Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
150/15.9PJCSC.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Concatenando entre si as normas dos artigos 2º e 28º da Lei nº 30/2000 resulta uma descriminalização relativamente ao consumo de estupefacientes, revogando-se o artigo 40º, do Decreto-Lei nº 15/93 – excepto quanto ao cultivo – que punia como crime o consumo, passando a integrar contra-ordenação, mas só até quantidades que não poderão exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

            - Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça pelo Acórdão nº 8/2008, de 25/06/2008, in D.R. nº 146, Série I-A, de 05/08/2008, fixou jurisprudência no sentido de que “não obstante a derrogação operada pelo art. 28º da Lei 30/2000, de 29/11, a Lei 15/93, de 22/01, manteve-se em vigor não só quanto ao cultivo, como relativamente à detenção para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”

- Mantendo-se em vigor o artigo 71º do Decreto-Lei nº 15/93, importa atender ao mapa a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26/03, sendo certo que os valores indicativos contidos nesse mapa anexo, revestem valor de mero meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não sendo de aplicação automática, podendo pois ser impugnados e afastados pelo tribunal, desde que com a devida fundamentação.

            - Considerando os limites definidos no mapa mencionado no artigo 9º, da Portaria nº 94/96, o limite quantitativo máximo diário para a substância em causa (canabis-resina) é de 0,5 gramas, tendo como referência uma dose média diária com base na variação de conteúdo médio do THC existente nos produtos de canabis e atendendo a uma concentração média de 10%.

            - Ponderando que o arguido detinha 8,487 gramas de canabis (resina), com a substância activa presente (tetrahidrocanabinol ou A9THC) e um grau de pureza de 13,8%, sendo a dose média individual de 0,5 gramas, para um grau de concentração média de 10%, chegamos à conclusão que tinha consigo o correspondente a 23 doses diárias - 8,487 x (13,8% / 10%) / 0,5. Ou seja, quantidade que sabia corresponder ao consumo médio para mais de 10 dias e, por isso, legalmente proibida e punida pela lei penal.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC 150/15.9PJCSC, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Criminal de Cascais – Juiz 3, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi o arguido P. absolvido, por sentença de 09/03/2018, da prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21º, nº 1 e 25º,alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à tabela anexa I-C, por que vinha acusado.


2. O Ministério Público não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso.

2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1.
O arguido P. foi acusado nos presentes autos, da prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo disposto nos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, consubstanciada a sua conduta em acto de detenção de produto estupefaciente, nomeadamente canabis (resina), no dia 5 de Novembro de 2015.
2.
Realizada audiência de julgamento, e em sede de alegações orais, pugnou o Ministério Público, posição que foi secundada pelo arguido, a convolação da qualificação jurídica para crime menos grave, considerando a prova produzida e constante nos autos, aí se afirmando dever ser, em face desta, o arguido condenado pelo crime de consumo de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e não já pelo crime que lhe foi imputado na acusação proferida, de tráfico de menor gravidade.
3.
Na sentença foram dados como provados a maioria dos factos constantes na acusação, aí ficando clarificado que o arguido destinava o produto estupefaciente ao seu consumo exclusivo (e não já há cedência e venda, como se afirmava na acusação), bem como os referentes às condições pessoais do arguido e os antecedentes criminais decorrentes do respectivo certificado, baseando-se a convicção do Tribunal na confissão do arguido, que confirmou os factos que foram dados como provados e que prestou declarações sobre as suas condições pessoais, bem como no auto de notícia, fls. 3 a 5, no auto de apreensão, fls. 6 a 7, no teste rápido, fls. 12, na fotografia, fls. 13 e no teor do relatório pericial, fls. 26 e 27, bem como no certificado de registo criminal.
4.
O recurso ora interposto restringe-se apenas ao facto de o arguido não ter sido condenado nos presentes autos pela prática do crime de consumo de estupefaciente, tendo sido entendido, ao invés, que a conduta descrita e dada como provada era única e exclusivamente susceptível de integrar a contra-ordenação prevista no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro.
5.
Do exame pericial (fls. 27), elaborado em cumprimento do determinado no artigo 62.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e do artigo 10.º da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, resulta que: O produto vegetal apresenta o peso líquido de 8,487g/L e submetida a amostra a protocolo analítico adequado, segundo especificações normalizadas do Laboratório de Toxicologia do LPC, foi apurado que a substância activa presente foi identificada como se tratando de canabis (resina); que a mesma encontra previsão legal na Tabela I-C do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; que a substância apresenta um grau de pureza de 13,8% (THC) e que, segundo a Portaria n.º 94/96 foi calculado que a mesma dava para 23 doses individuais.
6.
A sentença proferida entende, sem fundamentar as razões da sua divergência, não ser de aplicar o teor do relatório pericial, pese embora dê como provado o número de doses em que o produto estupefaciente era passível de ser dividido, afirmando, ao invés, que ‘no caso dos autos, face ao teor do exame do LPC de fls. 26 e 27, tendo sido quantificada em 13,8% a percentagem do princípio activo (tendo a canabis apreendida o peso líquido de 8,487 gramas), é evidente que tal conduta não se poderá subsumir ao crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2 do Decreto- Lei n.º 15/93, nem tão pouco, ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade que vem imputado ao arguido na peça acusatória’, aplicando, ao invés, critérios jurisprudenciais (sustentados em arestos de 1990 e 1991).
7.
Ora, aferindo-se que o exame pericial cumpre todos os requisitos legalmente estabelecidos, certo é que o Tribunal se encontrava limitado na sua apreciação, atento o determinado no artigo 163.º do Código de Processo Penal, não podendo afastar o seu teor para aplicar critérios jurisprudenciais.
8.
Para além do mais, a sentença de que ora se recorre conclui ainda, fazendo, no nosso entender, uma errónea interpretação do teor do artigo 71.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e não tendo em consideração o teor das legendas constantes do mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, que ‘as quantidades a que alude o referido mapa referem-se a quantidades puras, ou seja, ao princípio a que alude o artigo 71.º, n.º 1, al. c) do Decreto-Lei n.º 15/93, o que não pode confundir-se com o peso líquido resultante dos relatórios do LPC’.
9.
Ora, como resulta claro e expresso na Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, a quantidade aí indicada para a canabis (resina), no que respeita a limites quantitativos, estabelecida em 0,5g diários é-o numa concentração média de 10% de A9THC e não a um estado de pureza absoluta da substância ou uma concentração de 100% (v. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Outubro de 2017, Processo n.º 180/16.3PJOER.L1-3, disponível em www.dgsi.pt).
10. 
Da matéria de facto dada como provada resulta que o arguido, no dia 5 de Novembro de 2015, pelas 19h45m, tinha na sua posse um pedaço de canabis (resina), com o peso de 8,487g/l, com um grau de pureza de 13,8%, divisíveis em 23 (vinte e três) doses individuais, o qual era de sua propriedade…
11.
… da qual resulta cabalmente preenchida a norma incriminadora: detenção de produto estupefaciente; que era destinado, pelo seu detentor, ao seu consumo pessoal; de substância que se encontra compreendida e identificada em tabela anexa (tabela I-C), cuja natureza foi apurada através do competente relatório pericial; que excede a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, o que deve ser aferido por recurso ao mapa a que se refere o n.º 9 da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, e o que se verifica nos presentes autos, porquanto, como resulta do relatório pericial o produto era passível de durar para 23 dias (uma dose = um dia).
12.
Entende-se que, tendo em consideração a matéria de facto dada como provada e o teor do relatório pericial junto aos autos, deve o arguido ser condenado pelo crime de consumo de estupefacientes, numa pena de multa que se deverá fixar entre 40 e 50 dias, à taxa diária de €5, pena essa que se mostra de acordo com os critérios legais estabelecidos e as exigências de prevenção geral e especial.
13.
Face ao exposto, a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pelo crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, em conjugação com o constante na Tabela I-C ao mesmo anexa, sendo que ao absolvê-lo da sua prática violou a mesma o disposto nesse artigo, bem como o disposto no artigo 163.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e artigo 71.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, incorrendo no vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, de erro notório na apreciação da prova.
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por outra nos termos supra referidos, só assim se fazendo a esperada e costumada Justiça!
3. Inexiste resposta à motivação de recurso.
4. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer nos seguintes termos (transcrição):

Vista artº416º do CPP
Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público, visando a impugnação da sentença, que absolve o arguido da práctica de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p p. pelo artº 21º e 25º alínea a) do DL nº 15/93 de 22/01, pelo qual vinha acusado.
Nos termos do disposto no art. 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP, o recurso é de julgar em conferência.
Diga-se desde já que, a nosso ver, a razão está do lado do recorrente. E louvando-nos na esclarecida e bem fundamentada motivação do seu recurso, a merecer a nossa inteira adesão, dispensamo-nos de retomar aqui a argumentação ali aduzida.
Complementarmente, apenas se nos oferece dizer ainda o seguinte:
Vistas as conclusões do recurso interposto, a questão de que importará conhecer consiste apenas em saber se a substância apreendida ao arguido excede a quantidade necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, integrando a sua actuação a prática do crime p. e p. pelo artigo 40º, nº 2 do Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01, como defende a recorrente, ou ao invés, como decidiu o tribunal, a práctica de uma contraordenação p. p. pelo artº 2º nº 1 e 2 da Lei nº 30/2000, de 29/11.
Antes de mais, é para nós manifesto que tendo presente as quantidades de estupefaciente apreendidas na posse do arguido - 8,487gr/l de cannabis (resina), com um grau de pureza de 13,2%.e o fim a que se destinava impõe-se concluir que a conduta imputada ao arguido apenas é passível de configurar a prática por este, de um crime de detenção de estupefacientes para consumo, p, e p. nos termos do n. º 2 do art, 40.º do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C anexa, cfr. Jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2008, áe 25/06,
Dos factos provados resulta que o arguido detinha na sua pose 8,487gr/l de cannabis (resina), com um grau de pureza de 13,2%, que destinava ao seu consumo próprio.
Importa ter presente que as tabelas anexas à Portaria nº 94/96, de 26/3 se referem apenas ao princípio activo das substâncias, ou seja, à "droga pura", e não a um qualquer composto que tenha estupefaciente, pois só a droga pura permite uma quantificação como aquela que consta das tabelas.
Só depois, com estes valores fixados no exame laboratorial,- é essencial esta identificação- é que podemos socorrer-nos dos valores referidos na referida tabela.
E, é perante a percentagem do princípio activo constante da substância apreendida, é que podemos avaliar se a quantidade detida é «superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»
No caso em apreço, o relatório de exame pericial do produto detido pelo arguido determina a percentagem de produto activo.
Assim, satisfazendo os exames laboratoriais as exigências da Portaria, nada justifica o seu afastamento, tendo os limites fixados na referida tabela um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial.
De acordo com tal mapa, é, de 0,5 gr a quantidade de cannabis (resina) correspondente ao consumo médio individual diário. Assim, e se nos ativermos a este valor, não restam dúvidas de que a quantidade de cannabis detida pelo arguido e recorrente excede o consumo médio individual durante dez dias.
Teremos de considerar, porém, e como já atrás referimos, que não deve ser ignorado o grau de pureza da substância submetida a exame pericial no LPC, que no caso concreto era o seguinte: 8,487gr/l de cannabis (resina), com um grau de pureza de 13,2%,
Em síntese, só se pode ver se uma determinada porção desse produto excede ou não um determinado limite depois de ter sido determinado o seu peso líquido e o grau de pureza.
Assim sendo, e fazendo uso da fórmula aritmética, temos que:
8,487gr xl3,2=
1120,284:0,05= 224 056,8
De acordo com este entendimento, o arguido detinha 23 doses.
De acordo com este critério, parece-nos que a quantidade de estupefaciente detida pelo arguido excedia o necessário para o consumo médio durante dez dias de um toxicodependente.
Assim a conduta do arguido não integra, a previsão da contraordenação de consumo p. e p. pelo artigo 2º n.ºs 1 e 2 da Lei 30/2000, mas sim de um crime de consumo de estupefacientes p. p. pelo artº 40º nº 2 do DL nº 15/93 de 22/01, como defende a Magistrada do Ministério Público, recorrente.
Termos em que emitimos parecer no sentido da procedência do recurso.
5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
6. O arguido foi notificado para, querendo, requerer a realização de audiência, onde podia estar presente com o seu advogado, para se pronunciar pessoalmente sobre as questões da sua culpabilidade ou inocência e eventualidade da condenação, mas nada impetrou.
7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
1.   Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a do enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido.
2. A Decisão Recorrida
O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):
1. No dia 5 de Novembro de 2015, pelas 19h40m, o arguido P. , conduzindo o veículo ligeiro de passageiros, de marca Renault, modelo Clio, com a matrícula 04 ..., deslocou-se à residência de AC , sita na Rua … em S. Domingos de Rana, área deste município.
2. No interior da referida residência o arguido P. entregou a AC  a quantia de €10 (dez euros) recebendo em troca um pedaço de canabis (resina), que guardou.
3. Pelas 19h45m, do referido dia 5 de Novembro de 2015, o arguido P. circulava na viatura identificada na Rua Cidade de Viana do Castelo, em S. Domingos de Rana, área deste município, quando foi abordado pela autoridade policial.
4. Em tais circunstâncias de tempo e lugar, o arguido P. tinha na sua posse um pedaço de canabis (resina), com o peso de 8,487gr/L, que apresentava um grau de pureza de 13,8%, o qual se mostrava passível de ser dividido em 23 (vinte e três) doses individuais (tendo por consideração a substância activa apurada), o qual era de sua propriedade.
5. O arguido destinava o estupefaciente a que é feita referência em 4., ao seu próprio consumo.
6. O arguido P. conhecia as características do produto que adquirira, detinha, transportava e consumia, nas circunstâncias que se descreveram, bem sabendo que se tratava de produto considerado estupefaciente, nomeadamente canabis (resina).
7. Mais sabia que não podia adquirir, transportar, obter, deter ou por qualquer forma ceder, vender, distribuir ou proporcionar a outrem o referido produto que detinha.
8. Actuou o arguido livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e, mesmo assim, não se inibiu de a praticar.
Mais se provou:
9. O arguido possui, como habilitações literárias, o 5.º ano de escolaridade.
10. Exerce a actividade profissional de limpezas, em part-time, auferindo o salário líquido mensal de € 300,00.
11. O arguido vive da mãe e do irmão.
12. A mãe do arguido encontra-se reformada.
13. O arguido tem dois filhos.
14. O arguido não tem condenações averbadas no respectivo registo criminal.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):

- que o arguido conhecia as características do produto estupefaciente que vendia e cedia.
Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

Nos termos do art. 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.
O Código de Processo Penal consagra a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97.º, n.º 5 e 374.º, n.º 2, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
No caso vertente, a convicção do tribunal no que respeita à factualidade dada como provada formou-se com base na apreciação global e crítica da prova produzida nos autos, designadamente a prova documental (auto de notícia de fls. 3 a 5, auto de apreensão de fls. 6 a 7, teste rápido de fls.12, e fotografia de fls. 13), e nas declarações prestadas pelo arguido, o qual confessou, de forma livre e espontânea, de um modo que se afigurou sério e sincero, toda a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, explicitando que destinava o produto estupefaciente ao seu próprio consumo, não tendo, nesta matéria, as declarações do arguido sido infirmadas por qualquer prova em contrário.
No que respeita à caracterização do produto estupefaciente como sendo canabis (resina), e ao respectivo peso, teve-se em conta o teor do relatório do exame laboratorial constante de fls. 26 e 27.
Quanto às condições pessoais, o tribunal fundou a sua convicção nas próprias declarações do arguido, e, relativamente á ausência de antecedentes criminais, atendeu ao teor do certificado de registo criminal junto aos autos, com data de emissão de 02/02/2018.
A factualidade dada como não provada resulta da ausência de elementos de prova.

Apreciemos.
O recorrente Ministério Público insurge-se contra a não condenação do arguido pela prática do crime p. e p. pelo artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, considerando que a quantidade de canabis que detinha, atendendo ao respectivo grau de pureza e a que se destinava ao consumo próprio exclusivo, integra a previsão desse normativo legal.

Provado se encontra na decisão recorrida, sem que tinha sido objecto de impugnação, que o recorrente detinha 8,487 gramas de canabis (resina) - substância contemplada na Tabela I-C, anexa ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01 - com um grau de pureza de 13,8%, cujas características conhecia e destinava ao consumo próprio e exclusivo, não possuindo para tanto autorização legal.

Ora, antes de mais, cumpre se diga que, numa primeira leitura da decisão revidenda, resulta existir contradição entre os factos provados no ponto 6 dos fundamentos de facto (O arguido P. conhecia as características do produto que adquirira, detinha, transportava e consumia, nas circunstâncias que se descreveram, bem sabendo que se tratava de produto considerado estupefaciente, nomeadamente canabis (resina)) e o facto dado como não provado (que o arguido conhecia as características do produto estupefaciente que vendia e cedia).

Contudo, percorrendo toda a factualidade que como assente foi considerada, alumiada pela explanado na “motivação da matéria de facto”, conclui-se que a Srª Juíza da 1ª instância apenas expressou inadequadamente a sua pretensão de significar a não comprovação que o arguido destinava o produto estupefaciente à venda ou cedência.

Assim o entendeu também o recorrente e, partindo deste pressuposto, analisemos se tem este a razão pelo seu lado.

Estabelece-se no artigo 40º, da Lei nº 15/93, de 22/01:

“1 – Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 30 dias.
2 – Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias (…)”.
Com a entrada em vigor da Lei nº 30/2000, de 29/11 e concretamente do seu artigo 2º, passou a vigorar que:
“1- O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.
2. Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
E, o artigo 28º, desta Lei nº 30/2000, veio revogar o dito artigo 40º, “excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime”.
Concatenando entre si estas normas dos artigos 2º e 28º enunciadas, resulta uma descriminalização relativamente ao consumo de estupefacientes, revogando-se o artigo 40º, do Decreto-Lei nº 15/93 – excepto quanto ao cultivo – que punia como crime o consumo, passando a integrar contra-ordenação, mas só até quantidades que não poderão exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça pelo Acórdão nº 8/2008, de 25/06/2008, in D.R. nº 146, Série I-A, de 05/08/2008, fixou jurisprudência no sentido de que “não obstante a derrogação operada pelo art. 28º da Lei 30/2000, de 29/11, a Lei 15/93, de 22/01, manteve-se em vigor não só quanto “ao cultivo”, como relativamente à detenção para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”
A problemática encontra-se então na densificação do que sejam o “limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária” e o “consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
Pois bem, mantendo-se em vigor o artigo 71º do Decreto-Lei nº 15/93, importa atender ao mapa a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26/03, sendo certo que os valores indicativos contidos nesse mapa anexo, revestem valor de mero meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não sendo de aplicação automática, podendo pois ser impugnados e afastados pelo tribunal, desde que com a devida fundamentação.
Considerando os limites definidos no mapa mencionado no artigo 9º, da Portaria nº 94/96, o limite quantitativo máximo diário para a substância em causa (canabis-resina) é de 0,5 gramas, tendo como referência uma dose média diária com base na variação de conteúdo médio do THC existente nos produtos de canabis e atendendo a uma concentração média de 10% - cfr. alínea e) da nota 3 do mapa - não se mostrando, por isso, correcto o entendimento vertido na sentença recorrida de que as quantidades a que alude o referido mapa referem-se a quantidades puras, ou seja, ao princípio activo a que alude o artigo 71.º, n.º 1, al. c) do Decreto-Lei n.º 15/93, o que não pode confundir-se com o peso líquido resultante dos relatórios do LPC, pois não tem em consideração a concentração média de 10% de tetrahidrocanabinol retro mencionada.
Como se pode ler no acórdão deste Tribunal da Relação e Secção, de 06/11/2012, Proc. nº 5929/09.8TDLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt:
“No que concerne aos derivados da canabis, o fenómeno da adulteração é, aparentemente, muito menos significativo, ainda que possível (Veja-se Eduardo Hidalgo, “Sabes lo que te metes? Pureza y adulteración de las drogas en España”, Edicones Amargord, 2007. Capítulo 1: pag. 25-45. Segundo este autor, os estudos realizados em Espanha pelo Instituto Nacional de Toxicologia não têm confirmado as queixas ou suspeitas de muitos consumidores de haxixe: em 2005, das 6.095 amostras analisadas, apenas 0,78% estavam adulteradas; em 2004, 0,06%; em 2003, 1,6%; em 2002, 0,6%; em 2001, 7,6%; em 2000, 3,2%; em 1999, 2%, e assim sucessivamente).
O Supremo Tribunal de Espanha – atente-se que em Espanha não existe uma tabela comparável à da Portaria n.º 94/96, ainda que o Supremo tenha fixado valores de consumo diário das diversas substâncias para efeito de preencher o conceito de “notória importância” do tráfico agravado (que foi jurisprudencialmente estabelecido a partir das 500 doses referidas ao consumo diário) - tem mesmo entendido que, relativamente ao derivados da canabis, não é necessário concretizar o grau de THC, ou seja, a concentração de tetrahidrocannabinol, já que se trata de um componente da própria planta e não se encontra em estado puro, variando por causas naturais, como a qualidade da planta, a zona de cultivo, a selecção das partes componentes (já que a concentração varia na mesma planta), etc.
Do que se infere que não se vendem no mercado derivados de canabis que possam apresentar THC em estado puro.
Assim se compreende o critério da tabela relativamente à canabis: não se indica apenas um limite quantitativo para a dose média individual diária, mas diz-se que os limites quantitativos apresentados, conforme se trate de folhas e sumidades floridas ou frutificadas, resina ou óleo, referem-se a concentrações médias de THC, que seguramente têm em conta dados epidemiológicos relativos às concentrações médias usuais nos diversos produtos da canabis.
Esclarece-se, assim, que a quantidade indicada para a canabis-resina (0,5 gramas) se refere “a uma concentração média de 10% de A9THC”.
Pois bem, ponderando que o arguido detinha 8,487 gramas de canabis (resina), com a substância activa presente (tetrahidrocanabinol ou A9THC) e um grau de pureza de 13,8%, sendo a dose média individual de 0,5 gramas, para um grau de concentração média de 10%, chegamos à conclusão que tinha consigo o correspondente a 23 doses diárias - 8,487 x (13,8% / 10%) / 0,5. Ou seja, quantidade que sabia corresponder ao consumo médio para mais de 10 dias e, por isso, legalmente proibida e punida pela lei penal.
Termos em que, compulsando a factualidade que provada se encontra, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime do artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01, pelo que cumpre conceder provimento ao recurso pelo Ministério Público interposto.
Importa agora apurar da pena aplicável.
O crime pelo arguido praticado é punido com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.
Estabelece o artigo 70º, do Código Penal, que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Tais finalidades estão definidas no artigo 40º, nº 1, do mesmo Código, a saber: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Esta protecção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, quer com o escopo de dissuadir a prática de crimes, através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente (prevenção geral negativa), quer para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e assim no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva).
Quanto à reintegração do agente na sociedade, reporta-se à prevenção especial ou individual de socialização, ou seja, ao entendimento de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre o agente, com o escopo de evitar que, no futuro, cometa novos crimes.
O arguido não tem antecedentes criminais, confessou os factos imputados, com excepção do destino de venda ou cedência do estupefaciente que detinha (mas esta também não ficou demonstrada por qualquer outro meio probatório), exerce actividade laboral e possui integração familiar, pelo que se entende que a aplicação de uma pena de multa acautelará de forma suficiente e adequada as finalidades da punição.
Nos termos do artigo 71º, do mesmo Código, para a determinação da medida da pena tem de se atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e bem assim às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.
De acordo com estes princípios, o limite superior da pena é o da culpa do agente. O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.
A pena tem de corresponder às expectativas da comunidade.
Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial de socialização. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade. – cfr. Ac. do STJ de 23/10/1996, in BMJ, 460, 407 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 227 e segs.
Assim, cumpre atender:
Ao grau de ilicitude do facto, que se apresenta mediano, tendo em atenção a quantidade e qualidade do produto estupefaciente detido.
À intensidade do dolo, que é directo.

Às referidas condições laborais, de integração familiar e ausência de antecedentes criminais, que militam a seu favor.
As exigências de prevenção geral são muito intensas, atendendo à elevada frequência com que é praticado este tipo de crime e sua comum desconsideração, importando reafirmar a vigência e validade da norma violada.
As necessidades de prevenção especial são de mediana intensidade.
Assim, face ao exposto, reputa-se como adequado e suficiente aplicar a pena de 50 dias de multa.
No que tange ao quantitativo diário da multa, consagra-se no artigo 47º, nº 2, do Código Penal, que “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 5 e (euro) 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.”
Atendendo ao rendimento apurado, entende-se adequado fixar o quantitativo diário em 5,00 euros (perfazendo a quantia total de 250,00 euros).

III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e condenam o arguido P., pela prática, como autor material, de um crime p. e p. pelo artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à tabela anexa I-C, na pena de 50 (sessenta) dias de multa, à razão diária de 5,00 (cinco) euros, o que perfaz o montante global de 250,00 (duzentos e cinquenta) euros.

Sem tributação.

Lisboa, 28 de Maio de 2019

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)

Artur Vargues
Jorge Gonçalves