Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5539/18.9T8FNC.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO
do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. No regime de acompanhamento de maiores, a aplicação de uma medida de pura substituição da vontade do acompanhado só ocorrerá em casos excecionais.
II. De todo o modo, mesmo que a representação seja determinada em termos genéricos, em regra o beneficiário poderá celebrar por si os negócios da sua vida corrente e manterá a capacidade de exercício no tocante a direitos pessoais (casar, perfilhar, adotar, exercer as responsabilidades parentais, consentir na sujeição a tratamentos médicos, fixar residência).
III. Sendo fixada à requerida um regime de representação geral, e podendo a aceitação de liberalidades acarretar, além de encargos, despesas, é adequado o reconhecimento do direito da requerida a decidir acerca da aceitação ou rejeição das liberalidades mediante prévio aconselhamento junto da acompanhante nomeada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 09.10.2018 o Ministério Público intentou ação especial de interdição em relação a Susana, solteira, residente no Centro de Reabilitação (…).
Em síntese, o requerente alegou que a requerida, que nasceu a 01.10.1979, sofre de debilidade mental ligeira/moderada de caráter permanente, que determina uma incapacidade total para gerir a sua pessoa e bens.
O requerente terminou pedindo que fosse decretada a interdição por anomalia psíquica da requerida.
Indicou tutor e membros do Conselho de Família.
Juntou documentos, entre os quais uma “Declaração Médica”.
Procedeu-se à legal publicitação.
Foi lavrada certidão negativa de citação, por o Sr. Oficial de Justiça ter constatado que a requerida não se encontrava totalmente capacitada psiquicamente para receber a nota de citação.
Foi nomeada, como curadora provisória da requerida, a Irmã Superiora da instituição onde a requerida residia.
Citada, a Sr.ª curadora provisória veio declarar que nada opunha à ação e prescindia do prazo para contestar.
A solicitação do tribunal, a Ordem dos Advogados indicou defensora oficiosa à requerida, a qual, citada, nada disse.
Tendo entrado em vigor a Lei n.º 49/2018, de 14.8, os autos foram com vista ao Magistrado do Ministério Público, o qual promoveu que se designasse data para audição pessoal da beneficiária.
Em 08.3.2019 foi proferido despacho convidando o requerente a complementar a petição inicial, nomeadamente requerendo a medida ou medidas de acompanhamento que considerasse adequada(s) ao caso.
Em 13.3.2019 o Ministério Público requereu que a medida de acompanhamento fosse o regime de representação geral, com incapacidade para testar.
Em 15.5.2019 procedeu-se à audição da requerida.
Foi proferido despacho em que, “[f]ace aos elementos dos autos e a audição pessoal e direta do beneficiário”, se dispensou, por desnecessária, a realização de exame pericial e se ordenou que os autos fossem com vista ao Ministério Público.
O Ministério Público requereu que o cargo de acompanhante da requerida fosse desempenhado pela Irmã Superiora do Centro da Sagrada Família. Em relação à medida de acompanhamento, o Ministério Público requereu que fosse aplicado o regime da representação geral, com incapacidade para testar.
Em 31.7.2019 foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, nos termos do artº. 900 do CPC decide-se:
1. Julgar a presente acção procedente por provada e, em consequência:
1.1. Declarar, Susana (…), beneficiária de medida de acompanhamento, sujeita ao regime da representação geral (cfr. artºs. 138 e 145, nº 2, al. b), 1ª. parte, do Código Civil).
1.2. Designar a Irmã Superiora da instituição Centro de Reabilitação (…), sito no (…), cargo actualmente ocupado pela Irmã Superiora, A (…), acompanhante da beneficiária (cfr. artº 143, nº 2, al. i) do Código Civil);
1.3. Atribuir ao acompanhante designada em 1.2., poderes de representação geral do beneficiário, que segue o regime da tutela, com as necessárias adaptações por força da entrada em vigor da Lei nº 49/2018, de 14/8, designadamente os poderes para receber pensões e/ou subsídios e geri-los em benefício e de acordo com as necessidades da beneficiária.
1.4. Consignar que a acompanhante designada em 1.2., no exercício da sua função, deverá privilegiar o bem estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação, devendo manter um contacto permanente com aquela, visitando-a, no mínimo, uma vez por semana (cfr. artº. 146 do Código Civil)
1.5. Dispensar a nomeação de Conselho de Família (cfr. artº 900, nº 2 do C.Proc. Civil ).
1.6. Consignar que, para os efeitos do disposto no artº. 2189, al. b) do Código Civil, a beneficiária é incapaz de testar.
1.7. Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 5º., nº 3 da Lei 36/98, de 24/7 (Lei de Saúde Mental), a situação de acompanhamento de maior, declarada pela presente sentença, não faculta o exercício directo de direitos pessoais.
1.8. Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 4º, nº 1 do Dec. Lei nº 272/2001, de 13/10, o acompanhado não pode aceitar ou rejeitar liberalidades a seu favor.
1.9. Consignar que o tribunal autoriza o internamento da beneficiária no Centro de Reabilitação (…), sito no (…), onde actualmente reside (cfr. artº. 148, nº 1 do Código Civil).
1.10. Consignar que não existe notícia de que o beneficiário tenha outorgado testamento vital e/ou procuração para cuidados de saúde (cfr. artº. 900, nº 3 do CPC e artºs4º, al. b), 14, nº 3 e 16 da Lei 25/2012, de 16/7).
1.11. Consignar que a incapacidade da Requerida se verifica desde a nascença ( cfr. artº. 900, nº 1 do CPC ).
1.12. Fixar em cinco anos o prazo de revisão da medida aplicada, nos termos e para os efeitos previstos no artº. 155 do Código Civil.
1.13. Determinar a publicação da presente sentença em sítio oficial (artº. 893 nºs 1 e 2 do CPC e artº. 153, nº 1 do CC ).
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Fixa-se à causa o valor de 30.000,01 € (artºs. 296, nº 1 e 303, nº 1 do CPC).
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Sem custas, face à isenção de que beneficia – artº. 4º. Nº 1, al. l) do RCP.”
O requerente apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões (cuja numeração, inexistente, acrescentámos):
1. O Regime Jurídico de Acompanhamento a Maior Acompanhado, instituído pela Lei 49/2018 de 14de Agosto, tem como objectivo, plasmado no nº 1 do artigo 140º do Código Civil, o bem-estar do acompanhado e a sua recuperação, em pleno exercício de todos os seus direitos,
2. constituindo a restrição de tais direitos um regime excepcional, cuja imposição, por sentença, deverá justificar-se mediante cada situação concreta.
3. Por isso, o nº 1 do artigo 145º do Código Civil limita o acompanhamento ao estritamente necessário e o nº 1 do artigo 147º do mesmo Diploma Legal, estatui, como princípio geral, a liberdade no exercício dos direitos pessoais dos acompanhados, tais como os de casar, de estabelecerem relações de união de facto, de procriarem, perfilharem ou de adotarem, o de cuidarem e educarem os filhos, o de escolherem profissão, deslocarem-se no país ou estrangeiro, fixarem residência ou domicílio, de testar e de estabelecerem relações com quem entenderem.
4. Os direitos fundamentais pessoais estão constitucionalmente protegidos na Parte I, Título II da Constituição da República Portuguesa.
5. Os direitos pessoais não especificados são garantidos pelo artigo 26º desse Diploma Legal Fundamental,
6. entre estes, o de aceitar liberalidades a seu favor, direito que é retirado, de todo, à requerida, sendo que, para que tal restrição fosse aplicada em seu benefício, bastava ser inibida de aceitar liberalidades com encargos.
7. O direito de os Maiores Acompanhados constituirem família e de contraírem casamento, em condições de plena igualdade também se encontra constitucionalmente protegido, através do disposto nos artigos 67º e 36º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
8. A liberdade de deslocação e de escolha de domicílio, a que o nº 2 do artigo 147º do Código Civil também faz alusão, encontra-se protegida, expressamente, no artigo 44º da Constituição da República Portuguesa, que, garante a "todos os cidadãos", "o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte".
9. O direito à integridade fisica e moral encontra-se previsto no artigo 25º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e o direito de o portador de doença mental poder decidir sobre a prática, no seu corpo, de actos de saúde decorre do artigo 5.º da Lei de Saúde Mental.
10. Não obstante, a sentença que determinou a aplicação de medida de acompanhamento à requerida, impede-a de exercer tais direitos pessoais. Ou quaisquer outros.
11. E tais decisões, restritivas dos direitos pessoais fundamentais da requeri da, foram adoptadas sem se alicerçarem em qualquer facto que o fundamente, ou razão de direito, que se encontre descrito na sentença, ou tenha sido alegado na petição inicial que deu origem ao presente processo.
12. Pois que, dos factos dados tidos como relevantes "para a decisão a proferir", não resulta, e nem se retira essa dedução da sentença, que a requerida se encontre incapaz de compreender e de exercer os direitos e deveres inerentes ao casamento, a uma relação de união de facto, ou, ainda, que não tenha maturidade para reproduzir ou assumir responsabilidades parentais, escolher a sua profissão ou residência ou para decidir sobre a prática, no seu corpo, dos actos de saúde descritos na Lei de Saúde Mental ou que sofra de alguma incapacidade que a impeça de beneficiar de liberalidades cuja aceitação não a prejudique.
13. A perda plena dos direitos pessoais da requerida, de acordo com a sentença, baseou-se no mero facto de a requerida padecer da doença que deu causa à instauração da acção de acompanhamento de maior, e que, no caso, se trata a uma debilidade mental ligeira/moderada.
14. Ora, se tal bastasse para impedir um acompanhado de exercer direitos pessoais, a sua perda estaria consagrada na lei, como efeito automático da aplicação de tal medida, em vez de constituir uma excepção à regra geral do livre exercício dos direitos pessoais, estipulada no nQ 1 do artigo 147Q do Código Civil.
15. Tal juízo conclusivo é manifestamente insuficiente para se decidir por uma perda ampla dos direitos pessoais da requerida, a quem se pretende aplicar uma medida legal que a proteja e beneficie e não que lhe retire direitos fundamentais, pelo mero facto de padecer de uma doença.
16. Para se determinar a perda total de direitos legal e constitucionalmente protegidos, seria necessário e fundamental, demonstrar-se a existência de concretos impedimentos no exercício de cada um desses direitos e que devessem implicar a sua perda.
17. O que não resulta da sentença.
18. A sentença padece, assim, de total fundamentação de facto e de direito, incumprindo o dever de fundamentação imposto pelos artigos 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 154.º n.º 1 do Código de Processo Civil, violando, ainda, o disposto nos artigos 140.º n.º 1, 145.º nº 1, 147º nº 1 do Código Civil e os artigos 26º, 36º nº 1, 67º, 25.º n.º 1, 44.º da Constituição da República Portuguesa, ao restringir os direitos pessoais do requerido.
Pelo exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se a nulidade da sentença, por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil e determinando-se a sua substituição por outra que não restrinja os direitos pessoais da requerida.
Não houve contra-alegações.
A Sr.ª juíza a quo pugnou pela inexistência da nulidade imputada à sentença.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes: nulidade da sentença; violação dos direitos pessoais da requerida.
Primeira questão (nulidade da sentença)
O apelante entende que a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação, incumprindo o disposto nos artigos 205.º n.º 1 da CRP e 154.º n.º 1 do CPC.
Sobre esta temática se pronunciou, recentemente, o acórdão do STJ, de 09.4.2019 (processo 4148/16.1T8BRG.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt), no qual se sintetiza e reitera o entendimento que tem prevalecido na jurisprudência, com o qual convergimos, e que, por facilidade, se transcreve:
É sabido que o dever de fundamentação das decisões que não sejam de mero expediente tem consagração constitucional no n.º 1 do art.º 205.º da CRP, ao dispor que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
O art.º 154.º do CPC também dispõe no n.º 1 que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
Esta fórmula é redutora, pois o dever de fundamentação existe relativamente a todas as decisões que não sejam despachos de mero expediente (cfr. art.º 152.º, n.º 4, do CPC), por imperativo constitucional, mesmo que aparentemente não estejam abrangidas por aquele preceito.
O dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, mesmo daquelas de que não cabe recurso, assenta no pressuposto de que a decisão não é, nem pode ser, um acto arbitrário, mas a concretização da vontade abstracta da lei ao caso submetido à apreciação jurisdicional, e na necessidade de as partes serem não só esclarecidas mas convencidas do seu acerto, uma vez que o seu valor extrínseco flui da sua motivação, cuja função pedagógico-social se não pode subestimar, para além de, admitindo recurso, necessitarem de saber a razão ou razões do decaimento das suas pretensões para as poderem impugnar.
A violação do dever de fundamentação gera a nulidade nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC ao preceituar que a sentença é nula quando “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Também é certo e sabido que, não obstante o aludido dever de fundamentação, a doutrina e a jurisprudência dominantes têm vindo a entender que só a falta absoluta de motivação, que não a meramente deficiente ou medíocre, conduz àquela nulidade.
Quanto aos fundamentos de facto, não é a falta de exame crítico das provas que basta para preencher aquela nulidade, tornando-se antes necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão.
Relativamente aos fundamentos de direito, importa salientar que a fundamentação contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador e que não é indispensável a especificação das disposições legais que fundamentam a decisão. Fundamental é que sejam mencionados os princípios, as regras, as normas em que a decisão se apoia.
Trata-se de um vício estrutural da sentença, cuja causa, em rigor, seria caso de anulabilidade e não de verdadeira nulidade, devendo entender-se esta no sentido lato de invalidade, a qual apenas ocorre quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, em desrespeito pelo disposto no art.º 607.º, n.º 3, do CPC.”
É essa absoluta falta de fundamentação que acarreta a nulidade prevista no art.º 615.º n.º 1 alínea b) do CPC (quando se “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a sentença”).
Volvendo à sentença sub judice, nela encontramos a indicação dos factos julgados provados, a indicação dos preceitos legais que se entende serem aplicáveis e ainda enquadramento doutrinário, após o que se conclui pelo dispositivo, supra transcrito.
A sentença não padece do apontado vício de falta de fundamentação.
Questão diversa será a eventual deficiência de fundamentação, que não suporte o julgado, impondo-se solução de mérito diversa, ou acarrete dúvida insanável acerca de aspetos relevantes da matéria de facto, implicando a anulação da sentença, nos termos das alíneas c) e d) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC.
Essa é vertente a percorrer na apreciação da segunda questão.
Segunda questão (violação dos direitos pessoais da requerida)
Na sentença recorrida foi dada como provada a seguinte
Matéria de facto
1. A Requerida Susana (…), nasceu a 1/10/1979, na freguesia de São Pedro, concelho do (…), é solteira, residente no Centro de Reabilitação (…), localizado no (…), onde se encontra internada desde 1990.
2. É filha de (…) e de (…).
3. A Requerida sofre de debilidade mental ligeira/moderada (F.71-CID-10), com marcado atraso do desenvolvimento, desde a nascença, de carácter permanente.
4. Tal doença limita a Requerida em múltiplas áreas do seu funcionamento e autonomia.
5. A Requerida tem orientação no tempo e no espaço.
6. A Requerida faz a sua higiene pessoal sozinha.
7. A Requerida tem dificuldade de aprendizagem, não é capaz de ler nem de escrever, nem de assinar o seu nome completo, apenas sabendo escrever o seu primeiro nome.
8. Conhece o dinheiro e utiliza-o em compras simples, mas tem dificuldade no cálculo de trocos.
9. A doença que afecta a requerida impede que seja capaz de suprir as suas necessidades diárias, carecendo de supervisão designadamente para cuidar da sua saúde e para gerir a sua pessoa e bens.
10. A Requerida não tem acompanhamento familiar, embora tenha uma ligação próxima com o irmão Joel.
11. A Requerida reside na Instituição Centro de Reabilitação (…) desde 1990.
12. Não existe notícia de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde.
O Direito
À data em que foi proposta a presente ação, o deferimento da providência promovida acarretaria, de per si, a quase morte civil da requerida. Com efeito, antes da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14.8, que criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, o decretamento da interdição por anomalia psíquica retirava automaticamente ao interditado, não só a capacidade de exercício quanto aos negócios de natureza patrimonial, como, bem assim, a titularidade de direitos pessoais como os de contrair matrimónio (vide artigos 1600.º e 1610.º al. b), do CC), de perfilhar (art.º 1850.º n.º 1 do CC), de testar (art.º 2188.º e 2189.º al. b) do CC), exercer as responsabilidades parentais (1913.º n.º 1 al. b) do CC) e, consequentemente, de adotar (neste sentido, v.g., Raúl Guichard Alves, “Alguns aspectos do instituto da interdição”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Direito e Justiça, Lisboa, vol. 9, tomo 2, 1995, pp. 131-168, publicado também no e-book do CEJ, Interdição e inabilitação, maio de 2015, pág. 68 (www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Interdicao_inabilitacao.pdf), consultado em 02.12.2019). Além disso, ao interdito por anomalia psíquica seria negada a atribuição de direitos ou benefícios fundados numa situação de união de facto (art.º 2.º al. b) da Lei n.º 7/2001, de 11.5, na redação introduzida pela Lei n.º 23/2010, de 30.8.).
Este regime era criticado pela doutrina, que pugnava por um modelo flexível e menos penalizador, adequado ao pleno reconhecimento dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência, em harmonia com a Constituição da República Portuguesa e com os pertinentes instrumentos de direito internacional, nomeadamente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em Nova Iorque em 30.3.2007 e aprovada e ratificada por Portugal respetivamente pela Resolução da A.R. n.º 56/2009, de 30.7 e pelo Decreto do Presidente da República, n.º 71/2009, de 30.7. (cfr., v.g., além do citado texto de Raúl Guichard Alves, Jorge Duarte Pinheiro, “As pessoas com deficiência como sujeitos de direitos e deveres. Incapacidades e suprimento – a visão do jurista”, publicado em “O Direito”, ano 142, n.º 3 (2010), pp. 465-480, também publicado no mencionado e-book do CEJ, Interdição e inabilitação, maio de 2015, pp. 28-36; Alexandra Chícharo das Neves, “Críticas ao regime da capacidade de exercício da pessoa com deficiência mental ou intelectual – a nova concepção da pessoa com deficiência”, in Revista do Ministério Público, n.º 140, out. a dez. 2014, pp. 79-120, também publicado no citado e-book do CEJ, Interdição e inabilitação, maio de 2015, pp. 126-157; Geraldo Rocha Ribeiro, “Os poderes do representante legal nas situações de internamento “voluntário” à luz do direito português”, versão inicial publicada na RMP n.º 138, abril a junho de 2014, pp. 63-94, versão consultada no mencionado e-book do CEJ, Interdição e inabilitação, maio de 2015, pp. 164-184).
Tal necessidade de profunda reforma do regime então em vigor justificou a elaboração do estudo que veio a alicerçar o atual modelo, cujo texto, da autoria de António Menezes Cordeiro, “Da situação jurídica do maior acompanhado. Estudo de política legislativa relativo a um novo regime das denominadas incapacidades dos maiores”, foi publicado na Revista do Direito Civil, III/3, 2018, p. 473 e ss e está acessível em linha, in (www.smmp.pt/wp-content/uploads/Estudo_Menezes-CordeiroPinto-MonteiroMTS.pdf), consultado em 02.12.2019.
Aí se pugnou por um sistema monista, isto é, assente num único modelo de “incapacitação” de maiores (contrariamente ao anterior, que era dualista – interdição e inabilitação) e, em contraposição com o modelo da substituição (em que a vontade que releva não é a do beneficiado, mas a do representante, o tutor), pelo sistema do acompanhamento, em que o visado – o acompanhado - é apenas apoiado, isto é, a sua vontade, que é aquela que releva, é formada e manifestada com o apoio de uma terceira pessoa, o acompanhante. Este sistema de acompanhamento permite as necessárias graduações, até àquelas situações em que ao acompanhado não é possível formar ou manifestar qualquer vontade (deficiente profundo, doente com Alzheimer em estado adiantado, pessoa em coma), funcionando, aí, apenas a representação ou substituição.
Por outro lado, optou-se por um modelo “estrito”, isto é, sóbrio, despido de “minudências” (termo utilizado no estudo, p. 104), tido como mais adequado a um regime que se pretende flexível e adequado às circunstâncias.
Estes aspetos foram vertidos na Proposta de Lei n.º 110/XIII, apresentada na Assembleia da República em 09.02.2018, e em cuja Exposição de Motivos se realçam as seguintes passagens:
Os fundamentos finais da alteração das denominadas incapacidades dos maiores – ordenada pela sua integração harmónica no Código Civil, assim obstando a quebras sistemáticas que dificultem a sua aplicação e façam perigar os objetivos prosseguidos - são, em síntese, os seguintes: a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar; a flexibilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação; a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais; a agilização dos procedimentos, no respeito pelos pontos anteriores; a intervenção do Ministério Público em defesa e, quando necessário, em representação do visado.
Para prosseguir estes objetivos, opta-se, por um lado, por um modelo monista – em claro detrimento de um modelo de dupla via ou múltiplo – por se considerar ser o dotado de maior flexibilidade e de amplitude suficiente, por compreender todas as situações possíveis, e por outro, por um modelo de acompanhamento e não de substituição, em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade. Por comparação com o regime atual, é radical a mudança de paradigma. Este modelo é o que melhor traduz o respeito pela dignidade da pessoa visada, que é tratada não como mero objeto das decisões de outrem, mas como pessoa inteira, com direito à solidariedade, ao apoio e proteção especial reclamadas pela sua situação de vulnerabilidade.”
(…)
Pelo seu relevo, sublinham-se as alterações seguintes:
A opção por um modelo monista, material, estrito e de acompanhamento caracterizado por uma ampla flexibilidade, permitindo ao juiz uma resposta específica e individualizada, adequada à situação concreta da pessoa protegida; a possibilidade de o maior acompanhado, salvo decisão expressa do juiz em contrário, manter liberdade para a prática de diversos atos pessoais, designadamente: liberdade de casar, de se unir de facto, de procriar, de perfilhar, de adotar, de exercer as responsabilidades parentais, de se divorciar e de testar; a qualificação do processo como de jurisdição voluntária e urgente; a obrigatoriedade de o juiz contactar pessoalmente com o beneficiário antes de decretar o acompanhamento, e a expressa possibilidade de se proceder à revisão, à luz do novo regime, das interdições e inabilitações decretadas no pretérito, a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público” (sublinhado, a negrito, nosso).
A aludida Proposta de Lei deu origem à citada Lei n.º 49/2018, de 14.8, que criou o regime jurídico do maior acompanhado, alterando, em conformidade, o Código Civil e o Código de Processo Civil, e outros diplomas avulsos.
Com interesse para o caso sub judice, o Código Civil passou a prever o seguinte:
Artigo 138.º
Acompanhamento
O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”
Artigo 139.º
Decisão judicial
1 - O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.
2 – (…).”
Artigo 140.º
Objetivo e supletividade
1 - O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.
2 - A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.”
Artigo 141.º
Legitimidade
1 - O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
2 - O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível.
3 - O pedido de suprimento da autorização do beneficiário pode ser cumulado com o pedido de acompanhamento.”
Artigo 143.º
Acompanhante
1 - O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.
2 - Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:
a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto;
b) Ao unido de facto;
c) A qualquer dos pais;
d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado;
e) Aos filhos maiores;
f) A qualquer dos avós;
g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;
h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;
i) A outra pessoa idónea.
3 - Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores.”
Artigo 145.º
Âmbito e conteúdo do acompanhamento
1 - O acompanhamento limita-se ao necessário.
2 - Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:
a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
3 - Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.
4 - A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.
5 - À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes.
Artigo 146.º
Cuidado e diligência
1 - No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.
2 - O acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada.”
Artigo 147.º
Direitos pessoais e negócios da vida corrente
1 - O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.
2 - São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.
Artigo 148.º
Internamento
1 - O internamento do maior acompanhado depende de autorização expressa do tribunal.
2 - Em caso de urgência, o internamento pode ser imediatamente solicitado pelo acompanhante, sujeitando-se à ratificação do juiz.”
Artigo 155.º
Revisão periódica
O tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.”
A regra de que o acompanhado goza em pleno dos direitos pessoais, salvo decisão judicial em contrário, tem repercussão em diversos outros preceitos, que foram correspondentemente alterados, de que se destacam os seguintes:
Artigo 1601.º
Impedimentos dirimentes absolutos
São impedimentos dirimentes, obstando ao casamento da pessoa a quem respeitam com qualquer outra:
a) A idade inferior a dezasseis anos;
b) A demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a decisão de acompanhamento, quando a sentença respetiva assim o determine;
c) O casamento anterior não dissolvido, católico ou civil, ainda que o respectivo assento não tenha sido lavrado no registo do estado civil.”
Artigo 1850.º
Capacidade
1 - Têm capacidade para perfilhar os indivíduos com mais de 16 anos, se não forem maiores acompanhados com restrições ao exercício de direitos pessoais nem forem afetados por perturbação mental notória no momento da perfilhação.
2 - Os menores não necessitam, para perfilhar, de autorização dos pais ou tutores.”
Artigo 1913.º
Inibição de pleno direito
1. Consideram-se de pleno direito inibidos do exercício das responsabilidades parentais:
a) Os condenados definitivamente por crime a que a lei atribua esse efeito;
b) Os maiores acompanhados, apenas nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o declare;
c) Os ausentes, desde a nomeação do curador provisório.
2 - Os menores não emancipados consideram-se de pleno direito inibidos de representar o filho e administrar os seus bens.
3. As decisões judiciais que importem inibição do exercício das responsabilidades parentais são comunicadas, logo que transitem em julgado, ao tribunal competente, a fim de serem tomadas as providências que no caso couberem.
Artigo 2189.º
Incapacidade
São incapazes de testar:
a) Os menores não emancipados;
b) Os maiores acompanhados, apenas nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine.”
Fora do Código Civil, vejam-se
Artigo 2.º da Lei n.º 7/2001, de 11.5 (Proteção das uniões de facto), com a redação introduzida pela Lei n.º 49/2018:
Excepções:
Impedem a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto:
a) Idade inferior a 18 anos à data do reconhecimento da união de facto;
b) Demência notória, mesmo com intervalos lúcidos e situação de acompanhamento de maior, se assim se estabelecer na sentença que a haja decretado, salvo se posteriores ao início da união;
c) Casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens;
d) Parentesco na linha recta ou no 2.º grau da linha colateral ou afinidade na linha recta;
e) Condenação anterior de uma das pessoas como autor ou cúmplice por homicídio doloso ainda que não consumado contra o cônjuge do outro.”
Artigo 5.º da Lei n.º 36/98, de 24.7 (Lei da Saúde Mental), com a redação introduzida pela Lei n.º 49/2018):
Direitos e deveres do utente
1 - Sem prejuízo do previsto na Lei de Bases da Saúde, o utente dos serviços de saúde mental tem ainda o direito de:
a) Ser informado, por forma adequada, dos seus direitos, bem como do plano terapêutico proposto e seus efeitos previsíveis;
b) Receber tratamento e protecção, no respeito pela sua individualidade e dignidade;
c) Decidir receber ou recusar as intervenções diagnósticas e terapêuticas propostas, salvo quando for caso de internamento compulsivo ou em situações de urgência em que a não intervenção criaria riscos comprovados para o próprio ou para terceiros;
d) Não ser submetido a electroconvulsivoterapia sem o seu prévio consentimento escrito;
e) Aceitar ou recusar, nos termos da legislação em vigor, a participação em investigações, ensaios clínicos ou actividades de formação;
f) Usufruir de condições dignas de habitabilidade, higiene, alimentação, segurança, respeito e privacidade em serviços de internamento e estruturas residenciais;
g) Comunicar com o exterior e ser visitado por familiares, amigos e representantes legais, com as limitações decorrentes do funcionamento dos serviços e da natureza da doença;
h) Receber justa remuneração pelas actividades e pelos serviços por ele prestados;
i) Receber apoio no exercício dos direitos de reclamação e queixa.
2 - A realização de intervenção psicocirúrgica exige, além do prévio consentimento escrito, o parecer escrito favorável de dois médicos psiquiatras designados pelo Conselho Nacional de Saúde Mental.
3 - Os direitos referidos nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 são exercidos pelos representantes legais quando os doentes sejam menores de 14 anos ou maiores acompanhados e a sentença de acompanhamento não faculte o exercício direto de direitos pessoais.”
Artigo 4.º do Dec.-Lei n.º 272/2001, de 03.10, com a redação introduzida pela Lei n.º 49/2018 (competência do Ministério Público e das conservatórias do registo civil, em relação a certos processos):
Aceitação ou rejeição de liberalidades em favor de incapazes
1 - São da competência do Ministério Público as decisões relativas a pedidos de notificação do representante legal para providenciar acerca da aceitação ou rejeição de liberalidades a favor de incapaz menor ou de maior acompanhado que, nos termos da sentença de acompanhamento, não o possa fazer pessoal e livremente.
2 - É aplicável o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo anterior, devendo o requerente justificar a conveniência da aceitação ou rejeição e indicar o prazo para o cumprimento.
3 - O despacho que ordenar a notificação marca prazo para o cumprimento.
4 - Se quiser pedir autorização para aceitar a liberalidade, o notificado formula o pedido no próprio processo de notificação, observando-se o disposto no artigo anterior e, obtida a autorização, no mesmo processo declara aceitar a liberalidade.
5 - Se, dentro do prazo fixado, o notificado não pedir a autorização ou não aceitar a liberalidade, o Ministério Público, depois de produzidas as provas necessárias, declara-a aceite ou rejeitada, de harmonia com as conveniências do menor ou do maior acompanhado.
6 - À aceitação ou rejeição de liberalidades em favor de menores ou de maiores acompanhados é aplicável o disposto no n.º 6 do artigo anterior.”
Como resulta do exarado supra, desejavelmente a aplicação de uma medida de pura substituição, ou seja, simplesmente de representação legal, só ocorrerá em casos excecionais, em que ao acompanhado falta, de todo, a vontade ou capacidade para entender e querer, ou ela está profundamente afetada, em termos tais que a pessoa está absolutamente impossibilitada de tomar decisões concernentes à sua pessoa e aos seus bens. Efetivamente, “tão prejudicial seria eliminar por sistema a capacidade de tomar decisões de uma pessoa com deficiência como atribuir plena capacidade de exercício a quem de facto carece dela” (António Pinto Monteiro, “Das incapacidades ao maior acompanhado. Breve apresentação da Lei n.º 49/2018”, in e-book do CEJ, “O novo regime jurídico do maior acompanhado”, fevereiro de 2019, pág. 33, em linha (www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf), consultado em 02.12.2019.
De todo o modo, mesmo que a representação seja determinada em termos genéricos, “continua a ser livre a celebração dos negócios da vida corrente, nos termos do artigo 147.º/1 CC, e continua [o acompanhado] a ter capacidade de exercício no tocante a direitos pessoais” (Mafalda Miranda Barbosa, “Dificuldades resultantes da Lei 49/2018, de 14.8”, in Revista Jurídica Luso-Brasileira, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano 5, (2019), n.º 1, pág. 1467, em linha (www.cidp.pt/revistas/rjlb/2019/1/2019_01_1449_1490.pdf), consultado em 02.12.2019). Os casos de exclusão total da capacidade de exercício serão “hipóteses excecionais e ainda assim determinadas pela necessidade comunicada pelo caso concreto” (Mafalda Miranda Barbosa, texto citado, pp. 1467 e 1468).
O indeclinável respeito pela dignidade e pelos direitos das pessoas com deficiência e, até aos limites do possível, pela sua autonomia, é reforçadamente exigido pela já mencionada Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Destacam-se os seguintes preceitos:
Artigo 1.º
Objecto
O objecto da presente Convenção é promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
As pessoas com deficiência incluem aqueles que têm incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que em interacção com várias barreiras podem impedir a sua plena e efectiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros.”
Artigo 5.º
Igualdade e não discriminação
1 — Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e nos termos da lei e que têm direito, sem qualquer discriminação, a igual protecção e benefício da lei.
2 — Os Estados Partes proíbem toda a discriminação com base na deficiência e garantem às pessoas com deficiência protecção jurídica igual e efectiva contra a discriminação de qualquer natureza.
3 — De modo a promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas para garantir a disponibilização de adaptações razoáveis.”
4 — As medidas específicas que são necessárias para acelerar ou alcançar a igualdade de facto das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminação nos termos da presente Convenção.”
Artigo 12.º
Reconhecimento igual perante a lei
1 — Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito ao reconhecimento perante a lei da sua personalidade jurídica em qualquer lugar.
2 — Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiências têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida.
3 — Os Estados Partes tomam medidas apropriadas para providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídica.
4 — Os Estados Partes asseguram que todas as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos. Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam- se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais medidas afectam os direitos e interesses da pessoa.
5 — Sem prejuízo das disposições do presente artigo, os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efectivas para assegurar a igualdade de direitos das pessoas com deficiência em serem proprietárias e herdarem património, a controlarem os seus próprios assuntos financeiros e a terem igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e asseguram que as pessoas com deficiência não são, arbitrariamente, privadas do seu património.”
De notar que a versão portuguesa do texto do segundo período do n.º 4 deste artigo 12.º enferma de erro grosseiro (como bem se notou no acórdão da Relação do Porto, de 26.9.2019, processo 13569/17.1T8PRT.P1, consultável em www.dgsi.pt). Com efeito, na versão oficial, em inglês, consta o seguinte: “Such safeguards shall ensure that measures relating to the exercise of legal capacity respect the rights, will and preferences of the person, are free of conflict of interest and undue influence, are proportional and tailored to the person’s circumstances, apply for the shortest time possible and are subject to regular review by a competent, independent and impartial authority or judicial body.” Na versão portuguesa consta o seguinte: “Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam- se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial.” Na versão portuguesa deve figurar, por ser o correto, o seguinte: “Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica respeitam os direitos, vontade e preferências da pessoa, estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam- se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial”.
Continuando a transcrever outros artigos relevantes da Convenção:
Artigo 14.º
Liberdade e segurança da pessoa
1 — Os Estados Partes asseguram que as pessoas com deficiência, em condições de igualdade com as demais:
a) Gozam do direito à liberdade e segurança individual;
b) Não são privadas da sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária e que qualquer privação da liberdade é em conformidade com a lei e que a existência de uma deficiência não deverá, em caso algum, justificar a privação da liberdade.
2 — Os Estados Partes asseguram que, se as pessoas com deficiência são privadas da sua liberdade através de qualquer processo, elas têm, em condições de igualdade com as demais, direito às garantias de acordo com o direito internacional de direitos humanos e são tratadas em conformidade com os objectivos e princípios da presente Convenção, incluindo o fornecimento de adaptações razoáveis.
Artigo 19.º
Direito a viver de forma independente e a ser incluído na comunidade
Os Estados Partes na presente Convenção reconhecem o igual direito de direitos de todas as pessoas com deficiência a viverem na comunidade, com escolhas iguais às demais e tomam medidas eficazes e apropriadas para facilitar o pleno gozo, por parte das pessoas com deficiência, do seu direito e a sua total inclusão e participação na comunidade, assegurando nomeadamente que:
a) As pessoas com deficiência têm a oportunidade de escolher o seu local de residência e onde e com quem vivem em condições de igualdade com as demais e não são obrigadas a viver num determinado ambiente de vida;
b) As pessoas com deficiência têm acesso a uma variedade de serviços domiciliários, residenciais e outros serviços de apoio da comunidade, incluindo a assistência pessoal necessária para apoiar a vida e inclusão na comunidade a prevenir o isolamento ou segregação da comunidade;
c) Os serviços e instalações da comunidade para a população em geral são disponibilizados, em condições de igualdade, às pessoas com deficiência e que estejam adaptados às suas necessidades.”
Artigo 23.º
Respeito pelo domicílio e pela família
1 — Os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efectivas para eliminar a discriminação contra pessoas com deficiência em todas as questões relacionadas com o casamento, família, paternidade e relações pessoais, em condições de igualdade com as demais, de modo a assegurar:
a) O reconhecimento do direito de todas as pessoas com deficiência, que estão em idade núbil, em contraírem matrimónio e a constituírem família com base no livre e total consentimento dos futuros cônjuges;
b) O reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência a decidirem livre e responsavelmente sobre o número de filhos e o espaçamento dos seus nascimentos, bem como o acesso a informação apropriada à idade, educação em matéria de procriação e planeamento familiar e a disponibilização dos meios necessários para lhes permitirem exercer estes direitos;
c) As pessoas com deficiência, incluindo crianças, mantêm a sua fertilidade em condições de igualdade com os outros.
2 — Os Estados Partes asseguram os direitos e responsabilidade das pessoas com deficiência, no que respeita à tutela, curatela, guarda, adopção de crianças ou institutos similares, sempre que estes conceitos estejam consignados no direito interno; em todos os casos, o superior interesse da criança será primordial. Os Estados Partes prestam a assistência apropriada às pessoas com deficiência no exercício das suas responsabilidades parentais.
3 — Os Estados Partes asseguram que as crianças com deficiência têm direitos iguais no que respeita à vida familiar. Com vista ao exercício desses direitos e de modo a prevenir o isolamento, abandono, negligência e segregação das crianças com deficiência, os Estados Partes comprometem -se em fornecer às crianças com deficiência e às suas famílias, um vasto leque de informação, serviços e apoios de forma atempada.
4 — Os Estados Partes asseguram que a criança não é separada dos seus pais contra a vontade destes, excepto quando as autoridades competentes determinarem que tal separação é necessária para o superior interesse da criança, decisão esta sujeita a recurso contencioso, em conformidade com a lei e procedimentos aplicáveis. Em caso algum deve uma criança ser separada dos pais com base numa deficiência quer da criança quer de um ou de ambos os seus pais.
5 — Os Estados Partes, sempre que a família directa seja incapaz de cuidar da criança com deficiência, envidam todos os esforços para prestar cuidados alternativos dentro da família mais alargada e, quando tal não for possível, num contexto familiar no seio da comunidade.
Artigo 25.º
Saúde
Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm direito ao gozo do melhor estado de saúde possível sem discriminação com base na deficiência. Os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas para garantir o acesso às pessoas com deficiência aos serviços de saúde que tenham em conta as especificidades do género, incluindo a reabilitação relacionada com a saúde. Os Estados Partes devem, nomeadamente:
a) Providenciar às pessoas com deficiência a mesma gama, qualidade e padrão de serviços e programas de saúde gratuitos ou a preços acessíveis iguais aos prestados às demais, incluindo na área da saúde sexual e reprodutiva e programas de saúde pública dirigidos à população em geral;
b) Providenciar os serviços de saúde necessários às pessoas com deficiência, especialmente devido à sua deficiência, incluindo a detecção e intervenção atempada, sempre que apropriado, e os serviços destinados a minimizar e prevenir outras deficiências, incluindo entre crianças e idosos;
c) Providenciar os referidos cuidados de saúde tão próximo quanto possível das suas comunidades, incluindo nas áreas rurais;
d) Exigir aos profissionais de saúde a prestação de cuidados às pessoas com deficiência com a mesma qualidade dos dispensados às demais, com base no consentimento livre e informado, inter alia, da sensibilização para os direitos humanos, dignidade, autonomia e necessidades das pessoas com deficiência através da formação e promulgação de normas deontológicas para o sector público e privado da saúde;
e) Proibir a discriminação contra pessoas com deficiência na obtenção de seguros de saúde e seguros de vida, sempre que esses seguros sejam permitidos pelo Direito interno, os quais devem ser disponibilizados de forma justa e razoável;
f) Prevenir a recusa discriminatória de cuidados ou serviços de saúde ou alimentação e líquidos, com base na deficiência.
No seu comentário geral n.º 1 (2014) à Convenção, consultável em linha (https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G14/031/20/PDF/G1403120.pdf?OpenElement), a Comissão sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência realçou a necessidade de serem evitadas práticas de substituição da vontade das pessoas com deficiência, devendo optar-se por medidas de apoio (pontos 7, 8, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 26 a 29, 47 a 49). Aí se defende que a capacidade jurídica (de gozo) e a capacidade de exercício devem ser reconhecidas às pessoas com deficiência, independentemente da sua capacidade mental (ponto 14). O paradigma a prosseguir não é o do “interesse” do indivíduo, mas o da melhor interpretação da sua vontade e preferências (ponto 21). As pessoas com deficiência, como todas as pessoas, têm direito a correr riscos e a cometer erros (ponto 22). A assistência na tomada de decisões não deve justificar limitações a outros direitos fundamentais das pessoas com deficiência, em especial o direito de voto, o direito a casar, o direito a estabelecer uma união de facto, a fundar uma família, a procriar, à responsabilidade parental, a consentir em relações íntimas e em tratamentos médicos, o direito à liberdade (ponto 29 f)). A Comissão aponta o frequente desrespeito pela liberdade das pessoas com deficiência, obrigadas a permanecer em instituições sem que a sua vontade seja tida em consideração (pontos 40 e 46). A Comissão destaca também a obrigatoriedade de a sujeição a tratamento médico ter como pressuposto o consentimento informado da pessoa com deficiência, não substituível pela vontade de terceiro (ponto 41).
Nas conclusões finais sobre o relatório inicial de Portugal, datado de 20.5.2016, consultável em linha (docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=6QkG1d%2fPPRiCAqhKb7yhsgS19RWfPJldrCFmmb%2b7m2uf3umNkn3cwAWe215iI7iCJux52QJuVAnUJ17zmsxLyafE6KaNlHHACRVshYrXXu%2b7wovG5b30Jv3gw3YOpueL), a Comissão manifestou a sua preocupação pelo grande número de pessoas com deficiência que eram submetidas a total ou parcial tutela (interdição ou inabilitação) e consequentemente eram privadas de direitos como o direito ao voto, a casar, formar uma família ou fruir dos seus bens (pontos 28, 42 e 43), recomendando que Portugal tomasse medidas que garantissem que todas as pessoas com deficiência que fossem privadas da sua capacidade jurídica pudessem exercer todos os direitos garantidos pela Convenção, incluindo os acima referidos e, bem assim, que revogasse os sistemas de interdição e inabilitação e os substituísse por sistemas de decisão assistida (ponto 29). A Comissão recomendou também a Portugal que este tomasse medidas para assegurar que o direito a livre e prévio consentimento informado para a prestação de assistência médica fosse respeitado, pondo-se em prática mecanismos de assistência na tomada de decisão (pontos 36 e 37).
As preocupações e imposições contidas no Comentário geral n.º 1 (2014) foram reiteradas no Comentário geral n.º 6 (2018), em linha (docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=6QkG1d%2fPPRiCAqhKb7yhsnbHatvuFkZ%2bt93Y3D%2baa2qtJucAYDOCLUtyUf%2brfiOZckKbzS%2bBsQ%2bHx1IyvGh6ORVZnM4LEiy7ws5V4MM8VC4khDIZJSuxotVqfulsdtPv), consultado em 02.12.2019.
A Organização Mundial de Saúde (OMS), no seu relatório “Plan d`Action pour la Santé Mentale 2013-2020”, em linha (https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/89969/9789242506020_fre.pdf;jsessionid=444AA57EE7EBF82E9E83D7CC4656501F?sequence=1), mencionando a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como instrumento jurídico de referência, aponta as frequentes violações que as pessoas com problemas mentais sofrem quanto aos seus direitos a procriar, casar, a constituir família, à liberdade, a exercer a sua capacidade jurídica sobre questões que lhes dizem respeito, incluindo em matéria de tratamentos e cuidados de saúde (pág. 8 do relatório, ponto 13).
A Constituição da República Portuguesa refere-se expressamente às pessoas com deficiência no seu art.º 71.º. Aí se diz que “Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados” (n.º 1), obrigando-se o Estado a criar condições para a salvaguarda e efetivação desses direitos (n.ºs 2 e 3).
O respeito pelos direitos da pessoa alegadamente carecida de acompanhamento compele a que ela seja necessariamente ouvida pelo tribunal. Tal audição é também absolutamente aconselhável como meio de prova direta, instrumental da formação da convicção do tribunal quanto à necessidade e âmbito da medida a aplicar.
Note-se que na redação original do atual Código de Processo Civil, o interrogatório do requerido pelo tribunal só se realizava se houvesse contestação (art.º 896.º do CPC). Só a realização de perícia era obrigatória (art.º 896.º do CPC). Essa dispensa do interrogatório desencadeou compreensíveis críticas (cfr. Margarida Paz e Fernando Vieira, “A Supressão do Interrogatório no Processo de Interdição: Novos e Diferentes Incapazes? A Complexidade da Simplificação”, publicado na RMP, n.º 139, julho a setembro 2014, pp. 61-109, também publicado no citado e-book do CEJ, Interdição e inabilitação, maio de 2015, pp. 209 a 252).
No atual processo especial de acompanhamento de maiores consigna-se a obrigatoriedade da “audição pessoal e direta do beneficiário” (art.º 897.º do CPC).
Porém, por outro lado, a prova pericial não se apresenta como obrigatória. Com efeito, a lei processual apenas estipula que “[f]indos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos (n.º 1 do art.º 897.º). E, no art.º 899.º, sob a epígrafe “Relatório pericial”, consagra-se o seguinte:
1 - Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis.
2 - Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências.”
A delicadeza das matérias em questão, que bolem com o estatuto jurídico fundamental de pessoas e que, atualmente, impõem soluções flexíveis, finas, adequadas à particularidade de cada caso e de cada pessoa, desaconselha que o juiz se abalance a consagrar medidas sem se escorar em convicções sólidas sobre a situação que foi chamado a apreciar, o que, salvo exceções, determinará a colaboração de especialistas. Como se disse, no regime anterior o exame pericial era obrigatório e era, sem controvérsia, considerado indispensável (vide Margarida Paz e Fernando Vieira, estudo citado, e-book do CEJ Interdição e inabilitação, maio de 2015, pág. 226). A solução de dispensabilidade da prova pericial foi criticada, por exemplo, em sede de audição no âmbito do processo legislativo, pelo Conselho Superior da Magistratura, em linha, (app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a53556c4d5a5763765130394e4c7a464451554e45544563765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d46446232317063334e68627938344d445a6d4d7a45334d6930334f575a684c5452695a44457459546c6a596931694d54566d4e4459304d544d7a5a574d756347526d&fich=806f3172-79fa-4bd1-a9cb-b15f464133ec.pdf&Inline=true), pp. 48 e 49, e pela Procuradoria-Geral da República, em linha (app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a53556c4d5a5763765130394e4c7a464451554e45544563765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d46446232317063334e68627939695a5755304d444d31597930354d7a686a4c5451324d3249744f57526d4e7930784f5449785a6a63795a4752694d4751756347526d&fich=bee4035c-938c-463b-9df7-1921f72ddb0d.pdf&Inline=true), para quem o novo regime do maior acompanhado exigirá mais exames e mais complexos (pp. 30 e 31).
Também Miguel Teixeira de Sousa destaca a relevância da prova pericial neste procedimento (“O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais”, no já citado e-book do CEJ, “O novo regime jurídico do maior acompanhado”, fevereiro de 2019, p. 50): “Em particular, atendendo ao que cabe ao tribunal apreciar no processo de acompanhamento de maiores, compreende-se que a prova pericial tenha uma especial relevância, como, aliás, decorre do disposto no art.º 139.º, n.º 1, CC e nos art.º 897.º, n.º 1, e 899.º, n.º 1.”
Revertamos ao caso destes autos.
Na sentença o tribunal decidiu aplicar à requerida, aliás em harmonia com o requerido pelo Ministério Público, uma medida de substituição, de representação geral, para o efeito nomeando como acompanhante da requerida a Madre Superiora da instituição onde a requerida se encontra internada. Tal como pedido pelo Ministério Público, foi também declarada a incapacidade da requerida para testar. Porém, também se retirou à requerida a possibilidade de decidir acerca da sujeição às intervenções diagnósticas e terapêuticas eventualmente propostas, a electroconvulsivoterapia, à participação em investigações, ensaios clínicos ou actividades de formação, tendo-se, para esse efeito, declarado que a requerida estava privada do exercício direto de direitos pessoais. Autorizou-se também, sem prévia auscultação da requerida, o seu internamento na instituição onde se encontra, e declarou-se que ela não estava autorizada a aceitar ou a rejeitar liberalidades a seu favor.
Conclui-se, pois, que à requerida foi aplicada uma medida de integral substituição da sua vontade, na qual não lhe é reconhecida qualquer autonomia ou direito de participação nas decisões que diretamente lhe digam respeito. Note-se que à acompanhante nomeada não foi imposto que ouvisse e aconselhasse a acompanhada, assistindo-a na tomada de decisões, mas tão só que privilegiasse o bem-estar e a recuperação da acompanhada, com a diligência requerida a um bom pai de família (ponto 1.4 do dispositivo da sentença).
Ora, afigura-se-nos que uma medida tão restritiva e gravosa careceria, para ser fundamentada, dos necessários elementos instrutórios.
Note-se que os únicos elementos colhidos são a “declaração médica” que acompanhou o requerimento inicial, e a audição da requerida.
Na referida declaração, subscrita por uma excelentíssima médica que exerce funções no Centro em que a requerida se encontra desde os 11 anos de idade, afirma-se, tão só, que a requerida “é portadora de Debilidade Mental Ligeira/Moderada (F.71-CID-10) com marcado atraso do desenvolvimento desde nascença, de caracter permanente e que a limita em múltiplas áreas do seu funcionamento e autonomia.”
Esta declaração fundou os n.ºs 3 e 4 dos factos dados como provados na sentença:
3. A Requerida sofre de debilidade mental ligeira/moderada (F.71-CID-10), com marcado atraso do desenvolvimento, desde a nascença, de carácter permanente.
4. Tal doença limita a Requerida em múltiplas áreas do seu funcionamento e autonomia.
Mais se provou que
5. A Requerida tem orientação no tempo e no espaço.
6. A Requerida faz a sua higiene pessoal sozinha.
7. A Requerida tem dificuldade de aprendizagem, não é capaz de ler nem de escrever, nem de assinar o seu nome completo, apenas sabendo escrever o seu primeiro nome.
8. Conhece o dinheiro e utiliza-o em compras simples, mas tem dificuldade no cálculo de trocos.
9. A doença que afecta a requerida impede que seja capaz de suprir as suas necessidades diárias, carecendo de supervisão designadamente para cuidar da sua saúde e para gerir a sua pessoa e bens.
Estes factos adicionais ter-se-ão baseado na audição da requerida, em cujo auto consta o seguinte (fls 48):
- soube dizer o nome completo;
- disse ter 39 (trinta e nove) anos de idade;
- disse ter nascido em 01.10.1979;
- referiu que o pai chama-se Fernando e a mãe Lurdes;
- tem 6 (seis) irmãos;
- fala mais com o irmão Joel que lhe telefona e até já foi de férias a França com ele;
- não sabe ler nem escrever (só sabe escrever o seu primeiro nome);
-reconheceu dinheiro e sabe o seu valor;
- vai às compras com os colegas da instituição;
- vai todos os fins de semana a casa, onde fica com a sua mãe e é esta que confeciona as refeições;
- respondeu corretamente ao dia da semana e o mês em que estamos;
- sabe ver as horas;
- faz a sua higiene pessoal só.
O teor do aludido interrogatório denota que a requerida sabe quem é, conhece os seus mais próximos, localiza-se no tempo e no espaço, tem a noção do valor das coisas, realiza tarefas simples.
Provavelmente terá dificuldade em tomar iniciativas em questões importantes, mas não ficou claro que não tenha a possibilidade de, com explicações em termos adequados, decidir acerca da sujeição a tratamentos médicos, aceitar ou rejeitar liberalidades, manifestar a sua vontade quanto ao local de residência e ainda quanto a outras questões pessoais, como a sua vida afetiva, incluindo o matrimónio.
A designação dada à debilidade mental de que a requerida padece (F.71-CID-10) remete para a Classificação Internacional de Doenças (CID), 10.ª revisão.
A referida revisão, surgida em 1990 e com última versão em 2016, enuncia, na categoria da debilidade ou atraso mental, as sub-espécies F-70 a F-79, cujas características podem ser consultadas em linha  -(https://icd.who.int/browse10/2016/en#), consultada em 02.12.2019.
Aí o atraso ou debilidade mental é definido (traduzimos da versão inglesa) como a paragem ou desenvolvimento incompleto do funcionamento mental, caracterizado essencialmente por uma alteração, durante o período do desenvolvimento, das faculdades que determinam o nível global da inteligência, isto é, das funções cognitivas, da linguagem, da motricidade e das capacidades sociais. O atraso mental pode acompanhar outra debilidade mental ou física, ou ocorrer isoladamente.
As capacidades intelectuais e a adaptação social podem modificar-se e, mesmo quando muito medíocres, podem ser melhoradas por uma formação e uma reeducação apropriadas. O diagnóstico deve basear-se nos níveis funcionais constatados.
As F-70 e F-71 são assim descritas:
F-70: Debilidade mental ligeira
Q.I. de 50 a 69 (nos adultos, idade mental de 9 a menos de 12 anos). Provavelmente sentirá dificuldades escolares. Muitos adultos serão capazes de trabalhar e de manter boas relações sociais, e integrarem-se na sociedade.
F-71: Debilidade mental moderada
Q.I. de 35 a 49 (nos adultos, idade mental de 6 a menos de 9 anos). Provavelmente sofrerá assinaláveis atrasos no seu desenvolvimento durante a infância, mas muitos conseguem adquirir aptidões escolares e um certo grau de independência e aptidões suficientes para comunicarem. Os adultos carecerão de auxílio, de níveis variados, para trabalhar e viver em comunidade.
Os factos apurados não permitem acantonar a requerida numa situação de mera passividade, de mera sujeição à vontade de terceiros.
As pessoas com deficiência mental ou intelectual, pesem embora as suas limitações, têm desejos próprios e ambições, capacidade de estabelecer relações afetivas e amorosas, capacidade de decidirem acerca de aspetos da sua vida. Ponto é que lhes seja dado espaço para isso, sem estigma, sem vergonhas, aceitando-as como parte de uma sociedade inclusiva, que se adapta de forma a todos abraçar na sua diversidade. Estes são os ensinamentos que se colhem da literatura especializada (vide, v.g., Alexandra Chícharo das Neves, O Estatuto Jurídico dos Cidadãos Invisíveis. O longo caminho para a plena cidadania das pessoas com deficiência, Universidade Autónoma de Lisboa, tese para a obtenção do grau de Doutor em Direito, Lisboa, setembro de 2011, em linha (repositorio.ual.pt/bitstream/11144/277/1/Versão%202013%20O%20Estatuto%20Jurídico%20dos%20«Cidadãos%20Invisíveis».pdf) consultado em 02.12.2019; Maria de Fátima Alcaide Forreta, Pode alguém ser quem não é? Percursos de transição para a vida adulta de indivíduos classificados na categoria deficiência intelectual, tese elaborada para a obtenção do grau de doutor em Educação, especialidade Formação de Adultos, Universidade de Lisboa, Instituto da Educação, 2018, em linha, (http://hdl.handle.net/10451/35197), consultado em 02.12.2019, João Manuel Alves Seixas, Pessoas Institucionalizadas com Dificuldades Intelectuais e Desenvolvimento e Cidadania, trabalho de Mestrado, julho de 2015, Instituto Politécnico de Viana do Castelo, em linha, (repositorio.ipvc.pt/bitstream/20.500.11960/1635/1/Joao_Seixas.pdf), consultado em 02.12.2019.
É sabido que a realização de perícias é frequentemente morosa, acarretando enormes gastos de tempo e relevantes despesas (isso é bem evidenciado no já mencionado trabalho de Margarida Paz e Fernando Vieira, e-book do CEJ Interdição e inabilitação, maio de 2015, pp. 235-239).
Assim, in casu, afigura-se-nos inconveniente e desnecessária a anulação da sentença e consequente reenvio do processo à primeira instância para se realizar prova pericial.
Bastará, como de resto é o caminho propugnado pelo apelante (e foi o seguido no processo n.º 2990/18.8T8FNC.L1, desta Relação, datado de 11.12.2019 e relatado pelo Exm.º Desembargador Vaz Gomes, em que intervieram como adjuntos o ora relator e o Exm.º 1.º adjunto), extrair do dispositivo da sentença os segmentos que se evidenciam não fundados e contrários ao legalmente adequado.
Assim, no dispositivo da sentença recorrida, manter-se-á o disposto nos n.ºs 1.1., 1.2., 1.3., 1.4., 1.5., 1.6., 1.10., 1.11., 1.12. e 1.13.
Eliminar-se-á o determinado no n.º 1.7. (“Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 5º., nº 3 da Lei 36/98, de 24/7 (Lei de Saúde Mental), a situação de acompanhamento de maior, declarada pela presente sentença, não faculta o exercício directo de direitos pessoais.”).
Note-se que a exigência da redução a escrito do consentimento para intervenção médica pode ser suprida pela intervenção a rogo, com intervenção de notário (art.º 373.º do Código Civil).
Quanto ao n.º 1.8. (“Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 4º, nº 1 do Dec. Lei nº 272/2001, de 13/10, o acompanhado não pode aceitar ou rejeitar liberalidades a seu favor”), a aceitação de liberalidades poderá acarretar, além de encargos, despesas (vide as inerentes à titularidade de veículos automóveis ou de imóveis). Daí que, estando a requerida sujeita a um regime de representação geral, e constituindo a doação um contrato, faça sentido que a requerida não deva decidir, sem assistência, acerca dessas matérias. Porém, nada justifica que seja privada da possibilidade de decidir a esse respeito, desde que conte com o aconselhamento da acompanhante. Assim, consignar-se-á que a requerida poderá aceitar ou rejeitar liberalidades a seu favor, mediante prévio aconselhamento junto da sua acompanhante.
Quanto ao n.º 1.9. (“Consignar que o tribunal autoriza o internamento da beneficiária no Centro de Reabilitação Psicopedagógica da Sagrada Família, sito no Funchal, onde actualmente reside (cfr. artº. 148, nº 1 do Código Civil)”, esclarecer-se-á que tal internamento é voluntário, subordinado à manutenção da aquiescência da requerida.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, altera-se o dispositivo da sentença nos seguintes termos:
a) Elimina-se o n.º 1.7.;
b) O n.º 1.8. passará a ter a seguinte redação:
A beneficiária poderá aceitar ou rejeitar liberalidades a seu favor, mediante prévio aconselhamento junto da sua acompanhante;
c) O n.º 1.9. passará a ter a seguinte redação:
O tribunal autoriza o internamento da beneficiária no Centro de Reabilitação (…), sito no (…), onde atualmente reside (cfr. artº. 148, nº 1 do Código Civil), internamento esse que é voluntário, ou seja, subordinado à manutenção da aquiescência da beneficiária;
d) No mais, mantém-se a decisão recorrida.
Apelação isenta de custas (art.º 4.º, n.º 1, al. l) do RCP).

Lisboa, 11.12.2019
Jorge Leal
Pedro Martins
Nelson Borges Carneiro