Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5956/2004-1
Relator: ANA GRÁCIO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
PENHORA
EXECUÇÃO DE SENTENÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
Decisão Texto Integral:
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
ACÓRDÃO

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I – RELATÓRIO

1 - No âmbito de uma acção executiva para pagamento de quantia certa, baseada em sentença declarativa de condenação, que intentou contra (A) e mulher (B) (Proc nº 365-C/01 da 2ª Secção do 7º Juízo Cível da Comarca de Lisboa), a fim de haver deles os montantes correspondentes a capital, juros e imposto de selo sobre os juros, devidamente descriminados no título, a exequente Banco Mais, S.A. nomeou à penhora, entre outros bens, o veículo automóvel da marca Fiat, modelo Punto, matrícula 38-...-GT, “que pode ser encontrado junto à residência do executado, a quem pertence”, tendo requerido que, para efectivação dessa penhora, se ordenasse a apreensão desse veículo, para o que requereu que se oficiasse ao Comando Geral da GNR.


2 – O requerimento foi deferido, tendo aquele veículo sido apreendido pela GNR em 12-01-2002, a solicitação do Tribunal.
Em 08-07-2002, a exequente juntou aos autos certidão do registo da penhora e dos encargos que incidem sobre aquele veículo, requerendo então que se ordenasse o cumprimento do disposto no art 864º do CPC.
Dessa certidão consta que a "propriedade" se encontra registada a favor de (A), a partir de 29-06-2000, recaindo o "encargo - reserva" a favor de Banco Mais, S.A., a partir da mesma data (29-06-2000).


3 Em 19-02-2004, foi proferido o seguinte despacho:
“Compulsados os presentes autos, verifica-se que os mesmos deveriam prosseguir com a venda do bem penhorado.
Contudo, verifica-se que da certidão de registo de veículo consta uma reserva de propriedade a favor do Exequente.
Assim, a fim de se iniciar a fase de pagamento, deve a Exequente juntar aos autos certidão do registo Automóvel onde conste o cancelamento da referida reserva.
...”


4 - Inconformada com esta decisão, dela interpôs a exequente o presente recurso de agravo, tendo, nas suas alegações oportunamente apresentadas, formulado as seguintes conclusões:

“1. Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula 38-...-GT, penhora que foi ordenada pelo Senhor Juiz a quo
2. Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo, aliás, o Senhor Juiz a quo competência para proceder a tal notificação ao exequente, ora recorrente
3. O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo de harmonia com o disposto no artigo 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.
4. No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, se deve agir de acordo com o que se prescreve no artigo 119º do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada.
5. Tendo a ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide – o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo -; tendo a exequente renunciado ao “domínio” sobre o bem – pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido -; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que no despacho recorrido, se errou e decidiu incorrectamente.
6. Caso, assim, se não entenda, sempre se dirá, que deveria a exequente – titular da reserva de propriedade – ter sido notificada para se pronunciar pela renúncia ou não à propriedade do veículo, como o foi, tendo respondido, mas não ser notificada para requerer o seu cancelamento.
7. No despacho recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu e ao claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto no artigo 888º do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos 5º, nº1, alínea b) e 29º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, artigos 7º e 119º do Código do Registo Predial e artigos 408º, 409º, nº1, 601º e 879º, alínea a), todos do Código Civil”.
Termina, pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que ordene o prosseguimento dos autos.


5 – Não foram produzidas contra-alegações, tendo sido proferido despacho de sustentação.


Colhidos os vistos legais, e tudo visto, cumpre apreciar e decidir.


***********


II – AS QUESTÕES DO RECURSO

Delimitada pelas conclusões do agravo (arts 684º nº3 e 690º nº1 do CPC), a única questão a decidir no recurso e que constitui o objecto de conhecimento por parte deste tribunal consiste em saber se a acção executiva pode prosseguir para a fase da venda sem que antes a exequente comprove o cancelamento do registo da reserva de propriedade que incide sobre o veículo penhorado.


************


III - ELEMENTOS DE FACTO

Os elementos pertinentes à decisão deste recurso já ficaram expostos na exposição constante do relatório deste acórdão e, assim, a eles nos reportaremos.

************


IV - APRECIAÇÃO

1 - Antes de mais, deve salientar-se que, compulsando os autos, não se descortina qualquer despacho do Mmº Juiz a ordenar a notificação da exequente para declarar se renunciava ou não à reserva de propriedade que a seu favor se mostra registada sobre o veículo dos autos, nem se descortina qualquer requerimento da exequente confirmando “ (...) que renunciava à reserva de propriedade que a seu favor se mostra registada sobre o veículo dos autos”.
Aquele despacho e requerimento invocados pela exequente na alegação que precede as conclusões e na conclusão 6ª não constam dos autos, seja por o recurso ter subido em separado e não terem sido certificadas todas as peças da acção executiva, seja por as alegações terem, porventura, correspondência com outro qualquer processo dos muitos em que a ora agravante (ou antes, o seu ilustre mandatário) insiste em sustentar as mesmas posições.
Os autos, como se relatou, revelam apenas, naquilo que interessa, a prolação de um despacho que ordenou à exequente a junção de documento comprovativo do cancelamento da reserva de propriedade para que se iniciasse a fase de pagamento.
Deste modo, e como já foi referido, o objecto do agravo resume-se, pois, a apurar se, constando do registo automóvel a reserva da propriedade a favor da exequente, a execução deve prosseguir para a fase da venda, sem que previamente a exequente demonstre o cancelamento daquele registo.

2 - A acção executiva pode prosseguir para a fase da venda sem que antes a exequente comprove o cancelamento do registo da reserva de propriedade que incide sobre o veículo penhorado?
2.1 - O primeiro dos argumentos invocados pela recorrente prende-se, necessariamente, com a legalidade do despacho objecto de censura, enquanto violador, por interpretação errada, das disposições legais indicadas nas alegações – arts 888º do CPC, 5º nº1 b) e 29º do Dec-Lei 54/75, de 12-02, 7º e 119º do CRP, 408º, 409 nº1, 601º e 879º a) do CC.
Deste modo, não está em causa uma questão de “competência” para a prolação do despacho recorrido, mas de legalidade do mesmo e, nesse sentido se apreciará a questão.
E sempre se dirá que o conteúdo do referido despacho, ao invés do que a agravante entende na sua conclusão 2ª, se inscreve na competência funcional de quem o proferiu (arts 265º, 279º nº1 parte final e 466º nº1 do CPC).

2.2 - A regra de que a transferência da propriedade se opera por mero efeito da celebração do contrato de compra e venda encontra-se estabelecida no nº1 do art 408º do CC .
A possibilidade de diferir convencionalmente o efeito translativo, por via de um pacto de reserva de propriedade, é admitida como excepção àquela regra (art 408º nº1 in fine do CC), nos termos do nº1 do art 409º do mesmo Código. “E é admitida de modo tão amplo, que se pode dizer que a regra é, afinal, a da colocação convencional do momento da transferência de propriedade” - Luís Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, pag 21.
Segundo resulta da citada norma (nº1 do art 409º), a transmissão do direito de propriedade por via do contrato de compra e venda sob reserva de propriedade a favor do devedor fica suspensa até à verificação de um evento futuro e incerto, como é o caso do pagamento do preço, ou de um evento futuro e certo, designadamente de um termo inicial (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol I, pag 376; Luís Lima Pinheiro, ob. cit., pag 93 e Ac. do STJ de 1-2-95, BMJ 444, pag 609). Assim, através do “pactum reservati dominii” o alienante reserva para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
No que respeita à eficácia da reserva de propriedade, determina o nº2 do mesmo preceito que, tratando-se de coisa imóvel ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante de registo é oponível a terceiros.
E nos termos do art 5º nº1 b) do Dec-Lei 54/75, de 12-02, está sujeita a registo a reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos.
No caso sob análise, encontramos uma situação algo anómala pois que, tendo a reserva de propriedade sido pensada pelo legislador para contratos de compra e venda, a condição suspensiva em causa foi estabelecida para garantia de cumprimento de prestações pecuniárias decorrentes de um contrato de mútuo.
Mas, embora a reserva de propriedade tenha sido pensada para contratos de alienação, parece nada obstar a que se considere, tendo em conta o princípio da liberdade contratual, a aplicação desta figura a contratos diferentes, nomeadamente ao de mútuo a prestações que com o de compra e venda de veículo automóvel apresenta uma relação de estreita conexão, consubstanciada no facto de o objecto mediato do primeiro – quantia mutuada – constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo (cfr. Luís Lima Pinheiro, ob. cit., pags 33 e 34 e Ac. desta Relação de 11-12-97, CJ Ano XXII, Tomo V, pag 120). É que ambos os contratos podem considerar-se interdependentes, mais não constituindo o de financiamento que uma extensão do de compra e venda.
Foi o que aconteceu no caso em análise.
Não obstante ser a hipoteca o adequado direito real de garantia incidente sobre um veículo automóvel para salvaguarda do cumprimento das prestações pecuniárias decorrentes do contrato de mútuo instrumental em relação ao pagamento do preço correspondente ao contrato de compra e venda (art 686º nº1 do CC), as partes, tendo em conta o princípio da liberdade contratual, optaram pela reserva de propriedade sobre o veículo automóvel estabelecida, não a favor do vendedor, mas em benefício da mutuante, precisamente por o primeiro haver recebido da segunda, devido ao contrato de mútuo outorgado pelo comprador, o preço convencionado no âmbito do contrato de compra e venda do veículo.
E, como é evidente, também a estes casos são aplicáveis os efeitos prescritos na lei e próprios da reserva de propriedade. O que quer dizer que, in casu, embora se trate de uma situação anómala de constituição da reserva de propriedade em favor da mutuante ou financiadora, não se altera o regime legal que decorre da lei, sendo os seus efeitos idênticos àqueles que derivariam de ela haver sido constituída a favor do vendedor do veículo automóvel que foi penhorado.
Ou seja, também neste caso se poderá chamar à colação o disposto nos arts 408º nº1 e 409º nº1 do CC, ou seja, a regra – consagrada pelo primeiro - de que a transferência dos direitos reais, maxime do direito de propriedade, se dá por mero efeito do contrato admite a excepção – prevista no segundo – de que, convencionalmente, se pode diferir tal efeito translativo, através do denominado pactum reservati dominii para o alienante, até ao cumprimento total ou parcial das obrigações – tradicionalmente, o pagamento do preço – ou até à verificação de qualquer outro evento – in casu, o pagamento das prestações objecto do financiamento acordado.

2.3 - Sendo aplicáveis ao registo de automóveis, com as devidas adaptações, as disposições relativas ao registo predial - na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas na lei especial (art 29º do Dec Lei 54/75) -, temos que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o direito o define (art 7º do CRP), sendo certo, por outro lado, que os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo (art 8º nº1 do CRP).
Assim, mostrando-se inscrita reserva da propriedade do veículo penhorado a favor da exequente e não se mostrando ilidida aquela presunção, impõe-se concluir que a propriedade daquele veículo não se transferiu para a titularidade dos executados, mantendo-se na esfera jurídica da exequente, a qual é titular do direito de propriedade sobre o veículo automóvel que na acção executiva foi objecto de penhora.
E, mantendo-se a reserva de propriedade a favor da exequente, o veículo não deveria ter sido penhorado (cfr., neste sentido, Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, pag 230 e o Ac. desta Relação de 30-4-02, CJ Ano XXVII, tomo II, pag 124), já que a nomeação à penhora pelo titular da reserva de propriedade sobre o bem concernente não é conforme a regra que resulta da lei, no sentido de que pelas dívidas do executado apenas os seus bens ou os de terceiro afectos ao cumprimento da obrigação, respondem (arts 601º CC e 821º CPC).
Com efeito, o executado não tem aqui a posição de terceiro e a exequente deu à penhora um bem que é seu, pois que instaurou execução sendo titular de registo de reserva de propriedade que não pretende cancelar.
Efectuada a penhora, não deveria ter sido registada em termos definitivos, atento o disposto no art 92º nº2 a) do CRP, aplicável, como já foi dito, ao registo automóvel.
Não obstante tudo isto, defende a recorrente, apesar de ter dito que o veículo pertence ao executado, ser-lhe lícito nomear à penhora o bem cuja propriedade ficou reservada a seu favor, não lhe sendo exigível que proceda ao cancelamento dessa reserva, invocando que a circunstância de ter optado pelo cumprimento do contrato, em vez da sua resolução que envolveria o funcionamento da reserva de propriedade a seu favor, consubstancia a renúncia à mesma, renúncia que igualmente se extrairá, a seu ver, do facto de ter nomeado à penhora o bem que dela é objecto.
Entendemos não lhe assistir razão.
É certo que alguma da nossa doutrina e jurisprudência vem entendendo que o facto de o vendedor não resolver o contrato, optando pela via da satisfação coerciva do seu crédito e instaurando execução onde nomeie o bem cuja propriedade reservou para si, envolve a renúncia a essa reserva (cfr. Vasco da Gama Lobo Xavier, Venda a prestações. Algumas notas sobre os artigos 934º e 935º do Código Civil, pags 23 a 25 e, entre outras, algumas das decisões jurisprudenciais citadas e juntas pela recorrente com a sua alegação).
Mas a renúncia é uma demissão do direito, um acto abdicativo, e não um acto de transmissão (cfr Prof Antunes Varela em anotação ao art 1476º do CC – Código Civil Anotado).
A renúncia tácita, como qualquer outra declaração, vale “quando se deduz de factos que, com toda a possibilidade, a revelam” (art 217º do CC).
Ora, a exequente, para além de ter nomeado à penhora um veículo automóvel (omitindo, incorrectamente, a existência de reserva de propriedade a seu favor), não praticou qualquer outro acto do qual se possa inferir, com toda a probabilidade, que renuncia à reserva.
Pode ser que a exequente não esteja interessada na manutenção da cláusula de reserva de propriedade, mas, assim sendo, devia ser a própria exequente a cancelar o registo previamente à penhora que requereu.
Não o fez e até recorreu do despacho que lhe ordenou a junção da certidão onde conste o cancelamento da referida reserva. Então, como dizer-se que houve renúncia tácita?
Assim, pese embora o facto de a recorrente haver nomeado à penhora o veículo automóvel sobre cujo direito de propriedade tinha reserva, não pode resultar que a ela haja renunciado tácita e eficazmente.
Mas, mesmo que se veja na actuação da exequente acima descrita a materialização tácita duma tal renúncia, “(...) não havia meio de se conseguir o seu cancelamento no registo automóvel por falta de título documental adequado”.
“Nesta lógica, ainda que o veículo automóvel fosse vendido no âmbito da acção executiva, porque a reserva de propriedade, ou seja, um direito real de gozo, está registada antes do acto da penhora, continuaria a afectar, não obstante a alienação, o veículo automóvel vendido (cfr. artigo 824º, n.º 2 CC)”.
Acresce que “a reserva de propriedade tende a manter-se até efectivo pagamento do preço, certo que só esta circunstância desencadeia a transferência do direito de propriedade sobre a coisa vendida”, para além do “facto de a penhora em acção executiva não bastar à realização do direito de crédito do credor reservante do direito de propriedade” (Ac. desta Relação de 21-2-02, CJ Ano XXVII, Tomo I, pag 114).
De qualquer modo, quer se entenda consubstanciar a conduta da exequente uma renúncia tácita – art 217º nº1, 2ª parte, do CC - , quer se entenda que para tanto é necessária declaração expressa da exequente nesse sentido (declaração essa que, como já referimos, não se descortina nos autos), o que é certo é que “Sendo o registo automóvel um instrumento que deve estar em conformidade com a situação substantiva dos bens, designadamente para defesa de terceiros, a penhora do bem cuja reserva de propriedade está inscrita em nome do exequente exigia que esta, previamente, demonstrasse o cancelamento da reserva de propriedade.
Por isso, tendo a exequente omitido a verdadeira situação do veículo, ao referir que o mesmo pertencia ao executado, quando, afinal, tinha a seu favor a reserva da propriedade, não deve autorizar-se a passagem para uma outra fase do processo – a convocação de credores e a posterior venda do bem – sem que a questão fique regularizada”Ac desta Relação de 27-05-03 relatado pelo Exmº Juiz Desembargador António Geraldes e disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
Neste quadro, ao invés do que a agravante entende, nunca bastaria renunciar à reserva de propriedade sobre o veículo automóvel dado à penhora, porque o que está em causa é o facto de o prosseguimento da acção executiva, com a venda do veículo penhorado, depender do cancelamento daquele direito real de gozo nos serviços do registo automóvel.


2.4 - Sustenta, por fim, a recorrente que o facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da execução, quer porque ao tribunal, de acordo com o disposto nos arts 824º do CC e 888º do CPC, aquando da venda do bem penhorado, cabe ordenar, oficiosamente, o cancelamento de todos os registos que incidam sobre o bem, quer porque, a surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, se impõe agir em conformidade com o art 119º do CRP.
Vejamos.
Refere o art 888º do CPC que, após o pagamento do preço devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam nos termos do nº2 do art 824º do CC, entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho.
Por outro lado, conforme resulta do segundo dos aludidos normativos, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente do registo.
Ora, esquece a exequente, ora agravante, que a reserva de propriedade sobre o veículo, enquanto direito real de gozo que apenas produz efeitos em relação a terceiros se for registado – art 409º nº2 do CC e art 5º nº1 a) do Dec-Lei 54/75 –, porque foi inscrita a seu favor em data anterior àquela em que foi registada a penhora efectuada nos autos, não cabe no rol dos direitos reais que, nos termos do art 824º nº2 do CC, caducam com a venda em execução e são mandados cancelar oficiosamente, ao abrigo do disposto no art 888º do CPC.
O que significa que, a efectivar-se a venda judicial do veículo penhorado nos autos, estaria o tribunal impedido de ordenar o cancelamento do seu registo, o que levaria à transmissão do bem com aquele ónus, tendo o adquirente que o suportar na sua esfera jurídico- patrimonial.
Daí que, contra o defendido pela agravante, não pode a execução prosseguir com a venda do veículo penhorado, sem que aquela cancele o registo da reserva e comprove esse cancelamento com a junção ao processo da respectiva nota registral.
“...III - Não pode o tribunal permitir que prossiga uma execução em termos tais que, pela sua inacção, ele contribua para dar tutela a uma situação em que a aparência é desconforme à realidade: vender como bem do executado um bem sobre o qual o exequente mantém um registo que o tribunal não pode mandar cancelar e que obsta a que o adquirente adquira a propriedade.
IV - Desrespeitar-se-ia, assim, em grau elevado o princípio da confiança que num Estado de Direito pressupõe que os tribunais não são conscientemente coniventes com situações lesivas dos interesses daqueles que a eles recorrem de boa fé.
V - O tribunal não pode consentir aquilo que seria uma fraude à Lei (artigo 280º do Código Civil): proceder- se à alienação de veículo propriedade da entidade mutuante como se ela o pudesse fazer por dispor de uma propriedade resolúvel que lhe impõe a venda no caso de não pagamento pelo devedor fiduciante.
VI - Com efeito, permitindo-se o prosseguimento da execução estaria a permitir-se instrumentalizar o processo executivo para a realização coerciva de um direito real de garantia que a nossa Lei não reconhece: tal é o caso da alienação fiduciária em garantia” - Sumário do Ac. desta Relação de 1-12-02, relatado pelo Exmº Juiz Desembargador Salazar Casanova e disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
Finalmente, afigura-se-nos totalmente desadequado chamar à colação a disposição do art 119º do CRP, preceito este que, pressupondo, além do mais, a existência de penhora registada provisoriamente por o bem respectivo estar inscrito a favor de pessoa diferente do executado, visa solucionar a desactualização da inscrição registral relativa à titularidade do direito de propriedade sobre o bem penhorado para evitar o não prosseguimento das execuções por o registo não retratar a realidade.
Acontece que no caso dos autos, bem ou mal, a penhora promovida pela agravante e efectuada nos autos não se mostra registada provisoriamente - antes foi inscrita a título definitivo, acrescendo que não existem dúvidas quanto à propriedade do veículo dado à execução, existindo o conhecimento exacto e sem controvérsia da titularidade do direito de propriedade sobre tal veículo: ele é propriedade da exequente.
Não é, assim, legitimo invocar o disposto no art 119º do CRP.

Em conclusão: Tendo sido ordenada e realizada a penhora de veículo automóvel sobre o qual existe reserva de propriedade, devidamente registada anteriormente, em nome da exequente, não pode seguir-se para a fase da venda, devendo a acção executiva ser suspensa em relação à referida penhora até que a exequente demontre em juízo o cancelamento do registo da reserva de propriedade em causa.
Assim, ao invés do que a agravante entendeu, não infringiu o despacho recorrido qualquer das normas por ela invocados.
Improcede, por isso, o recurso.

************


IV – DECISÃO

Nesta conformidade, nega-se provimento ao agravo, mantendo-se integralmente o despacho recorrido.
Custas pela agravante.


(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora)

Lisboa, 19/10/04

(ANA GRÁCIO)
(LOPES BENTO)

(ADRIANO MORAIS)