Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4513/09.0T2SNT-B.L1-4
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: SUICÍDIO
ACIDENTE DE TRABALHO
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: 1–Havendo conhecimento da morte de sinistrado laboral, há lugar à averiguação sobre se a morte resulta direta ou indiretamente do acidente.

2–A morte de sinistrado laboral por suicídio, para que se considere causa do acidente, pressupõe a alegação e prova de um tríplice nexo causal - o nexo entre o acidente propriamente dito e as lesões físicas e psíquicas graves ou a diminuição das capacidades profissionais do trabalhador, a relação destes com uma situação psíquica depressiva e, por último, a relação causal entre esta e o ato suicida.

3–Vindo a morte a ocorrer em consequência de suicídio consumado 27 anos após o acidente de trabalho lesivo, tendo deste resultado lesões graves que incapacitaram absolutamente o sinistrado, e provando-se que ao longo desse lapso temporal o sinistrado sofreu, em consequência, várias infeções que o foram debilitando, apresentando à data da morte um síndrome depressivo e outras patologias relativamente às quais não se estabeleceu nexo causal com as lesões decorrentes do acidente, não se tendo provado que aquele síndrome motivou o ato suicida, não é devida reparação ao abrigo da lei dos acidentes de trabalho.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:



AAA,residente na … Autora, com o patrocínio do Ministério Público, apresentou recurso de apelação da sentença proferida nos autos.

Pede a condenação da R..

Apresentou, sob o título conclusões, a seguinte matéria:
1–A ação em apreço foi proposta na sequência de processo organizado pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artº. 100º. do CPT, ao abrigo do disposto no artº. 142º. nº. 2 do mesmo diploma legal, por se ter considerado existir a relação de causalidade descrita no nº. 1 deste artigo consubstanciada em a morte do sinistrado, que sobreveio ao acidente de trabalho, ter resultado direta ou indiretamente deste;
2–Tendo-se concluído pela existência do aludido nexo de causalidade, formulou-se o pedido, no sentido de serem fixados à recorrente – a beneficiária viúva, os direitos devidos, nos termos da Base XIX nº. 1 al. a) da lei nº. 2127, de 3 de Agosto de 1965 (aplicável atenta a data em que ocorreu o acidente de trabalho) – a fixação, a partir de 2 de agosto de 2018 de uma pensão anual e vitalícia no valor de € 12.130,25, atualizável, a partir de 1 de janeiro de 2019, para o valor de € 12.324,33, nos termos da Portaria nº. 23/2019, de 17 de janeiro.
3–Em causa esteve, em suma, um acidente de trabalho sofrido por … em 26 de Junho de 1991, à data com 57 anos de idade, o qual consistiu em o helicóptero que o mesmo conduzia ter explodido, pouco depois de levantar, em consequência do qual o sinistrado fraturou duas vértebras D 12 e L1, com paraplegia, e sofreu também uma fratura exposta na perna direita, vindo-lhe a ser fixada IPA de 100% desde 15 de julho de 1993, com auxílio de 3.ª pessoa, vindo o sinistrado, na sequência das lesões que sofreu e múltiplas complicações de saúde, a pôr termo à vida, suicidando-se, em 1 de agosto de 2018;
4–O tribunal, grosso modo, deu como provados a maioria dos factos invocados pela recorrente e elencou, para além dos factos invocados, outros, concretizando o percurso clínico do sinistrado, as doenças de que o mesmo padecia à data da morte, uma vez que, aquando da propositura da ação, não se dispunha de todos os elementos clínicos, elementos que vieram a ser juntos aos autos, após a propositura da ação, a pedido da recorrente;
5–Assim, o tribunal deu como provadas, nomeadamente, as circunstâncias em que ocorreu o acidente de trabalho; o percurso profissional do sinistrado; que o sinistrado à data do acidente não tinha problemas de saúde; efetuou uma descrição circunstanciada das lesões sofridas pelo sinistrado decorrentes do acidente de trabalho e tratamentos a que foi submetido, coincidente maioritariamente com o alegado pela recorrente; deu também como provadas as circunstâncias em que ocorreu a morte do sinistrado;
6–No que respeita aos factos que não foram dados como provados, prenderam-se, nomeadamente, com a circunstância de não ter sido dado como provado que a ré, após o internamento do sinistrado entre 21 e 28 de julho de 2016, tivesse deixado de dar a assistência clínica devida ao sinistrado ou que a qualidade da assistência prestada no hospital público – no Hospital …  – tivesse qualidade inferior à prestada pelos serviços clínicos da ré e que o sinistrado após a alta hospitalar em 16 de julho de 2018 tivesse continuado a fazer tratamentos de hemodiálise;
7–No que respeita às consequências do acidente de trabalho, no elenco dos factos que não resultaram provados, sob o ponto h), o tribunal fez consignar “todo o quadro clínico apresentado por …  à data da sua morte estava relacionado com as lesões e sequelas que lhe advieram do acidente referido em 2” e sob o ponto i) “A insuficiência renal de que … Padecida foi determinada pela quantidade de antibióticos que lhe foram sendo ministrados ao longo dos anos e pelas cirurgias a que foi submetido” ;
8–O tribunal deu como provado que, à data da morte, “... apresentava aterosclerose generalizada, doença cardíaca isquémica crónica, pneumonia, doença renal crónica, cirrose hepática, síndrome depressivo, ideação suicida” (ponto 63 dos factos dados como provados);
9–Concorda-se, e nem sequer tal foi alegado pela recorrente, que não é possível considerar-se que a aterosclerose generalizada, doença cardíaca isquémica crónica e pneumonia possam ser atribuídas ao acidente de trabalho sofrido, não tendo sido feita prova nesse sentido, tendo-se apurado que o sinistrado tinha também tais patologias na decorrência da autópsia efetuada;
10–O tribunal não coloca, contudo, em causa que, como decorrência do acidente de trabalho, o sinistrado ficou paraplégico que foi sujeito a várias intervenções cirúrgicas, que teve várias infeções nas pernas, que lhe veio a ser amputada uma perna, que manteve infeções na perna esquerda; que tal perna, tal como a perna direita antes de ser amputada, estavam permanentemente em extensão; que o sinistrado veio a ficar acamado e a desenvolver úlceras de pressão, o sofrimento causado por tais lesões, intervenções cirúrgicas, complicações daí decorrentes, internamentos…;
11–No que respeita ao estado anímico do sinistrado, o tribunal deu como provado:
-... encontrava-se em sofrimento e desespero (ponto 57);
-... desabafou, em algumas ocasiões, com a Autora, que preferia ter morrido no acidente a ficar no estado em que ficou (ponto 59);
-... já havia verbalizado, em algumas ocasiões, a vontade pôr termo à vida (ponto 60);
-À data da morte ... tinha síndrome depressivo e ideação suicida, sendo que sempre recusou o tratamento psicológico que lhe foi proposto pelos serviços clínicos da ré (pontos 62 e 63);
-... estava lúcido, tendo perfeita consciência do estado em que se encontrava (ponto 64).
12–Em causa nos autos o que sempre esteve em causa foi a possibilidade de se estabelecer um nexo de causalidade entre o acidente de trabalho, ocorrido em 26 de Junho de 1991, tendo o sinistrado, à data, 57 anos de idade, e a morte do mesmo, por suicídio ocorrida em 1 de agosto de 2018;
13–A Mmª. Juiz, na decisão recorrida, seguiu de perto a jurisprudência vertida no acórdão do STJ de 16 de dezembro de 2010, disponível in www.dgsi.pt, tendo citado as partes mais impressivas de tal acórdão e, fazendo a transposição para a situação em causa nestes autos, considerou que “a factualidade provada não habilita a concluir que o síndrome depressivo de que ... estava afetado (…) o impedia de “convenientemente, avaliar os seus atos e, daí que a sua “decisão” de colocar termo à vida surgisse destituída de uma vontade livre”;
14–A Mmª. Juiz seguiu também de perto a doutrina explanada por Ana Cristina Costa Ribeiro, in “O Acto Suicida do Trabalhador – A tutela ao abrigo das contingências profissionais”, destrinçando entre suicídio intencional e consciente e suicido não intencional ou inconsciente, concluindo no sentido da tutela e reparação das consequências da morte apenas no segundo caso;
15–Não se concorda, de todo, com a rejeição da existência de nexo de causalidade entre o acidente de trabalho sofrido por ... e a morte do mesmo por suicídio;
16–Conforme salienta a Mmª. Juiz na decisão recorrida, a questão que está em causa – da reparação no âmbito do regime jurídico dos acidentes de trabalho da morte de sinistrado ocorrida por força de suicídio – não é nova, havendo, contudo, um único processo, que subiu às instâncias superiores – o processo nº. 196/06.8TTCBR;
17–O tratamento dado à questão da existência ou não de nexo de causalidade entre a morte por suicídio que sobreveio a acidente de trabalho, teve, no âmbito de tal processo, tratamento diametralmente oposto pelo Tribunal da Relação de Coimbra e pelo STJ;
18–A questão do aferimento do nexo causal, é, como é sabido, complexa e comporta vários níveis, concordando-se com o que é expresso no acórdão do STJ, que distingue entre a vertente naturalística e a vertente jurídica;
19–Tendo-se presente a vertente naturalística e a vertente jurídica do nexo de causalidade, considera-se que da motivação de facto da decisão de que se recorre constam todos os factos que permitem aferir a vertente naturalística do nexo causal entre o acidente de trabalho e a morte do sinistrado por suicídios, aí sendo profusamente descritas as lesões com que o sinistrado ficou por força do acidente de trabalho que sofreu, assim como o seu sofrimento, estado anímico em que se encontrava, nomeadamente em estado de depressão e sofrimento, não devendo constar dos factos a vertente jurídica do nexo de causalidade, que deverá ser aferida em função dos factos assentes, mas por força de uma construção resultante da análise desses factos e da sua subsunção ao direito;
20–O aludido acórdão do STJ acolhe a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, conforme expressa no artº. 563º. do Código Civil, nos termos do qual “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”
21–Na situação em análise no âmbito daquele acórdão, considerou-se que, apesar de o sinistrado ter desenvolvido patologia depressiva, na matéria de facto dada como provada não existiam elementos em função dos quais fosse possível aferir-se por que forma é que o sinistrado contribuiu na produção dos sintomas depressivos e, a final, para que lhe fosse diagnosticada tal patologia, consistindo a questão fundamental em saber se a patologia desenvolvida pelo sinistrado, e produzida pelo acidente que o vitimou, foi ou não, causa adequada da sua morte;
22–Concluiu o Supremo Tribunal em sentido negativo, afirmando-se no arresto que “ já não se poderá afirmar, por ausência de factos que o suportem, que o quadro depressivo de que padeceu o sinistrado tenha sido causa adequada da sua morte, posto que esta não surge como desenvolvimento causal de tal lesão, antes decorre de ato praticado pelo próprio lesado, e, nessa medida, insuscetível de ser imputado à ré, no quadro da sua responsabilidade infortunística.
Aduzir-se-á, em desabono do que vem de ser dito, que o estado depressivo do sinistrado o impediria de, convenientemente, avaliar os seus atos e, daí, que a sua “decisão” de colocar termo à vida surgisse destituída de uma vontade livre.
Nesse contexto, a sua incapacidade de livre determinação implicaria concluir que o ato praticado derivava ainda do sobredito quadro depressivo.
Porém, nada nos autos nos habilita a dizer, nem mesmo remotamente, que o estado depressivo da vítima a impedia de avaliar ponderadamente o / ou os) seu (s) comportamentos.”
23–Segundo o que se depreende do acórdão em apreço, tendo a morte do sinistrado sido devida o suicídio, tal circunstância nunca poderia ser imputável às lesões sofridas, nomeadamente ao estado depressivo, por não poder ser considerado um “desenvolvimento causal de tal lesão”, antes consubstanciando um ato voluntário do sinistrado;
24–Apenas poderia admitir-se a existência de um nexo causal entre o acidente de trabalho e a morte, no caso de existirem elementos de factos suscetíveis de conduzirem à conclusão que o sinistrado, ao cometer suicídio atuou sob o efeito de estado depressivo, destituído de vontade livre e impedido por isso de avaliar o seu ato;
25–Não se concorda com a tese explanada no acórdão em apreço, por da lei, por um lado, não resultar evidente a posição adotada, antes pelo contrário, e, por outro lado, por, ao admitir a não quebra do nexo de causalidade apenas nas situações em que o ato é cometido com o agente destituído de vontade livre, trazer à colação uma distinção em que nem sequer os especialistas na matéria estão de acordo;
26–Nos termos do disposto no artº. 142º. do CPT, sempre que existam elementos para presumir a existência de uma relação de causalidade entre o acidente de trabalho e a morte do sinistrado – relação de causalidade consubstanciada em morte como tendo resultado direta ou indiretamente do acidente de trabalho, cabe ao Ministério Público organizar processo, nos termos do disposto no artº. 100º. do mesmo diploma legal;
27–A norma em apreço exige, tão só, que a morte tenha resultado direta ou indiretamente do acidente de trabalho;
28–Nas análises existentes sobre o conceito de causalidade adequada que aqui está em causa tem sido chamada à colação o nexo de causalidade exigível para que uma lesão seja considerada resultado de um determinado evento assim como as circunstâncias que descaracterizam um evento como acidente de trabalho, conf. artºs. 8º., 9º. e 14º. da lei nº. 98/2009, de 4 de setembro, relevando, nomeadamente, a circunstância de um evento deixar de ser considerado como acidente de trabalho no caso de o acidente ter sido dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão;
29–O preenchimento do conceito de causalidade adequada há-de ser feito com recurso à norma constante do artº. 563º. do Código Civil nos termos do qual: “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”
30–Esta conceção de causalidade adequada vale tanto para o estabelecimento de nexo entre o evento e as lesões, para a caracterização de um evento como acidente de trabalho, como para o estabelecimento de nexo de causalidade entre um acidente de trabalho e a morte que sobrevenha ao sinistrado, em conformidade, aliás, com a jurisprudência constante do acórdão do STJ já referido e do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de janeiro de 2010, in www.dgsi.pt, referente ao mesmo caso analisado pelo STJ;
31–Na situação em apreço neste processo, considera-se ser inequívoco que se não fosse o acidente de trabalho que o sinistrado sofreu e as lesões dele decorrentes não teria ocorrido a morte do mesmo;
32–Como consequência do acidente de trabalho, o sinistrado ficou paraplégico, sofreu amputação de uma perna, sofreu infeções sucessivas e internamentos, acabou por ficar acamado, tendo desenvolvido escaras, sendo que viu o seu estado de saúde agravar-se progressivamente, tendo o sinistrado desenvolvido síndrome depressivo e exteriorizado várias vezes a vontade de pôr termo à vida;
33–Ainda que o sinistrado tivesse também outras patologias não diretamente associadas ao acidente de trabalho o que é certo é que não fora o acidente e as suas consequências, não teria ocorrido a morte do sinistrado por suicídio;
34–Quer dizer, é possível concluir-se em função dos factos dados como provados, que foi devido ao acidente de trabalho; à situação em que o sinistrado ficou e às lesões dele decorrentes que o sinistrado colocou termo à vida;
35–O sinistrado sofreu estoicamente ao longo dos anos, tendo, por força do acidente de trabalho, deixado de exercer uma profissão que adorava e para a qual tinha méritos reconhecidos; ficado impossibilitado de se movimentar, sem uma perna, com necessidade de ajuda para todo o tipo de tarefas, com complicações sucessivas resultantes das lesões provocadas pelo acidente e/ou dos tratamentos a que foi submetido, vendo o seu estado de saúde agravar-se nos últimos anos, vindo a pôr termo à vida depois de regressar de mais um internamento e quando se encontrava com escaras em estado muito grave;
36–Foi por isso que o sinistrado, não aguentando mais, colocou termo à vida, bastando tais factos para que se considere como estabelecido o nexo de causalidade, nos termos do disposto no artº. 563º. do Código Civil;
37–O acórdão do tribunal da Relação de Coimbra discorre também sobre a descaracterização do resultado morte, face ao argumento apresentado pela seguradora, no âmbito do processo que esteve em apreciação em tal arresto: “Partindo da ideia que o suicídio é um ato intencional do suicida ou é cometido estando este privado do uso da razão (o que não dá lugar à reparação por o acidente se encontrar descaracterizado – alíneas a) e c) do artº. 7º. da lei nº. 100/97) alega a recorrente que, também por maioria de razão, não haverá lugar a reparação quando a ação do sinistrado intervenha intencionalmente como causa de agravamento das consequências de um acidente de trabalho.
O argumento impressiona.
Todavia, como acima ficou dito não se trata aqui de uma questão de descaracterização mas sim de uma questão de nexo de causalidade entre o acidente e a ocorrência da morte e, no caso, essa causalidade como acima ficou dito encontra-se demonstrada.
Não se contesta que o ato de suicídio radica num comportamento voluntário e intencional do suicida.
No entanto esta vontade encontra-se, no caso em análise, condicionada pelo quadro reativo/depressivo originado pelo acidente e pelas lesões físicas dele resultantes que limitou a autodeterminação e a racionalidade do sinistrado, que não se suicidaria se não se tivesse verificado o acidente.
Em suma, há lugar a reparação por ser possível estabelecer um nexo de causalidade adequada entre o acidente e a morte do sinistrado por suicídio, não colhendo o argumento da recorrente quando afirma que o contrato de seguro não cobre o risco de suicídio”;
38–Naqueles autos, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou assim estar em causa apenas o estabelecimento do nexo de causalidade, que considerou estar demonstrado, tal como se entende, estar demonstrado nestes autos;
39–Apesar de aí se referir não estar em causa a descaracterização do ato, considera-se nesse acórdão que, apesar de o suicídio ser um ato voluntário e intencional do suicida, “esta vontade encontra-se, no caso em análise, condicionada pelo quadro reativo/depressivo originado pelo acidente e pelas lesões físicas dele resultantes que limitou a autodeterminação e a racionalidade do sinistrado, que não se suicidaria se não se tivesse verificado o acidente”;
40–No fundo, é adotada pelo tribunal da Relação de Coimbra tese idêntica à constante do acórdão já citado do STJ – a de que a prática de suicídio sem que o agente esteja condicionado na sua vontade, isto é a prática de suicídio com o agente plenamente livre na sua autodeterminação conduz á não tutela e reparação pela legislação dos acidentes de trabalho, da morte do sinistrado;
41–Considera-se não ser esta a posição mais curial, não sendo possível estabelecer um paralelismo entre as circunstâncias que conduzem à descaracterização do evento como acidente de trabalho, nomeadamente a circunstância de o evento ser dolosamente provocado pelo sinistrado, e uma eventual “descaracterização” e não tutela pela legislação laboral da morte de sinistrado, resultante de suicídio, subsequente a acidente de trabalho.
42–A lei não estabelece tal paralelismo, limitando-se a indicar que o nexo de causalidade a determinar consiste em a morte ter resultado direta ou indiretamente do acidente de trabalho, concluindo-se, conforme já se explanou e aferindo a causalidade adequada nos termos expressos no Código Civil, que na situação em apreço tal nexo de causalidade existe e resulta evidente em função dos factos assentes e dados como provados;
43–Não existe na lei norma que afaste tal nexo no caso de a morte resultar de ato voluntário do sinistrado, considerando-se não ser possível equiparar as exigências para a determinação do conceito de acidente de trabalho às exigências para o estabelecimento do nexo em apreço.
44–Nem sequer os especialistas na área têm uma posição unívoca no que respeita à natureza do suicídio, enquanto ato intencional ou não;
45–Seguindo de perto as considerações constantes do estudo de Ana Catarina da Silva Ferreira Ribeiro sobre “Os riscos psicossociais e o suicídio dos trabalhadores” da UCP do ano de 2018, para a OMS o suicídio “define-se como o ato pelo qual o indivíduo causa a si mesmo uma lesão ou um dano, com um grau variável de intencionalidade letal”.
46–Sobre a intencionalidade subjacente ou não à prática de suicídio, “Durkheim entende por suicídio toda a morte que resulta, mediata ou imediatamente, de um ato positivo ou negativo, realizado pelo suicida, com a intenção de produzir esse resultado.
Assim, o agente terá sempre consciência do seu ato. Já Esquirol, considera que o suicida comete o ato num estado de delírio, sendo os suicidas alienados. Nesta senda, o suicídio será inconsciente e sempre um sinal de doença mental. Diversamente, Gabriel Deshaies, considera que o suicídio não é patológico por definição, pelo que apenas algumas das suas formas podem conduzir a um condicionamento mórbido. ”
47–Quer Ana Ribeiro Costa quer Ana Catarina Ferreira Ribeiro, fazem a distinção entre suicídio consciente e inconsciente, devendo juridicamente o suicídio ser visto á luz da conceção do suicídio enquanto ato inconsciente.
48–Não se considera que esta distinção tenha respaldo e acolhimento na lei, não se concluindo assim pela sua curialidade, apesar de se considerar que é de afastar a tutela emergente da lei dos acidentes de trabalho em situações em que a intencionalidade subjacente à prática do ato vise outros fins que não pôr fim a uma situação de sofrimento (assim de quebrando o nexo causal);
49–Ainda no que respeita à distinção entre suicídios consciente e inconsciente, cabe perguntar de que forma seria possível efetuar-se tal distinção, não estando cientificamente comprovado que o agente que comete suicídio e que sofre de depressão atua sempre sem uma vontade livre e consciente, sem capacidade de autodeterminação, ou o inverso;
50–A própria Ana Cristina Ribeiro Costa, na obra citada, reconhece que “ a distinção delineada neste capítulo desvenda um problema muito distinto, que diz respeito à introdução de conceitos dos domínios da sociologia, da psicologia e da psiquiatria no Direito. Sem querer tomar posição definida quanto a este aspeto, sempre vamos dizendo que o Direito não pode ser insensível aos ensinamentos das outras áreas do conhecimento, devendo beneficiar do seu contributo. De qualquer modo, também se deverá atender às divergências doutrinais que nesses domínios científicos se fazem sentir, devendo o julgador e o aplicador da lei optar pelos conceitos que o seu juízo determine serem os mais corretos e justos”;
51–Da perspetiva do aplicador do direito, cabe perguntar se se justifica fazer distinção entre as situações em que o sinistrado põe termo á vida numa situação de ausência de vontade livre e consciente, porque agindo dominado por situação depressiva e as situações em que o sinistrado põe termo á vida, ainda que de forma livre e consciente, por não suportar mais as consequências que para si resultaram do acidente de trabalho e que acarretaram para si um sofrimento atroz e insuportável;
52–A dar-se por boa tal distinção – entre suicídio consciente e inconsciente -, na situação vertente, tendo sido dado como provado que o sinistrado, aquando da sua morte, sofria de síndrome depressivo e ideação suicida, tendo o mesmo posto termo à vida depois de mais um internamento e uns dias depois de ter regressado a casa, terá que se concluir – tal como se concluiu no âmbito do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – que a vontade do sinistrado se encontrava “condicionada pelo quadro reativo/depressivo originado pelo acidente e pelas lesões físicas dele resultantes que limitou a autodeterminação e a racionalidade do sinistrado, que não se suicidaria se não se tivesse verificado o acidente”;
53–Não é possível retirar o quadro depressivo que foi dado como provado, da valoração a efetuar no que respeita ao estado anímico do sinistrado quando pôs termo à vida, pois o estado depressivo tem necessária repercussão na avaliação pelo próprio da sua situação - forma de a encarar e de lidar com ela;
54–Não obsta a esta conclusão o facto de também ter sido dado como provado que o sinistrado estava lúcido, concretizando a Mmª. Juiz “tendo perfeita consciência do estado em que se encontrava” (ponto 64 dos factos dados como provados);
55–É que, ter perfeita consciência do estado em que se encontrava é coisa distinta de ter perfeita consciência do ato que praticou e por via do qual pôs termo à vida;
56–Não se consegue descortinar que elementos seriam necessário apurar para que a Mmª. Juiz concluísse que “foi a situação depressiva que motivou o ato suicida, ou seja que ... cometeu suicídio num quadro de síndrome depressivo, determinado pelas lesões e sequelas resultantes do acidente sofrido 27 anos antes, que lhe anulou a vontade, colocando-o em situação de privação do seu livre arbítrio e que foi, nesse contexto, que praticou o ato que o conduziu à morte”;
57–Poderá, á partida, ser impressiva a circunstância de o ato ter asido cometido tantos anos volvido o acidente de trabalho. Contudo, conforme resulta dos factos que foram julgados assentes pelo tribunal, foram anos de sofrimento para o sinistrado, que o mesmo sempre foi aguentando, tendo chegado a um ponto em que devido ao agravamento da sua situação clínica nos últimos anos e ao estado depressivo provocado por toda a situação, optou por deixar de viver;
58–Não se considera que seja curial não se considerar que a depressão que o mesmo inevitavelmente tinha, não assumisse gravidade ou que o ato cometido não tivesse ocorrido sob influência de tal depressão e, por isso, estando o sinistrado, inevitavelmente afetado na sua capacidade volitiva e na sua autodeterminação;
59–No âmbito destes autos, mesmo adotando-se a posição de acordo com a qual há que fazer a distinção entre suicídio consciente e inconsciente, teria que se decidir nos termos em que decidiu o tribunal da Relação de Coimbra, salientando-se, aliás, que a situação do sinistrado a que se reportam estes autos era incomparavelmente mais grave à situação que foi apreciada pelo Tribunal da Relação de Coimbra e depois pelo STJ.
60–Considera-se mais curial, não obstante, não se fazer a distinção entre suicídio consciente e inconsciente e, seguindo-se de perto a posição adotada por Avelino Mendonça Braga, citado por Ana Catarina Ribeiro, que defendia que “afirmar que um ato doloso ocorre quando o trabalhador, com o intuito de obter reparação, se suicida ou mutila. Logo, a contrario, o A. parece entender que se a ação não for fraudulenta, não se trata de um ato suicida doloso” o que também defende Ojeda Avilés, citado por Ana Cristina Ribeiro Costa, de acordo com o qual “o suicídio cometido fora do domínio da vontade e em condições de depressão psíquica e total ausência do instinto de conservação não é assimilável ao ato doloso. Este ato englobará apenas as hipóteses em que o trabalhador atua em fraude á lei, de forma a obter prestações indevidas”;
61–Na mesma obra, Ana Cristina Ribeiro Costa dá a conhecer a posição adotada quanto a esta matéria em vários países, sufragando a posição que se vem defendendo a jurisprudência francesa que aplica o conceito de “faute intentionnelle do trabalhador ao comportamento que consubstancia o ato suicida, apelidando-o como tal quando se prove que o ato foi voluntário, contrário à conduta do homem, com intuito de causar dano corporal e com vista a obter um benefício indevido de prestações indemnizatórias, sem que se denote qualquer particular problema (…). A verificação desta privará o suicida ou seus beneficiários de qualquer indemnização a título de infortúnio laboral.”;
62–Na situação em apreço é manifesto que não houve por parte do sinistrado qualquer intenção no sentido de obter vantagens indemnizatórias para a sua família, tendo o mesmo tido como único escopo pôr fim ao sofrimento que o atormentava, com um quadro depressivo latente e ideação suicida;
63–Por todo o exposto, em face dos factos dados como provados, deveria a Mmª. Juiz ter concluído pela existência de nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e suas consequências e a morte do sinistrado que lhe sobreveio, por suicídio, condenando a ré nos termos propugnados pela autora.

BBB,com sede no … Lisboa, Ré nos autos à margem referenciados, notificada do requerimento de interposição de recurso e respetivas Alegações da A., veio apresentar as suas Contra-Alegações, debatendo-se pela improcedência do recurso.

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Segue-se um breve resumo dos autos para cabal compreensão:

AAA intentou, com o patrocínio do Ministério Público, por apenso ao processo de acidente de trabalho o n.º 4513/09.0T2SNT, nos termos dos artigos 119º, n.º 1 e 142º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho, a presente ação declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, contra BBB, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe, a partir de 2 de Agosto de 2018, uma pensão anual e vitalícia de €12.130,25, atualizável a partir de 1 de Janeiro de 2019 para o montante de € 12.324,33, acrescida de juros de mora devidos desde a data do respetivo vencimento até pagamento.
Alegou, para o efeito, em síntese, ser viúva de ..., que foi vítima, em 26 de Junho de 1991, de acidente de trabalho quando desempenhava funções como piloto de aeronaves, sob as ordens, direção, autoridade e fiscalização de …., cuja responsabilidade sinistral decorrente de acidentes de trabalho estava transferida para a Ré. Em consequência do acidente fraturou duas vértebras, com paraplegia, e sofreu uma fratura exposta na perna direita, tendo-lhe sido fixada incapacidade permanente absoluta (I.P.A.) desde 15 de Julho de 1993, com auxílio de 3ª. Pessoa.
Quando sofreu o acidente ... gozava de perfeita saúde. Após o acidente foi submetido a várias intervenções cirúrgicas. Na sequência das intervenções e tratamentos a que submetido, ... desenvolveu uma infeção nos joelhos, vindo-lhe, após anos de tratamentos e intervenções cirúrgicas, a ser removidas todas as articulações dos joelhos, com junção da tíbia e do fémur, sem qualquer possibilidade de articulação das pernas que ficaram permanentemente em extensão. Anos mais tarde foi-lhe amputada a perna direita, continuando a perna esquerda a apresentar sintomatologia infeciosa. Também no decurso dos tratamentos, com vários períodos de internamento, veio a manifestar-se infeção urinária e a sofrer de uma degradação progressiva nos rins, passando, a partir de Junho de 2011, a submeter-se a hemodiálise três vezes por semana, tendo, quando iniciou a hemodiálise, sido sujeito a duas cirurgias extensivas para criar uma fístula arteriovenosa. Em Abril de 2018, no decurso de uma infeção aguda do sistema urinário, foi submetido a uma cirurgia para limpeza da uretra e correção do bloqueio resultante de uma colocação malsucedida da algália. Sofreu vários internamentos, tendo a Ré deixado de prestar a assistência necessária e adequada. Surgiram-lhe, após, lesões na pele que lhe provocavam enorme mal-estar, comichão constante e sangramento. Em 13 de Junho de 2018 foi novamente internado com uma infeção generalizada, tendo tido alta a 16 de Julho de 2018. As dores causadas pela escara tornaram-se excruciantes, causando-lhe grande sofrimento qualquer tentativa de o mover na cama e a higienização de rotina que tinha que ser feita. Devido à grande dependência de terceiros e à necessidade de continuação de tratamentos à escara, com a frequência de, pelo menos, dois tratamentos por dia, equacionou-se o internamento em cuidados continuados. Após a alta hospitalar, a 16 de Julho de 2018, ... regressou a casa, tendo aguentado duas semanas de sofrimento atroz, com dores insuportáveis provocadas pela escara e com enormes dificuldades em se movimentar, tendo, em 1 de Agosto de 2018, posto termo à vida, recorrendo para o efeito a uma tesoura com a qual cortou o braço esquerdo, atingindo o interior da fístula arteriovenosa.
A A. concluiu que a morte, por suicídio de ..., foi o desfecho de anos de sofrimento, tanto físico como psicológico, resultante da situação em que ficou após o acidente de trabalho que sofreu.
A Ré contestou, pugnando pela improcedência da pretensão da Autora, reiterando a posição que já havia assumido em sede de tentativa de conciliação, declinando a responsabilidade pelo pagamento de qualquer pensão à Autora por inexistência de nexo causal entre a morte, por suicídio, de ..., ocorrida em 1 de Agosto de 2018, e o acidente de trabalho por aquele sofrido em 26 de Junho de 1991, sustentando que o facto da morte do sinistrado ter acontecido por suicídio quebra o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Negou que tenha deixado de prestar a assistência clínica necessária e adequada ao sinistrado; não aceitou que todos os problemas de saúde sofridos pelo sinistrado sejam atribuíveis a esse acidente, para além de que o quadro depressivo com ideação suicida se iniciou muitos anos depois do acidente, mais concretamente a partir do momento em que se iniciou a falência do seu estado de saúde global e que englobava problemas relacionados com o acidente, mas também outros de etiologia natural; referiu, ainda, que do ponto de vista da causalidade adequada, as lesões sofridas pelo sinistrado não anteciparam a sua morte, que à data em que faleceu já havia ultrapassado a esperança média de vida, e que, não obstante as dificuldades inerentes à situação de paraplegia, não levariam, como não levaram nos 27 anos anteriores, necessariamente, ao seu falecimento.
A audiência de discussão e julgamento realizou-se e, após, foi proferida sentença que julgou a presente ação improcedente e, em consequência, absolveu a Ré do pedido.

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As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
- Existe nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e suas consequências e a morte do sinistrado que lhe sobreveio, por suicídio?
- Nesse caso, deve condenar-se a ré nos termos propugnados pela autora?

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FUNDAMENTAÇÃO:
  
OS FACTOS:

Da instrução da causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1.–... nasceu em 21 de Novembro de 1934;
2.–... sofreu, em 26 de Junho de 1991, um acidente de trabalho, quando desempenhava funções como piloto de aeronaves sob as ordens, direção, autoridade e fiscalização de ….;
3.–O acidente referido em 2. consistiu em o helicóptero que ... pilotava ter explodido pouco depois de levantar;
4.–Como consequência do referido acidente, ... fraturou as vértebras D12 e L1, tendo ficado paraplégico;
5.–Foi-lhe fixada uma incapacidade permanente absoluta de 100%, desde 15 de Julho de 1993, com auxílio de 3ª pessoa;
6.–... começou o seu percurso profissional como aluno piloto na Força Aérea Portuguesa;
7.–Foi piloto da Força Aérea Portuguesa, sendo reconhecido pelos seus pares como um excelente piloto;
8.–Enquanto piloto da Força Aérea Portuguesa fez duas missões em África;
9.–Recebeu condecorações;
10.–Foi piloto de um dos primeiros “Pumas” adquiridos pela Força Aérea Portuguesa;
11.–Foi comandante da esquadra de “Pumas” no Montijo;
12.–Quando passou à reserva tinha o posto de Major;
13.–Depois de ter passado à reserva, ... deu aulas de pilotagem no Aeródromo de Cascais;
14.–Após, foi contratado, como piloto, pela … tendo sido o próprio que foi buscar o helicóptero com o qual sofreu o acidente referido em 2. à fábrica em França;
15.–... exercia uma profissão de que gostava e em que se sentia realizado, tendo fascínio por tudo o que fosse ligado à aviação;
16.–À data do acidente referido em 2. ... não tinha problemas de saúde;
17.–Após o acidente referido em 2., ... foi submetido a intervenções cirúrgicas para reconstrução das vértebras e sustentação da coluna e para redução da fratura na perna direita;
18.–A colocação da estrutura metálica na coluna não foi bem-sucedida e na sequência da cirurgia para redução da fratura da perna o pé direito ficou lateralizado;
19.–Após a intervenção cirúrgica à coluna, ... desenvolveu uma infeção;
20.–Depois de ter sido submetido a tratamentos com antibióticos, foi novamente operado, tendo a estrutura metálica sido colocada na coluna com sucesso;
21.–Para tratamento da infeção que desenvolveu foi necessário colocar cápsulas de antibiótico diretamente no interior do corpo de ...;
22.–Depois da cirurgia foi ministrado a ... um medicamento destinado a liquefazer o sangue, de modo a evitar tromboses;
23.–Na sequência desse tratamento medicamentoso, ... sofreu uma hemorragia maciça nos músculos das pernas;
24.–Foi tentada a extração de sangue, nomeadamente com utilização de seringas;
25.–O líquido alojado nos músculos das pernas causou a ... uma infeção nos joelhos;
26.–Para debelar a infeção nos joelhos, ... foi sendo sujeito ao longo dos anos a diversos tratamentos, incluindo cirúrgicos, vindo-lhe a ser removidas as cartilagens dos joelhos, com junção da tíbia e do fémur, sem qualquer possibilidade de articulação das pernas que ficaram permanentemente em extensão;
27.–Com as pernas permanentemente em extensão, ... deixou de conseguir sair sozinho da cadeira de rodas para a cama, de entrar num carro, sentar-se normalmente a uma mesa num restaurante, o que, até então, fazia;
28.–Devido à infeção nos joelhos, ... sofreu vários internamentos hospitalares;
29.–Concomitantemente, vieram a manifestar-se infeções urinárias;
30.–Após diversos tratamentos e internamentos motivados pela infeção nos joelhos, em data não concretamente apurada mas anterior a 20 de Julho de 2009, foi amputada a ... a perna direita;
31.–A perna esquerda de ... continuou a apresentar, até 2016, sintomatologia infeciosa recorrente;
32.–... passou a sofrer, desde data não concretamente apurada mas anterior a 2007, de doença renal (deterioração da função renal);
33.–Em 2007, ... foi sujeito a cirurgia para criar uma fístula arteriovenosa para iniciar hemodiálise;
34.–A infeções na perna esquerda e as infeções urinárias motivaram o internamento de ... em diversas ocasiões;
35.–A partir de Junho de 2011, ... passou a submeter-se a hemodiálise três vezes por semana na Clínica ….e, em Cascais, a coberto da assistência prestada pela Ré que assegurava, também, o transporte, em ambulância, da habitação de ... para a Clínica e vice-versa;
36.–Em Abril de 2016, na sequência de obstrução após tentativa traumática de esvaziamento vesicular, ... foi submetido a uma cirurgia urológica, tendo realizado uretrotomia interna endoscópica, incisão do colo e cura de hidrocele;
37.–Nessa altura ... encontrava-se algaliado intermitentemente, com necessidade de efetuar esvaziamento vesicular diário;
38.–Entre 21 e 28 de Julho de 2016, ... esteve internado no Hospital … devido a uma infeção urinária, no âmbito da assistência clínica prestada pela Ré;
39.–Entre 22 e 28 de Junho de 2017, ... esteve internado no Hospital … devido a uma infeção urinária;
40.–Em 23 Dezembro de 2017, na sequência de mais uma infeção urinária, ... foi internado no Hospital …, tendo permanecido internado até 5 de Janeiro de 2018, data da alta;
41.–Durante o internamento ... desenvolveu úlcera de pressão (escara) na região sagrada;
42.–As úlceras de pressão (escara) desenvolvidas por ..., apesar de tratadas, atingiram grandes proporções, afetando a região sagrada, perineal e lombar;
43.–Devido às úlceras de pressão ... era seguido em consulta de cirurgia e cirurgia plástica, tendo indicação para alternância de decúbitos (posicionamentos) no máximo de 2/2 horas, o que não ... não cumpria;
44.–Em data não concretamente apurada, mas anterior a Janeiro de 2018, surgiram lesões na pele de ..., inicialmente diagnosticadas como sarna, diagnóstico que não se confirmou;
45.–Tais lesões na pele provocaram em ... enorme mal-estar, com prurido intenso e sangramento;
46.–Em 13 de Junho de 2018, ... regressou ao Hospital …, com sintomas de febre e prostração, com quadro de sepsis, encaminhado pela …;
47.–... permaneceu internado no Hospital …  até 16 de Julho de 2018, data em que teve alta, clinicamente melhorado;
48.–A movimentação de ... na cama, necessária para aliviar a pressão em determinadas zonas do seu corpo como meio de prevenção (d)e agravamento das úlceras de pressão, e os cuidados de higiene diária causavam-lhe dores de forte intensidade;
49.–Aquando da alta, a assistente social do Hospital … reuniu com familiares de ... tendo sido colocada a questão de um internamento, transitório, em unidade de cuidados continuados, seguido de apoio domiciliário;
50.–O Serviço Social do Hospital … não deu continuidade ao plano de alta que havia delineado para ... por lhes ter sido comunicado pela família de ... que a Ré asseguraria os cuidados necessários;
51.–... teve alta do Hospital … para “hospitalização domiciliária”, referenciado para Equipa de Cuidados Continuados Integrados da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, na tipologia domiciliária;
52.–E com indicação para realizar hemodiálise hospitalar, às segundas, quartas e sextas no Hospital …;
53.–Após a saída do …, a 16 de Julho de 2018, ... seguiu, em ambulância, para uma consulta nos serviços clínicos da Ré, no … para que fosse orientado para tratamento em unidade/apoio domiciliário”;
54.–A indicação dada pelos serviços clínicos da Ré foi de inviabilidade de intervenção cirúrgica reconstrutiva atendendo às comorbilidades e à não colaboração e incumprimento do doente, tendo solicitado apoio de 3ª pessoa 6 h por dia” e marcado consulta para 19 de Julho de 2018;
55.–... foi para casa, mantendo-se o quadro referido em 48.;
56.–Na consulta de 19 de Julho de 2018, a que ... compareceu, foi feito penso com hidrogel quanto à úlcera de pressão isquémica direita, com indicação de que deveria ser realizado em dias alternados, e quanto às restantes úlceras de pressão foram feitos pensos com compressa única com betadine dérmico, com indicação de que os pensos deveriam ser refeitos de igual modo sempre que se sujarem ou descolarem”, podendo realizar estes pensos no domicílio caso prossiga o apoio que tem tido do respetivo centro de saúde. Caso não, virá ao hospital em dias que não realize diálise” e de que “mantém o apoio de terceira pessoa”, com “consulta dentro de 2 semanas”;
57.–... encontrava-se em sofrimento e desespero;
58.–Em 1 de Agosto de 2018, ... pôs termo à sua vida, recorrendo para o efeito a uma tesoura, com a qual cortou o braço esquerdo, atingindo o interior da fístula arteriovenosa;
59.–... desabafou, em algumas ocasiões, com a Autora que preferia ter morrido no acidente referido em 2. a ficar no estado em que ficou;
60.–... já havia verbalizado, em algumas ocasiões, a vontade de pôr termo à sua vida;
61.–Em diversas ocasiões, os serviços clínicos da Ré prescreveram e recomendaram, por considerarem que se justificava do ponto de vista clínico, tratamento psicológico a ...;
62.–... recusou sempre o tratamento psicológico que lhe foi proposto pelos serviços clínicos da Ré;
63.–À data da morte, ... apresentava aterosclerose generalizada, doença cardíaca isquémica crónica, pneumonia, doença renal crónica, cirrose hepática, síndrome depressivo, ideação suicida;
64.–... estava lúcido, tendo perfeita consciência do estado em que se encontrava;
65.–À data referida em 2. ... auferia a retribuição anual de 253.000$00 x 14, correspondente a € 1.261,96 x 14, no montante total de € 17.667,44;
66.–À referida data, a ….. tinha a responsabilidade sinistral decorrente do acidente de trabalho transferida para a Ré com base na retribuição referida em 6.;
67.–... faleceu no estado de casado com a Autora;
68.–A Autora nasceu em 7 de Agosto de 1938.

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O DIREITO:

Em discussão na apelação a existência de nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e suas consequências e a morte do sinistrado que lhe sobreveio, por suicídio.
Pretende a Apelante que dos autos resultam todos os factos que permitem aferir a vertente naturalística do nexo causal entre o acidente de trabalho e a morte do sinistrado por suicídio porquanto se mostram profusamente descritas as lesões decorrentes do acidente e o seu subsequente sofrimento. Diz também que a vertente jurídica do nexo causal deverá ser aferida em função dos factos assentes, subsumindo-os ao direito.

Contrapõe a Apelada que a vertente naturalística traduz-se em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano” e a vertente jurídica “consiste em apurar se esse facto concreto pode, em abstrato, ser havido como causa idónea do dano ocorrido”. Sucede que não há indício fáctico do nexo causal entre o acidente e o cometimento de suicídio, lembrando que este ocorreu passados 27 anos sobre aquele, tendo, no entretanto, surgido distintas patologias e, por outro lado, ao suicidar-se, a vítima estava plenamente consciente do seu ato. Também não é possível estabelecer o referido nexo causal jurídico em virtude de se ter comprovado que após o acidente o A. tentou adaptar-se à sua nova condição, tendo, inclusivamente, adquirido um automóvel e adequando-o às suas limitações e demonstrando sempre uma atitude positiva perante as adversidades.

Vejamos, pois!

Dispõe o Artº 142º/1 do CPT que havendo conhecimento da morte do sinistrado cujo processo emergente de acidente de trabalho foi desencadeado, o Ministério Público deve averiguar se a morte resultou direta ou indiretamente do acidente. Havendo elementos para presumir essa relação de causalidade, o Ministério Público organiza o processo tendo em vista a reparação (nº 2).
E foi na aplicação destes dispositivos que nasceu a presente ação.
Conforme emerge do acervo fático ocorreu um acidente de trabalho em 26/06/1991, acidente esse do qual resultaram lesões extremamente graves para o sinistrado.
Em 1/08/2018 o sinistrado, encontrando-se em sofrimento e desespero, pôs termo à vida.
Cumpre sinalizar, antes mesmo de entramos no âmago da questão suscitada na apelação, que, por um lado, não se mostra impugnada a decisão que incidiu sobre a matéria de facto; e, por outro, não estão provados factos que permitam concluir no sentido do alegado pela Apelada relativamente à adaptação do sinistrado à sua nova condição.
Será, pois, no âmbito do quadro factual apurado que conduziremos a nossa apreciação.
Porém, e visto que se reveste se relevante interesse para a decisão da causa,salientamos ainda que foi tido como não provado, entre outros, que (h) todo o quadro clínico apresentado por ... à data da sua morte estava relacionado com as lesões e sequelas que lhe advieram do acidente referido em 2.
Extratamos da fundamentação de facto exarada em 1ª instância o seguinte: Por fim, não obstante não restar qualquer dúvida de que houve uma evolução e degradação do estado de saúde e do quadro clínico de ... após o acidente, marcado por vários incidentes e vicissitudes que o debilitaram e, necessariamente, o afetaram também psicologicamente não pode este Tribunal, à luz da prova produzida, imputar todo o quadro clínico que aquele apresentava à data em que cometeu suicídio às lesões e sequelas resultantes do acidente. De resto e a este propósito não há como ignorar a idade avançada de ..., com 83 anos à data da morte, o declínio próprio da idade, com as consequências que daí advêm para a saúde, o hiato temporal que decorreu entre o acidente e o suicídio (mais de 27 anos) e as patologias de que também padecia e relativamente às quais não se consegue estabelecer qualquer ligação com o acidente e suas sequelas, como é o caso da doença cardíaca isquémica crónica, para além de que nenhum dos médicos ouvidos como testemunhas logrou fazer uma imputação direta e exclusiva da insuficiência renal crónica que o afetava às sequelas que lhe advieram do acidente e/ou aos tratamentos (medicamentosos e/ou cirúrgicos) a que se submeteu em consequência do acidente e/ou das comorbilidades de que ficou afetado devido ao acidente. Por outro regista-se que no relatório de autópsia junto a fls. 37 a 39 constam descritas “dismorfias” relativamente às quais não se encontra, nem foi estabelecida qualquer relação com o acidente (cfr. “deformidade da mão direita, com dedos em varo e em martelo. Amputação parcial dos tecidos moles das falanges distais do 4º e 5º dedos, com perda das unhas desses dedos.”).

Tudo isto para esclarecer que contrariamente ao explanado na apelação (conclusão 6) no que respeita aos factos não provados a decisão vai muito além do que se invoca. E, para além disso, e conforme decorre das conclusões 7 a 9 o ponto de facto supra referido não sofreu impugnação. O que marca uma diferença substancial relativamente ao caso que esteve subjacente ao Ac. da RC de 28/10/2010, proferido no âmbito do Proc.º 196/06.8TTCBR com o qual a Apelante esgrime para fundamentar a sua tese. Mas adiante voltaremos ao tema.

A matéria do suicídio laboral na sua correlação com a reparação emergente de acidente de trabalho não encontra no ordenamento jurídico nacional uma resposta clara.
Não só a Doutrina não tem elegido tal matéria como alvo da sua atenção – são escassos os textos nacionais que a têm como objeto de análise – como a jurisprudência é muito escassa.
Na verdade, as abordagens doutrinárias que se conhecem centram-se no suicídio subsequente a práticas de assédio.
É o caso do texto da autoria da ora relatora, “Do Assédio Laboral ao Suicídio”, Trabalho Sem Fronteiras, Almedina. Conclui-se aqui que “sempre que o trabalhador possa, comprovadamente, estar afetado psiquicamente, em grave depressão decorrente da vivência proporcionada no local de trabalho, e com isso sucumba ao desastre, não podemos deixar de concluir que a sua vontade de pôr termo à vida se apresenta altamente condicionada.”[1] E, assim, os suicídios de cariz laboral ocorridos em situações de incapacidade acidental, merecem a tutela do direito laboral por aplicação do disposto no Artº 14º/1-c) da Lei 98/2009 de 4/09.
Do mesmo modo, a referência efetuada por Rita Garcia Pereira em “Mobbing ou Assédio Moral no Trabalho”, Coimbra Editora[2].
Também no campo do assédio moral, Ana Cristina Ribeiro Costa, em texto ínsito no Ebook publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, subordinado ao tema “O Assédio no Trabalho”, sob o título “O ressarcimento dos danos decorrentes do assédio moral ao abrigo dos regimes das contingências profissionais”, sublinha que “já em 1947, AVELINO BRAGA MENDONÇA afirmava que o empregador deveria ser responsabilizado face ao acidente que resultasse da privação do uso da razão do sinistrado, na medida em que esta derivasse da própria prestação do trabalho”[3]. Conclui, mais adiante, que “Não vislumbramos, portanto, qualquer problema na qualificação do suicídio ou tentativa de suicídio como acidente de trabalho, em determinados casos concretos. Tal implicará, contudo, que o assédio moral seja relevante apenas na medida em que justifica a relação causal entre o evento e o dano”[4]

Sobre o ato suicida em consequência de acidente de trabalho mostra-se publicado, na revista Questões Laborais, 40, Coimbra Editora, da autoria de Ana Cristina Ribeiro Costa, o texto “O Ato Suicida do Trabalhador – A Tutela ao abrigo dos Regimes das Contingências Profissionais”. Nele a autora dá-nos conta da admissibilidade da qualificação como acidente de trabalho, ao nível da jurisprudência de vários países, dos suicídios derivados de processos psicopatológicos cuja origem se deve a prévio acidente de trabalho[5]. Conclui-se aqui que “Entre nós, parece que, provando-se que o acidente de trabalho anterior produziu lesões físicas e psíquicas graves, ou diminuiu as capacidades profissionais do trabalhador, conduzindo a uma situação psíquica depressiva que, por sua vez, motivou o ato suicida, será este qualificado como infortúnio laboral”.
Na jurisprudência, para além do Ac. da RC supra mencionado e do do STJ de 16/12/2010 que incidiu sobre o mesmo facto, ambos proferidos no âmbito do Proc.º 196/06.8TTCBR, as respostas foram opostas.
O caso aí analisado é muito semelhante ao que ora debatemos, na medida em que o suicídio também sobreveio a acidente de trabalho incapacitante.
A RC considerou que “A morte por suicídio não pode ser caracterizada como acidente e muito menos como de trabalho.
Se, por um lado, não estão reunidos os pressupostos legais constantes do artigo 6º da Lei 100/97 de 13/09, designadamente, que a morte tenha ocorrido no local de trabalho, por outro, no suicídio a morte não ocorre de modo não intencional ou involuntário.”
Ponderou-se depois que “A questão a decidir, conforme referem os recorridos na sua resposta, tem a ver com a possibilidade do estabelecimento de um nexo de causalidade – adequada - entre o acidente e a morte por suicídio do sinistrado.
Como se sabe, e é meridiamente compreensível, as consequências de um acidente nem sempre são percetíveis ou se revelam de forma imediata.
A par das lesões e sequelas imediatamente verificáveis muitas outras apenas podem vir a revelar-se a médio e até a longo prazo.
Daí que o Cód. Proc. Trabalho, no caso de haver elementos para presumir uma relação de causalidade entre a morte e o acidente, mande que o Mº Pº organize o processo regulado no seu artigo 100º; e também a caducidade da pensão por morte do sinistrado nunca é declarada antes do MP ter possibilidade de averiguar sobre a existência de tal nexo (artigos 142º e 152º do referido código).
No que à causalidade concerne o nosso ordenamento jurídico consagra a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, sendo necessário demonstrar, no caso, que se não tivesse sido o acidente e as lesões que imediatamente lhe advieram a morte do sinistrado não teria ocorrido”.

Concluiu-se, a final,  que “ no que toca ao estabelecimento do nexo causal entre o acidente e a morte do sinistrado, a matéria de facto dada por assente é, segundo cremos, clara e isenta de dúvidas.
Na verdade, encontra-se provado (ponto 26 da matéria de facto provada) que o “ E... pôs termo à própria vida em consequência do quadro depressivo resultante do acidente sofrido a 19.03.2005””. E, nesta medida, a morte em causa conferiu direitos aos beneficiários.
O STJ veio, todavia, a afirmar o seguinte (e citamos o respetivo sumário):
I–No âmbito da LAT, a noção de acidente de trabalho reconduz-se a um acontecimento súbito de verificação inesperada e origem externa, que provoca direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho do trabalhador, encontrando-se este no local e no tempo de trabalho, ou nas situações em que é consagrada a extensão do conceito de acidente detrabalho.
II–O acidente de trabalho, enquanto noção ou conceito normativo, comporta outros elementos para além do evento naturalístico, ou seja, configura uma realidade complexa composta por aquele evento e pelo necessário nexo a estabelecer entre ele e as lesões quer para a vítima advenham e entre estas e a incapacidade de ganho ou a morte.
III–Estando demonstrado que o evento naturalístico causador das lesões sofridas pelo sinistrado consistiu na explosão de uma lata com materiais inflamáveis que viria a, imediatamente, provocar no mesmo várias queimaduras que foram causa adequada das lesões e que determinaram lhe fosse atribuída uma incapacidade permanente parcial, o suicídio do sinistrado – enquanto ato conducente à morte – não pode ser subsumível ao conceito de lesão ou seu agravamento, por consistir, ele próprio, num ato idóneo à produção da morte.
IV–A descaracterização de acidente de trabalho, nos termos do disposto no art. 7.º, n.º 1, al. a) da LAT – que não prescinde da sua eclosão, no tempo e lugar de trabalho, e da produção de lesões que sejam causa adequada à perda de capacidade de ganho ou à perda da vida – determina a não reparabilidade dos danos que do mesmo provenham em razão de a conduta assumida pelo sinistrado ser a causa desse acidente, pelo que, a conduta deste tem que se situar a montante da ocorrência do acidente, o que não sucede, no caso de um suicídio.
V–A obrigação de indemnizar só tem cabimento quando existir um nexo de causalidade entre o ato ilícito do agente e o dano produzido, exigindo a lei, para fundamentar a reparação, que o comportamento do agente seja abstrata e concretamente adequado a produzir o efeito lesivo.
VI–A afirmação do nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes: - a vertente naturalística, do conhecimento exclusivo das instâncias, porque contido no âmbito restrito da matéria factual, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomologia real e concreta, deu origem ao dano; - a vertente jurídica, já sindicável pelo Supremo, que consiste em apurar se esse facto concreto pode, em abstrato, ser havido como causa idónea do dano ocorrido.
VII–Estando provado que a morte do sinistrado ocorreu por ato próprio do mesmo quando pôs termo à própria vida por enforcamento, é de afirmar a quebra do nexo causal entre as lesões decorrentes do acidente que o sinistrado anteriormente sofrera e o dano (a morte) que sobreveio em momento ulterior pois esse dano não surgiu como decorrência típica ou adequada daquelas lesões.
VIII–Tanto mais quando não está demonstrado que o quadro depressivo de que o sinistrado padecia resultante daquele acidente tenha sido causa adequada da sua morte, posto que esta não surge como desenvolvimento causal de tal lesão, antes decorre de ato praticado pelo próprio lesado e, nessa medida, insuscetível de ser imputado à Ré, no quadro da sua responsabilidade infortunística.
Estas conclusões assentam na seguinte fundamentação: a factualidade transcrita estabeleceu um evidente nexo factual, mas esse nexo tem um alcance muito concreto - apenas evidencia que o sinistrado se deixou determinar, na prática do ato voluntário que cometeu, pelo quadro clínico depressivo decorrente do anterior acidente. É coisa bem diversa do que concluir que a sobredita factualidade demonstra uma vinculação causal entre o próprio acidente e a morte do sinistrado. Por isso, essa vinculação causal haveria de ser extraída, por necessário, de outra factualidade que, porventura, a consentisse.

Mais recentemente a RE em Ac. de 8/10/2020, Proc.º 2588/15.2T8FAR-E2, decidiu, em presença de um suicídio ocorrido em 21 de outubro de 2014, após consulta de psicologia, em que o trabalhador se dirigiu para a Estação de caminho-de-ferro onde, pelas 21.00 horas se dirigiu para a linha férrea, sendo colhido pelo comboio Alfa Pendular vindo a falecer, que “Este facto mostra que o suicídio ocorreu fora do local e do tempo de trabalho.

A dor e o sofrimento sofridos pelo trabalhador em consequência do convite à reforma e a mudança de funções causaram dor e sofrimento ao trabalhador, mas tal não constitui em si o acidente de trabalho. A dor e o sofrimento são lesões que se presumiriam decorrentes de acidente de trabalho se efetivamente tivessem existido e fossem constatadas no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo 9.º da LAT.
Não podemos inverter os pressupostos normativos e a partir da existência de uma lesão na saúde presumir a existência de um acidente de trabalho.


O convite à reforma e a mudança de funções, como referem os peritos médicos, não foi causa adequada à produção do evento danoso, o suicídio.
Foi causa adequada a provocar dor e sofrimento no trabalhador, mas não foi causa adequada à produção do suicídio.

Neste contexto, tendo presentes os factos provados, as respostas dos peritos médicos e todo o circunstancialismo que os autos evidenciam, não podemos concluir que o trabalhador foi vítima de um acidente de trabalho.”

A qualificação de um evento como acidente de trabalho não prescinde, da verificação das características que enformam o conceito, a saber, ser o evento datável, de surgimento súbito e que ocorra no local e no tempo de trabalho ou, para o caso que nos ocupa, que tenha relação de causalidade com o dano.
Em causa nos autos, não a qualificação do ato suicida como acidente de trabalho, antes a possibilidade de se estabelecer um nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e a morte do sinistrado ocorrida por suicídio, possibilidade que, em abstrato, não descartamos.
Estabelecido tal nexo de causalidade, haverá, então, que retirar consequências ao nível da reparação do dano emergente de acidente de trabalho.
De quanto supra expusemos ressalta o elevado grau de exigência que é posto na apreciação do nexo causal. Um tríplice nexo causal – o nexo entre o acidente propriamente dito e as lesões físicas e psíquicas graves ou a diminuição das capacidades profissionais do trabalhador, a relação destes com uma situação psíquica depressiva e, por último, a relação causal entre esta e o ato suicida.
A grande discussão à volta do nexo de causalidade centra-se nos limites em que se pode admitir o mesmo, pois o facto pode ser causa do dano em termos muito remotos, sendo que, como adverte Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, não faria sentido responsabilizar o ato inicial por todos os infortúnios que atinjam o lesado. Daí que seja necessário “definir um critério para o estabelecimento do nexo de causalidade, que permita que ele seja entendido não em termos naturalísticos, mas em termos jurídicos” (Direito das Obrigações, Vol. I, 2014, 11ª Edição, Almedina, 310).

Delinearam-se, pois, diversas teorias, encontrando-se subjacente ao nosso direito, muito concretamente a partir do disposto no Artº 563º do CC, a teoria da causalidade adequada da qual emerge que para que exista nexo de causalidade entre o facto e o dano não basta que o facto tenha sido em concreto causa do dano, em termos de conditio sine qua nom, sendo necessário que, em abstrato, seja também adequado a produzi-lo. E assim, será através de um juízo de prognose póstuma que se averiguará da adequação abstrata do facto à produção do dano, através de um juízo de previsibilidade.

Daí que, tal como afirma João de Matos Antunes Varela “um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituem uma consequência normal, típica, provável dele” (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4ª Edição, Almedina, 800). O autor ensina ainda que não é necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano; essencial é que ele seja uma das condições do dano; também não é necessário que o dano seja previsível para o autor do facto e, por fim, o que releva é todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano.

Lembrados estes conceitos, centremo-nos, então, no caso em apreciação.

Conforme ditado no Ac. do STJ supra referido, “a lei exige, para fundamentar a reparação, que o comportamento do agente seja abstrata e concretamente adequado a produzir o efeito lesivo.
Por isso se diz que a afirmação do nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes:

-a vertente naturalística, do conhecimento exclusivo das instâncias, porque contido no âmbito restrito da matéria factual, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano;
-a vertente jurídica, já sindicável pelo Supremo, que consiste em apurar se esse facto concreto pode, em abstrato, ser havido como causa idónea do dano ocorrido”.

A Apelante defende que os factos cuja prova se obteve permitem concluir pelo preenchimento de ambas as vertentes.

Vejamos com propriedade!

Registou-se um acidente do qual resultaram lesões graves e absolutamente incapacitantes para o sinistrado (pontos 4 e 5).
Após o acidente e por causa dele foi o sinistrado submetido a diversas intervenções cirúrgicas e tratamentos, vindo a sofrer infeções e vindo o seu estado geral de saúde a agravar-se ao longo de 27 anos de enorme sofrimento (pontos 17 a 56). Não obstante toda a assistência que lhe foi sendo prestada.
O sofrimento, bem patente na factualidade em presença, não motivou, todavia, o sinistrado a usufruir de tratamento psicológico (pontos 61 e 62).
Os autos noticiam como última consulta a do dia 19/07/2018.
Permanentemente lúcido (ponto 64), o sinistrado que, em algumas ocasiões, havia verbalizado a vontade de pôr termo á vida (ponto 60), concretizou tal vontade no dia 1/08/2018 (ponto 58), altura em que se encontrava em sofrimento e desespero (ponto 57).
Perante este complexo quadro poderemos afirmar que o suicídio foi consequência de uma situação psíquica depressiva emergente do sofrimento decorrente das lesões sofridas em virtude do acidente de trabalho? E, desse modo, dar como preenchido o conceito de nexo de causalidade em ambas as vertentes que lhe são subjacentes?
Esta conclusão não emerge com clarividência do acervo fático.
Na verdade, não só o sinistrado apresentava um conjunto de patologias cujo nexo causal não foi estabelecido com o acidente – veja-se que à data da morte apresentava aterosclerose generalizada, doença cardíaca isquémica crónica, pneumonia, doença renal crónica, cirrose hepática, síndrome depressivo, ideação suicida (ponto 63) -, pois resultou não provado que (h) todo o quadro clínico apresentado por ... à data da sua morte estava relacionado com as lesões e sequelas que lhe advieram do acidente, como também a circunstância de recusar apoio psicológico nos impede de avaliar a síndrome depressiva em que se encontrava, designadamente a sua repercussão na vontade do sinistrado.
Sendo certo que à data da morte e após um longo processo de manutenção da vida se encontrava em sofrimento e desespero, não nos parece que possamos afirmar que o suicídio era previsível como consequência do acidente e respetivas sequelas. Sobretudo não o era em presença do que foi a sua ligação à vida durante tal lapso de tempo, desconhecendo-se quando se iniciou a ideação suicida e porquê. Note-se que, conforme alegado, à data em que faleceu, o sinistrado já ultrapassara a esperança média de vida.
E muito concretamente, e tal como mencionado na sentença, a factualidade provada não habilita a concluir que o síndrome depressivo de que… estava afetado (…) o impedia de convenientemente avaliar os seus atos.
Não podemos, pois, afirmar, como pretende a Apelante, que é possível concluir-se, em função dos factos provados, que foi devido ao acidente de trabalho, à situação em que o sinistrado ficou e às lesões dele decorrentes, que o sinistrado colocou termo à vida.
Do mesmo modo, não vemos como é que mediante a decisão de facto prolatada se possa afirmar que a vontade do sinistrado estava condicionada pelo quadro reativo/depressivo originado pelo acidente e pelas lesões físicas dele resultantes, o que limitou a sua autodeterminação, situação esta adquirida no âmbito do processo que mereceu a decisão da RC e não obteve sucesso junto do STJ que parece ter pretendido uma prova muito mais lata do que aquela ali obtida.
No caso sub-júdice entendemos como absolutamente essencial a possibilidade de estabelecer uma conexão entre o síndrome depressivo e o ato que levou à morte, a fim de avaliarmos o que é que foi determinante na prática do ato e até que ponto a vontade se mostrava condicionada pelas mazelas decorrentes do acidente.

Subscreve-se, pois, a conclusão final exarada na sentença: Em síntese, no caso, ainda que o acidente de trabalho sofrido, em 26 de Junho de 1991, por ... tenha produzido lesões físicas graves e, também, psíquicas estando, em 1 de Agosto de 2018, data em que cometeu suicídio, afetado de síndrome depressivo, não existem elementos bastante para que se conclua que foi a situação psíquica depressiva que motivou o ato suicida, ou seja, que ... cometeu suicídio num quadro de síndrome depressivo, determinado pelas lesões e sequelas resultantes do acidente sofrido 27 anos antes, que lhe anulou a vontade, colocando-o em situação de privação do seu livre-arbítrio e que foi, nesse contexto, que praticou o ato que conduziu à sua morte.
Nesta medida, não se pode, no caso, considerar verificado o nexo de causalidade (ainda que adequada) entre o acidente, ocorrido a 26 de Junho de 1991, e a morte por suicídio, ocorrida a 1 de Agosto de 2018”.

Diremos a concluir, que nem do ponto de vista naturalístico, nem do jurídico, esse nexo é um dado adquirido nestes autos. Na verdade, não só o facto – acidente laboral – não deu, em presença do acervo factual, origem ao dano morte por suicídio – este ocorre sem que se saiba o que o determinou-, como também, em abstrato, o acidente não é causa idónea do dano ocorrido.
Com o que improcede a questão em apreciação.

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Fica, deste modo, prejudicada a análise da 2ª questão que enunciámos.

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A A. está isenta de custas por força do disposto no Artº 4º/1-h) do RCP. Dado que a sua pretensão se mostra totalmente vencida, suportará os encargos a que houver lugar, conforme disposto no Artº 4º/6 do RCP.

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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença.
Sem custas, ficando os encargos a que houver lugar na responsabilidade da A..
Notifique.
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Lisboa, 2022-10-12



MANUELA BENTO FIALHO
ALDA MARTINS
SÉRGIO ALMEIDA



[1]Pg. 175
[2]Pg. 211 e ss.
[3]Pg. 42
[4]Pg.44
[5]Pg. 242 e ss.