Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
22131/15.2T8LSB.L1-7
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO
DISTRIBUIÇÃO
DEVER DE INDEMNIZAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. À expressão contrato de fornecimento podem reconduzir-se ocorrências contratuais de feições diversas que podemos agrupar nos seguintes modelos:

a)- Contrato em que o fornecedor disponibiliza o seu produto em contínuo, durante um dado período ou sem termo determinado, obrigando-se a contraparte a pagar em função do que for consumindo ou retirando, sem prejuízo de poder também ser acordada uma prestação fixa, única ou reiterada, por essa disponibilidade;

b)- Contrato pelo qual as partes acordam que o fornecedor realizará entregas de certos produtos e quantidades (ou prestará serviços), com dada periodicidade, durante um período de tempo ou sem termo determinado, mediante contraprestações pecuniárias;

c)- Contrato-quadro no qual as partes (ou uma delas) se obrigam à celebração de contratos de execução (compras e vendas, prestações de serviços, locações), durante um dado período ou por tempo indeterminado, podendo regular com maior ou menor intensidade esses futuros contratos (sua cadência, preços, formas de pagamento, quantidades globais por período de tempo, locais de entrega, etc.).

II. O distribuidor que cria no fornecedor a convicção de que lhe irá adquirir ao longo do ano uma determinada quantidade de bens e, depois de o fornecedor lhe assegurar que conseguirá efetuar aquela quantidade de fornecimentos a dado preço (cujo valor dependia também das quantidades de produção em vista), efetua apenas uma encomenda das várias perspetivadas para o ano, deve indemnizar o fornecedor pelas despesas, necessárias à satisfação dos fornecimentos ao distribuidor aos preços garantidos, que o fornecedor efetuou por ter confiado que iria receber a prevista quantidade de encomendas.

 (Sumário da responsabilidade e autoria da relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


I. Relatório:




SILVA, autor no processo indicado à margem, em que é ré IMP. AND EXP., LDA., notificado da sentença absolutória proferida em 6 de abril de 2017 e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.

O autor propôs a presente ação contra a ré pedindo a condenação desta a pagar-lhe € 12.330,78, acrescidos de juros moratórios à taxa legal supletiva para créditos comerciais, desde a citação até integral pagamento.

Disse para tanto que, no exercício da sua atividade de produção de bebidas alcoólicas, com engarrafamento e rotulagem, acordou (setembro-outubro de 2014) com a ré o fornecimento de 13 tipos diferentes, em quantitativo anual de um mínimo de 15.000 garrafas de cada um daqueles, num total anual da ordem de 200.000 garrafas, para a ré as revender no seu comércio, fornecimento a satisfazer à medida das encomendas realizadas naquele período pela ré; para tanto e previamente à primeira encomenda, com base no design que lhe foi disponibilizado pela ré, encomendou a produção de cerca de 200.000 rótulos e código de barras cujo preço pagou; e que a ré, sem razão, após uma encomenda, deu por cessado o contrato; em consequência, o autor ficou com os rótulos e etiquetas da marca da ré, inaplicáveis para outras rotulagens, cujo pagamento reclama.

Em contestação a ré negou ter-se comprometido para com a autora no volume e prazos que a mesma alega, concluindo pela improcedência da ação, e advogando que o autor sabe da falta de razão que lhe assiste, pelo que litiga de má-fé.

Após julgamento, a ré foi absolvida do pedido por sentença com a qual o autor não se conforma.

O recorrente termina as suas alegações de recurso, concluindo:
«A) O ponto número 1) da matéria de facto dada como não provada foi incorretamente julgado: “Em Setembro de 2014, no âmbito do provado em B) a E), A. e R. acordaram que esta se obrigava a solicitar fornecimentos pelo A. de uma estimativa 15.000 garrafas no primeiro ano por cada tipo de bebida”.
B) Considera o Recorrente, salvo o devido respeito, que este ponto da matéria de facto deveria ter sido dado como provado. Isto porque,
C) Foi produzida prova em sentido contrário ao decidido, conforme excerto do depoimento que se transcreve: (dia 05-09-2016 com início de gravação às 14:53:30 e fim 05-09-2016 16:57:06)
- [00:17:46] Mandatário do A: A quantidade de gin que foi mandada vir pelo Sr. Rogeira daria para quanta quantidade de garrafas? [00:17:52]
- Testemunha: Cerca de vinte mil, mais de vinte mil garrafas. [00:17:55] (…)
- [00:18:01] Mandatário do A: De certeza que o Senhor Rogeira pediu cotações de preços?
- Testemunha: Foi. [00:18:04]
- [00:18:07] Mandatário do A: Para o Sr. Filipe dar uma cotação de preços é preciso alguma coisa, ou seja, qual for a quantidade de garrafas, o preço é sempre igual? [00:18:18]
- Testemunha: Não, precisamos efetivamente de saber as previsões médias de consumo do produto. [00:18:23] (…)
[00:18:38] O preço é em função das quantidades que se compra, não há volta a dar.[0018:39] Eu se comprar mil cápsulas custa-me um preço se comprar 15 mil ou 20 mil é outro. [00:18.45]
[00:18:52] E o que foi negociado com o senhor Rogeira foi nessa amplitude de consumo (…) e andava na ordem das quinze, vinte mil/ano porque nesta fase inicial o Sr. Rogeira diz que havia exclusividade de seis meses para a Makro mas podia começar a exportar para fora, e ele tinha uma relação qualquer com Angola e que nesta fase inicial podia ainda mandar para Angola. Ou seja, era atingível no fundo este objetivo, estas vinte mil garrafas mais ou menos.
[00:19:23] (…)
[00:19:31]Estimativa para um ano, quinze mil garrafas, de cada uma das referências, porque havia várias referências. [00:19:35]
- [00:19:38] Mandatário do A: De cada uma das referências a estimativa era quinze mil, máximo vinte mil?
- Testemunha: Sim, entre quinze a vinte mil [00:19:41].
D) Além do mais, atenta a prova produzida, seguindo as regras de experiência comum, se o gin vindo de Inglaterra daria para vinte mil garrafas, facilmente se depreende que as restantes referências seriam em moldes iguais.
E) Tendo ficado provado (ponto M) que os valores do produto, incluindo garrafas e rótulos variam consoante a quantidade de produção, sendo certo que quanto maior for a produção, menos é o custo por unidade, o douto Tribunal “a quo” deveria ter dado como provado que os preços facultados pelo Recorrente à Recorrida, só foram possíveis porque este estava convicto, por ter sido acordado verbalmente entre as partes, que a quantidade de mercadoria, a fornecer ao longo do ano, seria na ordem das quinze, vinte mil garrafas.
F) Sendo certo que, conforme prova testemunhal produzida (- [00:47:38] Mm Juiz: Para si, o senhor José… sabia que estes preços todos estavam conversados (…) desde que ele adquirisse 15 a 20 mil bebidas por referência no prazo de um ano?- [00:47:58] Testemunha: Sim (…) - Mm Juiz: Porque se assim não fosse…- Testemunha: NEM VALIA A PENA FAZER O NEGÓCIO. [00.48:01]), se assim não fosse, NUNCA TERIA EXISTIDO O NEGÓCIO.
G) E o mesmo ficou provado quanto aos rótulos e códigos de barras em posse do Recorrente, que conforme depoimento da testemunha, apenas foram feitos em virtude da expectativa de fornecimento ser na ordem das quinze a vinte mil garrafas ao ano.
H) Assim, conclui o Recorrente que andou mal o Tribunal “a quo” ao dar como não provado os pontos 5 e 7 da matéria de facto dada como não provada.
I) Porquanto foi produzida prova documental e testemunhal que demostram inequivocamente a existência do prejuízo do Recorrente, na medida em que ficou com rótulos e códigos de barras que não pode utilizar em outras encomendas, em virtude de os mesmos apresentarem a marca “T...L”, propriedade da Recorrida.
J) Ademais, existindo dúvidas quanto à existência dos rótulos, o que apenas por mera hipótese se pode colocar, uma vez que o Recorrente juntou prova documental que demonstra a existência dos mesmos, o Tribunal “a quo” sempre poderia, oficiosamente e de acordo com o PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO DA DESCOBERTA MATERIAL, ter-se deslocado às instalações do Recorrente a fim de indagar a existência dos mesmos.
K) Neste aspeto, somos a relembrar o aresto proferido no Ac. do STJ de 05.05.2015, proferido no processo n.º607/06.2TBPMS.C1.S1, “Com efeito, incumbe AO JUIZ REALIZAR OU ORDENAR, MESMO OFICIOSAMENTE, TODAS AS DILIGÊNCIAS NECESSÁRIAS AO APURAMENTO DA VERDADE E À JUSTA COMPOSIÇÃO DO LITÍGIO, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
L) Não pode restar dúvidas, pela prova documental junta aos autos, que os documentos 10 a 14 da petição inicial, onde é referenciada a marca da Recorrida, “T...L”, são PROVA INEQUÍVOCA DA EXISTÊNCIA DOS RÓTULOS E O CONSEQUENTE PREJUÍZO SOFRIDO PELO RECORRENTE.
M) O Tribunal “a quo” ao decidir como decidiu, no entendimento do Recorrente, incorreu, de facto, num erro ostensivo na apreciação da prova, numa apreciação totalmente arbitrária da prova produzida em audiência de julgamento, ignorando directamente as mais elementares regras da experiência, em termos de se poder dizer que existe uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto.
N) É imprescindível e de elementar justiça material que o tribunal decisor indique os fundamentos suficientes, por forma a que, através das regras da lógica e da experiência, seja possível controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento de facto provado ou não provado.
O) É natural que a prova deve ser apreciada, segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente, no entanto, a livre convicção do julgador não pode significar apreciação segundo as suas impressões, mas constitui antes um modo não vinculado de valoração da prova e de descoberta da verdade processualmente relevante, isto é, uma conclusão subordinada à lógica e não limitada a prescrições formais exteriores.
P) Pelo exposto, a Sentença recorrida padece do vício de NULIDADE, por violação do disposto no art. 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do C.P.C., ou seja, por contradição lógica dos fundamentos com a decisão, bem como, por omissão pronúncia nos termos que foram demonstrados supra.
Termos em que, e nos que serão doutamente supridos por V. Exas., Venerandos Desembargadores, deverá ser dado provimento ao Recurso, revogando-se a douta Sentença recorrida, a qual deve ser substituída por outra que considere provados os factos constantes nos pontos 1, 5 e 7 da matéria de facto dada como não provada, e condene o Recorrido ao pagamento da quantia de € 12.330,78 (doze mil, trezentos e trinta euros e setenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal supletiva para os créditos comerciais desde a citação até integral pagamento, em virtude do prejuízo causado ao Recorrente.
Decidindo-se assim, far-se-á a acostumada JUSTIÇA!»

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as questões de saber se a sentença é nula, se devem ser dados por provados factos que o tribunal a quo assim não considerou, e se, em consequência, a ação e o recurso devem ser julgados procedentes.

II.Fundamentação de facto.
Estão provados os seguintes factos que correspondem aos adquiridos em 1.ª instância, com os acréscimos que resultam deste recurso, pelos motivos explicados em III.B.:
A) Em Setembro de 2014, o A. já se dedicava à indústria de bebidas alcoólicas, operando em relação com grupo já inserido e conhecedor do respectivo mercado, tendo instalações fabris sitas na Av. E…, e a Ré é sociedade constituída nessa altura, em 03.09.2014.
B) Em inícios de Setembro de 2014 a Ré, na pessoa de José…, contactou o Diretor Comercial do A., Filipe…, para ser dada cotação de preços para o fornecimento de diversas bebidas alcoólicas.
C) A Ré é detentora da marca “T...L” e desde logo referiu que tinha um projeto de comercialização de bebidas alcoólicas, com a marca “T...L”, em que nos primeiros 6 meses a comercialização seria exclusiva com a MAKRO e depois seria comercializada também nos Cash&Carry e noutros distribuidores,
D) Então, a Ré propôs ao Autor que este apresentasse proposta, em que as referências (produtos) a fornecer haveriam de ser as que satisfizessem a rotatividade e a competitividade com produtos similares, e o prazo de fornecimento não poderia ultrapassar o período de 7 a 10 de Novembro 2014.
E) Entre 2 e 9 de Setembro de 2014, o A. procurou cotações para as garrafas, cápsulas e rótulos, de acordo com a graduação de cada tipo de bebida, e indicou à R. os respetivos preços de fornecimento.
1)- Em setembro de 2014, no âmbito do provado em B) a E), a R. disse ao A. que estimava pedir-lhe cerca de 15.000 garrafas no primeiro ano por cada tipo de bebida e o A. comprometeu-se a ir satisfazendo os pedidos que lhe fossem sendo feitos.
F) Em conversas ao longo do mês de Setembro de 2014, as partes acordaram que para satisfazer a rotatividade e a competitividade com produtos similares, os diversos tipos de bebida a produzir pelo A. para a Ré, seriam as seguintes:
- Vodka;
- Vodka Black;
- Vodka Limão;
- Vodka Pêssego;
- Vodka Morango;
- Amêndoa Amarga;
- Limoncello;
- Rum Lemon;
- Rum Silver;
- Rum Black;
- Tequila Silver;
- Tequila Gold;
- Pisang.

5) Em dezembro de 2014, e para serem usados nas garrafas a fornecer pelo autor à ré, a sociedade Silva…, Lda., da qual o autor é sócio-gerente, adquiriu as seguintes quantidades de rótulos/códigos de barras:
- 15.000 rótulos Vodka Limão (doc. 10);
- 15.000 rótulos Vodka Morango (doc. 10);
- 15.000 rótulos Vodka Pêssego (doc. 10);
- 6.000 código de barras Vodka Limão (doc. 10)
- 6.000 código de barras Vodka Morango (doc. 10);
- 9000 código de barras Vodka limão (doc. 11);
- 9000 código de barras Vodka morango (do. 11);
- 6.000 código de barras Vodka Pêssego (doc. 11);
- 16.500 rótulos Vodka Black (doc. 11);
- 15.000 rótulos Vodka Silver (doc. 11);
- 15.000 código de barras Vodka Black (doc. 11);
- 15.800 rótulos Gin (doc. 12);
- 15.000 código de barras Gin (doc. 12);
- 15.000 código de barras Vodka Silver (doc. 12);
- 5.000 rótulos Amêndoa Amarga (doc. 13);
- 5.000 rótulos Limoncello (doc. 13);
- 5.000 código de barras Limoncello (doc. 13);
- 5.000 código de barras Amêndoa Amarga (doc. 13);
- 18.000 código de barras Tequilla Gold (doc. 14);
- 18.000 código de barras Tequilla Silver (doc. 14);
- 16.500 rótulos Tequilla Gold (doc. 14);
- 18.000 rótulos Tequilla Silver (doc. 14), com um custo total de € 13.767,65 (sem IVA) (doc. 10 a 14).
G) Em 1 de Outubro de 2014 o Diretor Comercial do A. enviou um email ao representante da Ré, no qual dizia o seguinte: “Pode-me fazer a encomenda, para podermos avançar com as matérias-primas assim como reservar as datas de produção?
H) Reiterando o pedido (por mail) em 5 desse mês.

I) E, então (princípios de Outubro de 2014) verbalmente a Ré encomendou ao Autor (para entrega de 7 a 10 de Novembro 2014) as seguintes garrafas
- 1200 de Amêndoa Amarga;
- 1200 de Limoncello;
- 3000 de Vodka;
- 1800 de Vodka Black;
- 600 de Vodka Limão;
- 600 de Vodka Morango;
- 600 de Rum Lemon;
- 1800 de Rum Silver;
- 1800 de Rum Black;
- 600 de Pisang Ambom;
- 1800 de Tequila Silver;
- 1800 de Tequila Gold;
- 3000 de GIN 40º;
- 3000 de GIN 47º.
J) Para o efeito, acordou-se que a Ré adquiriria em Inglaterra (não sendo o transporte da responsabilidade do Autor), concentrado de Gin, para fabricação de Gin com 47º, e porque permitiria uma referência a “produto vindo de Inglaterra” mais apelativa para o consumidor. L) As garrafas com bebidas a fornecer pelo Autor teriam códigos de barras e os rótulos ostentariam a marca “T...L”, razão porque só serviam para as bebidas com esta marca.
M) Quanto maior a produção de rótulos menor o seu custo por unidade, saindo muito caro, por unidade, a produção de pequenas quantidades.
N) Em 7 de Novembro de 2014, por referência à encomenda provada na alínea I), a Ré remeteu ao Autor mail encomendando, para entrega impreterivelmente até 13 desse mês, as seguintes garrafas
- 1200 de Amêndoa Amarga;
- 1200 de Limoncello;
- 3000 de Vodka;
- 1800 de Vodka Black;
- 600 de Vodka Limão;
- 600 de Vodka Morango;
- 600 de Rum Lemon;
- 1800 de Rum Silver;
- 1800 de Rum Black;
- 600 de Pisang Ambom;
- 1800 de Tequila Silver;
- 1800 de Tequila Gold;
- 3000 de GIN 40º;
- 3000 de GIN 47º.

O) Só em 21.11.2014 o concentrado de Gin importado de Inglaterra foi entregue nas instalações fabris do A..
P) Em 4 de Dezembro 2014, por mail, o A. comunicou as quantidades que estavam fabricadas e prontas a serem entregues.
Q) No dia 12 Dezembro 2014, por mail (fls. 20, doc. 6 pi), a Ré solicitou a entrega das bebidas descritas no mesmo.
R) No próprio dia o A., por mail, comunicou que na 4ª feira seguinte, só poderia entregar a amêndoa amarga e o limoncello.
S) No dia 14 de Dezembro 2014, a Ré comunicou que fosse então entregue aquelas bebidas, ficando a restante encomenda sem efeito.
T) O A. apenas forneceu à Ré as mercadorias constantes da sua fatura n.º 147 de 12.12.2014, com o teor do doc. 8 pi, fls 23.
U) Depois de 12.12.2014 a Ré não mais encomendou qualquer mercadoria ao A.

7) Em Dezembro de 2014, depois do fornecimento da encomenda provada em S) e T), dos rótulos indicados em 6) o A. tem na sua posse, os seguintes:
- 3.500 código de barras Limoncello, com o valor de € 22,58;
- 4.400 código de barras Amêndoa Amarga, com o valor de € 28,38;
- 13.500 código de barras Gin, com o valor de € 87,08;
- 12.000 código de barras Vodka Silver, com o valor de € 77,40;
- 18.000 código de barras Tequilla Silver, com o valor de € 116,10;
- 13.500 código de barras Vodka Black, com o valor de € 87,08;
- 14.300 código de barras Vodka Limão, com o valor de € 92,24;
- 14.500 código de barras Vodka Pêssego, com o valor de € 93,53;
- 14.500 código de barras Vodka Morango, com o valor de € 93,53;
- 18.500 código de barras Tequilla Gold, com o valor de € 119,33;
- 4.400 rótulos Amêndoa Amarga, com o valor de € 385,44;
- 4.400 rótulos de Limoncello, com o valor de € 385,44;
- 12.000 rótulos de Vodka Silver, com o valor de € 1.126,80;
- 14.300 rótulos de Vodka Morango, com o valor de € 1.417,13;
- 14.000 rótulos de Gin, com o valor de € 833,00;
- 14.200 rótulos de Vodka Pêssego, com o valor de € 1.293,62;
- 13.000 rótulos de Vodka Limão, com o valor de € 1.288,30;
- 16.500 rótulos de Tequilla Gold, com o valor de € 1.749,00;
- 18.000 rótulos de Tequilla Silver, com o valor de € 1.908,00;
- 12.000 rótulos de Vodka Black, com o valor de € 1.126,80.
Com um custo total de € 12.330,78 (sem IVA).

III.Apreciação do mérito do recurso.

A.Da nulidade da sentença.

Diz o recorrente, a este propósito, nas conclusões do seu recurso:
«N) É imprescindível e de elementar justiça material que o tribunal decisor indique os fundamentos suficientes, por forma a que, através das regras da lógica e da experiência, seja possível controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento de facto provado ou não provado.
O) É natural que a prova deve ser apreciada, segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente, no entanto, a livre convicção do julgador não pode significar apreciação segundo as suas impressões, mas constitui antes um modo não vinculado de valoração da prova e de descoberta da verdade processualmente relevante, isto é, uma conclusão subordinada à lógica e não limitada a prescrições formais exteriores.
P) Pelo exposto, a Sentença recorrida padece do vício de NULIDADE, por violação do disposto no art. 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do C.P.C., ou seja, por contradição lógica dos fundamentos com a decisão, bem como, por omissão pronúncia nos termos que foram demonstrados supra.»

O art. 615, n.º 1, do CPC, para o que ora releva, determina que a sentença é nula quando: «c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

Na sentença, o juiz explicou exaustivamente a seleção que fez da matéria de facto e, com essa seleção, não podia a ação deixar de improceder pois não constam dela factos integradores da obrigação da ré de adquirir à autora determinadas quantidades de garrafas, sendo que o pedido se sustentava numa tal obrigação.

Não se alcança na sentença qualquer vício dos enumerados nas alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 615 do CPC, nem o recorrente explica como chega a essas conclusões.

O que se passa é que o recorrente discorda da convicção do julgador, mas tal discordância não é fundamento de nulidade. Quando muito, se razão lhe assistir, a sentença pode ser revogada ou alterada, mas não é nula.

B.Da impugnação da decisão de facto.
O recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo que os factos não provados 1), 5) e 7) passem a provados.
Para impugnar a matéria de facto, o recorrente deve observar as regras contidas no art. 640 do CPC. Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: a) os pontos da matéria de facto de que discorda; b) os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida; e, c) a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
In casu, o recorrente cumpriu estes ónus, pelo que passamos a reapreciar a prova produzida com vista ao apuramento da situação efetivamente sucedida, no que ao ponto posto em crise respeita.
Como noutros arestos temos tido oportunidade de lembrar, as únicas restrições que a lei impõe à reapreciação da prova pela Relação são as que resultam do art. 640 do CPC: a reapreciação está limitada a determinados aspetos da matéria de facto dos quais o recorrente discorda e implicará a reanálise de elementos probatórios dos quais o recorrente entende resultar outra solução. Fora destas balizas, o CPC confere aos tribunais de 2.ª instância poderes-deveres semelhantes aos dos tribunais de 1.ª instância no que concerne à criação da convicção pela livre apreciação da prova. Apesar de, no que à prova pessoal respeita, o objeto da apreciação pelo tribunal de 2.ª instância não ser exatamente o mesmo que aquele de que a 1.ª instância dispôs, pois trata-se apenas de uma gravação áudio deste, onde necessariamente se perde tudo o que é apreensível por outros sentidos além da audição, o legislador não limitou os poderes de livre apreciação da prova pela 2.ª instância.

Assim sendo, o tribunal de 2.ª instância não se pode limitar a um controlo formal da fundamentação que o tribunal recorrido expressou para os factos selecionados, nem a tecer considerações genéricas a propósito da menor imediação de que dispõe e de como isso o impede de pôr em causa o juízo a quo.

Perante as regras positivadas no CPC, e sem prejuízo do seccionamento do objeto da reapreciação por via do disposto no art. 640 do CPC, os tribunais da Relação devem proceder à efetiva reapreciação da prova produzida (nomeadamente dos meios de prova indicados no recurso, mas também de outros disponíveis e que entendam relevantes) da mesma forma – em consonância com os mesmos parâmetros legais – que o faz o juiz de 1.ª instância.

Tanto significa que os juízes desembargadores apreciam livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão (art. 607, n.º 5, do CPC).

Na sua livre apreciação, os juízes desembargadores não estão condicionados pela apreciação e fundamentação do tribunal a quo. Ou seja, o objeto da apreciação em 2.ª instância é a prova produzida (tal como em 1.ª instância) e não a apreciação que a 1.ª instância fez dessa prova. Esta pode ter sido formalmente correta, bem como exaustiva e logicamente fundamentada, e, não obstante, a Relação formar diferente convicção.

Claro que, como já referido, o que é dado apreciar aos juízes desembargadores não é exatamente o mesmo, no que à prova gravada respeita, que é observado em 1.ª instância. Esta circunstância inultrapassável (ainda que melhorável com recurso a outras tecnologias de reprodução) pode e deve ser ponderada na reapreciação que, em 2.ª instância, se faz da prova, mas isso não significa uma menorização do poder de livre apreciação da prova, mas apenas mais um dado a considerar nessa apreciação.

Entende o recorrente que os factos por si alegados e que o tribunal a quo julgou como não provados sob as alíneas 1), 5) e 7) devem considerar-se assentes.

Tais factos são:
«1) Em Setembro de 2014, no âmbito do provado em B) a E), A. e R. acordaram que esta se obrigava a solicitar fornecimentos pelo A. de uma estimativa 15.000 garrafas no primeiro ano por cada tipo de bebida.
5) Em Dezembro de 2014, e para fornecimentos a realizar para a Ré, o A. adquiriu (através de Silva…, Lda) para a produção das garrafas para a Ré, as seguintes quantidades de rótulos/códigos de barras: - 15.000 rótulos Vodka Limão (doc. 10); - 15.000 rótulos Vodka Morango (doc. 10); - 15.000 rótulos Vodka Pêssego (doc. 10); - 6.000 código de barras Vodka Limão (doc. 10) - 6.000 código de barras Vodka Morango (doc. 10); - 9000 código de barras Vodka limão (doc. 11); - 9000 código de barras Vodka morango (do. 11); - 6.000 código de barras Vodka Pêssego (doc. 11); - 16.500 rótulos Vodka Black (doc. 11); - 15.000 rótulos Vodka Silver (doc. 11); - 15.000 código de barras Vodka Black (doc. 11); - 15.800 rótulos Gin (doc. 12); - 15.000 código de barras Gin (doc. 12); - 15.000 código de barras Vodka Silver (doc. 12); - 5.000 rótulos Amêndoa Amarga (doc. 13); - 5.000 rótulos Limoncello (doc. 13); - 5.000 código de barras Limoncello (doc. 13); - 5.000 código de barras Amêndoa Amarga (doc. 13); - 18.000 código de barras Tequilla Gold (doc. 14); - 18.000 código de barras Tequilla Silver (doc. 14); - 16.500 rótulos Tequilla Gold (doc. 14); - 18.000 rótulos Tequilla Silver (doc. 14), com um custo total de € 13.767,65 (sem IVA) (vd. doc. 10 a 14).
7) Em Dezembro de 2014, depois do fornecimento da encomenda provada em S) e T), dos rótulos indicados em 6) o A. tem na sua posse, os seguintes: - 3.500 código de barras Limoncello, com o valor de € 22,58; - 4.400 código de barras Amêndoa Amarga, com o valor de € 28,38; - 13.500 código de barras Gin, com o valor de € 87,08; - 12.000 código de barras Vodka Silver, com o valor de € 77,40; - 18.000 código de barras Tequilla Silver, com o valor de € 116,10; - 13.500 código de barras Vodka Black, com o valor de € 87,08; - 14.300 código de barras Vodka Limão, com o valor de € 92,24; - 14.500 código de barras Vodka Pêssego, com o valor de € 93,53; - 14.500 código de barras Vodka Morango, com o valor de € 93,53; - 18.500 código de barras Tequilla Gold, com o valor de € 119,33; - 4.400 rótulos Amêndoa Amarga, com o valor de € 385,44; - 4.400 rótulos de Limoncello, com o valor de € 385,44; - 12.000 rótulos de Vodka Silver, com o valor de € 1.126,80; - 14.300 rótulos de Vodka Morango, com o valor de € 1.417,13; - 14.000 rótulos de Gin, com o valor de € 833,00; - 14.200 rótulos de Vodka Pêssego, com o valor de € 1.293,62; - 13.000 rótulos de Vodka Limão, com o valor de € 1.288,30; - 16.500 rótulos de Tequilla Gold, com o valor de € 1.749,00; - 18.000 rótulos de Tequilla Silver, com o valor de € 1.908,00; - 12.000 rótulos de Vodka Black, com o valor de € 1.126,80. Com um custo total de € 12.330,78 (sem IVA).»

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção quanto à falta de prova destes factos do seguinte modo:

«No concernente à FACTUALIDADE NÃO PROVADA
n.º 1) A testemunha Filipe… afirmou-o, no sentido de assim interpretar os mails e conversas havidas com o gerente da R., José…, mas este rejeitou o acordo com essa amplitude e dos documentos juntos, não é possível concluir no sentido do que agora se dá por não provado. E, como diz a Ré, introduzindo um nível de dúvida na questão que não foi objecto de meio de prova, não havendo fixação de preço antecipado, como se vê na discussão dos preços nos mail do doc. 1 pi, então o preço era condicionante de discussão em cada encomenda sendo o quantitativo anual em discussão mera ideia da dimensão do negócio, sem vinculação de observância, dúvida razoável não resolvida.
(…)
n.º 5) Filipe… afirmou-o convictamente, mas se o documento 9 pi, fls 24, consiste em facturação de fornecimentos da Silva…, Lda ao Autor …, quando a discriminação de produtos é feita globalmente, para efeitos fiscais, como o sugere a data do última dia do ano, no quadro da relação “intragrupo” exigia-se uma transparência que este documento não evidencia, do mesmo modo que os docs 10 a 14 pi, fls 25/29, que discriminado produtos não estão endereçados ao Autor.
(…)
n.º 7) O meio de prova teor do doc. 15 pi, fls 30, não teve a intervenção da Ré na sua produção, é um mail comunicação do Autor para o irmão testemunha Filipe…, que nem sequer é documento de inventário fiscal, que nos pudesse aproveitar, pelo que o desvalorizamos. Neste ponto, ainda anotamos, que pese o que afirmou Filipe…, mesmo “Desafiado” pela Ré (parte final da contestação), a apresentar os sobrantes código de barras e rótulos, o Autor nada fez, como sobre ela não recaísse o ónus da sua prova.»

Em julgamento foi inquirida apenas uma testemunha, irmão do autor e seu diretor comercial. Depôs durante mais de duas horas, com segurança, coerência, demonstrando amplo e seguro conhecimento dos factos, com um discurso, a um tempo, firme e espontâneo. Todas as conversações passaram por si. Foi também ouvido o legal representante da ré, que apresentou um discurso mais contido, aparentemente menos espontâneo.

De dizer que o que afasta as partes acaba por não ser muito, considerando todos os factos assentes sem discussão e que, com os demais três que o tribunal a quo, numa exigência de prova excessiva, considerou não provados, fazem um todo coerente e provável.

Vejamos facto por facto.
Facto 1)
A testemunha inquirida afirmou que o negócio que lhes foi proposto pela ré passava pela encomenda por esta ao autor de cerca de 200.000 garrafas por ano, cerca de 15.000 de cada referência ou tipo de bebida. Não temos dúvidas. O próprio representante legal da ré confessou ter um projeto de venda de bebidas à Makro, com exclusividade nos primeiros seis meses e ter tentado implementá-lo através de outro produtor. Uma vez que o outro produtor não lhe conseguia satisfazer as quantias que propunha vender à Makro no prazo em que queria colocar a encomenda inicial, a própria Makro, também envolvida e interessada no projeto, sugeriu à ré que contactasse o autor, na medida em que este tinha essa capacidade, já produzindo para a Makro cerca de 500.000 garrafas por ano. Portanto, o projeto não era coisa pequena. Por outro lado, só na primeira encomenda (feita em 7 de novembro para entrega até 13 desse mês), a ré pediu ao autor 22.800 garrafas. Logo, é altamente provável que logo no início a ré tivesse dado uma estimativa anual de 200.000, tanto mais que nos primeiros 6 meses tinha a Makro como cliente exclusiva e a partir daí colocaria, ainda, noutros cash & carry. Era, sem dúvidas, um contrato de fornecimento com duração de pelo menos um ano.

Deve considerar-se assente que, em setembro de 2014, no âmbito do provado em B) a E), a R. disse ao A. que estimava pedir-lhe cerca de 15.000 garrafas no primeiro ano por cada tipo de bebida e o A. comprometeu-se a ir satisfazendo os pedidos que lhe fossem sendo feitos.
Facto 5)
Do facto 5) deve ser dado como provado que, em dezembro de 2014, e para serem usados nas garrafas a fornecer pelo autor à ré, a sociedade Silva…, Lda., da qual o autor é sócio-gerente, adquiriu os rótulos/códigos de barras aí discriminados, com um custo total de € 13.767,65 (sem IVA).
É o que resulta das cinco faturas (fls. 25 a 29 dos autos, docs. 10 a 14 juntos com a petição), emitidas pela Etiforma – Sociedade Europeia de Etiquetas, Lda. à Silva…, Lda., conjugadas com o depoimento da testemunha inquirida. De notar que estão discriminados nas faturas os rótulos com a marca T...L da ré e que esta não alegou, nem sequer aquando da inquirição do sócio gerente em audiência, ter qualquer negócio com a Silva…, Lda. que justificasse a aquisição daqueles rótulos. Dúvidas não temos de que aqueles se destinavam às garrafas a encomendar pela ré ao autor, no âmbito do combinado entre ambos.
O facto de os rótulos, eventualmente, ainda não terem sido faturados pela Silva…, Lda. ao autor não belisca o prejuízo do autor pois, em última análise, cabe-lhe pagá-los àquela, já que ia usá-los no seu negócio pessoal. Se o fez ou não, se o vai fazer ou não, respeita à relação de crédito entre o autor e a Silva…, Lda., sendo irrelevante para o desfecho destes autos.
Facto 7)
O facto 7) – rótulos com que o autor ficou após ter usado os necessários na encomenda que lhe foi feita pela ré – deve considerar-se assente com base no depoimento da testemunha, conjugado com as mesmas faturas. Lembramos que os rótulos em causa, tendo a marca da ré (T...L) não podem ser reaproveitados.

C.Do mérito da causa
Aqui chegados importa saber se, considerando o acervo fáctico dos autos, o recurso e a ação devem ser julgados procedentes.

i.- A decisão do tribunal a quo
A fundamentação de direito da sentença do tribunal a quo (excluída a fundamentação da matéria de facto e a apreciação da invocada má fé processual) encontra-se nos dois parágrafos a seguir transcritos:
«O ponto de partida da nossa análise (alíneas A) a M)), são as declarações recíprocas entre as partes, no período de Setembro a Dezembro de 2014, visando a assunção de deveres contraponto dos direitos de que quiseram beneficiar, juridicamente um contrato, regulado em geral nos artigos 405º e sgs do C. Civil.
Deste quadro factual, distintamente do alegado pelo Autor, não decorre a obrigação fundamento da pretensão da sua pretensão, a de que a Ré se obrigara a contratar anualmente 150.000 garrafas de cada referência, o que o teria conduzido por razões de economia de escala, a desde logo, encomendar a produção dos rótulos e códigos de barras necessários, e deste modo não existe na esfera jurídica do A., o direito a ser ressarcido dos prejuízos que o incumprimento dessa obrigação pela Ré (arts 406 e 798º C. Civil) em concreto das despesas suportadas com o fabrico daqueles, e deste modo dispensamo-nos de conhecer do conteúdo desta obrigação da existência, da quantidade e do valor daqueles acessórios da garrafas, sem mais havendo que concluir pela improcedência da acção

No primeiro parágrafo afirma-se a existência de um contrato entre as partes, asserção que nos merece concordância, mas que carece de algum aprofundamento dada a escassez da prova respeitante às estipulações que formam o conteúdo desse contrato. Iremos também interpretá-lo e qualificá-lo, reconduzindo-o a uma espécie.

No segundo parágrafo do transcrito trecho, o tribunal a quo afirma que do quadro factual não decorre que a ré se tenha obrigado «a contratar anualmente 150.000 garrafas de cada referência» (ter-se-á porventura querido dizer «contratar anualmente 200.000 garrafas» ou «contratar anualmente 15.000 garrafas de cada referência»). Estamos de acordo em que dos factos não resulta de forma clara e indubitável essa obrigação. Não concordamos, porém, que uma tal obrigação seja o fundamento da pretensão do autor. Repare-se que o autor não pede a condenação da ré a adquirir-lhe as garrafas ou a pagar-lhe uma indemnização que o coloque na situação que teria se aquela quantidade de garrafas lhe tivesse sido adquirida – o que corresponderia à indemnização pelo interesse contratual positivo, que visa colocar o contraente adimplente na posição que teria se o contrato tivesse sido cumprido. O que o autor pede é que a ré lhe pague uma indemnização correspondente às despesas que efetuou por confiar que a prevista quantidade de garrafas lhe seria adquirida. Trata-se de indemnização pelo interesse contratual negativo, que visa repor o autor na situação em que se encontraria se não tivesse negociado com a ré. O pedido formulado nos autos não tem por fundamento uma obrigação da ré de efetuar encomendas que perfizessem certa quantidade anual de garrafas, mas sim a expectativa que a ré gerou no autor de que tais encomendas iriam ser feitas e a confiança que o autor depositou nas previsões da ré; expectativas ou confiança que a ré quebrou. O pedido do autor não exige a obrigação a que nos reportámos, nem sequer a existência de um contrato entre as partes, sendo compaginável com a violação de deveres de boa-fé no âmbito negocial pré-contratual.

ii.- Níveis de problemas que o caso dos autos coloca ainda nesta sede de recurso
A releitura dos factos adquiridos nos autos e as curtas considerações que antecedem sobre a sentença recorrida evidenciam que se colocam, ainda, a este tribunal da Relação vários níveis de análise.
Em primeiro lugar, porque os factos não são inequívocos sobre a completa formação de um contrato (além do de compra e venda de bebidas alcoólicas encomendadas oralmente em princípios de outubro e por e-mail de 7 de novembro, faturadas em 12 de dezembro e entregues nesse mês), importa, interpretando-os, perceber se os vários atos narrados são suficientes para que um contrato se considere celebrado, ou seja, se são qualificáveis como contrato. A formação de um contrato não tem de passar e muitas vezes não passa pela formulação de uma proposta e uma aceitação, paradigma a que o Código Civil reconduz a fase formativa mas que é apenas um possível modelo, entre outros, para a conclusão de um contrato (sobre o tema, v. Carlos Ferreira de Almeida, Contratos I, Conceito, fontes, formação, 4.ª ed., Almedina, 2008, pp. 111-200).

Se pudermos perscrutar na relação entre as partes a celebração de um contrato (outro que não o de compra e venda dos produtos faturados em 12 de dezembro), importa ir mais longe e interpretar o dito, determinar o seu sentido, o que nos levará a traduzi-lo por outras palavras que o expliquem. Para essa interpretação são importantes os arts. 236 a 238 do CC, que positivam normas que pela sua sensatez e adequação provavelmente sempre seriam seguidas pelo hermeneuta. Não se esgotam neles, porém, os dados importantes para a descoberta do sentido de um contrato, sendo com frequência atribuída relevância, entre outros aspetos, à coerência interna do contrato globalmente considerado e à conduta das partes posterior ao dito, na medida em que é de presumir que ela seja conforme ao acordado (sobre o tema em geral Rui Pinto Duarte, A interpretação dos contratos, Almedina, 2016, e sobre estes aspetos em particular, pp. 58-61).

Finalmente, caberá qualificar o contrato celebrado, ou seja, reconduzi-lo a uma espécie, etapa diversa da anterior (sobre a qualificação dos contratos, Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, 1995, pp. 113-203, e Rui Pinto Duarte, Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, Almedina, 2000, em particular sobre a diferença entre interpretação e qualificação, pp. 63 e 64).

iii.- A relação que se estabeleceu entre as partes
Relembremos brevemente os factos. Situam-se temporalmente nos últimos meses de 2014, com início em setembro. O autor dedicava-se à indústria de bebidas alcoólicas, produzindo-as, e a ré era distribuidora das mesmas para mercados grossistas (factos A e C).

A ré era detentora da marca “T...L” e referiu ao autor que tinha um projeto de comercialização de bebidas alcoólicas, com essa marca, em que nos primeiros 6 meses a comercialização seria exclusiva com a MAKRO e depois seria comercializada também noutros distribuidores (facto C)

A ré pediu ao autor «cotação de preços para o fornecimento de diversas bebidas alcoólicas» (facto B) e que apresentasse proposta para fornecer os produtos em quantidades e rotatividade competitivas (facto D).

Entre 2 e 9 de Setembro de 2014, o autor procurou cotações para as garrafas, cápsulas e rótulos, de acordo com a graduação de cada tipo de bebida, e indicou à ré os respetivos preços de fornecimento (facto E).

Logo de início, a ré disse ao autor que estimava pedir-lhe cerca de 15.000 garrafas no primeiro ano por cada tipo de bebida e o A. comprometeu-se a ir satisfazendo os pedidos que lhe fossem sendo feitos (facto 1).

Ao longo do mês de setembro, as partes acordaram que para satisfazer a rotatividade e a competitividade com produtos similares, o autor produziria para a ré 13 tipos de bebidas (sobretudo vodkas, runs e tequilas) que especificaram (facto F).

Por e-mail de 1 de outubro o autor pediu à ré que formalizasse a encomenda para avançar com as matérias-primas e reservar as datas de produção, pedido que reiterou por e-mail de 5 de outubro (factos G e H).

Em princípios de outubro a ré encomendou oralmente ao autor 22.800 de 14 espécies diferentes, para entrega de 7 a 10 de novembro (facto I); e por e-mail de 7 de novembro formalizou a mesma encomenda para entrega até 13 desse mês (facto N).

De notar que, por determinação da ré, o Gin 47 seria fabricado com um concentrado que a ré importaria de Inglaterra (não sendo o transporte da responsabilidade do autor) e que só entrou nas instalações do autor em 21 de novembro (factos J e O).

As garrafas com bebidas a fornecer pelo autor teriam códigos de barras e os rótulos ostentariam a marca “T...L”, razão porque só serviam para as bebidas com esta marca (facto L).

Quanto maior a produção de rótulos menor o seu custo por unidade, saindo muito caro, por unidade, a produção de pequenas quantidades (facto M).

Em dezembro de 2014, e para serem usados nas garrafas a fornecer pelo autor à ré, a sociedade Silva…, Lda., da qual o autor é sócio-gerente, adquiriu 151.800 rótulos e 127.000 códigos de barras com um custo total de € 13.767,65 (sem IVA) (facto 5).

Em 4 de dezembro 2014, por e-mail, o autor comunicou as quantidades que estavam fabricadas e prontas a serem entregues (facto P).

Em 12 de dezembro a ré solicitou a entrega de outras para quarta-feira seguinte, mas nesse mesmo dia o autor informou que na dita quarta-feira apenas poderia entregar duas das espécies, ao que a ré respondeu que entregasse essas, ficando as restantes sem efeito (Q, R e S).

Após 12 de dezembro, a ré nada mais encomendou (T e U).

Depois do fornecimento da encomenda, dos rótulos e códigos adquiridos, o autor ficou com 126.700 códigos de barras e com 122.800 rótulos, com um custo total de € 12.330,78, sem IVA (facto 7).

Percorridos desta forma os factos essenciais, expliquemo-los aproximando-os da análise jurídica que neste momento se impõe.

Em setembro de 2014, a ré, distribuidora de bebidas alcoólicas para grossistas, entrou em contacto com o autor (concretamente com o diretor comercial do autor com quem sempre contactou), que é produtor de tais bebidas. Conhecemos através da audição da prova gravada alguns dados secundários, sobre os quais não houve discussão, que foram livremente descritos pela testemunha do autor e pelo legal representante da ré, e que nos ajudam a dar coerência aos acima listados: as partes conheceram-se por intermédio da Makro, empresa à qual a ré já tinha proposto um negócio de fornecimento continuado de produtos da sua marca, T...L. Tendo a ré dito à Makro que estava com dificuldades em encontrar fornecedor, foi o seu contacto na Makro que lhe indicou o autor, como pessoa que já os fornecia e que tinha capacidade para mais.

O que a ré disse ao autor foi: tenho a marca T...L, tenho um projeto de comercialização de bebidas alcoólicas com esta marca, que passa por um acordo de exclusividade de seis meses com a Makro, sendo depois a distribuição aberta a outros cash & carry, tenho interesse em que vocês me forneçam as bebidas, cerca de 13 tipos diferentes em quantidades a rondar as 15.000 garrafas por ano, preciso de um primeiro fornecimento logo no início de novembro. Perguntou preços e se o autor estava em condições de o fazer. O autor informou os preços e disse que tinha capacidade para os fornecimentos. Ambos acordaram avançar nestes termos e efetivou-se a primeira encomenda e sequente compra e venda.

Os factos das alíneas C, D, F, 1 permitem-nos dizer que as partes acordaram entrar numa relação duradoura, a desenvolver-se pelo menos durante um ano, no decurso do qual a ré iria encomendando quantidades de garrafas de bebidas ao autor, que estimava virem a ser cerca de 15.000 num ano por cada tipo de bebida, num total de cerca de 13 espécies diferentes; tendo o autor aceitado fazer esses fornecimentos. Estes factos permitem-nos dizer que este acordo constitui um contrato, acordo formado por duas ou mais declarações que produzem para as partes efeitos jurídicos conformes ao significado do acordo obtido (fórmula sintética de Carlos ferreira de Almeida, Contratos I, cit., p. 38). Relembrando que o autor era experiente no ramo (facto A), o facto de ter adquirido em dezembro as quantidades de códigos de barras e de rótulos que integraria nas garrafas cuja encomenda se perspetivava ser feita ao longo de um ano (factos 5, L e M) reforçam a convicção de que houve por parte do autor a assunção de uma obrigação contratual de fornecer nas ditas quantidades globais, ao longo de um ano, em tranches que seriam concretizadas de acordo com encomendas futuras a fazer pela ré.

iv.- Notas gerais sobre o contrato de fornecimento
Os factos remetem-nos para a figura do contrato de fornecimento. A confirmação dessa qualificação exige, porém, o aprofundamento da figura. A lei reconhece e nomeia o contrato de fornecimento pelo menos no art. 230, n.º 2, do CCom, sendo ele por isso um contrato nominado; porém, não lhe dedica um conjunto de normas que o regulem, pelo que se diz legalmente atípico. Talvez porque enquanto acordo de base, despido de grandes exigências mútuas das partes, seja algo de lasso e impreciso, a identificação de traços de regime se torne difícil e se ponha de lado a cada oportunidade.

Em aproximação ao seu estudo, é oportuno lembrar algumas noções doutrinais:
Referindo-se ao contrato de fornecimento normalmente celebrado entre produtores e grandes retalhistas, Carolina Cunha escreve: «Trata-se, no caso, de um negócio de execução reiterada, em que uma das partes (o fornecedor) se obriga, contra o pagamento de um preço, a realizar fornecimentos periódicos ao outro contraente (o fornecido)» (Carolina Cunha, «O contrato de fornecimento no sector da grande distribuição a retalho: perspectivas actuais», in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, I, org. Diogo Leite de Campos, Coimbra Editora, 2009, p. 622-3).

Nas palavras de Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Almedina, 2007, pp. 142-3, «o contrato de fornecimento caracteriza-se pelo carácter periódico ou contínuo da prestação não monetária (mercadoria, publicações, água, eletricidade, gás, telefone). (…) É frequente a qualificação doutrinária do contrato de fornecimento como subtipo da compra e venda. Mais adequada parece ser porém, se a interpretação do contrato a tal não se opuser, a qualificação como contrato-quadro, no âmbito do qual se celebram múltiplos contratos de compra e venda ou de prestação de serviço».

Segundo José A. Engrácia Antunes, Direito dos contratos comerciais, Almedina, 2009, p. 358, o contrato de fornecimento «pode assumir diferentes configurações que vão desde a execução de prestações periódicas e continuadas até verdadeiros contratos-quadro que dão lugar a sucessivas compras e vendas mercantis independentes que se prolongam no tempo (v.g., contratos de fornecimento de matérias-primas, eletricidade, gás, etc.)».

Segundo entendemos, e melhor exporemos adiante, no contrato de fornecimento, uma das partes (designada por fornecedor) obriga-se: a fornecer bens ou serviços continuamente, mediante um preço (normalmente a pagar periodicamente); ou a fornecer bens ou serviços periódica ou reiteradamente, contra prestação pecuniária; ou, ainda, a celebrar futuros contratos onerosos (nomeadamente de compra e venda, de locação ou de prestação de serviços), quando solicitado pela contraparte.

Trata-se de um contrato duradouro, com influência direta do tempo no conteúdo da prestação, pois o fornecedor obriga-se a ir prestando (eventualmente, celebrando os futuros contratos de execução) ao longo de um período de tempo, não tendo forma de cumprir antecipadamente, pois os futuros fornecimentos não podem, na lógica do contrato, ser efetuados todos de uma vez, desde logo porque a sua concretização – em termos de número, quantidades, tempos – apenas em momentos futuros e diversos será feita de acordo com as encomendas (ou consumos) a realizar pela contraparte. Sobre a classificação dos contratos (ou, segundo os autores e as obras, das prestações contratuais, ou das obrigações) do ponto de vista da influência do tempo no conteúdo das prestações, distinguindo contratos (prestações, obrigações) de execução instantânea e de execução duradoura (podendo esta ser continuada ou periódica, esta última também dita reiterada ou de trato sucessivo), vide, nomeadamente, Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil português, II, Direito das obrigações, t. I, Almedina, 2009, pp. 523-36, Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, 2011, pp. 133-7, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2005, pp. 659-62, Inocêncio Galvão Telles, Direito das obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, 1997, pp. 39-41 (prestação), Inocêncio Galvão Telles, Manual dos contratos em geral, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2002, pp. 492-3 (contrato), João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, 10.ª ed., Almedina, 2000, pp. 92-7.

Quando o contrato de fornecimento se destina a determinar ou regular a celebração de futuros contratos, é também um contrato-quadro (sobre esta categoria e suas várias modalidades, v. Maria Raquel de Almeida Graça Silva Guimarães, O Contrato-Quadro no Âmbito da Utilização de Meios de Pagamento Electrónicos, Coimbra Editora, 2011, sobretudo pp. 59-168).

A locução «contrato de fornecimento» adequa-se a uma extensa gama de relações que podem ir desde relações incipientemente contratuais até densos contratos próximos dos de distribuição integrada.
 
v.- Fornecimento e distribuição.
A clarificação do significado de «contrato de fornecimento» carece do confronto com a ideia de «contrato de distribuição», categoria na qual por vezes é integrado. Os contratos de distribuição constituem uma classe ampla de contratos, cuja prática se iniciou no decurso do período de industrialização iniciado com a revolução industrial, mas cuja conceptualização se situa em pleno século XX. Podem descrever-se como contratos entre entidades juridicamente autónomas, nos quais o distribuidor se obriga a promover e a comercializar duradouramente bens ou serviços produzidos ou comercializados pelo fornecedor, e a suportar algum nível de ingerência da gestão comercial do último, na sua gestão comercial.

A integração do contrato de fornecimento nos contratos de distribuição é discutível e discutida. Afirmada por Carolina Cunha (ob. cit., pp. 621-37, logo nos parágrafos de entrada), é negada por Fernando Ferreira Pinto (Contratos de distribuição: Da tutela do distribuidor integrado em face da cessação do vínculo, Católica Editora, 2013, p. 41). A esse dissenso não será alheia a versatilidade do instituto. Nas palavras de Ferreira Pinto (ob. e loc. cit.), «crê-se ser inequívoco que o contrato de fornecimento, na sua configuração identitária mais comum – ou seja, enquanto convenção duradoura por virtude da qual uma das partes se obriga a realizar prestações periódicas ou continuadas de coisas a favor da outra, contra o pagamento do respectivo preço (art. 1559 do Código Civil italiano) – não chega a integrar-se na categoria dos contratos de distribuição. Basta, no entanto, que o destinatário do fornecimento seja um intermediário comercial e que este assuma, simultaneamente, a obrigação de revender as mercadorias que vai adquirindo para se suscitarem dúvidas fundadas acerca da real intenção dos contraentes e da própria qualificação do contrato».
De acordo com a perspetiva mais consensual, a expressão contratos de distribuição «abrange um conjunto de negócios que podemos reconduzir à distribuição “externa integrada” e que apresentam determinadas características que os aproximam do contrato de agência: todos eles são contratos duradouros, celebrados entre operadores formalmente autónomos mas substancialmente “integrados”, pelos quais um deles (o distribuidor) assume a obrigação essencial de promover a comercialização dos produtos da contraparte (o fabricante ou fornecedor), aceitando uma série de vinculações (“Bindungen”) que restringem a sua autonomia empresarial e manifestam a sua subordinação (mais ou menos enérgica) aos interesses do fornecedor» (ainda, Ferreira Pinto, ob. cit., p. 35). Este conceito de contratos de distribuição, relativamente restrito graças à nota da integração, permite, a um tempo, acoplar um conjunto de contratos suscetíveis de partilhar um regime jurídico próprio, e apartar contratos com notas comuns mas em que não se verifica qualquer nível de integração, como sucede nos mais rudimentares contratos de fornecimento e, seguramente, no caso dos autos.
O fundamental traço distintivo entre os contratos de simples fornecimento e os contratos de distribuição é, portanto, a integração do distribuidor no fornecedor, entendida como algum nível de coordenação entre ambos. Tal integração comporta duas vertentes: uma externa de imagem do distribuidor no mercado, que permite identificá-lo como pertencente à organização ou à rede de distribuidores do fornecedor; e uma interna relativa ao relacionamento entre as partes, pela qual o distribuidor se subordina à política comercial do fornecedor, devendo promover os produtos deste de acordo com as diretrizes do mesmo (sobre o conceito de integração enquanto nota distintiva da categoria dos contratos de distribuição, novamente Ferreira Pinto, ob. cit., pp. 28-31). Nenhuma destas vertentes de integração se verificava no contrato dos autos.

vi.- Síntese sobre o contrato de fornecimento.
À expressão contrato de fornecimento podem reconduzir-se ocorrências contratuais de feições diversas que podemos agrupar nos seguintes modelos:
a)- Contrato em que o fornecedor disponibiliza o seu produto em contínuo, durante um dado período ou sem termo determinado, obrigando-se a contraparte a pagar em função do que for consumindo ou retirando, sem prejuízo de poder também ser acordada uma prestação fixa, única ou reiterada, por essa disponibilidade;
b)- Contrato pelo qual as partes acordam que o fornecedor realizará futuras entregas de certos produtos e quantidades (ou prestará futuros serviços), com dada periodicidade, durante um período ou sem termo determinado, mediante contraprestação pecuniária;
c)- Contrato no qual as partes (ou uma delas) se obrigam à futura celebração de contratos de execução (compras e vendas, prestações de serviços, locações), durante um dado período ou por tempo indeterminado, podendo regular com maior ou menor intensidade esses futuros contratos (sua cadência, preços, formas de pagamento, quantidades globais por período de tempo, locais de entrega, etc.).

Em todos os modelos há fornecimentos de bens ou serviços que se prolongam no tempo e há pagamentos desses bens ou serviços.

Nos modelos das alíneas a) e b), o objeto imediato do contrato é a obrigação de entrega ou disponibilização de bens ou de prestação de serviços, contra uma prestação pecuniária. Apenas o modelo da alínea c) se configura como contrato-quadro, cujo objeto imediato é a obrigação de celebrar no futuro os contratos de execução.

No modelo da alínea a), a prestação característica (a não pecuniária) é de execução contínua – uma obrigação do fornecedor de disponibilizar continuadamente, à mercê dos consumos que a outra parte for fazendo. São deste tipo os contratos de fornecimento de água, eletricidade, gás, redes de comunicações. Podem assim configurar-se outros contratos, como por exemplo alguns dos celebrados com os donos de pedreiras, para fornecimento de pedra ou areia. No da alínea b), a prestação característica é de execução reiterada, combinando as partes logo de início os produtos e quantidades que serão entregues (ou serviços que serão prestados) bem como os momentos em que o serão, e o preço e forma de pagamento dos vários fornecimentos.

Em ambos os casos, os contratos são bilaterais, emergindo deles ab initio duas obrigações principais sinalagmáticas. A categoria dos contratos bilaterais é maioritariamente identificada com a dos sinalagmáticos (sobre a sinonímia ou o afastamento dela, Higina Orvalho Castelo, O contrato de mediação, Almedina, 2014, pp. 307-9), definindo-se os contratos bilaterais ou sinalagmáticos como aqueles de que «nascem obrigações para ambas as partes, unidas uma à outra por um vínculo de reciprocidade (…). Este vínculo surge logo no momento da celebração do contrato, como ligação entre as suas obrigações típicas (sinalagma genético) e perdura ao longo da existência do contrato, acompanhando-o nas suas vicissitudes (sinalagma funcional)» (Inocêncio Galvão Telles, Manual dos contratos em geral, 4ª ed., Coimbra Editora, 2002, p. 485).

No modelo da alínea c), o contrato-quadro pode ser bilateral ou unilateral e o seu objeto imediato é a realização de outros contratos. O contrato-quadro de fornecimento será bilateral ou sinalagmático quando ambas as partes se obrigam a prestações principais típicas desse contrato-quadro: o fornecedor obriga-se a vir a celebrar os contratos de execução do fornecimento quando solicitado e a contraparte obriga-se, também, a solicitar os fornecimentos (em dada quantidade por período ou com certa regularidade). Quando assim é, o contrato-quadro de fornecimento é mais denso, podendo aproximar-se da distribuição integrada.

O contrato-quadro de fornecimento será unilateral quando se estipula apenas uma obrigação principal: a obrigação do fornecedor de celebrar os contratos de execução, quando solicitado. A contraparte não se obriga a efetuar encomendas (embora ao fazê-las dê início a novas relações contratuais, de execução, bilaterais ou sinalagmáticas, que para si geram obrigações de pagamento).

No contrato-quadro de fornecimento, as partes podem também definir as regras a que submeterão os futuros contratos de execução. Podem verificar-se, no entanto, contratos-quadro de fornecimento muito simples que comportam apenas a obrigação principal do fornecedor de fornecer (vir a celebrar os futuros contratos de execução), quando solicitado e de acordo com preços previamente indicados. O contrato-quadro de fornecimento (que, como afirmado, pode ser unilateral) é uma entidade distinta dos contratos de execução (bilaterais). O objeto imediato do contrato-quadro de fornecimento é a obrigação de celebrar no futuro os contratos que consubstanciam os desejados fornecimentos.

vii.- A qualificação do contrato celebrado pelas partes
Aqui chegados podemos com segurança qualificar o contrato que as partes celebraram e que acima interpretámos como um contrato de fornecimento.

Não se encontra nele qualquer estipulação no sentido da integração, ainda que ténue, da ré na rede do autor. Bem pelo contrário, o que as partes acordaram foi que o autor forneceria à ré bebidas que o autor fabricaria (total ou parcialmente) e engarrafaria, mas nas quais aporia rótulos com a marca da ré. A ré iria distribuir marca sua, não marca do fornecedor. Nos contratos com integração sucede o inverso: o fornecedor (concedente, franqueador, principal) fornece produtos da sua marca ao distribuidor (concessionário, franqueado, agente). O negócio que as partes firmaram configurou-se como um contrato de fornecimento dos mais simples.

Os factos narrados são também parcos para, de forma segura e sem margem para hesitações, afirmarmos que o contrato comportou uma obrigação assumida pela ré de solicitar produtos em determinada quantidade ou com determinada regularidade. Porém, como já fomos dizendo, tal obrigação não é fundamento da pretensão do autor. O pedido formulado na ação não corresponde a uma indemnização pelo dano do incumprimento, mas uma indemnização pelo dano de confiança; alicerça-se na quebra de deveres de boa-fé e não na violação de obrigação contratual.

Retiramos dos factos com segurança apenas um acordo de fornecimento simples, com a tónica na obrigação do fornecedor (autor) de fornecer quando solicitado, e sem obrigação da recetora dos fornecimentos (ré) de solicitar com determinada cadência ou em certas quantidades. Como vimos, esta configuração não obsta à qualificação do contrato como contrato de fornecimento, mais concretamente do tipo que acima identificámos na al. c) e, dentro desse, como unilateral. Ou seja, na relação dos autos, o autor obrigou-se a fornecer, quando solicitado; a ré não se obrigou a encomendar, mas disse que tencionava fazê-lo e os preços que pediu e que lhe foram assegurados tinham na sua base futuras encomendas nas quantidades previstas.

viii.-A indemnização pedida
Na relação descrita, o autor tinha uma forte e fundada expectativa de vir a receber encomendas que perfizessem a quantidade de 200.000 garrafas no ano, pois assim lhe foi transmitido ser o interesse e previsão da ré. Por outro lado, os preços com que o autor se comprometeu dependiam do fornecimento das quantidades previstas, pois apenas tais quantidades permitiam também ao autor adquirir matérias-primas em grande quantidade e, por isso, a mais reduzido custo, circunstâncias que a ré não podia deixar de conhecer, ou tinha obrigação de saber enquanto comerciante de boa-fé e normal diligência. A ré transmitiu ao autor um dado negócio, incluindo nele a previsão de uma dada quantidade de pedidos, e foi para esse negócio que pediu preços (factos C) e D)); foi considerando também as características do mesmo negócio, incluindo as quantidades a fornecer, que o autor indicou os preços (facto E)). Que o custo de produção e, reflexamente, o preço variam em função da quantidade produzida é um dado do conhecimento geral, sempre presente na consciência dos que ao comércio se dedicam. Por outro lado, o cumprimento dos previsíveis fornecimentos aos acordados preços implicava a aquisição de determinadas matérias-primas em quantidade, o que a ré não podia deixar de prever. No caso dos autos, considerando os factos C), D), E), 1) e 5), assim foi.

Se não temos elementos para afirmar que a ré assumiu uma obrigação contratual de fazer encomendas no total de 200.000 garrafas por ano, temos, no entanto, factos que nos dizem que a ré criou no autor a fundada expectativa de receber encomendas nessa quantidade.

Sucede que, depois de acordada a relação de fornecimento (factos B) a F)) – que se iria desenvolver pelo menos durante um ano, prevendo-se os primeiros seis meses em exclusividade com a Makro –, depois feita pela ré a primeira encomenda, depois de a mesma estar pronta em 4 de dezembro e de ser entregue à ré (factos G) H), I), N) e P), esta não volta a encomendar bebidas ao autor.

Neste quadro bem formulado foi o pedido indemnizatório pelo dano de confiança, correspondente ao interesse contratual negativo, com vista a colocar o autor na situação em que estaria se não tivesse celebrado o contrato de fornecimento. É neste contexto adequado que o autor seja ressarcido pelo dano da confiança gerada, pela expectativa da futura celebração de «n» contratos que não foram celebrados, devendo agora ser colocado na situação que teria se não tivesse entrado no acordo de fornecimento.

Em suma, o contrato de fornecimento celebrado entre as partes – sendo embora um contrato-quadro do qual emergia para o autor/fornecedor a obrigação de fornecer quando solicitado, mas não emergia para a ré uma obrigação de encomendar –, gerou no fornecedor/autor fortes e legítimas expectativas de vir a celebrar número indeterminado de contratos de execução (compras e vendas de bebidas alcoólicas) a rondar as 200.000 garrafas/ano. A inesperada cessação da relação contratual causada pela ré confere ao autor o direito de ser ressarcido das despesas efetuadas em vista da realização das prestações a seu cargo nos contratos de execução, despesas que não podia ter deixado de fazer com antecedência para conseguir vir a satisfazer os fornecimentos com que genericamente se tinha comprometido, quando a ré os solicitasse. Estas despesas, como já acima referimos, não podia a ré desconhecer a sua necessidade e foram efetuadas num produto (rótulos com a marca da ré) que o autor não pode reaproveitar.

IV.Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente procedente e, em consequência, em julgar igualmente procedente a ação, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de € 12.330,78, acrescida de juros moratórios à taxa legal supletiva para créditos comerciais, desde a citação até integral pagamento.

Custas pela recorrida.



Lisboa, 27/02/2018



Higina Castelo
José Capacete
Carlos Oliveira