Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7289/16.1T8LRS.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
VEÍCULO AUTOMÓVEL
PRIVAÇÃO DE USO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: - O dano de privação do uso do veículo, inibindo o dono de exercer sobre o mesmo os inerentes poderes, constitui uma efectiva perda, conferindo o sistema legal ao lesado o direito à reconstituição natural da situação ;
- Todavia, quando esta faculdade não tenha sido utilizada, ou o responsável lesante não tenha procedido á devida substituição do veículo, então a única via de reparação ou reintegração possível do lesado é através da atribuição de um equivalente pecuniário, vulgo, através da competente indemnização ;
- Não se vislumbra qualquer impossibilidade de cumulação do dano de privação do uso da viatura, que se configura como um dano de natureza patrimonial, pois traduz-se em efectiva lesão do correspondente direito real de propriedade, com os danos de natureza não patrimonial que eventualmente o lesado tenha suportado, nomeadamente os conexos com a privação de tal uso ;
- Pelo que inexiste a aludida indevida cumulação ou duplicação indemnizatória na sentença apelada, ao prever esta o aludido ressarcimento pelos alegados danos não patrimoniais sofridos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
               
I – RELATÓRIO
1 JA…, residente na Rua …, …, …º Esquerdo, São João da Talha, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra LOURES PARQUE, EMPRESA MUNICIPAL, E.M., com sede na Avenida Dr. António Carvalho Figueiredo, 28 A, Loures, pedindo a condenação desta:
- a efectuar o pagamento do arranjo do veículo, orçado em 2.866,18€ (dois mil oitocentos e sessenta e seis Euros e dezoito Cêntimos);
- a pagar ao A 1.323,15€ (mil trezentos e vinte e três Euros e quinze Cêntimos) a título de danos emergentes;
- 8.780,00€ (oito mil setecentos e oitenta Euros) a título do dano de privação do uso do veículo do A por 439 dias;
- 1.000,00€ (mil Euros) a título de danos não patrimoniais;
num total de 13.969,33€ (treze mil novecentos e sessenta e nove Euros e trinta e três Cêntimos).
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
Ø a Ré efectuou o reboque da sua viatura de modo deficiente, provocando-lhe avaria no motor ;
Ø o custo de reparação destas orçou no montante de 2.866,18 € ;
Ø o veículo do A. esteve, ainda, 439 dias imobilizado, a aguardar reparação, por a R. não aceitar a sua responsabilidade ;
Ø em consequência, teve prejuízos com a impossibilidade de uso da sua viatura, despesas com transportes e sentiu dificuldades e angústia em virtude da privação do seu transporte habitual.
2 – Citada a Ré, veio apresentar contestação, alegando, em súmula, o seguinte:
  • não corresponde à verdade que “os danos alegadamente verificados no motor da viatura terão sido causados por a viatura se encontrar imobilizada com a caixa de velocidades engatada (…) e (…) as rodas tivessem rodado” durante o procedimento de reboque ;
  • a avaria ocorreu por o motor do veículo não estar a ser devidamente lubrificado, por falta de óleo, ou outra razão mecânica  ;
  • no demais, impugna os danos invocados.
    3 – Notificado o Autor para se pronunciar acerca da matéria de excepção, veio fazê-lo a fls. 99 e 100, referenciando que, no início, atento o facto do veículo não pegar, foi comprar óleo, mas que acabou por não colocá-lo, negando que o motivo da avaria do veículo tenha sido a falta de óleo.
    4 – Conforme fls. 102, foi fixado o valor da causa, dispensada a realização da audiência prévia, proferido saneador stricto sensu, apreciados os requerimentos probatórios e designada data para a realização de julgamento.
    5 – Tal audiência de discussão e julgamento veio a concretizar-se conforme actas de fls. 182 a 185 e 187.
    6 - Posteriormente, em 28/04/2018, foi proferida sentença – cf., fls. 182 a 195 -, traduzindo-se a Decisão nos seguintes termos:
    Destarte, atento o exposto, julgo a ação totalmente procedente e em consequência:
    Condeno a R. Loures Parque, Empresa Municipal, EM a pagar ao A. JA… a quantia global de € 13.969,33 (treze mil, novecentos e sessenta e nove euros e trinta e três cêntimos), sendo:
     - € 2.866,18 (dois mil, oitocentos e sessenta e seis euros e dezoito cêntimos), a título de despesas de reparação do veículo;
    - € 1.323,15 (mil, trezentos e vinte e três euros e quinze cêntimos), a título de despesas de transportes efetuadas;
    - € 8.780,00 (oito mil, setecentos e oitenta euros), a título do dano de privação do uso do veículo desde o dia do reboque e por 439 dias ;
    - € 1.000 (mil euros), a título de danos não patrimoniais.
    Custas pela R..
    Registe e notifique”.
    7 - Inconformada com o decidido, a Ré interpôs recurso de apelação, em 07/06/2018, por referência à sentença prolatada.
    Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem, na íntegra):
    I. A douta sentença recorrida considera como facto provado a matéria que consta do ponto 6. que “A viatura do A. (….) e durante o procedimento de reboque as rodas rodaram” e no ponto 7., que “o facto de as rodas terem rodado durante o procedimento de reboque fez com que a viatura avariasse”.
    II. Desde logo, porque embora a douta sentença recorrida diga que: “ a matéria controvertida resultou da análise crítica conjugada do teor da prova documental junta aos autos com o teor das declarações de parte do A. e dos depoimentos das testemunhas ouvidas”, a verdade é que assim não aconteceu, como resulta da própria motivação expressa na douta sentença;
    III. O relatório junto aos autos pelo autor, não se encontra assinado, pelo que se desconhece quem o elaborou e subscreveu e a que titulo. Apenas se sabe que foi solicitado pela seguradora do autor;
    IV. Este relatório foi elaborado 8 meses depois do reboque e da avaria do veículo, com base nos factos que lhe foram relatados pelo próprio autor e pelo mecânico que havia desmontado o veículo oito meses atrás.
    V. O autor deste relatório, não teve conhecimento direto dos factos, não sabe como foi efetuado o reboque, como a viatura se encontrava estacionada e não verificou a avaria sofrida pelo VS, porque quando o viu já se encontrava desmontado.
    VI. Sendo certo que é o próprio relatório que refere - tratar-se da “nossa opinião”
    VII. Todo o relatório assim como o depoimento prestado pelo mecânico, partem da versão que lhe foi transmitida pelo autor e tendo por base meras suposições ou hipóteses. Como resulta da motivação expressa na douta sentença recorrida.
    VIII. A douta sentença recorrida dá como provado que antes do veículo ter sido rebocado, o mesmo não apresentava qualquer anomalia, e que tinha sido sujeito a revisão recentemente, tendo por base apenas o depoimento de parte do autor, depoimento que se afigurou à meritíssima juíza como credível;
    IX. Mas ao mesmo tempo, considerou como não credível o depoimento prestado pelo funcionário da Loures Parque que efetuou o reboque, por o considerar não isento, em virtude de possíveis consequências disciplinares.
    X. Ainda que assim fosse, ambos tinham um interesse direto no resultado da presente ação, porque considera um isento e o outro não, a douta sentença recorrida ou não explica ou os fundamentos que referem não tem qualquer base factual;
    XI. Como resulta do artigo 329º do código do Trabalho o direito de exercer o poder disciplinar prescreve no prazo de um ano após a prática da infração, ou no prazo de prescrição da lei penal se o facto constituir igualmente crime”.
    XII. Há muito que o direito da entidade patronal a exercer o poder disciplinar se encontrava prescrito.
    XIII. Também carece de fundamento a explicação de que se socorre a douta sentença recorrida para invalidar o depoimento da testemunha MF…, e concluir que o reboque não foi adequadamente efetuado e de que a viatura foi arrastada porque foi efetuado por um único funcionário.
    XIV. Sobre esta matéria apenas se provou que o reboque foi efetuado por um único funcionário, tudo o mais são conclusões sem qualquer suporte fáctico.
    XV. A douta sentença recorrida, diz considerar irrelevantes os depoimentos das testemunhas arroladas pela ré porque nenhuma delas assistiu ao procedimento de reboque e que o diretor de fiscalização apenas descreveu a forma correta para efetuado efetuar o
    reboque;
    XVI. Contudo considera como provado que as rodas do veículo rodaram durante o procedimento de reboque e que foi isso que provocou a avaria do motor, com base em suposições e hipóteses relatadas emitidas por quem também não teve conhecimento direto dos factos, ou com base num documento cujo autor se desconhece, mas que se sabe não ter também ele conhecimento direto dos factos;
    XVII. O autor não produziu prova sobre o estado da viatura antes do reboque, não demonstrou a razão pela qual a viatura não pegou, provou-se contudo, que o autor logo que o carro não pegou, foi comprar óleo que introduziu na viatura, mas sobretudo o autor não provou as circunstâncias em que foi efetuado o reboque, porque apenas a testemunha MF.. assistiu ao mesmo, no entanto a douta sentença recorrida, conclui que:
    Não se duvida que a viatura tenha sido transportada sobre suporte com rodas até ao parque da ré., mas o procedimento de colocação de tal suporte com rodas para efetuar o reboque terá implicado a deslocação da viatura do lancil do passeio, ainda que por uma curta distância, forçando a viatura engatada a mover as suas rodas, o que por si foi causa da avaria de funcionamento do motor “
    XVIII. A matéria a que aludem os pontos 6, 7, 8 e 16 dos factos dados como provados pela douta sentença recorrida não é matéria factual, mas sim valorativa e conclusiva e como tal não pode ser submetida a prova, isto é, os juízos valorativos assim como os juízos conclusivos não se provam no sentido de se saber se existiram ou não existiram, só se provam os factos, estes é que existiram ou não existiram.
    XIX. O autor não provou, e a ele cabia tal prova, factos concretos que permitissem ao tribunal concluir pela verificação dos pressupostos de que a lei faz depender o dever de indemnizar;
    XX. Não logrou provar que o procedimento de reboque não tenha sido executado cumprindo escrupulosamente os procedimentos ao caso aplicáveis, que durante o procedimento de reboque as rodas do veículo tivessem rodado ou que foi isso que fez a viatura avariar, que o veículo lhe tenha sido devolvido em condições diferentes daquelas em que o deixou a última vez que o utilizou ou sequer que o veiculo não apresentava qualquer problema de motor ate ao momento em que o autor o deixou estacionado.
    XXI. Os recibos de táxi juntos aos autos pelo autor, desacompanhados de outro meio de prova, são manifestamente insuficientes para que se de como provado que o valor gasto em táxis pelo autor de casa para o trabalho e vice-versa, porque não tinha transportes públicos que lhe permitissem entrar às 20 horas e sair às 3 horas;
    XXII. Dos 50 recibos apresentados 43 foram emitidos pela mesma empresa com referência ao mesmo carro;
    XXIII. O autor não juntou aos autos um único documento, demonstrativo da inexistência de transportes públicos às horas mencionadas pelo mesmo, e que permitisse ao tribunal dar como provado o facto que consta do ponto 36., por exemplo um horário da carris ou da empresa de transportes que serve a área de residência do autor e também do seu local de trabalho.
    XXIV. A douta sentença recorrida não fundamenta a atribuição ao autor de 20 € /dia, durante 439 dias de indemnização pela privação do uso da viatura, cumulada com uma indemnização no valor de 1000€ a título de danos não patrimoniais. Aliás é a própria decisão que não justifica a fixação de tais valores.
    XXV. Valor de 20 € é o dobro do valor fixado pelos tribunais superiores para reparação do dano de privação de uso de viatura, entre outros o STJ;
    XXVI. A indemnização fixada na sentença recorrida atinente aos danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelo autor no montante de 1.000 €, não lhe é sequer devida.
    XXVII. Os eventuais sofrimentos e desgostos e as atividades que o autor tenha deixado de realizar por falta da viatura constituem danos resultantes da privação do uso dessa mesma viatura, por isso são considerados na indemnização fixada para a reparação de tais danos.
    XXVIII. De todo o modo, os danos de natureza não patrimonial tendo de assentar na respetiva gravidade, devem medir-se por um padrão objetivo, tendo em conta as circunstâncias concretas, e, para serem merecedores da tutela do direito, devem ser de tal modo graves que justifiquem a concessão da indemnização pecuniária ao lesado. O que não é manifestamente o caso;
    XXIX. A douta sentença recorrida ao decidir como decidiu enferma de erro de julgamento no que se refere à decisão que recaiu sobre a matéria de facto, erro que resulta da própria fundamentação dessa mesma decisão. Enferma ainda de falta de fundamentação e ainda de erro de julgamento por errada interpretação e aplicação do direito aos factos, violando ainda o preceituado no artigo 342º, 483º, 487º e 496º todos do Código Civil, impondo-se a sua revogação”.
    Conclui, no sentido da procedência do recurso.
    8 – O Apelado/Recorrido apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões (que ora se transcrevem integralmente, consignando-se que existem dois factos D. e E.):
    A. A Recorrente vem recorrer da apreciação da prova por parte do Tribunal a quo, em parte, e vem ainda recorrer da interpretação da matéria de Direito relativamente à indemnização por danos morais e dano de privação de uso.
    B. Relativamente aos pontos 6 e 7 da Sentença, o Tribunal a quo baseou a sua convicção em toda a prova produzida, não apenas isoladamente quanto a uma, ou várias testemunhas…
    C. A Recorrente afirma que o Tribunal a quo não poderia dar como provado que o veículo foi empurrado pelo funcionário que tratou do reboque, mas a verdade é que não demonstra o contrário, ou seja, que o Tribunal a quo não o poderia ter feito.
    D. No seu Acórdão de 19 de Dezembro de 2012, o Tribunal da Relação do Porto (proc. nº 1267/06.6TBAMT.P2) declara que o “princípio da livre apreciação da prova, que alicerça o julgamento da matéria de facto, sustenta-se em critérios racionais e objectivos, em juízos de ilações e inferências razoáveis, mas sempre de mera probabilidade (artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil); e conduz a um juízo positivo de prova quando, em face dos instrumentos disponíveis, do seu conteúdo, consistência e harmonia, se afigure aceitável à consciência de um cidadão medianamente informado e esclarecido, que a realidade por eles indiciada já se possa ter como efectivamente assumida”(sublinhado nosso).
    E. Ora foi precisamente este juízo positivo de prova que o Tribunal a quo fez, e, conforme o referido aresto, usando em alguma medida de juízos de probabilidade, sendo que o facto de não haver um batalhão de testemunhas que tenham assistido à operação de reboque, ou que a mesma não tenha sido filmada e o respectivo filme reproduzido e junto aos autos, ou seja, o facto de não existir uma prova única e absolutamente irrefutável, não impede o Tribunal a quo de, alicerçado na prova produzida, e que foi vasta, concluir que o veículo foi de facto empurrado pelo funcionário da Recorrente e que isso foi de molde a provocar os consabidos danos.
    D. A Recorrente escolheu ignorar que um veículo que acabava de retirar da via pública estava avariado no seu parque, e ignorar a reclamação apresentada pelo Recorrido – à qual nunca respondeu, como ficou demonstrado e foi admitido pelo director da Recorrente – apresentada no próprio dia da operação de reboque, bem como escolheu ignorar os convites do Recorrido para fazer deslocar quem bem entendesse à oficina para constatar e avaliar os danos em causa.
    E. Bem como continuou a ignorar o Recorrente mesmo depois de interpelada pelo mandatário do mesmo, sempre numa atitude de negação, que, mesmo perante todas as evidências, continua a manter.
    F. A Recorrente pretende – ao contrário do que aconteceu – que não resultaram provados os factos ilícitos por si cometidos e baseou a sua defesa, como baseia as suas alegações de recurso, na insuficiência dessa prova, na falta de demonstração de que a operação de reboque provocou a avaria…e aqui pergunta-se, quase por curiosidade: a Recorrente nunca admitiu a possibilidade de ter provocado a avaria? Porquê? Seria algo assim tão impensável? Tendo conhecimento por intermédio dos seus funcionários, no dia do reboque, que o veículo apresentava avaria logo no seu parque, e pouco depois da operação de reboque por si efectuada, será normal a atitude de absoluta negação por parte da Recorrente – que ainda por cima não é uma sociedade comercial de direito privado, e tem acrescidas responsabilidades sociais – e de ignorar o Recorrente? Mesmo depois deste insistir? Depois deste apresentar reclamação escrita? Depois de convidar a Recorrente a levar os seus técnicos ou quem entendesse indicar à oficina onde o veículo permanecia? Depois de fazer enviar carta por advogado? Será que a atitude da Recorrente é a de quem está de boa fé e de consciência tranquila?
    G. A resposta a esta última questão só pode ser negativa, a Recorrente chega a propor as mirabolantes teorias, como possíveis, de que o Recorrido poderia, no parque da Recorrente, ao empurrar o carro (o que teria de ter acontecido com uma mudança engatada, e só por isso não faz sentido) ter provocado a avaria…Ou ainda (e apesar do carro estar manifestamente já avariado) que poderia ter sido o reboque que o Recorrente solicitou (e ao qual assistiu, o que também não tem sentido) para levar o carro para a oficina a provocar os danos…Avança com estas teorias recambolescas mas nunca admitiu, nem por um segundo, em mais de 3 anos, nem como mera possibilidade, aquela que afinal sempre consistiu na mais plausível, para não dizer evidente, causa para a avaria – a operação de reboque por si levada a cabo!
    H. O Tribunal a quo de forma livre alicerçou a sua convicção na prova produzida, e a Recorrente não demonstra de forma alguma que o fez de forma errónea, pelo contrário, nas suas alegações, ao escamotear parte da prova – como o faz com as declarações da testemunha PC… – só reforça essa mesma decisão.
    I. A Recorrente refere que o relatório não está assinado, quando o mesmo, como é patente, foi produzido precisamente por uma sociedade que se dedica a efectuar peritagens.
    J. Mais invocando a data em que o mesmo foi feito quando, na verdade, resultou provado que o veículo se encontrava ainda à data da realização da audiência de julgamento na mesma oficina para onde foi levado no dia do reboque, apresentando os mesmos danos que então apresentava, como não podia deixar de ser.
    L. Mais alega a Recorrente que tanto a peritagem como a opinião do mecânico – testemunha PC… – partem da versão contada pelo Recorrido, e que têm por base meras suposições ou hipóteses…
    M. O que só demonstra como a R se limita a atacar a bondade da Sentença recorrida apenas porque não lhe convém, pois que os motivos apresentados não são lógicos nem válidos.
    N. É natural que tanto a peritagem como o mecânico partam da versão do Recorrido, que nomeadamente informou da operação de reboque, e que o carro estava em perfeitas condições antes da mesma, e estes ao constatarem os danos do veículo, formularam as suas conclusões….
    O. Tal como a Recorrente, se fosse uma pessoa, e se se deslocasse ao médico com fortes dores de cabeça, depois de receber uma pancada forte na mesma, certamente iria referir esse facto…Não o iria omitir à espera que o médico o adivinhasse, e provavelmente este iria concluir que as dores resultavam do traumatismo causado pela pancada…
    P. As declarações da testemunha PC… foram de molde a explicar como foi a acção da Recorrente que provocou os danos, não isoladamente, mas em conjugação com as declarações do Recorrido e com os documentos juntos, nomeadamente o Relatório e o orçamento.
    Q. A Recorrente ao resumir o depoimento desta testemunha a “suposições ou hipóteses” só reforça a decisão recorrida, pois que escolhe ignorar a parte mais relevante do mesmo depoimento, apenas porque assim lhe convém, e ao contrário do que, e bem, foi feito pelo Tribunal a quo.
    R. A Recorrente põe em causa, uma vez mais, a livre apreciação da prova que foi feita, desta feita relativamente à declaração de parte do Recorrido, e quanto ao facto considerado provado de o veículo do Recorrido não apresentar qualquer anomalia, sem razão.
    S. De resto, resultou sobejamente demonstrado, não apenas pelas declarações de parte, que o veículo não poderia funcionar com os danos que apresentava, e portanto o Recorrido não o poderia sequer ter estacionado no local onde a Recorrente o rebocou.
    T. Contrapondo depois com a apreciação – igualmente livre – que foi feita do depoimento do funcionário da Recorrente, que esta pretende colocar em crise.
    U. A Recorrente alega que o poder disciplinar estaria, quanto a estes factos (reboque do carro do Recorrido), prescrito, mas tal não está em causa, a verdade é que a testemunha continua a trabalhar para a Recorrente e é consabido – nomeadamente entre doutrina e jurisprudência – que o trabalhador é a parte mais fraca da relação laboral, que não existe um equilíbrio de poder e dependência, e portanto este argumento trazido pela Recorrente não pode merecer acolhimento, e, por outro lado, a Sentença refere – e a Recorrente escolhe ignorar – que o depoimento desta testemunha foi incoerente com a demais prova produzida.
    V. O Recorrido estacionou o seu veículo que foi depois rebocado pela Recorrente, não tendo mais funcionado, tendo-se posteriormente verificado que o motor tinha peças partidas e esmagadas, mas a corrente estava inteira, o que indica que foi empurrado, com mudança engatada, não estando em funcionamento.
    X. O Tribunal a quo considerou demonstrado que foi durante a operação de reboque efectuada pela Recorrente que tal sucedeu, e esta nada de novo traz nas suas alegações que permita colocar em crise a conformidade desse juízo positivo de prova, pois nos termos do artigo 607º do CPC “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
    Z. Quanto aos prejuízos sustidos pelo Recorrido com as deslocações de taxi para o seu local de trabalho, e daí para casa, a Recorrente começa por ignorar a prova testemunhal produzida, para depois afirmar que uma testemunha disse ter visto o Recorrido a utilizar esse meio de transporte “umas vezes”…
    AA. Quando, como supra se transcreveu, a mesma testemunha referiu que viu o Recorrido utilizar o meio de transporte taxi “muitas vezes” e ainda “muitas vezes mesmo”…
    BB. Mais pretende colocar em crise as facturas recibo juntas pelo Recorrido, sem que antes tenha invocado a falsidade das mesmas, e sem o fazer agora, pretendendo apenas que não devem servir de prova, por um lado porque foram passadas na sua maioria pela mesma empresa, por outro, porque um dos recibos data de 1 de Maio de 2015, o único dia do ano que o estabelecimento onde o Recorrido trabalha fecha.
    CC. Quanto ao recibo passado a 1 de Maio, bem sabe a Recorrente que o Recorrido sai do seu trabalho pelas 3 horas da manhã, pelo que estando o estabelecimento onde trabalha a operar a 30 de Abril, o Recorrido saiu, pelas 3h, já no dia 1 de Maio, e isso explica a factura recibo datada dessa data…
    DD. Quanto ao facto de ter sido, na maior parte das vezes, a mesma empresa de táxis que transportou o Recorrido, a explicação é simples: quando o serviço se tornou uma necessidade regular, em periodicidade (diária), trajecto e horário, o Recorrido combinou os serviços com uma empresa e motorista seus conhecidos. Ainda assim nem sempre foi transportado por este motorista ou empresa, por indisponibilidade dos mesmos.
    EE. O Tribunal a quo formou a sua convicção na prova junta, e que é manifestamente bastante – a prova documental em forma das facturas recibo e a prova testemunhal complementar à mesma – não traz a Recorrente nada de novo que possa afectar formação de tal convicção, e as questões que ora levanta quanto às facturas recibo são afinal de fácil resposta e apenas servem para confirmar a bondade da decisão proferida.
    FF. Relativamente à indemnização pelo dano da privação de uso, o Tribunal a quo usou de juízos de equidade, nomeadamente atendendo às características do veículo do Recorrido, e entendeu, livremente, e no seu prudente arbítrio, fixar a quantia de 20,00€ / dia.
    GG. E se a Recorrente apresenta acórdãos que fixaram indemnização pela privação do uso de automóvel em 10,00€ / dia, conforme supra, existe decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixou a mesma em 30,00€ / dia.
    HH. O Recorrido, se pretendesse alugar um veículo parecido com o seu, não pagaria menos de 50,00€ / 60,00€ por dia! II. Sendo o valor atribuído pela Sentença ponderado, equitativo e justo.
    JJ. Relativamente aos danos não patrimoniais, ao contrário do que afirma a Recorrente, os mesmos não se confundem com o dano de privação de uso, e a Recorrente escolhe aqui uma vez mais confundir a realidade com o aparente, desta feita já não relativamente à prova produzida, mas à própria Sentença.
    LL. Pois a mesma Sentença destrinça perfeitamente os danos morais que condena a Recorrente a indemnizar, do dano da privação de uso, fundamentando de forma clara esta condenação (pagamento de 1.000,00€ a título de danos morais) na angústia, revolta e sentimento de impotência que o Recorrido sentiu, e ainda sente, e que são merecedores de reparação”.
    Conclui, no sentido da improcedência do recurso, com consequente confirmação da sentença apelada.
    9 – O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
    10 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
    **
    II ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
    Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
    1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
    2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
    a) As normas jurídicas violadas ;
    b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
    c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
    Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
    Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento das seguintes questões:
    1. DA EVENTUAL PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, nos quadros do artº. 662º, do Cód. de Processo Civil, por referência aos indicados:
    Ø Factos provados 6., 7., 8., e 16, alegadamente não tradutores de matéria factual, mas antes valorativa e conclusiva, ou seja, insusceptível de ser submetida a actividade probatória – Conclusões I a XX e Conclusões contra-alegacionais A) a X) ;
    Ø Factos provados 36. e 37. – a aparente pretensão que sejam considerados como não provados – Conclusões XXI a XXIII e Conclusões contra-alegacionais Z) a EE),
    o que implica a REAPRECIAÇÃO DA PROVA (inclusive, e eventualmente, da gravada) ;
    2. Seguidamente, tendo por pressuposto a pretendida alteração da matéria de facto a figurar como provada, aferir acerca da SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS, o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA.
    Neste, apreciar-se-á, fundamentalmente, acerca das seguintes questões:
    I) Da alegada indevida cumulação do dano de privação do uso da viatura e a indemnização a título de danos não patrimoniais – Conclusões XXIV, XXVI e XXVII e Conclusões contra-alegacionais JJ) e LL)  ;
    II) Da não fundamentação da medida de indemnização do dano de privação do uso – Conclusão XXV e Conclusões contra-alegacionais FF) a II) ;
    III) Do não merecimento da tutela do direito relativamente aos invocados danos não patrimoniais – Conclusão XXVIII e Conclusão contra-alegacional LL).
    Aprioristicamente, na análise do teor das alegações recursórias, urge, ainda, conhecer acerca das seguintes questões:
    Ø Do eventual incumprimento do disposto no artº. 640º, nºs 1, alín. b) e 2, alín. a), do Cód. de Processo Civil, conducente à rejeição do recurso interposto.
    QUESTÃO PRÉVIA: do alegado incumprimento do disposto no artº. 640º, nºs. 1, alín. b) e 2, alín. a), do Cód. de Processo Civil, conducente à rejeição do recurso interposto
    Prevendo acerca do ónus a cargo do recorrente na impugnação da matéria de facto, a alínea b), do nº. 1, do artº. 640º, do Cód. de Processo Civil, enuncia, entre outras, e sob pena de rejeição, a obrigatoriedade de especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.
    Acrescenta a alínea a), do nº. 2, do mesmo normativo, que na situação prevista na alínea b) observa-se o seguinte: “a) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” .
    A questão em análise cinge-se, assim, relativamente a estes meios de prova devidamente registados ou gravados, sobre os quais incumbe ao Recorrente indicar ainda, com exactidão, na motivação apresentada, as passagens da gravação relevantes e, caso assim o entendam, proceder à transcrição dos excertos que considerem oportunos ou relevantes.
    Compulsadas as alegações recursórias apresentadas, quer no que concerne à sua motivação (corpo alegacional) quer no que respeita às conclusões, constata-se que a Recorrente faz alusão aos depoimentos prestados pela testemunha PC…, gerente da oficina automóvel para onde a viatura foi transportada, pela testemunha MF…, funcionário da Ré que efectuou o reboque e ao depoimento do alegado director de fiscalização por si arrolado (que nem sequer identifica, resultando da acta que se tratará de NM…).
    Todavia, não efectua qualquer referência às passagens da gravação em que se funda o recurso (e, como tal, sem qualquer exactidão), nem qualquer transcrição dos excertos considerados relevantes, limitando-se a um discurso indirecto daquilo que as mesmas terão alegadamente referenciado.
    Verifica-se, deste modo, que a Apelante, no que concerne àqueles depoimentos, não indicou as passagens da gravação fundantes do seu recurso, com indicação nomeadamente dos minutos e segundos em que foram proferidas (por referência à gravação efectuada), nem procedeu a qualquer transcrição daqueles.
    Ou seja, limitou-se a referências a um alegado discurso indirecto, sem proceder a qualquer indicação com maior ou menor precisão ou exactidão, e sem proceder, no uso da legal faculdade, a qualquer transcrição dos enxertos que considerasse relevantes.
    Presentemente, o sistema vigente nas situações em que o recurso de apelação envolve a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica que “relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos” (sublinhado nosso).
    Pelo que deve ocorrer rejeição, total ou parcial, do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto, sempre que se verifique “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”.
    Assim, ainda que se reconheça dever interpretar-se tais exigências legais à luz de um necessário critério de rigor, como consequência ou decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, se “em lugar de uma sincopada e por vezes estéril localização temporal dos segmentos dos depoimentos gravados, o recorrente optar por transcrever esses trechos, ilustrando de forma mais completa e inteligível os motivos das pretendidas modificações da decisão da matéria de facto, deve considerar-se razoavelmente cumprido o ónus de alegação neste campo. A indicação exacta das passagens das gravações não passa necessariamente pela sua localização temporal, sendo a exigência legal compatível com a transcrição das partes relevantes dos depoimentos[2].
    Acrescenta, todavia, o mesmo Ilustre Conselheiro, importar que “não se exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador”. E, citando douto aresto do STJ de que foi Relator [3] aduz ser “necessário que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640º seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material”, aludindo, ao nível do Supremo Tribunal de Justiça, a uma “tendência consolidada no sentido de não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no art. 640º”.
     Lavrou, então, o mesmo Relator em tal aresto sumário, no sentido de dever “considerar-se satisfeito o ónus de alegação previsto no art. 640º, se o recorrente, além de indicar o segmento da decisão da matéria de facto impugnado, enunciar a decisão alternativa sustentada em depoimento testemunhal que identificou e localizou”, sendo que “na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” (sublinhado nosso).
    O mesmo Acórdão referencia jurisprudência do STJ, no pugnado sentido, donde se realça, por atinente ao caso sub júdice, a seguinte:
    - datado de 09/07/2015, onde se refere que “tendo o apelante, nas suas alegações de recurso, identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência aos pontos da base instrutória, indicado o depoimento das testemunhas que entendeu mal valorados, fornecido a indicação da sessão na qual foram prestados e o início e o termo dos mesmos, apresentado a sua transcrição e referido qual o resultado probatório que deveria ter tido lugar, relativamente a cada quesito e meio de prova, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar” (sublinhado nosso) ;
    - de 19/02/2015, no qual se referencia que “enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já o mesmo se não se afigura que a especificação dos meios de prova ou a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações” (sublinhado nosso).
    Acrescenta, ainda, o Ilustre Autor ser frequentemente constatável “que uma leitura concertada das alegações, e não apenas das respectivas conclusões, permite afirmar o preenchimento dos requisitos mínimos a que deve obedecer uma peça processual para a qual não está legalmente prevista uma estrutura rígida quer na parte da motivação, quer no segmento conclusivo”, pelo que os aspectos “fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição clara do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido[4].
    Deve ter-se ainda em consideração, realçando-se, o sumariado no douto aresto do STJ de 29/10/2015 [5], no qual se refere que “face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC).
    2. Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso (sublinhado nosso).
    Referencie-se, igualmente, o sumariado em aresto do mesmo Alto Tribunal de 19/02/2015 [6], no sentido de que “a especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC”.
    Assim, “é em vista dessa função que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC”, pelo que “nessa conformidade, enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória”.
    Pelo que “tendo o recorrente, nas conclusões recursórias, especificado os concretos pontos de facto que impugna, com referência às respostas dadas aos artigos da base instrutória, indicando também aí a decisão que, no seu entender, deve sobre eles ser proferida, enquanto que só no corpo das alegações especifica os meios de prova convocados e indica as passagens das gravações dos depoimentos em foco, têm-se por preenchidos os requisitos formais do ónus de impugnação exigidos pelo art.º 640.º, n.º 1 e 2, alínea a), do CPC” (sublinhado nosso).
    Ainda acerca da inobservância do ónus impugnativo estabelecido no transcrito artº. 640º, nº. 2, alín. a), do Cód. de Processo Civil, apele-se ao douto Acórdão do mesmo Tribunal, datado de 15/02/2018 [7], no qual se exarou que “a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a flexibilizar a rigidez literal com que, por vezes, o referido normativo vem sendo interpretado”.
    Acrescenta que “a razão de ser do ónus impugnativo estatuído na indicada alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC tem em vista o delineamento, por parte do Recorrente, do campo de análise probatória sobre o teor dos depoimentos convocados de modo a proporcionar, em primeira linha, o exercício esclarecido do contraditório, por banda do recorrido, e a servir de base ao empreendimento analítico do tribunal de recurso, sem prejuízo da indagação oficiosa que a este tribunal é legalmente conferida, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 640.º, n.º 2, alínea b), 1.ª parte, e 662.º, n.º 1, do referido Código. Complementarmente, tal exigência constitui um fator de concentração da argumentação probatória do recorrente, numa base substancial, sobre a caracterização do erro de facto invocado, refreando, por outro lado, eventuais tendências para meras considerações de natureza generalizante e especulativa”.
    Todavia, aduz, “importa não esquecer que o nível de exigência de exatidão das passagens das gravações não se pode alhear da metodologia ou do modo concreto como os depoimentos foram prestados em audiência.
    Assim sendo, perante depoimentos extensos ou prolongados mas obtidos de forma segmentada ou parcelada consoante determinados pontos ou blocos de facto, a exatidão das passagens bem poderá ser feita em função de tal recorte, de modo a deixar de fora as partes desses depoimentos irrelevantes para a matéria em causa. Tratando-se, porém, de depoimentos disseminados, prolixos ou saltitantes, sobre temas de prova de pendor genérico ou aberto, temos de admitir uma maior flexibilidade do critério de exatidão das passagens.
    Impõe-se, pois, à luz dessas coordenadas, aferir a medida de proporcionalidade adequada à exatidão das passagens das gravações a que se refere o normativo aqui em foco.
    Por isso mesmo é que a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face do grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efetuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso (sublinhado nosso).
    Considerou, então, que o Acórdão recorrido proferido pela Relação enveredou “por uma linha de mera exegese do texto legal e dos princípios que lhe estão subjacentes, sem qualquer ponderação das circunstâncias e modo como tais depoimentos se mostram prestados, considerando que a Recorrente de limitou:
    “(…) a fazer uma mera transcrição integral dos depoimentos prestados pelas testemunhas por si arroladas - HH, FF, II e GG - mas sem especificar, com exactidão, quais as passagens concretas da respectiva gravação em que se funda o seu recurso, nomeadamente quais eram as frases ou expressões contidas em tais depoimentos que, no seu entender, impunham, necessariamente, uma alteração da factualidade dada como não provada (…).»
    Significa isto que o tribunal a quo não aferiu a medida de proporcionalidade do nível de exigência da exatidão das passagens que no caso se impunha, na linha do que tem vindo a ser seguido pela jurisprudência deste Supremo”.
    O que criticou na decisão do Tribunal Recorrido, ao referenciar “ter aderido ao entendimento de um acórdão do Tribunal da Relação de … de 19/6/2014 com alheamento absoluto e desvio da vasta jurisprudência deste Supremo sobre o tipo de questão em apreço”.
    Pelo que, concretizando a aferição supra exposta, mencionou que “dos depoimentos transcritos pela apelante colhe-se que os mesmos foram prestados, de certo modo, de forma disseminada, sem recorte definido por pontos ou blocos de facto específicos.
    Acresce que vem posta em causa pela apelante a credibilidade dada pela 1.ª instância às testemunhas da A. em detrimento das testemunhas da R., o que dificilmente poderá ser perquirido pelo tribunal de recurso através de passagens meramente cirúrgicas das gravações.
    Nestas circunstâncias, salvo o devido respeito, afigura-se que a forma como a apelante indicou o conteúdo das gravações dos depoimentos convocados se mostra adequada ao perfil de tais depoimentos e ao modo como foram prestados e colhidos, não se revelando que tenha embaraçado o exercício do contraditório nem constitua óbice relevante para o tribunal de recurso proceder à apreciação da impugnação deduzida, não se tendo por isso como verificada a inobservância do disposto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC”. Pelo que, no deferimento do recurso interposto, determinou que a Relação conhecesse da impugnação da decisão da matéria de facto.
    Na apreciação deste aresto, e do entendimento que lhe subjaz, na esteira da posição uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, em concatenação com o caso concreto em apreciação, urge, contudo, referenciar, notar e concluir o seguinte:
    - no último dos arestos referenciados, a apelante transcreveu cada um dos depoimentos convocados que, no seu entender, relevavam para a apreciação da argumentação probatória apresentada, com a indicação do dia da sessão de julgamento em que foi prestado, do ficheiro de que consta a respectiva gravação e das horas e tempo de duração, tal como ficou consignado em ata ;
    - enquanto que, no caso concreto em apreciação não foram indicadas quaisquer passagens da gravação, por mínimas ou parcelares que fossem, e nenhuma transcrição foi efectuada, ;
    - e, estando-se perante depoimentos unos, prestados de uma só vez, sempre seria bem mais fácil ao Apelante a menção concreta e exacta dos ficheiros e das passagens da gravação fundantes do recurso interposto, ou seja, as concretas menções testemunhais em que alicerçam o seu entendimento para que o Tribunal considerasse diferenciada resposta à matéria factual considerada provada ;
    - pelo que, ainda que se aprecie o cumprimento do ónus de alegação ínsito ao artº. 640º do Cód. de Processo Civil, em compaginação ou articulação com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, e se conceda prevalência ou relevo aos aspectos de ordem material, em comparação com os aspectos de ordem formal, na esteira do entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça, não é de aceitar que o pressuposto ou exigência contida na alínea a), do nº. 2, do artº 640º - indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda -, se considere minimamente preenchido ou verificado ;
    - ademais, tal ausência de indicação exacta (ou mesmo por aproximação, que sempre se admitiria como suficiente), sempre poderia ser colmatada com a transcrição dos enxertos dos depoimentos que fosse considerada relevante para a apreciação da impugnação apresentada, situação que não ocorre no caso concreto, em que tal transcrição é inexistente ;
    - e, nem se diga, que no caso sub júdice está em equação o nível de exigência de exactidão das passagens das gravações, que deverá estar em articulação ou concatenação com a metodologia ou do modo concreto como os depoimentos foram prestados em audiência, nomeadamente a sua extensão ou prolongamento (número de sessões em equação), obtidos de uma única vez ou de forma parcelada, tendo em atenção os pontos ou blocos de facto em controvérsia, ou prestados sob temas de prova abertos ou pouco concretizados, o que permitirá uma maior disseminação ou fragmentação factual, a admitir maior flexibilidade do critério de exactidão das passagens ;
    - pois, do que se trata in casu é de total omissão de referência a tais passagens da gravação, seja em sede de conclusões, seja em sede do corpo das alegações, e não de aferição do nível de exigência de exactidão das mesmas, que deverá traduzir-se no reconhecimento de motivo de rejeição do objecto da apelação, nessa parte (e não juízo de improcedência da impugnação de facto deduzida).
    Donde resulta que, inexistindo na presente situação pertinência no proferir de despacho de aperfeiçoamento [8], conclui-se ter a Ré Apelante violado o ónus que lhe é imposto no artº. 640º, nº. 2, alín. a), do Cód. de Processo Civil, o que determina a imediata rejeição do presente recurso, no que tange à impugnação da matéria de facto, na pretendida ponderação dos depoimentos prestados pelas testemunhas PA…, MA… e NM…. Consignando-se, ainda, que na impugnação da matéria de facto apresentada, nenhuns outros depoimentos são questionados ou invocados, para além de uma genérica alegação às declarações de parte do Autor, igualmente sem qualquer concretização, especificação ou identificação das passagens da gravação e sem que qualquer transcrição tenha sido feita.        
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    III - FUNDAMENTAÇÃO
    A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
    Na sentença recorrida, foi considerado como PROVADO o seguinte:
    1. Na manhã do dia 7 de Abril de 2015, pelas 10h00, o A estacionou o seu veículo, VolksWagen Golf, do ano de 2004, com a matrícula …-…-ZE, na Praceta Eng. Adão Manuel Ramos Barata, em Moscavide.
    2. O A retirou um ticket de estacionamento das máquinas da R, com validade até às 10h37 do mesmo dia 7 de Abril de 2015.
    3. Não obstante, e tendo-se atrasado o A, quando chegou ao local onde tinha o veículo estacionado, o mesmo tinha sido rebocado pela R.
    4. Conforme o Auto de Bloqueamento e Remoção nº …, o veículo do A foi bloqueado às 11h35 minutos do dia 7 de Abril de 2015., portanto 58 minutos após expirar a validade do título de estacionamento adquirido pelo A.
    5. No referido dia 7 de Abril de 2015, o veículo foi levado para um parque da R, em Sacavém.
    6. A viatura do A. encontrava-se imobilizada com a caixa de velocidades engatada e durante o procedimento de reboque as rodas rodaram.
    7. O facto de as rodas terem rodado durante o procedimento de reboque fez com que a viatura avariasse.
    8. O veículo acabou por ser devolvido ao A. em condições bem diferentes daquelas em que o deixou da última vez que o utilizou, nomeadamente sem que o motor funcionasse.
    9. Efectivamente, o A. deslocou-se ao parque da R. para recuperar o veículo e efetuou o pagamento de coima e de taxa de remoção de veículo, tudo no montante de 133,00€ (centro e trinta e três Euros).
    10. Mas, quando se dirigiu ao seu veículo para o retirar do parque da R, o mesmo não pegou.
    11. Após diversas tentativas, e depois de se confirmar que o veículo de facto não iria funcionar, os funcionários da R retiraram o veículo do A do parque, através de reboque.
    12. Deixando-o à entrada do parque.
    13. E, na sequência, o A contactou o serviço de “assistência em viagem” da sua companhia de seguros, tendo posteriormente o veículo sido rebocado para uma oficina.
    14. Concretamente para a PALOCAR, oficina sita em São João da Talha.
    15. Na mesma oficina, em diagnóstico inicial aos problemas do veículo, foi desde logo verificado que o motor estava avariado.
    16. Atento ao facto do mesmo veículo não apresentar qualquer problema de motor até ao momento em que o A o deixou estacionado, em Moscavide, o A. regressou ao parque da R, em Sacavém, para informar do sucedido e para pedir responsabilidades à R.
    17. Na sequência, foi-lhe sugerido que preenchesse um formulário de reclamação, o que o A fez, com uma descrição sumária do sucedido.
    18. A reclamação foi registada pela R com o número …/….
    19. A R. respondeu por carta, defendendo-se afirmando, entre outros, que o veículo havia sido rebocado sobre rodas, e que haviam sido cumpridos “os procedimentos normais na remoção da viatura”, recusando qualquer responsabilidade pelo sucedido.
    20. Não conformado com a resposta da R, o A contactou com o seu mandatário, o qual enviou nova carta dirigida à R, datada de 27 de Abril de 2015.
    21. Nos termos da referida carta o A, para além de recusar os argumentos da R, vem informar que o veículo continuava imobilizado na mesma oficina para onde foi transportado, sugerindo que a R. enviasse representante ao local para aferir dos danos sofridos pelo veículo.
    22. O A, conforme informou a R. em carta enviada pelo seu mandatário pediu um orçamento para arranjar o seu veículo.
    23. E recebeu um orçamento da PALOCAR a 19 de Maio de 2015, no valor de 2.866,18€ (dois mil oitocentos e sessenta e seis Euros e dezoito Cêntimos).
    24. Sucede que o A. aufere 530,00€ por mês.
    25. E não tem nem tinha em Maio de 2015, disponibilidade financeira para arcar com o custo do arranjo.
    26. Por outro lado, sendo o valor do arranjo uma quantia para si muito avultada, recusou-se a efetuar tal pagamento.
    27. Sucede ainda que o A. gastou serviços de taxi, pelo facto de estar impossibilitado de utilizar o seu veículo.
    28. O A é empregado de mesa no café restaurante G…, sendo o seu horário das 20h às 4h00 da manhã.
    29. O A trabalha na Av. …, em Lisboa, e vive em São João da Talha.
    30. No horário que faz, sobretudo o de saída, não tem o A transportes para se deslocar de sua casa para o trabalho, e vice-versa.
    31. E, por isso, e durante vários meses, o A. recorreu ao transporte de taxi para poder ir trabalhar.
    32. Isto porque a R. mediante carta datada de 16 de Abril de 2015, veio declinar quaisquer responsabilidades.
    33. Os estragos que obrigam à paralisação do veículo do A. foram provocados pelo reboque efetuado pela R.
    34. O A. é uma pessoa com baixos rendimentos, e que andou a contar o seu dinheiro para poder pagar as deslocações de taxi que diariamente fazia para ir trabalhar.
    35. Recorrendo várias vezes a pequenos empréstimos junto de amigos e familiares, que reembolsava após receber o seu salário.
    36. Os seus horários não lhe permitiram socorrer-se de outro meio de transporte menos dispendioso, uma vez que o seu horário de trabalho é das 20h às 4h, não havendo a essas horas transportes públicos que pudesse utilizar.
    37. E, por isso, o A. foi obrigado a utilizar diariamente táxis, durante vários meses, gastando um total de 1.323,15€ (mil trezentos e vinte e três Euros e quinze Cêntimos).
    38. O A. viu-se privado do uso do seu veículo, não podendo deslocar-se para visitar amigos ou familiares, nomeadamente a sua mãe, que tem idade avançada e uma saúde débil, e a quem o A faz companhia e presta assistência.
    39. Por outro lado, também ficou impedido de utilizar o seu veículo para seu lazer, nomeadamente para se deslocar à praia, como faz habitualmente no Verão, e não pode fazer no ano de 2015.
    40. Porque as poucas posses do A não lhe permitem deslocar-se para destinos de praia, sendo as suas “férias de Verão” passadas em casa, com deslocações à praia.
    41. Não podendo utilizar o seu carro para passear e se deslocar da zona onde vive para fazer aquilo que bem entendesse.
    42. Não podendo tratar dos seus assuntos pessoais com a facilidade, celeridade e conforto que o seu automóvel lhe confere.
    43. E o A faz uso frequente e diário do seu automóvel, não apenas para se deslocar para o trabalho, mas também nos seus tempos livres.
    44. E deixou, durante o período em que o automóvel esteve imobilizado, de o poder fazer.
    E foi considerado como NÃO PROVADO o seguinte:
    1. A avaria da viatura ocorreu por o motor do veículo não estar a ser devidamente lubrificado, por falta de óleo, ou outra razão mecânica.
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    B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
    I) Da REAPRECIAÇÃO da PROVA GRAVADA decorrente da impugnação da matéria de facto
    Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados da Relação, estatuindo que:
    “ 1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
    2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
    a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
    b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
    c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
    d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
    Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo, nos termos já supra sobejamente apreciados, plasmado no artigo 640º do mesmo diploma (já citado supra, ainda que parcialmente), o qual dispõe que:
    “1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
    a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
    b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
    c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
    2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
    a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
    b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
    3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
    No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada. Todavia, não tendo o Recorrente/Apelante dado cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º, nº. 2, alín. a), do Cód. de Processo Civil (nos termos já supra conhecidos), o presente Tribunal apenas procederá à sua reapreciação:
    · Com base na prova documental invocada, no que concerne á sua potencialidade probatória, tendo-se ainda em atenção a alusão de que os factos provados enunciados não traduzem verdadeira matéria factual, mas antes juízos valorativos e conclusivos.
    Não se desconhece que “para negar a admissibilidade da modificação da decisão da matéria de facto, designadamente quando esta seja sustentada em meios de prova gravados, não pode servir de justificação o mero facto de existirem elementos não verbalizados (gestos, hesitações, posturas no depoimento, etc.) insusceptíveis de serem recolhidos pela gravação áudio ou vídeo. Também não encontra justificação a invocação, como factor impeditivo da reapreciação da prova oralmente produzida e da eventual modificação da decisão da matéria de facto, da necessidade de respeitar o princípio da livre apreciação pelo qual o tribunal de 1ª instância se guiou ou sequer as dificuldades de reapreciação de provas gravadas em face da falta de imediação”.
    Pelo que, poderá e deverá a Relação “modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado[9].
    Reconhece-se que o registo dos depoimentos, seja áudio ou vídeo, “nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância.
    Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador”.
    Efectivamente, e esta é uma fragilidade que urge assumir e reconhecer, “o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”.
    Todavia, tais dificuldades não devem justificar, por si só, a recusa da actividade judicativa conducente à reapreciação dos meios de prova, ainda que tais circunstâncias ou fragilidades devam ser necessariamente “ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados[10] (sublinhado nosso).
    - Dos factos provados 6., 7., 8. e 16.
    São os seguintes os factos em equação:
    6. A viatura do A. encontrava-se imobilizada com a caixa de velocidades engatada e durante o procedimento de reboque as rodas rodaram.
    7. O facto de as rodas terem rodado durante o procedimento de reboque fez com que a viatura avariasse.
    8. O veículo acabou por ser devolvido ao A. em condições bem diferentes daquelas em que o deixou da última vez que o utilizou, nomeadamente sem que o motor funcionasse.
    16. Atento ao facto do mesmo veículo não apresentar qualquer problema de motor até ao momento em que o A o deixou estacionado, em Moscavide, o A. regressou ao parque da R, em Sacavém, para informar do sucedido e para pedir responsabilidades à R.
    Alega a Apelante, na parte que ora releva, rejeitada que foi a impugnação relativamente á ponderação dos aludidos depoimentos, que “embora a douta sentença recorrida diga que: “a matéria controvertida resultou da análise crítica conjugada do teor da prova documental junta aos autos com o teor das declarações de parte do A. e dos depoimentos das testemunhas ouvidas”, a verdade é que assim não aconteceu, como resulta da própria motivação expressa na douta sentença”.
    Assim, especifica, o “relatório junto aos autos pelo autor, não se encontra assinado, pelo que se desconhece quem o elaborou e subscreveu e a que titulo. Apenas se sabe que foi solicitado pela seguradora do autor”, tendo sido elaborado “8 meses depois do reboque e da avaria do veículo, com base nos factos que lhe foram relatados pelo próprio autor e pelo mecânico que havia desmontado o veículo oito meses atrás”, não tendo tido o mesmo conhecimento directo dos factos, ou seja, “não sabe como foi efetuado o reboque, como a viatura se encontrava estacionada e não verificou a avaria sofrida pelo VS, porque quando o viu já se encontrava desmontado”, partindo, assim, de meras suposições ou hipóteses.
    Acrescenta que a mesma sentença “considera como provado que as rodas do veículo rodaram durante o procedimento de reboque e que foi isso que provocou a avaria do motor, com base em suposições e hipóteses relatadas emitidas por quem também não teve conhecimento direto dos factos, ou com base num documento cujo autor se desconhece, mas que se sabe não ter também ele conhecimento direto dos factos”, sendo que o Autor “não produziu prova sobre o estado da viatura antes do reboque, não demonstrou a razão pela qual a viatura não pegou, provou-se contudo, que o autor logo que o carro não pegou, foi comprar óleo que introduziu na viatura, mas sobretudo o autor não provou as circunstâncias em que foi efetuado o reboque, porque apenas a testemunha MF… assistiu ao mesmo, no entanto a douta sentença recorrida, conclui que “não se duvida que a viatura tenha sido transportada sobre suporte com rodas até ao parque da ré, mas o procedimento de colocação de tal suporte com rodas para efetuar o reboque terá implicado a deslocação da viatura do lancil do passeio, ainda que por uma curta distância, forçando a viatura engatada a mover as suas rodas, o que por si foi causa da avaria de funcionamento do motor“.
    Aduz, deste modo, que a matéria constante dos “pontos 6, 7, 8 e 16 dos factos dados como provados pela douta sentença recorrida não é matéria factual, mas sim valorativa e conclusiva e como tal não pode ser submetida a prova, isto é, os juízos valorativos assim como os juízos conclusivos não se provam no sentido de se saber se existiram ou não existiram, só se provam os factos, estes é que existiram ou não existiram”, não tendo o Autor provado, e a este cabia tal prova, “factos concretos que permitissem ao tribunal concluir pela verificação dos pressupostos de que a lei faz depender o dever de indemnizar”.
    Ou seja, não logrou provar “que o procedimento de reboque não tenha sido executado cumprindo escrupulosamente os procedimentos ao caso aplicáveis, que durante o procedimento de reboque as rodas do veículo tivessem rodado ou que foi isso que fez a viatura avariar, que o veículo lhe tenha sido devolvido em condições diferentes daquelas em que o deixou a última vez que o utilizou ou sequer que o veiculo não apresentava qualquer problema de motor ate ao momento em que o autor o deixou estacionado”.
    Nas contra-alegações apresentadas, refere o Apelado Autor que “relativamente aos pontos 6 e 7 da Sentença, o Tribunal a quo baseou a sua convicção em toda a prova produzida, não apenas isoladamente quanto a uma, ou várias testemunhas…” e que a Recorrente “afirma que o Tribunal a quo não poderia dar como provado que o veículo foi empurrado pelo funcionário que tratou do reboque, mas a verdade é que não demonstra o contrário, ou seja, que o Tribunal a quo não o poderia ter feito”.
    Acrescenta que o Tribunal a quo realizou um “juízo positivo de prova”, “usando em alguma medida de juízos de probabilidade, sendo que o facto de não haver um batalhão de testemunhas que tenham assistido à operação de reboque, ou que a mesma não tenha sido filmada e o respectivo filme reproduzido e junto aos autos, ou seja, o facto de não existir uma prova única e absolutamente irrefutável, não impede o Tribunal a quo de, alicerçado na prova produzida, e que foi vasta, concluir que o veículo foi de facto empurrado pelo funcionário da Recorrente e que isso foi de molde a provocar os consabidos danos”.
    Referencia, ainda, que o Tribunal a quo, “de forma livre alicerçou a sua convicção na prova produzida, e a Recorrente não demonstra de forma alguma que o fez de forma errónea, pelo contrário, nas suas alegações, ao escamotear parte da prova – como o faz com as declarações da testemunha PC… – só reforça essa mesma decisão”, afirmando, igualmente, que “o relatório não está assinado, quando o mesmo, como é patente, foi produzido precisamente por uma sociedade que se dedica a efectuar peritagens”. E, acrescenta ser natural que a peritagem tenha partido “da versão do Recorrido, que nomeadamente informou da operação de reboque, e que o carro estava em perfeitas condições antes da mesma, e estes ao constatarem os danos do veículo, formularam as suas conclusões….”.
    Por fim, aduz que “estacionou o seu veículo que foi depois rebocado pela Recorrente, não tendo mais funcionado, tendo-se posteriormente verificado que o motor tinha peças partidas e esmagadas, mas a corrente estava inteira, o que indica que foi empurrado, com mudança engatada, não estando em funcionamento”, tendo o Tribunal a quo considerado “demonstrado que foi durante a operação de reboque efectuada pela Recorrente que tal sucedeu, e esta nada de novo traz nas suas alegações que permita colocar em crise a conformidade desse juízo positivo de prova (…)”.
    A fundamentação feita constar na sentença apelada, no que concerne á matéria factual em equação, tem o seguinte teor:
    “A demais matéria controvertida resultou da análise crítica conjugada do teor da prova documental junta aos autos com o teor das declarações de parte do A. e dos depoimentos das testemunhas ouvidas. Vejamos.
    O facto relativo à realização do transporte da viatura sem que as rodas permanecessem imobilizadas resultou essencialmente da análise do teor das fotografias da autoria da R., de fls. 157 e 174, que exibem o veículo na posição que se encontrava estacionado antes do transporte pela R., e nas quais se percebe que os eixos dianteiros da viatura estavam em cima do passeio, em articulação com o teor do relatório de averiguação do GEP, a fls. 112, verso e ss.. O referido relatório conclui, a fls. 116 verso: “Estando o VS com os eixos dianteiros colocados sobre o lancil do passeio, isto também dificultava a operação, pois o espaço disponível entre o passeio e rodados do veículo não permitia a colocação das rodas auxiliares por forma a estas ficarem apoiadas no piso e para se apoiarem no passeio o veículo teria de ser elevado a uma altura que o macaco pneumático usado não alcança.
    Perante as dificuldades encontradas pelo motorista do reboque da LOURES Parque, para colocação das rodas auxiliares, este coloca o reboque com a traseira posicionada para a traseira do VS, e puxa/arrasta o mesmo alguns metros, sendo esta (na nossa opinião) a única probabilidade de executarem o respetivo reboque.”.
    Note-se que a testemunha PC…, gerente da oficina automóvel para onde a viatura foi transportada imediatamente a seguir ao sucedido, e que vistoriou a viatura, num depoimento seguro, sabedor e espontâneo, que se reputou credível, acompanhou este entendimento, tendo explicado que basta mover o veículo engatado numa curta distância, forçando o rodar das rodas do veículo, para tal implicar uma avaria do funcionamento do motor.
    Por outro lado, as declarações de parte do A., que se afiguraram espontâneas e coerentes, pelo que se reputaram credíveis, foram no sentido de que o automóvel funcionava perfeitamente no dia do reboque, em que o deixou estacionado, sem apresentar qualquer anomalia, e tinha sido sujeito a revisão recentemente.
    Não se duvida que a viatura tenha sido transportada sobre suporte com rodas até ao parque da R., mas o procedimento de colocação de tal suporte com rodas para efetuar o reboque terá implicado a deslocação da viatura do lancil do passeio, ainda que por uma curta distância, forçando a viatura engatada a mover as suas rodas, o que por si só foi causa da avaria de funcionamento do motor.
    Embora a testemunha funcionária da R. MF…, que efetuou o procedimento de reboque, tenha deposto no sentido do cumprimento escrupuloso dos procedimentos, o seu depoimento não foi nesta parte julgado credível, por nada isento, em virtude de possíveis consequências disciplinares, e não coerente com a demais prova indicada.
    Acresce que MF… admitiu que efetuou aquele reboque sozinho, pois à hora de almoço o colega fica no parque. Por seu turno, a testemunha JF…, funcionário da R. responsável pela coordenação dos bloqueios e desbloqueios, admitiu que normalmente são duas pessoas a fazer o reboque, pois uma pessoa demora mais tempo, a tirar fotos, preencher papéis, colocar o macaco e colocar as rodas. Admite-se que neste caso o facto de ser apenas uma pessoa a efetuar o reboque tenha dificultado a gestão do processo, levando a uma simplificação de procedimentos com consequências negativas para a mecânica da viatura”.
    Ora, a apreciação do presente Tribunal encontra-se desde logo limitada pelo facto de não poder avaliar acerca do teor dos depoimentos referenciados nas alegações recursórias, em concatenação com os mencionados na exposta fundamentação de facto. Pelos motivos supra expostos, conducentes ao consignado juízo de rejeição do presente recurso, relativamente à impugnação da matéria de facto, fundada naqueles aludidos depoimentos.
    Todavia, para além da prova daquela natureza testemunhal ou por declarações de parte, constata-se que a fundamentação feita constar na sentença apelada afigura-se-nos coerente e consistente, com sólida e clara argumentação.
    Nomeadamente, e fundamentalmente, a que decorre da articulação do teor dos registos fotográficos juntos pela Ré, com o relatório de averiguação do GEP, junto a fls. 112 vº a 140.
    Ora, este relatório, que terá sido elaborado pela seguradora do veículo do Autor, é bastamente detalhado, preciso e tecnicamente fundado. Não parte de juízos preconcebidos, mas explora várias possibilidades e procura várias explicações, justificando as conclusões elaboradas, que fundamenta, fazendo clara destrinça entre aquilo que foi o relato dos intervenientes e o que foi objecto de percepção do Perito e análise dos demais elementos de análise e verificação.
    Assim, é perfeitamente perceptível o juízo feito constar de ser possível concluir “que o VS não sofreu danos no motor provocados por avaria, mas sim por descomando do motor. Tendo este girado no sentido contrário ao da mudança engrenada, ou seja, o mesmo recuou estando a mudança engrenada para a circulação em frente”. Ou as aludidas dificuldades encontradas na execução do reboque, conducentes a que o veículo tivesse que ser arrastado/puxado, pela traseira, durante alguns metros, de forma a permitir aquele. O que foi analisado em concatenação com os vestígios e marcas percepcionadas no próprio veículo.
    Por outro lado, a análise efectuada, nomeadamente às características do motor e partes técnicas afectadas permitiu, ainda, concluir pela impossibilidade do veículo ter sido deslocado para o local de estacionamento já nessas condições, pois pura e simplesmente encontrava-se impossibilitado de circular. O que foi devidamente documentado com registos fotográficos pertinentes, explicações técnicas detalhadas e exaustiva análise às circunstâncias relatadas e percepcionadas.  
    Donde se compreende e aceita que o Tribunal a quo tenha concedido a devida valoração a tal meio probatório que, ademais, se conciliava com os registos fotográficos juntos pela Ré, dos quais resultava a posição inicial do veículo no estacionamento, ou seja, com os eixos dianteiros encostados ao lancil do passeio, o que dificultava, conforme exaustivamente explicitado, a operação de reboque.
    Por outro lado, não é correcto afirmar, como faz a Recorrente, que os enunciados pontos considerados provados não constituam matéria factual, mas sim apenas valorativa e conclusiva, insusceptível de ser submetida a actividade probatória.
    Com efeito, apesar de se reconhecer que a redacção conferida a tais pontos da matéria considerada como provada poderia ser dotada de menor teor explicativo ou natureza de conclusão, mas antes tradutora de uma consignação mais seca e enxuta, não deixamos de estar perante factos concretos e reais. Assim, são efectivos factos, e não juízos valorativos ou conclusivos, a circunstância da viatura se encontrar no estacionamento imobilizada com a caixa de velocidades engatada, que durante o procedimento de reboque as rodas rodaram, que esta rodar das rodas durante o procedimento de reboque fez com que a viatura avariasse, que o veículo foi entregue ao Autor, aquando do seu levantamento, sem que o motor funcionasse e que o mesmo veículo não apresentava qualquer problema de motor até ao momento em que o A. o deixou estacionado.
    Donde se conclui, claramente, no sentido de manutenção de tal factualidade como provada, assim improcedendo, manifestamente, a pretensão de alteração feita constar neste segmento recursório.
    - Dos factos provados 36. e 37.
    Os presentes factos têm a seguinte redacção:
    36. Os seus horários não lhe permitiram socorrer-se de outro meio de transporte menos dispendioso, uma vez que o seu horário de trabalho é das 20h às 4h, não havendo a essas horas transportes públicos que pudesse utilizar.
    37. E, por isso, o A. foi obrigado a utilizar diariamente táxis, durante vários meses, gastando um total de 1.323,15€ (mil trezentos e vinte e três Euros e quinze Cêntimos).
    Alude a Apelante que, relativamente ao facto 37., a sentença recorrida considera-o provado com base em recibos juntos aos autos pelo Autor, os quais considera serem, por si só, “insusceptíveis de demonstrar que aquele serviço foi utilizado pelo autor para se deslocar de casa para o trabalho e vice-versa”.
    Estranha, ainda, que tais recibos tenham sido emitidos, na sua quase totalidade, “pela mesma empresa de táxis e com a utilização sempre da mesma viatura”, considerando factor de ausência de credibilidade de tal meio de prova a existência de um recibo de 01/05/2015, único dia do ano em que o estabelecimento em que o Autor trabalha encerra.
    Questiona, igualmente, o facto 36. provado, pela circunstância do Autor não ter junto um único documento demonstrativo da inexistência de transportes públicos às horas mencionadas no mesmo, considerando que a sentença considera provados aqueles prejuízos “com base naqueles recibos de táxi, no depoimento do autor e de uma única testemunha que disse ter visto o autor chegar algumas vezes de táxi”.
    Em sede contra-alegacional, defende o Apelado que a “Recorrente começa por ignorar a prova testemunhal produzida, para depois afirmar que uma testemunha disse ter visto o Recorrido a utilizar esse meio de transporte “umas vezes”…”, sendo que a mesma “testemunha referiu que viu o Recorrido utilizar o meio de transporte taxi “muitas vezes” e ainda “muitas vezes mesmo”…”.
    Acrescenta que a Apelante “pretende colocar em crise as facturas recibo juntas pelo Recorrido, sem que antes tenha invocado a falsidade das mesmas, e sem o fazer agora, pretendendo apenas que não devem servir de prova, por um lado porque foram passadas na sua maioria pela mesma empresa, por outro, porque um dos recibos data de 1 de Maio de 2015, o único dia do ano que o estabelecimento onde o Recorrido trabalha fecha”.
    Todavia, “quanto ao recibo passado a 1 de Maio, bem sabe a Recorrente que o Recorrido sai do seu trabalho pelas 3 horas da manhã, pelo que estando o estabelecimento onde trabalha a operar a 30 de Abril, o Recorrido saiu, pelas 3h, já no dia 1 de Maio, e isso explica a factura recibo datada dessa data…”. E, quanto “ao facto de ter sido, na maior parte das vezes, a mesma empresa de táxis que transportou o Recorrido, a explicação é simples: quando o serviço se tornou uma necessidade regular, em periodicidade (diária), trajecto e horário, o Recorrido combinou os serviços com uma empresa e motorista seus conhecidos. Ainda assim nem sempre foi transportado por este motorista ou empresa, por indisponibilidade dos mesmos”.
    Conclui, mencionando que o “Tribunal a quo formou a sua convicção na prova junta, e que é manifestamente bastante – a prova documental em forma das facturas recibo e a prova testemunhal complementar à mesma”, pelo que o Recorrente nada referencia de novo “que possa afectar formação de tal convicção, e as questões que ora levanta quanto às facturas recibo são afinal de fácil resposta e apenas servem para confirmar a bondade da decisão proferida”.
    Na sentença apelada, justificou-se a prova de tal factualidade aludindo-se que a “matéria provada relativa aos prejuízos do A. resultou desde logo do teor da prova documental junta aos autos, nomeadamente orçamento de reparação da viatura, faturas de táxis e declaração patronal, em conjugação com o teor das declarações de parte do A. e do depoimento espontâneo e coerente, pelo que se reputou credível, da testemunha RS…, colega de trabalho do A..”.
    Vejamos.
    Na impugnação apresentada a Apelante não é sequer clara quanto á sua pretensão, em inobservância do prescrito na supra transcrita alínea c), do nº. 1, do artº. 640º, do Cód. de Processo Civil, ou seja, não esclarece devidamente qual a decisão que deveria ser proferida relativamente aos factos em equação.
    Ainda assim, num esforço interpretativo, considerámos que a Apelante pretenderá que tal factualidade passe a figurar como não provada, atenta a argumentação de ausência de fundamento probatório.
    Ora, ao questionar tal matéria factual provada, a Recorrente, para além dos recibos de táxi, alude ao depoimento do Autor e de uma única testemunha, sem sequer a identificar, e sem formular qualquer juízo crítico relativamente estes depoimentos, relativamente aos quais olvida por completo o cumprimento do prescrito no já referenciado artº. 640º, nº. 1, alín. b) e 2, alín. a), do Cód. De Processo Civil.
    O que, por si só, inviabiliza a sindicância, por este Tribunal de recurso, da pertinência da consideração de tais meios probatórios como fundantes daquela factualidade provada, em articulação e conjugação com a prova documental traduzida no teor das facturas/recibos de táxi juntos aos autos.
    Pelo que, à míngua de outra argumentação, e pela simples análise da consignada fundamentação, não se vislumbra pertinência na alteração daquela matéria factual provada. Que assim se confirma, improcedendo, igualmente neste segmento, a impugnação da matéria de facto apresentada.
    II) DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS
    A sentença apelada ajuizou, basicamente, nos seguintes moldes:
    Ø Em articulação com o prescrito no artº. 483º, do Cód. Civil, resultou da matéria provada um facto ilícito, violador do direito de propriedade do Autor, praticado com negligência ;
    Ø Em consequência do facto ilícito praticado pela Ré, o Autor ficou impossibilitado de usar a viatura, desde a data do reboque e por um longo período ;
    Ø Assim, deve a Ré ressarci-lo pelo dano de privação do uso de veículo, tendo-se provado que a usava diariamente para as deslocações para o trabalho e lazer ;
    Ø Donde, ponderadas as características da viatura, considera-se razoável a fixação de um valor diário de 20,00 € pela privação do uso, num total de 8.780,00 € (439 dias X 20,00 €) ;
    Ø Existiu, ainda, a necessidade de utilização de um meio de transporte mais dispendioso (táxi), que deve igualmente ser ressarcido, no peticionado montante de 1.323,15 € ;
    Ø Para além do custo com a própria reparação da viatura – dano emergente -, no montante de 2.866,18 € ;
    Ø Bem como da quantia de 1.000,00 € a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais.
    A Apelante Ré, para além das consequências que reivindica decorrentes da pretendida alteração da matéria de facto, que improcedeu, questiona, fundamentalmente, a alegada indevida cumulação ressarcitória do dano de privação do uso de viatura e da indemnização por danos não patrimoniais, da não fundamentação da medida ou valor fixado como de indemnização do dano de privação do uso e de que os alegados danos não patrimoniais não são susceptíveis de merecimento de tutela jurídica ressarcitória.
    Analisemos.
    - Do dano de privação do uso; da (in)devida cumulação com o ressarcimento do dano não patrimonial e da fundamentação e pertinência da medida de indemnização fixada
    Segundo princípio geral largamente aceite em termos jurisprudenciais, é “o lesante, responsável pelo acidente de viação que tem a obrigação de ressarcir os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, reconstituindo a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, mediante, em princípio, a restauração natural, salvo se esta não for possível, não reparar integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, o lesante, e por tudo é a este lesante que incumbe o dever de efectuar ou mandar efectuar a reparação do veículo danificado no acidente” [11].
    Ora, o alegado dano da privação do uso do veículo já foi qualificado como tendo natureza moral ou não patrimonial, dispondo o n.º 1 do art.º 496º que na fixação da indemnização de tais danos deve apenas atender-se aos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. A posição clássica adoptada na doutrina e na jurisprudência era a de que tais danos, consubstanciados nos incómodos decorrentes de tal privação, não tinham a gravidade exigida pela lei que justificasse a atribuição de uma indemnização [12].
    Todavia, já nessa altura tal posição jurisprudencial não era uniforme defendendo, entre outros, o douto Acórdão da RC de 07/06/77 [13] “que a impossibilidade de utilização de automóvel próprio (danificado em acidente de viação) para deslocações de recreio e/ou necessárias à satisfação de necessidades quotidianas pode, por afectar o bem estar do lesado, configurar a existência de dano não patrimonial indemnizável”. Algum tempo depois, e ainda antes da mais recente orientação jurisprudencial, tal posição voltou a ser defendida pelo douto Acórdão da RE de 26/03/80 [14], aí se referindo que “é facto notório que a imobilização forçada de um veículo por acidente e  durante tanto tempo, causa danos morais ao seu proprietário. Parece pertinente esta consideração, pois quem tem um carro tem-no para o desfrutar, e se por via dum acidente não o pode usar, isso causa-lhe sem dúvida um prejuízo não patrimonial tanto mais sensível quanto maior for o decurso do tempo durante o qual não pode exercitar o direito de utilizar como bem entende aquilo que é seu”.
    No campo doutrinário, defende Américo Marcelino [15] que “uma coisa são os incómodos ou os transtornos provenientes da privação do carro e que, em boa verdade, não têm valor suficiente para integrarem o conceito de dano moral, tal como o art.º 496º o configura. E outra coisa é o desvalor que, sem dúvida, tal privação representa. Como desvalor que é, imerecido para o possuidor do carro, representa um dano para ele”. Ajuizando acerca de tal dano, qualifica-o como “material, patrimonial, consistente na privação da faculdade de poder fruir o carro que comprou. Como o direito de propriedade compreende os direitos de uso e fruição da coisa – art.º 1305º do Código Civil – e destas faculdades ficou privado o dono do carro, afectado ficou o seu direito de propriedade do veículo, diminuído que ficou, embora parcialmente, quer em quantidade, quer em duração. Ora isto, como componente do direito de propriedade, não pode deixar de ter um preço. Saber a sua medida, maior ou menor, já será outra questão, a resolver, eventualmente, ao abrigo da equidade – art.º 566º, n.º 3, do Código Civil”.
    Ora, a posição que defende serem tais danos não indemnizáveis afigura-se-nos completamente ultrapassada e desactualizada.
    Com efeito, conforme defendido no douto Acórdão desta Relação de 04/06/98 [16], na esteira dos arestos já referenciados, “nos tempos que correm, em que a possibilidade de usar automóvel faz parte daquilo a que vulgarmente se chama de qualidade de vida, já não se pode defender em termos de razoabilidade que os incómodos derivados da privação do veículo constituem dano não tutelado pelo direito. O Direito tem destinatários concretos, integrados numa determinada realidade, e não se compadece com uma visão abstracta da vida”. Refere-se, ainda, que a privação do uso e fruição do veículo consubstancia uma restrição ao direito de propriedade, inadmissível de acordo com o mencionado no art.º 1305 do Código Civil. E, não existiria nenhum motivo para entender “que a violação ilícita e culposa do direito de propriedade sobre um automóvel, não se contém na previsão do art.º 483, nº1 do Código Civil, que estabelece um princípio geral”. Conclui, referindo que tais simples incómodos resultantes da privação do veículo são indemnizáveis, devendo tal dano ser qualificado como não patrimonial, merecedor da tutela do direito indemnizável nos termos do nº3 do artº 496.
    Não cremos, todavia, que a qualificação de tal dano com natureza não patrimonial seja a melhor a mais adequada solução, antes se erigindo um mais adequado e pertinente enquadramento.
    Assim, A.S. Abrantes Geraldes [17], em obra que seguiremos de perto, refere que “o principal obstáculo à admissão do direito de indemnização decorrente da simples privação do uso advém da sua integração na categoria do dano concreto e na sua compatibilização com a teoria da diferença como critério quantificador”, pelo que, em regra, “aquela privação comporta um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado correspondente à perda temporária dos poderes de fruição”, sendo indiscutível, com base nas regras da experiência, que é a “privação do uso de um bem que não tenha sido prontamente substituído por outro com semelhantes utilidades ou que não tenha sido colmatada com a atribuição imediata de um quantitativo destinado a suprir a sua falta” que “determina na esfera do lesado uma lacuna que jamais poderá ser «naturalmente» reconstituída” [18].
    Deste modo, surge como inquestionável que a privação do uso do veículo, inibindo o dono de exercer sobre o mesmo os inerentes poderes, constitui uma efectiva perda, sendo que o sistema legal, conforme já vimos, confere ao lesado o direito à reconstituição natural da situação. Todavia, quando esta faculdade não tenha sido utilizada, ou o responsável lesante não tenha procedido á devida substituição do veículo, então a única via de reparação ou reintegração possível do lesado é através da atribuição de um equivalente pecuniário, vulgo, através da competente indemnização. Assim, constata-se “que a privação do uso, desacompanhada da sua substituição por um outro ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma «fatia» dos poderes inerentes ao proprietário.
    Nestas circunstâncias, não custa compreender que a simples privação do uso seja causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização (...). É incontornável a percepção de que entre a situação que existiria se não houvesse o sinistro e aquela que se verifica na pendência da privação existe um desequilíbrio que, na falta de outra alternativa, deve ser compensado através da única forma possível, ou seja, mediante a atribuição de uma quantia adequada” [19]. Pelo que, a situação de “desequilíbrio de natureza material correspondente á diferença entre a situação que existiria e aquela que é possível verificar depois de se constatar a efectiva privação do uso de um bem”, apenas se torna ressarcível “mediante a atribuição de uma compensação em dinheiro, se necessário recorrendo á equidade para alcançar a ajustada quantificação” [20] [21] [22].
    Aqui chegados, urge ponderar um outro ponto: quais os critérios para a determinação do quantum ressarcitório ? É que este, compreensivelmente, não deve ser igual em todas as situações, pois as perdas ou prejuízos assumem necessariamente algumas variações de acordo com as várias circunstâncias. E, assim, “pode ser diversa a quantia quando o lesado apenas possua um automóvel ou quando tenha outras possibilidades, tal como pode variar de acordo com o grau de utilização que efectivamente seria dado ao veículo no período de imobilização caso não ocorresse o evento lesivo”, como não é igualmente despicienda “a quantia necessária para o aluguer de um veículo de características semelhantes às do sinistrado”, bem como “o valor real do veículo e o seu período de «vida útil»”. Por fim e como último factor de ponderação que ajudará a superar eventuais dificuldades de prova, deve igualmente considerar-se, conforme já indiciámos, a “figura da equidade como fonte de direito e como ponto de apoio do julgador na tarefa de quantificação da indemnização”, sendo que a ponderação casuística não pode nem deve igualmente deixar de considerar “os princípios da boa fé, tal como o modo como o responsável e o lesado agiram na resolução do caso” [23] [24].
    Em termos jurisprudenciais, analisemos algumas doutas decisões mais recentes do Supremo Tribunal de Justiça acerca da indemnizabilidade do dano em equação (todas em www.dgsi.pt ):
    - de 05/07/2018 – Relator: Abrantes Geraldes, Processo nº. 176/13.7T2AVR.P1.S1 -, o qual refere que a jurisprudência do Supremo “passou a reconhecer, sem qualquer espécie de hesitação, o direito de indemnização relativamente a situações, como a dos autos, em que o veículo é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do veículo sinistrado foi causa de despesas acrescidas.
    Outra tese ainda mais benévola para o lesado é defensável e encontra também na jurisprudência bastas adesões no sentido de fazer corresponder à privação do uso uma indemnização autónoma, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação.
    Essa é a tese que o ora relator defendeu na monografia citada pela recorrente (Temas da Responsabilidade Civil, vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso), a qual é compartilhada por diversos autores também citados pela recorrente e com adesão de um largo setor da jurisprudência”.
    Deste modo, o civilmente responsável está obrigado a “proceder à reparação integral dos danos imputáveis a este, o que, além do mais, pode passar pela concessão ao lesado de um veículo de substituição (obrigação que, aliás, costuma estar prevista nos contratos de seguro relativamente a danos próprios), como forma de se alcançar ou de se aproximar da reconstituição natural da situação que existiria se acaso não tivesse ocorrido o acidente, nos termos do art. 562º do CC”.
    Acrescenta, no que concerne à quantificação da indemnização, dever operar a mesma “dentro das regras da equidade, qual a justa compensação que deve ser atribuída ao A. a título de privação do uso”, não devendo ainda ser descurados “aspetos particulares que emergem da decisão da matéria de facto”.
    Por fim, o mesmo douto aresto admite a ressarcibilidade autónoma dos danos não patrimoniais conexos com a privação do uso, entre os quais os danos não patrimoniais relacionados com a perturbação do gozo de férias, ou seja, o reconhecimento da admissibilidade da indemnização “atribuída a título de danos não patrimoniais decorrentes da falta de veículo de substituição”, mencionando expressamente que “ambas as facetas devem ser tuteladas através da única via que neste momento é possível: atribuição de uma compensação” ;
    - de 25/09/2018 – Relator: Roque Nogueira, Processo nº. 2172/14.8TBBRG.G1.S1 -, onde se referencia que “a jurisprudência do STJ, depois de algumas divergências, passou a reconhecer, sem qualquer espécie de hesitação, o direito de indemnização relativamente a situações como a dos presentes autos, em que o veículo é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do veículo sinistrado foi causa de despesas acrescidas”.
    Acrescenta que “a privação de um veículo comporta, em regra, um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado, correspondente à perda temporária dos poderes de fruição, embora a amplitude das consequências possa variar de acordo com as circunstâncias do caso.
    Efectivamente, as regras da experiência e normalidade das coisas inculcam-nos a ideia de que, nos dias que correm e atenta a hodierna organização económica e social, a perda de uso de um veículo automóvel, por norma, acarreta afectações negativas ao nível dos direitos do seu dono e prejuízos para o mesmo”.
    Pelo que, a “circunstância de o lesado, no caso, não ter recorrido a táxis, transportes públicos ou aluguer de veículo, não releva para a solução da questão em análise.
    De todo o modo, sempre se dirá que, se tivesse ocorrido qualquer daquelas circunstâncias, ninguém duvidaria que as respectivas despesas corriam, no caso, por conta da ré-Seguradora.
    Mas não tendo o lesado optado por qualquer uma delas, designadamente por não ter capacidade económica para o efeito, então ficaria aquela Seguradora isenta da devida compensação?
    Parece evidente que não, porquanto nada justifica que uma situação idêntica acabe por receber um tratamento tão diferenciado.
    A indemnização do dano da privação do uso, embora, no caso, conexa com a responsabilidade civil, tem em vista a compensação da perda das utilidades que o veículo era susceptível de proporcionar, visando, pois, o ressarcimento do prejuízo causado pela indisponibilidade do mesmo.
    No caso dos autos, o que o autor pretende é a compensação devida pela privação do seu veículo, sendo evidente que entre a situação que existiria se não houvesse o sinistro e aquela que se verifica durante a privação, existe um desequilíbrio de natureza material que deve ser compensado, na falta de outra alternativa, mediante a atribuição de uma quantia adequada, ainda que com recurso à equidade.
    Assim, constatando-se a existência de uma situação patrimonial menos valiosa do que a que existiria caso não fosse a privação, a determinação do quantum indemnizatório passa pela ponderação das circunstâncias do caso e pelo uso prudente das regras da experiência”.
    Donde, a determinação da indemnização deve obedecer a juízos de equidade, fundados numa casuística ponderação, tendo por subjacente as regras da experiência comum, ou seja, na “atribuição do valor do dano sofrido pela privação do uso do veículo automóvel, o tribunal deve nortear-se por imperativos de justiça, tendo em consideração todas as circunstâncias do caso, que deverá sopesar prudentemente, com ponderação das vantagens e inconvenientes, tendo em vista uma decisão que contenha uma solução equilibrada”.
    No caso concreto, na ponderação de tais circunstâncias, revogou a decisão da Relação que havia fixado a indemnização em 7,50 €/dia, repristinando a decisão da 1ª instância que fixou em 3,00 €/dia, em virtude de se ter provado que o dano não era muito significativo ;
    - de 08/11/2018 – Relator: Oliveira Abreu, Processo nº. 1069/16.1T8PZV.P1.S1 -, o qual começa por reconhecer que “a privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é um dano, e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário”.
    Assim, acrescenta, “face aos artºs. 562º a 564º e 566º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente, pode resultar: a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo; b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma actividade lucrativa; c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no artº. 1305º, do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender”.
    Donde, conclui, e independentemente de alguma jurisprudência ter vindo a exigir um reforço das exigências de prova dos prejuízos emergentes da paralização do veículo, que “quando a privação do uso recaia sobre um veículo danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente - constituindo um facto notório ou resultando de presunções naturais a retirar da factualidade provada - para que se possa exigir do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos”.
    No caso concreto, e no que concerne ao quantum indemnizatório, confirmou a decisão que havia fixado no valor diário de 10,00 € ;
    - de 27/11/2018 – Relator: Cabral Tavares, Processo nº. 78/13.7T8PVPRT.P2.S1 -, referenciando que a jurisprudência de tal Tribunal vem-se firmando “no sentido de considerar tal dano como dano autónomo indemnizável, bastando-se com a prova genérica que o lesado utilizava a viatura para os fins de lazer/trabalho e, consequentemente, por via daquela privação deixou de poder fazê-lo”, sendo que “não podendo ser averiguado o valor exato do dano, e dentro dos limites do que for provado, será ele determinado pela equidade”.
    No caso concreto, ponderando-se os factos provados, e estando em causa apenas a “natureza patrimonial do dano”, entendeu-se revogar a decisão da Relação e repristinar a decisão da 1ª instância, fixando-se a indemnização na quantia de 180,00 € mensais.
    Por fim, referencie-se, ainda, o Acórdão desta Relação de 20/12/2017 – Relatora: Ondina Carmo Alves, Processo nº. 1817/16.0T8LSB.L1-2, no qual o ora Relator interveio como 2º Adjunto.
    Consignou-se neste acerca da “problemática da reparabilidade do dano da privação do uso, cuja solução não tem sido unívoca, quer na doutrina, quer na jurisprudência, com maior incidência, precisamente, a propósito da responsabilidade civil automóvel.
    A clivagem jurisprudencial, não se limita à qualificação da natureza do dano de privação do uso, como dano não patrimonial ou patrimonial, já que mesmo quando se aceita a sua natureza patrimonial, existe dissensão.
    É que, para uma corrente de opinião, basta, para que seja reparável, a demonstração do não uso do bem atingido, uma vez que a indemnização é quase co-natural a essa mesma privação, defendendo-se que a simples privação do uso é causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que pode servir de base à determinação da indemnização, constituindo ainda a opção pelo não uso uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectado pela privação do uso – v. a propósito ANTÓNIO S. ABRANTES GERALDES, Temas da Responsabilidade Civil – Indemnização do dano da privação do uso, 2.ª Edição, Almedina.
    Também para LUÍS M. T. DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume I, 4.ª Edição, 317 “o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano”.
    Todavia, para uma outra corrente “é insuficiente essa demonstração, sendo ainda necessária a prova de um autónomo ou específico dano patrimonial”.
    Concluindo-se no sentido de que “a privação do uso de um bem é susceptível de constituir, por si, dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que, de acordo com o preceituado no artigo 1305º do Código Civil, é lícito ao proprietário gozar, i.e., o uso e fruição da coisa.
    A supressão dessa faculdade, impedindo o proprietário de extrair do bem, todas as suas utilidades, constitui, juridicamente, um dano que tem uma expressão pecuniária e que, como tal, deverá ser passível de reparação”.
    Relativamente ao quantum a fixar em sede ressarcitória, por apelo ao padrão decorrente de juízos de equidade, em articulação com a factualidade provada, entendeu-se por razoável atribuir o quantitativo diário de 20,00 €.
    Defende a Apelante que a sentença recorrida “não fundamenta a atribuição ao autor de 20 € /dia, durante 439 dias de indemnização pela privação do uso da viatura, cumulada com uma indemnização no valor de 1000€ a título de danos não patrimoniais” e que a própria decisão “não justifica a fixação de tais valores”.
    Acrescenta que aquele valor de 20,00 € “é o dobro do valor fixado pelos tribunais superiores para reparação do dano de privação de uso de viatura”.
    Por fim, referencia que os “eventuais sofrimentos e desgostos e as atividades que o autor tenha deixado de realizar por falta da viatura constituem danos resultantes da privação do uso dessa mesma viatura, por isso são considerados na indemnização fixada para a reparação de tais danos”, pelo que a indemnização “fixada na sentença recorrida atinente aos danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelo autor no montante de 1.000 €, não lhe é sequer devida”.
    Em sede contra-alegacional, defende o Autor Apelado que no que concerne “à indemnização pelo dano da privação de uso, o Tribunal a quo usou de juízos de equidade, nomeadamente atendendo às características do veículo do Recorrido, e entendeu, livremente, e no seu prudente arbítrio, fixar a quantia de 20,00€ / dia”, sendo que se o Recorrido “pretendesse alugar um veículo parecido com o seu, não pagaria menos de 50,00€ / 60,00€ por dia! II. Sendo o valor atribuído pela Sentença ponderado, equitativo e justo”.
    Por outro lado, no que concerne aos danos não patrimoniais, “os mesmos não se confundem com o dano de privação de uso, e a Recorrente escolhe aqui uma vez mais confundir a realidade com o aparente, desta feita já não relativamente à prova produzida, mas à própria Sentença”, pois esta “destrinça perfeitamente os danos morais que condena a Recorrente a indemnizar, do dano da privação de uso, fundamentando de forma clara esta condenação (pagamento de 1.000,00€ a título de danos morais) na angústia, revolta e sentimento de impotência que o Recorrido sentiu, e ainda sente, e que são merecedores de reparação”.
    A sentença apelada justificou a atribuição daquelas vertentes indemnizatórias nos seguintes termos:
    “Da matéria de facto provada resulta que em consequência do facto ilícito o A. ficou impossibilitado de utilizar a viatura desde a data do reboque e por longo período, tendo reclamado junto da R. de imediato e alertado a R. para a imobilização do veículo. Assim, a Ré deverá ressarcir o A. pelo dano de privação do uso da viatura, visto que o A. não pôde dispor do seu bem por decorrência do facto ilícito e culposo praticado pela R..
    No caso concreto estão afastadas as divergências doutrinárias e jurisprudenciais relativas ao ónus de alegação e prova da efetiva necessidade de utilização da viatura versus mera indisponibilidade do bem, visto que o A. alegou e provou que utilizava a sua viatura diariamente, nomeadamente para o trabalho e para lazer.
    Ponderadas as características da viatura considera-se razoável a fixação de um valor diário de € 20 pela privação do uso da viatura, como requerido pelo A.”.
    Adiante, especificamente sob os danos não patrimoniais, acrescentou que “com relevo para a apreciação de tal questão resultou assente, no essencial, que, em consequência do facto ilícito, o A. sentiu angústia, revolta e sentimento de impotência, sobretudo em virtude do facto de os seus rendimentos não lhe permitirem gerir com facilidade as suas deslocações casa-trabalho e a R. não se responsabilizar pelo sucedido.
    Ponderados os factos acima indicados, considera-se adequado fixar, com recurso à equidade, em 1.000,00 €, o montante da indemnização devida, a título de danos não patrimoniais”.
    Resultou provado que o Autor aufere 530,00€ por mês e não tem nem tinha em Maio de 2015, disponibilidade financeira para arcar com o custo do arranjo, recusando-se a fazer tal pagamento por ser para si uma quantia muito elevada – cf., factos 24. a 26..
    Provou-se, ainda, que o Autor viu-se privado do uso do seu veículo, não podendo deslocar-se para visitar amigos ou familiares, nomeadamente a sua mãe, que tem idade avançada e uma saúde débil, e a quem o A faz companhia e presta assistência, tendo também ficado impedido de utilizar o seu veículo para seu lazer, nomeadamente para se deslocar à praia, como faz habitualmente no Verão, e não pode fazer no ano de 2015, porque as suas poucas posses não lhe permitem deslocar-se para destinos de praia, sendo as suas “férias de Verão” passadas em casa, com deslocações à praia – cf., factos 38. a 40..
    Deste modo, não pôde o Autor utilizar o seu carro para passear e se deslocar da zona onde vive para fazer aquilo que bem entendesse, ficando assim impedido de tratar dos seus assuntos pessoais com a facilidade, celeridade e conforto que o seu automóvel lhe confere, sendo que fazia uso frequente e diário do seu automóvel, não apenas para se deslocar para o trabalho, mas também nos seus tempos livres, tendo-o deixado de poder fazer durante o período em que o automóvel esteve imobilizado – cf., factos 41. a 44..
    Alega a Recorrente que a sentença apelada não fundamentou a medida de indemnização do dano de privação do uso.
    Todavia, conforme resulta do supra exposto, apesar da parca fundamentação, que poderia ser efectivamente mais consistente e convincente, a sentença recorrida aludiu às características da viatura e sua diária utilização para o trabalho e actividade de lazer, como factores de ponderação do valor fixado.
    Donde, não é legítimo concluir-se por tal ausência de fundamentação, assim improcedendo o presente segmento recursório.
    Por outro lado, ajuizando-se acerca da pertinência daquele valor ressarcitório, perante aquele quadro factual, tradutor da utilização que o Autor fazia do veículo danificado, sendo certo que a lesante Ré não lhe disponibilizou qualquer veículo de substituição, nem de qualquer outra forma o ressarciu, antes sempre tendo declinado a sua responsabilidade, não lhe era efectivamente exigível que procedesse à reparação daquele, pois, para além do mais, não possuía sequer disponibilidade financeira para arcar com tal custo.
    E, não se pode considerar que o prazo entretanto decorrido, sendo que a reparação não foi efectuada, tenha revelado da sua parte qualquer violação do princípio da boa fé a que estava vinculado, no sentido de qualquer aproveitamento da posição da Ré devedora. Esta é que devia, pelo contrário, ter providenciado pelo não alongar da situação de privação que tinha causado, pois era a mesma que estava obrigada a “reconstituir a situação que existiria”, na terminologia do art.º 562º do Cód. Civil.
    Ora, tendo-se em atenção a utilização que o Autor normalmente dava ao veículo danificado, o facto de estarmos perante um veículo ligeiro de passageiros, o ano da sua matrícula (2004) – facto 1. -, o provável valor necessário para alugar um veículo de idênticas características, e o montante peticionado, julga-se equitativo o fixado valor de 20,00 Euros (vinte Euros), a título de montante diário indemnizatório, decorrente do dano de privação do veículo, como activo patrimonial pertencente ao Autor. Conducente a efectiva confirmação, nesta parte, do teor da sentença apelada.
    Acresce não se vislumbrar qualquer impossibilidade de cumulação do dano de privação do uso da viatura, que se configura, nos termos expostos, como um dano de natureza patrimonial, pois traduz-se em efectiva lesão do correspondente direito real de propriedade, com os danos de natureza não patrimonial que eventualmente o lesado tenha suportado, nomeadamente os conexos com a privação de tal uso. 
    Pelo que, prima facie, inexiste a aludida indevida cumulação ou duplicação indemnizatória na sentença apelada, ao prever esta o aludido ressarcimento pelos alegados danos não patrimoniais sofridos.
    Determinando, igualmente nesta parte, improcedência da aduzida argumentação recursória.
    - Do não merecimento da tutela do direito relativamente aos invocados danos não patrimoniais
    Por fim, alega a Apelante que os danos de natureza não patrimonial, tendo de assentar na respectiva gravidade, devem medir-se por um padrão objectivo, tendo em conta as circunstâncias concretas. E que, para merecerem a tutela do direito, devem ser de tal modo graves que justifiquem a concessão de indemnização pecuniária ao lesado. O que não sucede no caso concreto.
    Em sede contra-alegacional, aduz o Apelado que a sentença apelada destrinça perfeitamente os danos não patrimoniais que condena a Recorrente a indemnizar, do dano de privação do uso, fundamentando tal condenação na angústia, revolta e sentimento de impotência que o Recorrido sentiu, e ainda sente, merecedores de reparação.
    Relativamente á presente vertente do petitório, e conforme já supra transcrito, consignou-se na sentença apelada o seguinte:
    com relevo para a apreciação de tal questão resultou assente, no essencial, que, em consequência do facto ilícito, o A. sentiu angústia, revolta e sentimento de impotência, sobretudo em virtude do facto de os seus rendimentos não lhe permitirem gerir com facilidade as suas deslocações casa-trabalho e a R. não se responsabilizar pelo sucedido.
    Ponderados os factos acima indicados, considera-se adequado fixar, com recurso à equidade, em 1.000,00 €, o montante da indemnização devida, a título de danos não patrimoniais”.
    Vejamos.
    O presente dano consiste nos prejuízos (dor física, desgosto moral, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem-estar, liberdade, beleza, perfeição física, honra, etc) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação.
    No que aos presentes danos respeita, dispõe o art. 496.º, n.º 3 que o montante da indemnização será fixado equitativamente[25] [26] pelo Tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º do mesmo diploma (o grau de culpabilidade do agente; a situação económica deste e do lesado; e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem). Dispõe este normativo que “quando a indemnização se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.
    Esta categoria geral de danos tem sido progressivamente subdividida em danos que respeitam a diversas facetas da vida humana.
    Invocando a jurisprudência do nosso Tribunal superior, refere o douto Acórdão do STJ de 25/06/2002 [27] que aquela “em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista. Como se decidiu recentemente neste STJ, a compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar”. E, citando Antunes Varela [28], refere que o “montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. É este, como já foi observado por alguns autores, um dos domínios onde mais necessário se tornam o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções com que o julgador deve decidir” [29] [30] [31].  
    Ora, referencia a sentença apelada ter ficado assente, no essencial, que em consequência do facto ilícito “o A. sentiu angústia, revolta e sentimento de impotência, sobretudo em virtude do facto de os seus rendimentos não lhe permitirem gerir com facilidade as suas deslocações casa-trabalho e a R. não se responsabilizar pelo sucedido”.
    Todavia, não descortinamos onde tal matéria conste da factualidade provada, ou seja, não consta da matéria factual provada que o Autor tenha sentido a aludida angústia, revolta e sentimento de impotência, na sequência dos seus rendimentos não permitirem a aludida gestão, nem da decorrência da Ré não se responsabilizar pelo sucedido.
    Pelo que, mais do que aferir se os aludidos danos não patrimoniais, pela sua gravidade, são ou não merecedores de tutela jurídica e justificam a reparação legalmente equacionada, o que se verifica é a total ausência de factos provados consubstanciadores de tais danos, ou seja, que na sequência da privação do veículo, e para além da vertente patrimonial já apreciada, outros danos tenham resultado provados, nomeadamente as consignadas revolta, angústia e sentimento de impotência. Que a sentença consigna, mas sem respaldo na matéria de facto feita consignar como provada.
    Donde, ainda que com diferenciada fundamentação, procede o presente segmento recursório, conducente a um juízo de revogação da sentença apelada, na parte em que condena a Apelante Ré no pagamento da indemnização no valor de 1.000,00 € a título de danos não patrimoniais.
    Ademais, nada mais sendo questionado, e não se logrando qualquer alteração da matéria factual impugnada, o juízo só pode ser o de improcedência da demais pretensão recursória apresentada, com a consequente confirmação da sentença apelada, salvo no segmento referente á condenação da Ré a título de indemnização por danos não patrimoniais.
    Relativamente à tributação, decaindo Apelante e Apelado no presente recurso, são os mesmos responsáveis pelas custas devidas, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, na proporção, respectivamente, de 93% e 7%, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza o Apelado Autor.
    ***
    IV. DECISÃO
    Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Ré/Apelante LOURES PARQUE – EMPRESA MUNICIPAL de ESTACIONAMENTO E.M., em que figura como Autor/Apelado JA… e, consequentemente, decide-se:
    I) revogar a sentença apelada, na parte em que condena a Apelante Ré no pagamento da indemnização no valor de 1.000,00 € a título de danos não patrimoniais a sentença apelada ;
    II) confirmando-se, no demais, a sentença recorrida/apelada.
    Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, as custas devidas em juízo são suportadas por Apelante e Apelado, na proporção, respectivamente, de 93% e 7%, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza o Apelado Autor
          
    Lisboa, 05 de Março de 2020
    Arlindo Crua
    António Moreira
    Carlos Gabriel Castelo Branco
    _______________________________________________________
    [1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
    [2] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 155 e 159.
    [3] Acórdão datado de 28/04/2016, disponível in www.dgsi.pt .
    [4] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 164 e 165.
    [5] Relator: Lopes do Rego, Processo nº. 233/09.4TBVNG.G1.S1, in www.dgsi.pt .
    [6] Relator: Tomé Gomes, Processo nº. 299/05.6TBMGD.P2.S1, in www.dgsi.pt .
    [7] Relator: Tomé Gomes, Processo nº. 134116/13., in 2YIPRT.E1.S1, in www.dgsi.pt/jstj.nsf .
    [8] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 157.
    [9] Abrantes Geraldes, Ob. Cit, pág. 285.
    [10] Idem, pág. 285 a 287.
    [11] Assim o douto Acórdão do STJ de 05/07/94, in CJSTJ, Ano II, Tomo 3, pág. 46.
    [12] Defendendo o presente entendimento, constitui-se como lapidar o Ac. do STJ de 12/10/73 – in BMJ, n.º 230, págs. 107 e  segs. -, logo seguido de perto, entre outros, pelo AC. da RC de 21/06/78 – in CJ, 3º volume, pág. 1036.
    [13] In BMJ, nº 271, pág. 281.
    [14] In CJ, Tomo II, pág. 96.
    [15] Acidentes de viação e responsabilidade civil, Petrony, 1995, págs. 236 e 237.
    [16] In CJ, Ano XIII, Tomo 3, págs. 124 e 125.
    [17] Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, 2001, págs. 8 a 10.
    [18] Acerca das soluções defendidas na nossa jurisprudência, e já supra esquematizadas, idem, págs. 22 a 24.
    [19] Abrantes Geraldes, ob. cit, pág. 39.
    [20] Idem, pág. 47.
    [21] Acerca da indemnização do dano de privação do uso, cf., o douto Acórdão do STJ de 16/10/2003, Doc. nº SJ200310160027562, Relator: Ferreira de Almeida, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf .
    [22] Jurisprudencialmente, cf., o douto Acórdão da RC de 20/03/2007 – Processo nº 226/04.8 TBFND, Relator: Cardoso de Albuquerque, in http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf - onde se sumariou que “o uso de uma viatura automóvel constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui um dano patrimonial que mesmo na falta de elementos concretos que permitam quantificá-lo ou na falta de alegação e prova da impossibilidade de utilizar outro durante o período de privação, não pode deixar de ser ressarcido, com apelo à equidade ou ao prudente arbítrio do julgador, ponderadas as circunstâncias do caso”.
    [23] Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 51 a 54.
    [24] Rebatendo ulteriores decisões do STJ, tradutoras da inadmissibilidade de indemnização do dano de privação do uso, por invocação da natureza abstracta de tal dano, enquanto o instituto da responsabilidade civil exige a produção de um dano concreto, cf., o douto Acórdão da RL de 23/10/2007 – Processo nº 8457/2007-7, Relator: Abrantes Geraldes, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf -, onde se reafirma tal indemnizabilidade, com citações doutrinárias e jurisprudenciais.
    [25] A equidade constitui assim fonte, mediata, de direito - art. 4.º do C. Civil..
    [26] O recurso à equidade justifica-se, desde logo, por ser difícil, se não mesmo por vezes impossível, a prova do montante de tais danos, assim se afastando “a estrita aplicabilidade das regras porque se rege a obrigação de indemnização” – Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, 1, pág. 491 e segs.. 
    [27] In CJSTJ, Ano X, Tomo 2, pág. 134.
    [28] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª Edição, Almedina, págs. 599-600, nota 4.
    [29] Refere o Acórdão do STJ de 23/09/98 – Processo n.º 553/98, 1ª Secção -, que “o julgador ao atribuir esta compensação não está subordinado a critérios normativos fixados na lei. O que aqui tem força são razões de conveniência, de oportunidade, de justiça concreta em que a equidade se funda”.
    [30] O douto Acórdão do STJ de 05/07/2007 – Doc. nº SJ200707050017346, Relator: Nuno Cameira, in http://www.dgsi.pt/jstj - elenca 5 critérios ou ponderações a aplicar na avaliação dos danos não patrimoniais, que enunciamos resumidamente:
    Primeiro: definitivamente ultrapassado o tempo das indemnizações insignificantes, excessivamente baixas, verifica-se que os tribunais estão hoje sensibilizados para a quantificação credível dos danos não patrimoniais – credível para o lesado e credível para a sociedade, respeitando a dignidade e o primado dos valores do ser, como acon­tece com a integridade física e a saúde, que o Estado garante a todos os cidadãos (art.ºs 9º, b), e 25º, nº 1, da Constitui­ção; cfr, neste exacto sentido, o acórdão deste Tribunal de 20.2.01- Revista nº 204/01-6ª); e este “movimento” contra indemnizações meramente simbólicas não deixa de estar relacionado muito directamente, além do mais, com o aumento continuado e regular dos prémios de seguro que tem ocorrido no nosso país por imposição das directivas comunitárias, aumento esse cujo objectivo fulcral (pelo menos no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação) não é o de garantir às companhias seguradoras lucros desproporcionados, mas antes o de, em primeira linha, assegurar aos lesados indemnizações adequadas.
    Segundo: As indemnizações adequadas passam com cada vez maior frequência por uma valorização mais acentuada dos bens da personalidade física, espiritual e moral atingidos pelo facto danoso, bens estes que, incindivelmente ligados à afirmação pessoal, social e profissional do indivíduo, “valem” hoje mais do que ontem; e assim, à medida que com o progresso económico e social e a globalização crescem e se tornam mais próximos toda a sorte de riscos – riscos de acidentes os mais diversos, mas também, concomitantemente, riscos de lesão do núcleo de direitos que integram o último reduto da liberdade individual, - os tribunais tendem a interpretar extensivamente as normas que tutelam os direitos de personalidade, parti­cularmente a do art.º 70º do Código Civil.
    Terceiro: É necessário, em todo o caso, agir cautelosamente; e o Supremo Tribunal, nesta matéria, tem uma responsabilidade acrescida, dada a função que lhe está cometida de contribuir para a uniformização da jurisprudência; não é conveniente, por isso, alterar de forma brusca os critérios de valoração dos prejuízos; não deve perder-se de vista a realidade económica e social do país; e é vantajoso que o trajecto no sentido duma progressiva actualização das indemnizações se faça de forma gra­dual, sem rupturas e sem desconsiderar (muito pelo contrário) as decisões precedentes acerca de casos seme­lhantes. Isto porque os tribunais não podem nem devem contribuir para alimentar a noção de que neste domínio as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. A justiça tem ínsita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade; é tudo isto que no seu conjunto origina o sentimento de segurança, componente essencial duma sociedade assente em bases sólidas (uma das quais é justamente a do primado do direito). Ora, de certo modo os tribunais são os primeiros responsáveis e sobretudo os principais garantes da afirmação de tais valores: cabe-lhes contrariar com firmeza a ideia de que os factos danosos geradores de responsabilidade civil, muitas vezes tragédias pessoais e familiares de enorme dimensão material e moral, possam ser transformados em negócios altamente rendosos para pessoas menos escrupulosas.
    Quarto: A indemnização prevista no art.º 496º, nº 1, do CC, mais do que uma indemnização, é uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objectivo que lhe preside é o de pro­porcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos e não o de o recolocar “matematica­mente” na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e, nessa exacta medida, irreparáveis, é uma reparação indirecta).
    Quinto: Os componentes mais importantes do dano não patrimonial, de har­mo­nia com a síntese feita num acórdão deste Tribunal de 15.1.02 (Revª 4048/01-2ª) são os seguintes: o “dano estético” - que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; o “prejuízo de afirmação social” - dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissio­nal, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da “saúde geral e da longevidade” - em que avultam o dano da dor e o défice de bem-estar, e que valo­riza os danos irreversíveis na saúde e bem-estar da vítima e o corte na expectativa de vida; e o “pretium juventutis” - que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida; e o “pretium doloris” - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária”.
    [31] Conforme refere o já citado douto aresto do STJ de 23/10/2008, nos parâmetros gerais a ter em conta merecem ser destacados “a progressiva melhoria da situação económica individual e global (mesmo considerando a crise sócio-económica que hoje grassa), a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico mais alargado correspondente á União Europeia, o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito á integridade física e á qualidade de vida, sem se esquecer que o contínuo aumento dos prémios de seguro se leve também repercutir no aumento das indemnizações”.