora Olinda Garcia), disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ e no qual se considerou que a “mora na entrega do montante de €1.038,84” não configurava prejuízo para os credores.
[30] Factos nºs 1 a 12, 14 a 16, 18 a 21 e 23 a 24.
[31] Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação ao preceito citado, “A recusa da exoneração constitui, quando se verifiquem estas situações, uma sanção para o comportamento indevido do devedor:”, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pg. 868.
[32] Em A insolvência de pessoas singulares, Almedina, Teses, 2021, pg. 148.