Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
856/21.3T8PDL.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIORES
MEDIDA DE ACOMPANHAMENTO
SUPRIMENTO DE AUTORIZAÇÃO
PRESSUPOSTOS
VERIFICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.O objectivo perseguido pelo processo especial de acompanhamento de maiores é a satisfação do interesse do maior, com razão chamado de beneficiário das medidas no seu âmbito decretáveis e não quaisquer outros motivos descentrados da pessoa daquele beneficiário.
2.O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, entre outros, por qualquer parente sucessível.
3. Se o beneficiário não estiver em condições de dar autorização ao parente, este pode requerer a medida de acompanhamento e requerer ao mesmo tempo, o suprimento da autorização do beneficiário.
4.O tribunal deve sempre controlar se estão preenchidos os pressupostos do suprimento da autorização do beneficiário.
5.Sendo alegada uma dependência do álcool, durante mais de 30 anos, com repercussões graves na capacidade condução da vida, pessoal e patrimonial, da beneficiária, justifica-se que o tribunal controle de uma forma séria e suficientemente ponderada se se justifica ou não suprir a falta de autorização da eventual beneficiária do acompanhamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


A e B requereram a aplicação do estatuto de maior acompanhado à sua mãe C, pedindo cumulativamente, o suprimento de autorização da requerida.

Para tanto alegam que são os únicos filhos da requerida, a qual tem 73 anos de idade e é alcoólica há mais de 30 anos, o que lhe provocou diversas patologias clínicas, encontrando-se presentemente acamada (embora continue a comandar empregados e colaboradores que vai contratando para o seu serviço). Para além disso, a requerida não cumpre a complexa medicação que lhe foi prescrita, oscilando permanentemente entre momentos de grande excitação e momentos depressivos. Por fim, alegam que aquela foi detentora de um património pessoal considerável que tem vindo a dissipar, sem nada conseguirem fazer para o impedir. Para fundamentarem o pedido de suprimento da autorização alegam que a requerida se encontra absorvida por sentimentos de desconfiança permanente, suspeitas irracionais de conspiração, pelo que aquela jamais daria, voluntariamente, o consentimento para a instauração da presente ação.

A requerida contestou: invoca a ilegitimidade ativa dos requerentes e alega que não padece de nenhuma doença mental, encontrando-se em pleno poder das suas capacidades e faculdades mentais, deixando expresso que não concede autorização para o prosseguimento da ação. No mais, impugna todos os factos alegados, pois todos os atos praticados por si foram-no de forma consciente, sendo que as patologias físicas de que padece não a incapacitam ou impossibilitam de gerir a sua pessoa e bens. Por fim, e para prova do alegado, requereu a realização de perícia psiquiátrica.

Os requerentes responderam.

O tribunal proferiu o seguinte despacho:
«Dispõe o artigo 141º, nº1, do Código Civil que o acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
Por seu turno, dispõe o artigo 892º, nº2 do CPC que, nos casos em que for cumulado o pedido de suprimento da autorização do beneficiário, deve o requerente alegar os factos que o fundamentam.
Ora, o pedido foi requerido pelos filhos de C, mas sem a autorização desta, a qual, aliás, se opõe frontalmente a este processo.
A este respeito dispõe o artigo 141º, nº 2 do Código Civil, o Tribunal apenas pode suprir a autorização do beneficiário em dois casos: quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível.

Tal justifica-se em virtude do reconhecimento de que o beneficiário é o único interessado na sua instauração, face à valorização da sua autonomia (e logo da sua vontade reconhecível) e ao carácter profundamente intrusivo da instauração da medida, potencialmente ablativa de direitos fundamentais(Vítor, Paula Távora, in Código Civil Anotado, Almedina, 2019, pág. 175).

Analisando a situação em concreto, e lidos os fundamentos invocados pelos requerentes para o pedido de suprimento (artigos I a VII), nada é alegado que permita concluir que a requerente não possa livre e conscientemente dar o seu consentimento. Pelo contrário, é alegado que aquela jamais prestará tal consentimento, até porque aquela é uma pessoa muito inteligente, com consciência própria e que expressa correta e eficazmente a sua vontade a terceiros (artigo 2º da resposta à contestação).

Repare-se que dos documentos clínicos juntos por aqueles nada resulta que a requerida não possa, livre e conscientemente, dar o seu consentimento, sendo que não podemos estranhar a circunstância de serem os próprios requerentes a oporem-se à realização de perícia para se aferir das condições mentais da requerida!

Quanto a outro fundamento atendível para suprir o consentimento, não vislumbramos qual seja, sendo que as quezílias familiares jamais constituirão fundamento para se dar inicio a um processo que poderá limitar os direitos fundamentais da requerida.
Em face do exposto, e dos elementos constantes dos autos, teremos de concluir que a requerida tem plena capacidade, para, em liberdade e de modo responsável, segundo a avaliação que por si faça dos seus próprios interesses e das suas necessidades, de se autodeterminar e de se socorrer da representação voluntária para dispor de quem o ajude, conforme fez aquando da constituição de mandatário judicial, onde se insurge contra o presente processo.
Em face do exposto, não supro da autorização da beneficiária, pelo que, sendo os requerentes parte ilegítima, absolvo a requerida da instância, nos termos dos artigos 278º, nº 1, alínea e), conjugado com os artigos 576º, nº 2, 577º, alínea e) e 578º, aplicáveis ex vi do artigo 549º, nº 1, do Código de Processo Civil]».

Inconformados, interpuseram os requerentes competente recurso, cuja minuta concluíram da seguinte forma:
I.-Os Requerentes, ora Recorrentes, únicos filhos da Requerida, ora Recorrida, vieram aos autos pedir a aplicação à Recorrida do Estatuto de Maior Acompanhado, pedido que cumularam com o de suprimento do seu consentimento para o efeito, nos termos do artigo 141º, nº 2 do Código Civil.
II.-Para tanto, alegaram, em resumo, que a Requerida padece de alcoolismo crónico há mais de trinta anos e que, por força do alcoolismo e de várias patologias que derivaram do mesmo alcoolismo, padece a Requerida de uma afecção grave no que respeita ao processo de formação de uma vontade livre, autónoma e esclarecida, exigível à prática de determinados actos, quer de natureza de cuidado pessoal, quer de natureza patrimonial.
III.-No que respeita à questão de cuidado pessoal, o condicionamento da vontade da Recorrida pelo álcool, determina uma dificuldade em observar os tratamentos médicos que lhe são prescritos, como determina uma recusa veemente na moderação da quantidade de consumo de álcool (na média das vinte cervejas diárias).
IV.-No que respeita à questão patrimonial designada e, especialmente, na questão relativa aos actos de disposição, alegaram ainda os Recorrentes que a referida afecção da Recorrida a levou já a dissipar um património pessoal considerável e que, a não ser que possa ser decretado algum tipo de protecção legal ao pouco património ainda restante e em risco, rapidamente ficará a Requerida sem qualquer fonte de rendimento e em situação necessitada.
V.-Sem sequer uma única diligência de prova realizada, que corroborasse ou infirmasse a alegação e os meios de prova juntos pelos Recorrentes, nem tão pouco um único contacto pessoal com a Recorrida, que se saiba, entendeu o Meritíssimo Tribunal a quo que: nada é alegado que permita concluir que a requerente não possa livre e conscientemente dar o seu consentimento”, acrescentado ainda “Repare-se que dos documentos clínicos juntos por aqueles nada resulta que a requerida não possa, livre e conscientemente, dar o seu consentimento”.
VI.-A decisão centrou a questão do suprimento nas “faculdades mentais” da Recorrida, em sentido muito estrito, sem se referir por uma única vez ao alcoolismo alegado - e, pelo menos, indiciariamente demonstrado - negando, de modo liminar, qualquer hipótese de protecção legal à situação alegada pelos Recorrentes.
VII.-Com o devido respeito e salvo melhor opinião, a sentença vem ferida de erro notório quanto à apreciação da prova documental existente nos autos; vem ainda ferida por omissão de fundamentação relevante no que respeita ao juízo que faz sobre a existência de plena capacidade, liberdade e responsabilidade da Recorrida, assim como espelha um entendimento de direito muitíssimo restritivo do novo regime jurídico do maior acompanhado, por excluir da ponderação da sua protecção, não só a Recorrida, mas uma quantidade de situações humanas e sociais relevantes.
VIII.-No Requerimento Inicial (RI) dos autos, os Recorrentes juntaram, sob a designação de DOCUMENTO nº 4 e de DOCUMENTO nº 12, os três relatórios de internamento e alta hospitalar da Recorrida a que tiveram acesso, todos emitidos pelo Hospital do Divino Espírito Santo em Ponta Delgada.
IX.-O DOCUMENTO nº 4 integra os relatórios de dois internamentos, o primeiro em 29 de Janeiro de 2017 e o segundo em 2 de Julho de 2017, enquanto o DOCUMENTO nº 12 consiste no relatório de internamento mais recente, a 11 de Janeiro de 2021.
X.-Para além deste relatórios juntos ao RI, alegaram os Recorrentes no RI que existem vários outros relatórios, recentes, em posse do Hospital DDES de Ponta Delgada, mas não em posse dos Recorrentes, relativamente às datas de assistência urgente e de internamento da Recorrida que indicaram no artigo 4º do RI, tendo requerido ao Meritíssimo Tribunal a quo que oficiasse o mencionado Hospital para vir aos autos juntar os relatórios médicos relativos às datas indiciadas, o que não foi dado provimento.
XI.-Conforme mais detalhadamente explicitado nas Alegações que antecedem, mesmo só os três relatórios juntos pelos DOCUMENTOS nº 4 e nº 12 ao RI comprovam (ou indiciam fortemente, se se preferir), com um intervalo temporal abrangente (a) a situação de alcoolismo grave e crónico da Recorrida;(b) as outras patologias de que padece a Recorrida com efeitos directos – como demonstrável medicamente – no comportamento e atitudes da Recorrida; e (c) o não seguimento pela Recorrida das prescrições de tratamento médico a várias das mesmas patologias.
XII.-Logo do primeiro relatório junto no DOCUMENTO nº 4 ao RI, fls 1/8, de Janeiro de 2017, destacou-se a seguinte afirmação “Trata-se de uma doente com consumo de cerca de 360 gramas/álcool por dia, com 30 anos de evolução(...)”,
XIII.-o que corresponde a uma taxa de alcoolémia entre 2,0 e 3,0 g/litro.
XIV.-O relatório referente ao mais recente internamento que se juntou como DOCUMENTO Nº 12 ao RI, de 11 de Janeiro de 2021, demonstra que se mantêm as referidas patologias anteriormente diagnosticadas, entre elas a sempre mencionada doença hepática crónica de etiologia etílica,com referência a prescrições não cumpridas e agravamento da situação clínica.
XV.-Assim, as situações descritas nos referidos relatórios contrariam a afirmação contida na decisão em crise, nos termos da qual dos documentos clínicos juntos por aqueles nada resulta que a requerida não possa, livre e conscientemente, dar o seu consentimento – o que consubstancia, com o devido respeito, um erro notório de apreciação da prova.
XVI.-Se o Meritíssimo Tribunal a quo teve dúvidas quanto ao alcoolismo que nunca referiu na sentença, a verdade é que não as procurou esclarecer, decidindo liminar e verdadeiramente contra os interesses da Recorrida, mas em tom de quem a absolvesse de uma acusação não provada, num inusitado, por deslocado, “in dubio pro reo”.
XVII.- A própria fundamentação da decisão em crise que, com o devido respeito, é mais conclusiva do que explicativa, parece sobrelevar alegações não provadas da contestação à ponderação e à prova que se exigiria sobre situação configurada no RI, face pelo menos aos elementos clínicos.
XVIII.-E, repetimos, sem ao menos a realização de um meio de prova tendente a comprovar ou infirmar a preocupação alegada pelos Recorrentes, nem sequer um contacto directo com a Recorrida, a sentença em crise afirma a “plena capacidade” da Recorrida, “em liberdade e de modo responsável”,
XIX.-o que faz apesar de um alcoolismo tão grave e já indiciariamente demonstrado pelos relatórios médicos juntos (não contestados).
XX.-É que, para além do conhecimento científico que não interessou ao Digníssimo Tribunal, até pelas regras da experiência comum, qualquer pessoa presume facilmente que quem consome 360 g de álcool por dia (o equivalente a cinco garrafas de vinho branco, ou vinte cervejas por dia - são mais de cinco litros de cerveja/dia), apesar de doença hepática crónica descompensada, não tem plena capacidade para quase nada e, muito menos, tem liberdade ou responsabilidade.
XXI.-Não foi dada qualquer possibilidade aos Recorrentes nos autos para, além do conteúdo negligenciado do DOCUMENTO nº 4, provarem a quantidade do consumo diário de álcool da Recorrida, o que estes poderão fazer validamente e para além de qualquer dúvida, infelizmente, por inúmeros depoimentos, até o dos fornecedores das bebidas se necessário.
XXII.-O próprio tom da decisão em crise, que se lamenta, deixa antever um juízo de censura (moral) aos Recorrentes por, quem sabe, terem estes ousado procurar um meio que contornasse a vontade obstinada da mãe alcoólica, a bem de lhe assegurarem a sobrevivência, julgamento esse que foi feito sem provas e para além das existentes.
XXIII.-O Meritíssimo Tribunal a quo não considerou, nem sequer hipoteticamente, que o que motiva a Recorrida a opor-se ao procedimento, é o mesmo que a motiva a recusar o seu tratamento médico, a não moderar o seu consumo de álcool, a recusar as tentativas de cuidado da família e ainda o que a leva a não medir o alcance e as consequências dos negócios que faz e que, muito em breve, a conduzirão também à ruína económica.
XXIV.-Os presentes autos só terão utilidade à protecção da Recorrida se lhe puderem impor algum controlo, mesmo contra a sua vontade viciada (embora correctamente manifestada).
XXV.-Pois, se houvesse consentimento, o procedimento não seria necessário, tudo se trataria de forma natural, recatada, em família.
XXVI.-Aceitando-se que a novidade do regime jurídico do maior acompanhado e, especialmente, do instituto do seu          consentimento necessário    versus suprimento, levante dúvidas de aplicação que só o tempo e a prática dissiparão, não parece ainda assim razoável arredar da protecção do regime todos os casos de alcoolismo, de toxicodependência e de prodigalidade, nos quais a limitação à capacidade advém não de anomalia física ou psíquica, mas sim do comportamento condicionado pelo vício e pelos seus efeitos.
XXVII.-Convenhamos que muito dificilmente e só mesmo por excepção, um alcoólico, um toxicodependente ou um pródigo – na pendência da condição que o afecta – consente voluntariamente em ser limitado.
XXVIII.-quase só se revela útil o estatuto de maior acompanhado para a protecção de um alcoólico, de um toxicodependente ou de um pródigo, se lhe puder ser imposto de modo ponderadamente objectivo para seu benefício, apesar de contra a sua vontade manifestada.
XXIX.-A decisão de rejeitar liminarmente a possibilidade de suprir o consentimento, só com base na existência de inteligibilidade ou condições de entendimento intelectual da Recorrida (que até foi capaz de constituirummandatoforense,conforme refere a sentença), circunscreve a aplicação não voluntária do regime uma  anomalia  psíquica ou  de qualquer impossibilidade de entendimento, deixando sem qualquer protecção legal todos os que, apesar de “mentalmente ou intelectualmente capazes”, carecem de ser protegidos de si próprios, por não terem condições para formar livre e esclarecidamente a sua vontade, muito menos no processo de decisão do consentimento.
XXX.-Se nos merece inteira saudação a novidade deste regime de acompanhamento, por trazer um princípio de primazia da vontade do acompanhado, de subsidiariedade do acompanhamento ao dever natural de colaboração e de redução das medidas ao estritamente necessário, princípios perfeitamente justificáveis em casos como os da surdez, da mudez, da cegueira e de outros casos de limitações que antes eram penosamente estigmatizadas pela inabilitação, este aplauso ao novo regime assenta no facto de este deixar de suprir forçadamente a vontade a quem dela nunca esteve privado, (apesar das maiores ou menores dificuldades no seu exercício).
XXXI.-Mas, sob pena de pervertemos a flexibilidade e a utilidade do regime, o mesmo princípio de primazia da vontade não poderá actuar como o instrumento de abandono à sua má sorte de todos quantos não são livres na formação da sua vontade, apesar de nenhuma dificuldade terem no seu exercício.
XXXII.-O alcoólico, o toxicodependente e o pródigo (entre outros) estão sempre condicionados pelos respectivos vícios de comportamento a recusarem tudo quanto entendam que pode limitar a satisfação dos seus vícios.
XXXIII-Todos os três casos (como o dos autos), apesar de terem a vontade completamente sequestrada, na maioria das situações concretas, terão as condições mentais e intelectuais necessárias para compreender o que está em causa num processo de acompanhamento de maior, assim como, as mais das vezes, serão capazes de se impor a si próprios até algum intervalo de abstinência dos vícios ou mesmo uma simples redução do consumo, para convencer quem for necessário convencer de que estão em pleno uso das ditas “faculdades mentais”, exercendo plenamente o direito de se oporem (condicionadamente) ao processo.
XXXIV.-Ora, se o instituto do consentimento necessário do beneficiário não puder ser suprido por razão de alcoolismo, de toxicodependência, de prodigalidade ou de qualquer outra situação crónica que afecte a autonomia da vontade, integrando o conceito de “outro motivo atendível”, na acepção do nº 2 do artigo 141º do C. Civil, então só muito raramente, e por excepção, é que estes casos poderão encontrar a protecção de que necessitam no novo regime legal de acompanhamento.
XXXV.-A maioria destes casos, por consequência directa do vício da vontade de que padecem ficarão, por este entendimento da decisão em crise, remetidos a uma situação de vazio jurisdicional,
XXXVI.-o que configura, certamente, uma violação do princípio constitucionalmente consagrado da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
XXXVII.-Parece, aliás, uma bizarria jurídica que seja, simultaneamente, o próprio fundamento concreto do recurso à tutela jurisdicional (o de estar a formação da vontade do indivíduo viciada por alcoolismo crónico), o próprio obstáculo dirimente à tutela efectiva dos direitos individuais em causa.
XXXVIII.-O princípio da primazia da vontade, que deverá ser absoluto em relação a quem da mesma é titular e senhor, pressuporá necessariamente que a vontade primaz é livre, formada de modo são, natural e incondicionado (apesar das dificuldades de exercício de que possa sofrer),
XXXIX.-pois, quando por vício comportamental crónico assim não se passa, deixa tal primazia de fazer sentido, na medida em que passa a ser uma primazia da vontade sobre a saúde, sobre a solvabilidade, sobre o sustento e sobre o bem estar do seu titular
XL.-o que conduz a um resultado perverso, contraditório ao espírito do legislador do regime do maior acompanhado e inconstitucional por violação do princípio tutela da jurisdição efectiva.
Assim, requer-se muito respeitosamente a V. Exas. que, debruçando-se sobre a questão levantada, esclareçam que o alcoolismo da Recorrida integra, na acepção da segunda parte do artigo 141º 2 do Código Civil, um fundamento atendível para o suprimento da prestação do seu consentimento nos autos, que está o alcoolismo suficientemente indiciado nos autos, considerando nula a sentença proferida, por erro na apreciação da prova e poralta de fundamentação, ordenando   ao Meritíssimo  Tribunal   a     quo o prosseguimento dos autos, com as diligências de prova requeridas pelas partes e mais as que entender necessárias ao efectivo conhecimento e regulação da situação».
A requerida apresentou contra-alegações em que pugna pela confirmação da decisão impugnada.
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Constitui questão decidenda saber se se devem considerar preenchidos os pressupostos de que a lei faz depender o suprimento da falta de autorização da beneficiária ou se é necessário realizar diligências em ordem a apurar tais pressupostos.
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Constitui matéria de facto relevante a que consta do relatório supra e para o qual se remete.
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Do direito
1.- Comece-se por realçar o que dispõem os artigos Artigo 138.º e 140.º CC :
Artigo 138.º
Acompanhamento
O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.
Artigo 140.º
Objetivo e supletividade
1-O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.
2-A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.
Quer isto dizer que o objectivo perseguido pelo processo especial de acompanhamento de maiores, como ainda recentemente foi frisado no Ac. do STJ, de 11.02.2021, Processo n.º 76/15.6T8ALJ.G1.S1, www.dgsi.pt, é a satisfação do interesse do maior, com razão chamado de beneficiário das medidas no seu âmbito decretáveis (artigo 145.º CC) e não quaisquer outros motivos descentrados da pessoa daquele beneficiário.
Como diz Pedro Callapez «uma das pedras angulares desta reforma [do regime jurídico da incapacidade dos maiores] é uma ideia de intervenção mínima, traduzida no reforço do princípio da necessidade, devendo o âmbito das medidas de protecção a decretar ser limitado ao estritamente necessário para assegurar a protecção dos interesses do beneficiário não atingindo situações em que este tem capacidade de atuação autónoma…» (´´Acompanhamento de maiores´´, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coord.), Processos Especiais, Vol I, AAFDL, Lisboa, 2020: 99). 
 
A propósito refere Carlos Ferreira de Almeida:
“A seleção e a graduação das medidas de acompanhamento são flexíveis e devem ter em conta, em cada decisão judicial pessoalmente adequada, os objetivos e os princípios do instituto: autonomia, bem-estar (artigo 140º, nº 1, 1ª parte) e dignidade do acompanhado, com os consequentes princípios de supletividade (artigo 140º, nº 233) ou subsidiariedade, necessidade (artigo 145º, nº1) e proporcionalidade”(“Capacidade e incapacidades contratuais dos maiores acompanhados”, Revista de direito comercial. Edição especial — Liber amicorum Professor Doutor Pedro Pais de Vasconcelos, 2020, pp. 1051 e s. (pp. 1065-1066).

Por sua vez, António Pinto Monteiro afirma:
“Efetivamente, este é o objectivo do acompanhamento do maior, destinado a assegurar o bem-estar deste, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres (…).
Essa preocupação pelo bem-estar e recuperação do acompanhado está também presente nos deveres de cuidado e diligência que, na “concreta situação”, o acompanhante deve respeitar (art.º 146.º). Atente-se na referência permanente à situação concreta de cada deficiente, adequando as medidas a adoptar a cada caso concreto, bem longe da incapacidade geral do regime dos interditos. Mas em que consiste ou se traduz o acompanhamento? É fundamental, a este respeito, atender ao disposto no art.º 145.º, norma que evidencia bem as vantagens deste novo regime, em confronto com o regime anterior: o regime do acompanhamento goza de maior flexibilidade – rejeita o tudo ou nada da interdição –, respeita, sempre que possível, a vontade do beneficiário e a sua autodeterminação, limita-se ao necessário e permite ao tribunal escolher e adequar, em cada situação concreta, as medidas que melhor possam contribuir para alcançar o seu objectivo, que é, repete-se, o de assegurar o bem-estar, a recuperação e o pleno exercício da sua capacidade de agir” (“Das incapacidades ao maior acompanhado – Breve apresentação da Lei n.º 49/2018”, in: AA.VV., O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Centro de Estudos Judiciários – Coleção Formação Contínua, 2019: 35)
2.-Preceitua o artigo 141º CC: 1. O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
2.-O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível.
3.-O pedido de suprimento da autorização do beneficiário pode ser cumulado com o pedido de acompanhamento.

A propósito da legitimidade activa, opina Teixeira de Sousa:
«A hipótese em que o acompanhamento é requerido pelo cônjuge ou unido de facto ou por um parente sucessível do beneficiário merece alguma atenção. Antes de mais, importa ter presente que a autorização concedida pelo beneficiário ao cônjuge, ao unido de facto ou ao parente sucessível nada tem a ver com uma autorização para o representar na acção. O cônjuge, o unido de facto e o parente sucessível não vão actuar como representantes, mas antes como partes, isto é, como requerentes do processo de acompanhamento de maiores. A situação não é, assim de representação, mas de substituição processual voluntária: o beneficiário é a parte substituída e o cônjuge, o unido de facto ou o parente sucessível a parte substituta.
Sendo junta ao processo a autorização do beneficiário, cabe ao tribunal a importante tarefa de verificar se esse beneficiário está em condições de a conceder ao seu cônjuge ou unido de facto ou ao seu parente. Trata-se de um importante controlo que o tribunal deve realizar de forma tão minuciosa quanto possível, dado que não se pode partir do princípio nem que o autorizante está em condições de conceder a autorização, nem de que esse autorizante estando em condições de o fazer, quis efectivamente conceder essa autorização. Os poderes inquisitórios que são atribuídos ao tribunal em matéria de facto e de prova pela remissão constante do artigo 891.º, n.º 1, [CPC] para o regime dos processos de jurisdição voluntária podem ser aqui muito relevantes.
b)- A autorização do cônjuge, do unido de facto e do parente sucessível pode ser suprida pelo próprio tribunal ao qual é requerido o pedido de acompanhamento (art.º 141, n.º 2, CC; art.º 892.º,2). O suprimento da autorização deve ser concedido quando o beneficiário não o possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe fundamento atendível para o conceder (art.º 141.º, n.º 2, CC). Portanto, se o beneficiário não estava em condições de dar autorização ao seu cônjuge, unido de facto ou parente sucessível, qualquer destes pode requerer a medida de acompanhamento e requerer ao mesmo tempo, o suprimento da autorização do beneficiário.
Isto significa que cabe sempre ao tribunal controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário. Repete-se aqui o que acima se disse sobre o controlo da concessão de autorização: também o suprimento da falta de autorização do eventual beneficiário deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que  a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização» («O regime de acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais», AA.VV., O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Centro de Estudos Judiciários – Coleção Formação Contínua, 2019: 47).
3.-A doença ligada ao consumo excessivo de álcool não é uma doença qualquer. Como refere o psicólogo clínico Mário Marques, o alcoolismo «é uma doença com forte impacto no funcionamento físico e psicológico, compromete o modo de agir da pessoa doente e com isso todas as valências de vida».
Os requerentes invocaram que a eventual beneficiária padece cronicamente desta doença com repercussões disruptíveis na condução da sua vida, designadamente na vertente da administração dos bens da maior.
Nada foi indagado a esse respeito, o que, seguindo a posição adoptada por Miguel Teixeira de Sousa acima referida, podia e devia ter sido feito.
Justifica-se que o tribunal controle se se justifica ou não suprir a falta de autorização da eventual beneficiária do acompanhamento, designadamente através de uma perícia médico-psiquiátrica, a realizar numa unidade de alcoologia especializada na prevenção e tratamento de comportamentos aditivos, para apurar se a mãe dos requerentes se pode considerar doente por efeito do consumo excessivo de álcool, se sim, qual o estado de gravidade de tal doença e se esse estado se pode considerar, e em que medida, disruptivo de uma normal condução da vida e comprometedor da capacidade de autorizar livre e conscientemente o acompanhamento, sem prejuízo de outras diligências que o tribunal, ouvidas as partes, entenda necessárias, mas sem comprometer a natureza célere do processo.
Pois bem: como o primeiro grau tribunal deixou de realizar tais diligênciase não podendo esta Relação substituir-se ao tribunal recorrido, justifica-se a anulação da decisão recorrida e a baixa do processo ao primeiro grau para os referidos efeitos (artigos 665.º e 615.º, 1, d)).
Na decisão a proferir, após essas diligências, deverá o tribunal fixar os factos que fundamentam tal decisão com respectiva motivação.
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Pelo exposto acordamos em julgar procedente o recurso e em anular a decisão recorrida, ordenando o prosseguimento do processo com a realização da perícia acima aludida e demais diligências julgadas necessárias.
Custas pela recorrida.
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Lisboa,09.09.2021



Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura