Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1169/08.1TBCSC-A.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: INCUMPRIMENTO DO PODER PATERNAL
INTERESSE DA CRIANÇA
REGIME DE VISITAS
AUDIÇÃO DE CRIANÇAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- O interesse do menor, ou o superior interesse do menor, é um conceito indeterminado que deve ser concretizado pelo juiz de acordo com as orientações legais sobre o conteúdo do poder paternal (responsabilidades parentais).
II- Só existe incumprimento do poder paternal relevante, no que ao direito de visitas diz respeito, quando a mãe tiver criado intencionalmente uma situação reiterada e grave, culposa, que permita assacar-lhe um efectivo juízo de censura.
III- A opinião dos menores torna-se relevante em diversas matérias que lhes dizem respeito inclusive no que toca à sua recusa em manterem inalterado o regime de visitas ao progenitor que não tem a sua guarda.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :

I – Relatório

1- “A” intentou incidente de incumprimento do poder paternal contra “B”, referente aos filhos menores de ambos, “C” e “D”.
Alegou para tanto, em resumo, que, na sequência do divórcio ocorrido entre Requerente e Requerida, foi regulado o exercício do poder paternal dos menores, tendo estes ficado à guarda da mãe e sendo fixado um regime de visitas daqueles ao progenitor.
Acontece que, desde 10/5/2008 que o pai não está na companhia dos menores.
Tal deve-se à Requerida que tem impedido todos os contactos entre pai e filhos.
Tem o Requerente tentado contactar os menores.
2- Notificada a Requerida, veio a mesma deduzir oposição, defendendo a inexistência de qualquer situação de incumprimento.
No essencial, afirma que são os menores que não querem contactar com o progenitor.
3- Realizou-se uma Conferência de pais onde foram tomadas declarações aos pais dos menores.
4- Foram tomadas declarações aos menores.
5- Na sequência de tal, foi proferida a seguinte decisão :
“Concorda-se com o douto parecer que antecede.
De facto não vislumbramos qualquer comportamento culposo da mãe, tendo os menores expressado de forma livre a sua opinião, e exemplificaram de modo concreto a natureza dos encontros que tiveram com o pai e as razões que os levam neste momento a rejeitar a companhia do pai.
Face ao supra exposto e sem necessidade de mais considerandos, julgo improcedente este Incumprimento suscitado pelo pai, absolvendo a Requerida do pedido.
Custas pelo Requerente em 4 UC´s.
Registe e Notifique.”
6- Desta decisão interpôs o Requerido recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
“1. O Recorrente intentou contra a Recorrida um procedimento de incumprimento do poder paternal em virtude do exercício do poder paternal fixado por acordo, em sede de divórcio por mútuo consentimento, não estar a ser cumprido.
2. O Recorrente desde 10 de Maio de 2008, deixara de privar com os seus filhos menores, não tinha tido a companhia dos menores na Páscoa de 2008, nem tinha passado férias de Verão de 2008 com os filhos.
3. O Tribunal citou a Recorrente para contestar, designou dia para conferência de pais, na sequência da qual decidiu ouvir os menores.
4. Com base nos seus depoimentos e sem necessidade de mais considerandos, julgou improcedente o Incumprimento suscitado pelo pai, absolvendo a Requerida, ora Recorrida, do pedido.
5. Com essa decisão ficou o Recorrente sem meios judiciais que lhe permitissem exercer o seu direito a visitas, continuando até hoje privado da companhia dos menores.
6. O incidente de incumprimento previsto no artº 181º da O.T.M. é aplicável aos casos de incumprimento que compreendam igualmente o regime de visitas. Entendimento que tem vindo a ser reforçado, hodiernamente, a nível Europeu, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, como forma de manter e preservar os laços afectivos entre os filhos menores e o progenitor a quem não foi atribuída a guarda desses filhos.
7. O chamado direito de visita – assim contemplado no citado artº 1905º, do Código Civil no contexto do divórcio, significa o direito de o progenitor sem a guarda dos filhos se relacionar e conviver com eles, uma vez que tais relações não podem desenvolver-se de forma normal em virtude da falta de coabitação dos pais.
8. A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em Nova Iorque em 20 de Novembro de 1989 e ratificada em Portugal pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90, de 12/9, estipula que os Estados Partes devem respeitar “o direito da criança separada de um ou de ambos os seus pais de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos, salvo se tal se mostrar contrário ao interesse superior da criança” (nº 3 do artigo 9º).
9. A sentença proferida conduz inevitável e inequivocamente “à negação ou supressão do direito de visita do progenitor sem a guarda dos filhos a qual apenas poderá justificar-se – e como última “ratio” – no quadro de um conflito extremo entre o interesse da criança e o direito do progenitor”.
10. Tal “interesse do menor” é um conceito jurídico indeterminado cuja integração, “in concreto, envolve uma multiplicidade de factores que deve ser concretizado pelo juiz de acordo com as orientações legais sobre o conteúdo do poder paternal : a) a segurança e saúde do menor, o seu sustento, educação e autonomia (artº 1878º) ; b) o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos (artº 1885º, nº 1) ; c) a opinião do filho (artº 1878º, nº 2 ; artº 1901º nº 1).
11. Ora o Tribunal “a quo” apenas teve em consideração a opinião dos filhos, descurando todos os restantes factores e factos que importavam apurar, nomeadamente através de inquérito e outras diligências feitas por peritos, além de prova testemunhal.
12. As razões que os menores apresentaram e o Tribunal considerou válidas, não se enquadram razoavelmente num quadro de um conflito extremo entre o interesse destes dois adolescentes e o direito do seu progenitor, nem são contrárias ao interesse superior dos menores em causa.
13. Por outro lado “os depoimentos das crianças é muito complexo e está sujeito a muitas condicionantes Por tudo isto, assume especial relevância que os seus inquiridores sejam técnicos especializados, psicólogos e pedopsiquiatras, que exigem especiais conhecimentos no domínio da psicologia e pedopsiquiatria que os julgadores, em virtude da sua formação académica, não possuem”.
14. Apesar do Tribunal referir na decisão que os menores expressaram de forma livre a sua opinião, tal aferição salvo o devido respeito haveria de ter sido levada a cabo por técnicos especializados e não foi, sendo do conhecimento de pais e educadores que a adolescência é uma fase muito difícil durante a qual alguns jovens em fase de transição de criança para adulto, estão muitas vezes confusos, revelam-se rebeldes, intransigentes, em que se sentem incompreendidos por todos, questionam tudo e assumem deliberadamente atitudes e comportamentos que visam o conflito e ruptura.
15. Embora em sede de processo de jurisdição voluntária, salvo o devido respeito o Tribunal não julgou segundo um interesse fundamental tutelado pela lei, “in casu”, o superior interesse dos menores.
16. Acresce que, as mencionadas declarações dos menores motivaram exclusivamente a decisão de facto, ou seja, serviram de base à convicção do julgador no exame e decisão da causa, razões pelas quais ocorre nulidade do Despacho Sentença.
17. Tendo essas declarações servido como meio de prova e de motivação dos factos alegados, estando em causa o direito processual a ser exercido pelos pais, por força disposto no artº 517 do CPC, deve a obtenção dessa prova ser contraditada e não o sendo deve anular-se a prova por esse meio obtida e os termos que dele dependam (artº 517, nº 1, 201, nºs. 1 e 2 do CPC).
A sentença recorrida violou por erro de interpretação e aplicação nomeadamente o artº 181º da O.T.M., artº 1905º, do Código Civil, o nº 3 do artº 9º da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em Nova Iorque em 20 de Novembro de 1989 e ratificada em Portugal pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90, de 12/9 e por último o artº 517º, nº 1, 201, nºs. 1 e 2 do CPC, pelo que deverá ser revogada, com as legais consequências”.
7- A Recorrida apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões :
“1. O ora Apelante intentou o presente incidente de incumprimento da regulação do exercício do poder paternal, alegando que a Requerida é responsável pela violação do seu direito a visitar os menores “D”e “C”.
2. Na douta sentença proferida, o Tribunal “a quo” entendeu que não existe qualquer comportamento culposo da Apelada, relativamente ao incumprimento alegado pelo Apelante, tendo baseado a sua decisão, essencialmente, nas declarações dos menores.
3. O ora Apelante, não se conforma com a douta sentença proferida por, a mesma apenas se ter baseado nos depoimentos e na opinião dos seus filhos menores e descurado todos os restantes factores e factos que importavam apurar, nomeadamente, através de inquérito, prova testemunhal e outras diligências feitas por peritos, coarctando os meios judiciais que lhe permitem exercer o seu direito a visitar e conviver com os seus filhos menores.
4. O incidente de incumprimento da regulação do exercício do poder paternal, não tem por objecto retirar ou atribuir quaisquer direitos aos progenitores, mas apenas aferir se o incumprimento do acordado ou decidido pelo Tribunal de Família e Menores, em matéria de regulação do exercício do poder paternal, se deve ou não, ao comportamento culposo do outro progenitor.
5. Exactamente por esse facto, nos presentes autos, o Tribunal “a quo” apenas tinha como função determinar se o incumprimento alegado pelo Apelante relativamente ao seu direito de visita aos menores “D”e “C”, decorria de uma actuação culposa da Apelada, tendo para tal, ordenado a sua citação, e marcado posteriormente, uma conferência de pais, conforme imposto pelo artigo 181º da O.T.M..
6. O Tribunal “a quo” somente decidiu ouvir os menores “D”e “C”, após ter ouvido o Alegante e a Alegada na conferência de pais e ter constatado que as declarações proferidas pelo Alegante, coincidiam parcialmente com as da Apelada, no que toca ao facto de terem sido sempre os menores a comunicarem ao Apelante que não queriam estar consigo, sendo por isso, totalmente falso que a douta sentença proferida apenas se baseou nos depoimentos dos menores para absolver a Apelada do pedido formulado pelo Apelante.
7. Segundo o ora Alegante, o Tribunal “a quo” não aferiu com rigor se as declarações dos menores “D”e “C” foram livremente proferidas e se a sua vontade não resultou de influências ou manipulações externas, atenta a falta de assistência por técnicos especializados na inquirição dos menores.
8. Acontece no entanto que, quando o Apelante foi notificado do douto despacho que ordenou a inquirição dos menores “D”e “C”, sem a presença dos progenitores e das suas mandatárias, não se opôs à sua realização nos termos ordenados, nem impugnou o despacho proferido, no prazo legal.
9. Além do mais, os menores “D”e “C”, já não são crianças, mas sim, adolescentes, com 12 e 16 anos de idade, que sabem exprimir-se com muita clareza e opinar de forma independente e autónoma sobre tudo o que lhes diz respeito, não sendo necessário qualquer auxílio técnico ao Tribunal de Família e Menores para proceder à sua inquirição, que certamente, se sentisse essa necessidade, seria o primeiro a solicitar tal apoio.
11. Somente após ter tomado conhecimento do teor das declarações dos seus dois filhos menores (coincidentes entre si, apesar da ligeira diferença de idades) e do teor da douta decisão proferida, é que, repentinamente, o Alegante passou a entender que a inquirição dos menores foi efectuada de forma indevida, por a adolescência ser geradora de opiniões confusas, eivadas de revolta contra os progenitores.
12. Ora, se é certo que a adolescência é uma fase complicada no crescimento de qualquer ser humano, também é certo que, nesta fase, os adolescentes dificilmente se deixam influenciar pelas opiniões dos seus progenitores, facto este, bem patente nas declarações dos menores “D”e “C” quando afirmaram à Meritíssima Juiz “a quo” que, “por ora, não admitem a hipótese sequer de estar com o pai, e afirmam que esta posição é sua, nada tendo a ver com a mãe, que até insiste que estejam com o pai”.
13. Na perspectiva do ora Alegante, a douta sentença recorrida padece de nulidade, dado ter sido exclusivamente fundamentada nas declarações dos menores, não tendo o Tribunal “a quo”, ordenado a produção de qualquer prova testemunhal, nem a realização de outras diligências por peritos.
14. Contudo, no seu requerimento inicial, o Apelante não indicou quaisquer testemunhas, nem solicitou a realização de quaisquer outras diligências probatórias, como lhe incumbia (dado estarmos perante um incidente processual, ao qual se aplicam as regras constantes nos artigos 302º a 304º do Código de Processo Civil, por remissão do consignado nos artigos 150º, 161º da Organização Tutelar de Menores e no artigo 1409º do Código de Processo Civil), razão pela qual, o douto Tribunal “a quo”, não podia ordenar a realização de qualquer prova testemunhal !
15. No entanto, apesar da omissão do Alegante, o Tribunal “a quo” ordenou a inquirição dos menores “C” e “D”, sem a companhia de terceiros, de forma a assegurar que a sua audição seria efectuada sem influências exteriores e a poder ter em consideração a sua opinião, em respeito ao direito de audição dos menores e ao princípio do reconhecimento do superior interesse do menor, consagrados no artigo 4º da L.P.C.J.P (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo), e aplicáveis aos presentes autos, por remissão do consignado no artigo 147º-A da O.T.M (Organização Tutelar de Menores).
16. Atentas as idades dos menores “D”e “C” e a forma livre, espontânea e fundamentada como prestaram o seu depoimento perante a Meritíssima Juiz “a quo” e o Digno Procurador da República ( que, atenta a sua larga experiência têm a plena percepção se um depoimento é efectuado sob coacção ou influência de terceiros), ao Tribunal “a quo” não era exigível a realização de mais diligências probatórias para determinar se o incumprimento alegado pelo Apelante, era da responsabilidade da Apelada, tanto mais quando, o Apelante não requereu, no momento próprio, a realização de quaisquer outras diligências probatórias.
17. Aliás, dado o presente processo ser de jurisdição voluntária, “é lícito ao Tribunal realizar actos ou formalidades não especificamente previstos, bem como omitir aqueles que, no caso concreto, por ventura se revelem destituídos de interesse para o exame ou decisão daquela particular causa”.
18. Estando provado nos presentes autos que, a Alegada não é responsável, nem é culpada pelo facto dos seus filhos “D”e “C” não quererem estar, nem privar com o Alegante (único responsável pelo comportamento e pela actuação dos seus filhos menores), ao Tribunal “a quo”, não restava mais nada senão absolver a Requerida do pedido contra si formulado, não lhe podendo ser assacada qualquer responsabilidade por o Alegante “não privar com os seus filhos menores”.
19. Com efeito, nos presentes autos, não foi alterado o regime de visitas estabelecido nas alíneas a), b), c) e d) do acordo de regulação do exercício do poder paternal relativo aos menores “D”e “C”, nem nunca tal poderia vir a ocorrer, por os presentes autos não constituírem o procedimento próprio para esse efeito, não se compreendo por isso, as alegações do Recorrente no que toca à supressão do seu direito de visita, e à errónea ponderação entre o “interesse do menor” e o “direito do progenitor”.
20. Face ao supra exposto, a douta sentença recorrida não é passível de qualquer censura, ao absolver a Apelada do pedido contra si formulado pelo Apelante.
21. Com efeito, a maioria da jurisprudência entende que “só o incumprimento culposo, e não mero incumprimento desculpável, de um dos progenitores, relativamente ao acordado quanto ao exercício do poder paternal, deve ser sancionado com multa e indemnização”.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida, tal como se afigura de inteira Justiça !”.

* * *
II – Fundamentação
a) A matéria de facto a considerar é a seguinte :
1- “A” e “B” são os pais dos menores “C” e “D”.
2- Os pais dos menores foram casados entre si e encontram-se divorciados.
3- O poder paternal dos menores foi regulado, ficando os mesmos confiados à guarda da mãe e sendo fixado um regime de vistas dos filhos ao progenitor.
4- Desde, pelo menos, Março de 2009 que o regime de visitas dos menores ao pai não se tem concretizado.
5- Os menores afirmam que não querem ver o pai, referindo que se trata de uma posição sua, “nada tendo a ver com a mãe, que até insiste que estejam com o pai”.
b) Como resulta do disposto nos artºs. 684º nº 3 e 685º-A nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação do recorrente as únicas questões sob recurso são a de saber se :
-A decisão sob recurso padece de nulidade.
-Existe ou não incumprimento do poder paternal (actualmente responsabilidades parentais).
c) Em primeiro lugar afirma o Recorrente que a Sentença proferida nos autos é nula, se bem que sem indicar em qual dos casos previstos no artº 668º do Código de Processo Civil se enquadra a sua posição.
De qualquer modo, invoca o disposto nos artºs. 517º nº 1 e 201º nºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil, afirmando que a decisão sob recurso apenas se baseou nos depoimentos dos dois menores e que esse meio de prova não foi contraditado.
Dispõe o artº 517º nº 1 do Código de Processo Civil :
“Salvo disposição em contrário, as provas não serão admitidas nem produzidas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas”.
Ora, os processos tutelares cíveis, em que se inclui este incidente, são considerados processos de jurisdição voluntária (ver artº 150º da O.T.M.).
As regras de tal tipo de processos, em matéria de tramitação e julgamento, estão definidas nos artºs. 1409º a 1411º do Código de Processo Civil (que, por sua vez, remetem para o disposto nos artºs. 302º a 304º do Código de Processo Civil, respeitantes aos incidentes), caracterizam-se, em termos gerais :
-pela sua celeridade ;
-investigação oficiosa dos factos e das provas na medida do estritamente necessário à decisão (artº 1409º nº 2 do Código de Processo Civil) ;
-não sujeição a critérios de legalidade estrita, “devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna”, em face dos interesses a regular no caso concreto (artº 1410º do Código de Processo Civil) ;
-modificabilidade das decisões (artº 1411º do Código de Processo Civil).
Mas essa simplificação de procedimentos e de menor vinculação à lei e aos critérios de legalidade não dispensam o tribunal de se pronunciar sobre as questões essenciais que relevam para a decisão da causa ou do incidente, nem o dispensam de fundamentar adequadamente a decisão, ainda que de forma mais sintética.
É que a simplificação de procedimentos e a não sujeição a critérios de legalidade estrita a que aludem os artºs. 1409º e 1410º do Código de Processo Civil referem-se à tramitação do processo, à livre investigação dos factos pelo tribunal e ao julgamento, mas já não aos pressupostos substanciais da decisão.
No caso em apreço o Tribunal fez a averiguação que entendeu necessária ao esclarecimento da situação de incumprimento invocada no requerimento inicial.
Procedeu à audição dos pais e, após esta, entendeu ser útil a inquirição dos menores.
Essa foi a averiguação e recolha de prova que o Tribunal entendeu estritamente necessária para o apuramento da verdade e para a prolação da decisão final (cf. artº 1409º nº 2 do Código de Processo Civil).
As partes podiam ter sugerido outras provas ?
Podiam, já que neste tipo de processos de jurisdição voluntária, as partes podem ouvir três testemunhas a cada facto, num total de oito testemunhas (cf. artº 304º nº 1 do Código de Processo Civil). Porém, “no requerimento em que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida, devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova” (artº 303º nº 1 do Código de Processo Civil). E se, no caso em apreço, as partes não indicaram qualquer prova, “sibi imputet”.
A produção de prova que o Tribunal entendeu ser necessária não permitiu o contraditório ?
Permitiu. Tudo se passou com clareza, com conhecimento das partes, sem que em algum momento se tenha suscitado qualquer questão.
Podia o Tribunal ter recorrido ao apoio de peritos para analisar os depoimentos dos menores ?
Podia, mas o certo é que o julgador não está obrigado a adoptar a posição dos peritos ou a adoptar uma posição intermédia perante várias perícias, uma vez que a perícia é sempre livremente apreciada com as restantes provas que forem produzidas (cf. artº 655º nº 1 do Código de Processo Civil), podendo o julgador controlar as perícias e afastar-se mesmo delas se as reputar incorrectas, desde que o faça fundamentadamente, até porque no processo o Juiz exerce a função de “peritus peritorum”.
Temos, assim, de concluir que, no caso concreto, se verificou, o apuramento dos factos necessários à prolação de uma decisão fundamentada, quer de facto, quer de direito, razão pela qual a mesma não enferma de qualquer nulidade.
d) Vejamos agora se estamos, ou não, perante uma situação de incumprimento do exercício do anteriormente designado poder paternal.
Dispõe o artº 181º nº 1 da O.T.M. :
“Se, relativamente à situação do menor, algum dos progenitores não cumprir o que tiver sido acordado ou decidido, pode o outro requerer ao tribunal as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até 249,90 € e em indemnização a favor do menor ou do requerente ou de ambos”.
“In casu” defende o Recorrente que a Recorrida o estará a impedir de exercer o seu direito de visitas em relação aos menores.
Apenas e só tal questão tem que ser tratadas nesta sede.
Como é sabido, toda a intervenção relativa a menores deve ter em conta o “superior interesse da criança ou jovem”.
Aquele princípio surge consagrado na Convenção Sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26/1/1990, e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90, in D.R., I Série, de 12/9/1990, e ratificada pelo Decreto do Presidente da república nº 49/90, de 12/9, cujo artº 3º nº 1 dispõe que “todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”.
E a L.P.C.J.P. (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo – Lei 147/99 de 1/9) coloca à cabeça dos “princípios orientadores da intervenção”, no artº 4º al. a) :
“Interesse superior da criança e do jovem – a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”.
Também no artº 1978º nº 2 do Código Civil se dispõe que na confiança do menor com vista a futura adopção, “o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses do menor”.
E, finalmente, em matéria de regulação do exercício das responsabilidades parentais em caso de divórcio, dispõe o artº 1906º nº 7 do CC que “o Tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores (…)”.
Tal “interesse do menor” é um conceito jurídico indeterminado cuja integração, em concreto, envolve uma multiplicidade de factores.
Mas cada caso terá sempre por referência os princípios constitucionais, como o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral (cf. artº 69º nº1 da Constituição da República Portuguesa) e procedendo-se a uma análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência.
Referem Rui Epifânio e António Farinha (in “Organização Tutelar de Menores”, I, 1987, pg.326) que “trata-se afinal de uma noção cultural intimamente ligada a um sistema de referências vigente em cada momento, em cada sociedade, sobre a pessoa do menor, sobre as suas necessidades, as condições adequadas ao seu bom desenvolvimento e ao seu bem-estar material e moral”.
O chamado direito de visita, referido no artº 1905º nº 5 do Código Civil, consiste “no direito de pessoas unidas por laços familiares ou afectivos estabelecerem relações pessoais. No contexto do divórcio (…), o direito de visitas significa o direito de o progenitor sem a guarda dos filhos se relacionar e conviver com eles, uma vez que tais relações não podem desenvolver-se de forma normal em virtude da falta de coabitação dos pais” (cf. Maria Clara Sottomayor, in “Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio”, 1997, pg. 47).
A importância do estabelecimento de um efectivo regime de visitas tem igualmente encontrado eco na Jurisprudência.
Assim, o Acórdão da Relação do Porto de 13/7/2006 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt), considerou que para o preenchimento do superior interesse do menor, “é essencial salvaguardar a satisfação da necessidade básica da criança de continuidade das suas relações afectivas sob pena de se criarem graves sentimentos de insegurança e ser afectado o seu normal desenvolvimento.”, posto o que “a negação ou supressão do direito de visita do progenitor sem a guarda dos filhos apenas poderá justificar-se – e como última “ratio” – no quadro de um conflito extremo entre o interesse da criança e o direito do progenitor”.
E o Acórdão da Relação do Porto de 18/5/2006 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt) afirma que “o direito da mãe conviver com o seu filho é igual ao do pai conviver com o seu filho e, verdadeiramente, só são relevantes se resultarem do direito que o menor tem de conviver com ambos, porque terão sempre, em todas as situações, que estar subordinados aos direitos e interesses dos menores, como se define no artº 1878º do Código Civil. Por essa razão, o incumprimento repetido da regulação do poder paternal terá, se for necessário, que conduzir à alteração da guarda do menor. O menor não é propriedade privada da sua mãe e ela, se assim o entende, representa um enorme perigo para o desenvolvimento harmonioso da criança, que o Tribunal não pode continuar a ignorar. A mãe, só porque é mãe, não é necessariamente uma boa mãe”.
Diremos ainda que, estando o menor entregue à guarda de um dos progenitores, é importante para ele que não sinta a separação dos progenitores como um abandono e não cresça vendo no progenitor que não tem a sua guarda um estranho.
Assim, o regime de visitas nas suas diversas vertentes (fins-de-semana, férias, épocas festivas) possibilita a manutenção das relações do(a) menor com o outro progenitor, as quais se desejam e pretendem tão intensas quanto possível, permitindo ao (à) menor enriquecer os seus sentimentos, o seu afecto e a sua compreensão em relação tanto ao pai como à mãe.
e) No caso em apreço temos que os menores se têm recusado a conviver com o pai, aqui Recorrente.
Teria a mãe contribuído para tal ?
Não se vislumbra dos autos que a situação de ausência de visitas dos menores ao pai seja de imputar, subjectivamente, à Recorrida.
Aliás, a opinião dos menores torna-se relevante em diversas matérias que lhes dizem respeito, e no caso concreto, também no que toca à sua recusa em manterem inalterado o regime de visitas ao progenitor que não tem a sua guarda.
Assim, dos factos provados não podemos concluir por tal, não se vislumbrando que a mãe tenha criado intencionalmente qualquer situação para evitar as visitas dos menores ao pai, isto é, não há da parte daquela qualquer incumprimento reiterado e grave, culposo, que permita assacar-lhe um efectivo juízo de censura.
Qual a forma de contornar o supra referido “bloqueio” ?
Em bom rigor não teríamos de nos pronunciar sobre tal, uma vez que, estando-se em sede de incidente de incumprimento, o pedido de alteração do regime de visitas apenas pode ser deduzido em processo próprio porquanto, no incidente de incumprimento, a situação inicial apenas pode ser alterada ocorrendo o circunstancialismo previsto no nº 3 do artº 181 da O.T.M., ou seja mediante acordo dos progenitores.
De qualquer modo, sempre diremos que não se pode colocar como opção a imposição de visitas, naturalmente propiciadora de forte perturbação emocional dos menores, susceptível de graves consequências, para além de inevitavelmente desencadeadora de reactividade contrária ao objectivo prosseguido com as visitas.
Como refere Maria Clara Sottomayor (in “Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio”, 1997, pg. 62), “no caso de o menor se recusar a relacionar-se com o progenitor sem a guarda o direito de visita não pode ser-lhe imposto, pois a relação de visita não é concebível sem o desejo de viver essa relação”.
E estabelece a supracitada Convenção Sobre os Direitos da Criança, no seu artº 12º nº 1, o dever de os Estados Partes garantirem à “criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade”.
Ora, os menores “in casu” já não são propriamente crianças, encontrando-se em fase de pré-adolescência, sendo a sua opinião relevante em diversas matérias que lhes dizem respeito, e no caso concreto, também no que toca ao regime de visitas.
Teve lugar a sua audição e a sua opinião e vontade foi veiculada perante o M.P. e o Juiz do processo.
Ora, esta situação, apesar de gerada ao arrepio, e em contrário do verdadeiro interesse dos menores, é de momento incontornável e outro caminho não se nos afigura exequível que não seja o da alteração do regime de visitas a fixar em sede processual própria.
Este distanciamento entre filhos e pai é, certamente, susceptível de ser ultrapassado a curto prazo, ainda que sem a imposição imediata de reatar o regime anteriormente acordado.
Lembremos o saber popular : “Há que dar tempo ao tempo”.
f) Improcedem, assim, as conclusões do Recorrente, merecendo-nos total acolhimento a decisão proferida em primeira instância.
g) Sumariando :
I- O interesse do menor, ou o superior interesse do menor, é um conceito indeterminado que deve ser concretizado pelo juiz de acordo com as orientações legais sobre o conteúdo do poder paternal (responsabilidades parentais).
II- Só existe incumprimento do poder paternal relevante, no que ao direito de visitas diz respeito, quando a mãe tiver criado intencionalmente uma situação reiterada e grave, culposa, que permita assacar-lhe um efectivo juízo de censura.
III- A opinião dos menores torna-se relevante em diversas matérias que lhes dizem respeito inclusive no que toca à sua recusa em manterem inalterado o regime de visitas ao progenitor que não tem a sua guarda.

* * *

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.
Custas : Pelo recorrente (artigo 446º do Código do Processo Civil).

Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 14 de Setembro de 2010

Pedro Brighton
Anabela Calafate
Folque de Magalhães