Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7101/06.0TBOER.L1-1
Relator: MARIA ALEXANDRINA BRANQUINHO
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RECONVENÇÃO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PACTO DE DESAFORAMENTO
REGULAMENTO COMUNITÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - Aos tribunais portugueses cabe aferir a sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós. Todavia, essas regras não são apenas as que constam do Código de Processo Civil. Sobre estas, prevalecem as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas, enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português, bem como as que se inserem em regulamentos comunitários e leis especiais.
2 - O art.º 2.º, n.º 1 do Regulamento CE n.º 44/2001, elege o domicilio como factor de conexão relevante para a determinação da competência internacional, daí que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devam ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.
3 – No presente caso não será de aplicar o disposto no art.º 6.º, n.º 3 de tal Regulamento, pois que o preceito prevê a hipótese de dedução de um pedido reconvencional «que derive do contrato ou do facto em que em que se fundamenta a acção principal» conferindo ao tribunal em que a acção foi proposta a competência para decidir a reconvenção, o que não se verifica na situação em causa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Transportes “A” L.da veio interpor recurso da decisão que julgou o tribunal incompetente para conhecer da matéria de excepção que suscitou e da reconvenção que deduziu no articulado de defesa que apresentou na acção que, contra si foi intentada por “B”, S.A.R.L.
Na p.i., a autora, ora apelada, alega que, tendo por actividade a comercialização e a gestão de cartões de crédito para pagamento de portagens em auto estradas e túneis europeus assim proporcionando aos seus clientes, em especial transportadores, um meio de pagamento que substitui o pagamento a dinheiro, entregou cartões à ré, ora apelante, que os não pagou, daí que agora peça a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 23.830,19 acrescida de juros.
A ré contestou por excepção, dizendo que não pagou o serviço prestado pela autora por esta não ter cumprido o contrato de assistência em viagem que haviam celebrado, e deduziu reconvenção.
A autora replicou, sustentando a incompetência internacional do tribunal para apreciar e decidir a excepção suscitada e a reconvenção deduzida pois, defende que ao contrato de assistência que a ré quer discutir nos autos se aplica, exclusivamente, e por assim ter sido acordado entre as partes, o direito francês, sendo os tribunais franceses os competentes para dirimir qualquer litígio emergente desse contrato.
A ré/reconvinte, notificada da réplica, não respondeu à excepção.
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A 1.ª instância conheceu da excepção após dar como assentes os seguintes factos:
1. Entre autora e ré/reconvinte foi celebrado um contrato de assistência, com objecto coincidente em parte e grosso modo àquele referido no art. 6º da sua contestação, nos termos do documento n.º 1 junto com a réplica.
2. Na a cláusula 11.8 do doc. n.º 1 junto com a réplica encontra-se escrito “o presente contrato e condições regem-se pelo direito francês. Em caso de litígio relativo à interpretação ou à execução dos presentes, é expressamente atribuída a competência aos tribunais franceses com competência mesmo em caso de mobilização para efeitos de garantia ou de pluralidade de demandados. A “B” reserva-se contudo o direito de intentar uma acção judicial no tribunal competente da sede do subscritor.”
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A recorrente apresentou as seguintes conclusões de recurso:
1. A ré deduziu, para além da compensação, a excepção de incumprimento do contrato como justificação para o não pagamento das facturas trazidas a juízo pela autora.
2. Não é legítimo, por força de um pacto de desaforamento, impedir-se uma das partes de um contrato de apresentar a sua defesa num processo ou de discutir a totalidade de uma relação contratual sinalagmática.
3. O facto de o pacto de desaforamento invocado pela autora implicar para a ré inconveniente grave, como sendo o de não poder apresentar toda a sua defesa, deveria ter sido o bastante para o afastar , nos termos do disposto no art.º 99.º, n.º 3 al. c) do CPC.
4. O Regulamento CE n.º 44/2001 pressupõe a discussão de uma relação contratual num único tribunal, escolhido pelas partes – não a prestação do autor num tribunal e a prestação do réu noutro.
5. Podia a autora intentar a acção no tribunal que entendesse (francês ou português) mas, quando o fizesse seriam nesse mesmo tribunal discutidas todas as questões do contrato. Ou, dito de outra maneira, a propositura da presente acção em Portugal implica para a autora, na relação contratual com a ré, abdicar do foro francês:
6. O entendimento do tribunal recorrido, a ser a conclusão natural do contrato e do respectivo pacto de desaforamento, nos termos em que aí é formulado, tornaria este irremediavelmente nulo por contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes (art.º 280.º, n.º 2 do CC) e violador do princípio da reciprocidade previsto no art.º 15.º e o direito a um processo equitativo previsto no art.º 20.º, ambos da Constituição da República Portuguesa. A seguir-se o entendimento do tribunal, então é inconstitucional, por violação das referidas normas, o art.º 99.º do CPC.
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A apreciação das questões colocadas no recurso impõe que, para além dos factos que a 1.ª instância teve em consideração para declarar a incompetência internacional do tribunal, se convoque os restantes que foram julgados provados.
Assim:
1. A autora é uma sociedade comercial que, dentre outras, tem por actividade a comercialização e a gestão (ao abrigo de acordos com as entidades emitentese/ou proprietárias) de cartões de crédito para pagamento de portagens em autoestradas e túneis europeus. (cfr. art. 1º p.i).
2. Através da atribuição de tais cartões de crédito, a requerente proporciona aos seus clientes, em especial transportadores, um meio de pagamento de tais serviços, que substitui o pagamento a dinheiro, prático, eficaz e de uso generalizado na Europa comunitária. (cfr. art. 2 º p.i).
3. Os cartões de crédito para pagamento de portagens “C...” e “S...”(ex R...), são dois dentre os vários que esta comercializa e proporciona aos seus clientes, no âmbito da sua referida actividade. (cfr. art. 3º p.i).
4. Através da atribuição de tais cartões de crédito, a autora proporciona aos seus clientes um meio de pagamento de portagens que substitui o pagamento a dinheiro, prático e eficaz e de uso generalizado, designadamente, nas autoestradas francesas e espanholas. (cfr. art. 4º p.i).
5. A requerida é uma sociedade comercial que tem como actividade o transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias (cfr. art.5º p.i).
6. No âmbito do relacionamento comercial entre ambas as sociedades, foram entregues pela autora à ré, a solicitação desta, os referidos cartões para pagamento de portagens para diversos veículos da frota da ré, obrigando-se esta a cumprir todas as obrigações inerentes ao uso dos mesmos (cfr. art. 6º p.i).
7. Entre tais obrigações, conta-se a de liquidar à requerente, na data do respectivo vencimento a facturação referentes aos serviços (portagens) adquiridos pela R. com os aludidos cartões e demais encargos referentes ao uso daqueles (cfr. art.7º p.i).
8. A autora, com os referidos cartões e por diversas vezes, adquiriu serviços conforme facturas n.º: ... de 2005.10.27, no valor de € 5.519,06 (cinco mil, quinhentos e dezanove euros e seis cêntimos); ... de 2005.11.30, no valor de € 6.044,11 (seis mil e quarenta e quatro euros e onze cêntimos); … de 2005.12.09, no valor de € 3.037,70 (três mil e trinta e sete euros e setenta cêntimos); ... de 2005.12.27, no valor de € 7.199,51 (sete mil, cento e noventa e nove euros e cinquenta e um cêntimos); … de 2006.01.09, no valor de € 2.061,31 (dois mil e sessenta e um euros e trinta e um cêntimos) (cfr. art.8º p.i).
9. A ré deve ainda à autora a quantia de € 72,96 (setenta e dois euros e noventa e seis cêntimos), referentes a despesas bancárias suportadas pela autora e relativas à devolução das ordens de pagamento sobre a conta da requerida, conforme factura n.º ... de 2005.12.27, no valor de € 72,96 (setenta e dois euros e noventa e seis cêntimos) (cfr. art.10º p.i).
10. As facturas venceram-se 15 dias após a datada respectiva emissão (art. 12º p.i.).
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Analisando, agora, as alegações e conclusões de recurso à luz dos factos assentes, retira-se com evidente clareza que o inconformismo da recorrente assenta em premissas que não se verificam pois, nem foi celebrado um único contrato, nem a decisão recorrida foi motivada por um «qualquer pacto de desaforamento».
Com efeito, o contrato invocado como fundamento da acção diz respeito à comercialização de cartões de crédito para pagamento de portagens em auto estradas e túneis europeus e, aquele que a recorrente quer discutir é um contrato de assistência.
Mas, o equívoco não se fica pela invocação da existência de um único contrato pois, a apelante defende, também, a não aplicação do que designa de «pacto de desaforamento», quando é certo que o pacto atributivo de jurisdição foi desconsiderado pela decisão recorrida da forma que segue: «No caso, quer a ré/reconvinte., quer a autora/reconvinda estão sediadas em Estados Membros (Portugal e França) e o tribunal que foi escolhido situa-se também em território de Estado Membro (França). No entanto, não sendo invocados usos estabelecidos entre as partes ou usos do comércio internacional amplamente conhecidos e regularmente observados, não fez a autora prova da celebração do pacto atributivo de jurisdição por escrito, nem demonstra a confirmação por escrito de acordo verbal nesse sentido.
Na verdade, nem o documento que a autora junta se encontra assinado por ambas as partes nem respeita à concreta relação entre as partes e aqui em discussão, não podendo ser considerado como válido o documento apresentado pela autora/reconvinda em termos como pacto atributivo de jurisdição».
Perante premissas erradas, é notória a inconsistência da motivação do recurso, não sendo por isso, no entanto, que se deixará de reflectir sobre alguns dos argumentos da recorrente, o que se fará fazendo uso da clareza do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.04.10, www.dgsi.pt: «Aos tribunais portugueses cabe aferir a sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós. Todavia, essas regras não são apenas as que constam do Código de Processo Civil. Sobre estas prevalecem as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas, enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português, bem como as que se inserem em regulamentos comunitários e leis especiais.
Isso decorre, não só do próprio texto constitucional /art.º 8.º), como do art.º 65.º do CPC, que enuncia as circunstâncias de cuja verificação depende a competência internacional dos tribunais portugueses, mas expressamente esclarece que essas circunstâncias não prejudicam “o que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais” (...).
Falta referir que o art.º 2.º, n.º 1 do Regulamento elege o domicilio como factor de conexão relevante para a determinação da competência internacional, daí que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devam ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado, aqui residindo, pois, o fundamento para a declaração de incompetência que levou ao não conhecimento da excepção e da reconvenção.
Dir-se-á, finalmente, que a tese sustentada pela recorrente se ajusta ao que dispõe o art.º 6.º, n.º 3 do mesmo Regulamento mas, não se adequa ao caso presente. Com efeito, o preceito prevê a hipótese de dedução de um pedido reconvencional «que derive do contrato ou do facto em que em que se fundamenta a acção principal» conferindo ao tribunal em que a acção foi proposta a competência para decidir a reconvenção, o que aqui não se verifica.

Deste modo, acordam os juizes da secção cível em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante.

Lisboa, 13 de Julho de 2010

Maria Alexandrina Branquinho
Eurico Reis
Ana Grácio