Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
286/16.9T8BRR-B.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)

I. Para o efeito de graduação de créditos reclamados no processo de insolvência, o juiz poderá reconhecer aos trabalhadores da insolvente privilégio imobiliário especial sobre imóvel apreendido, ainda que na respetiva reclamação aqueles não tenham alegado terem exercido a sua atividade no referido imóvel, embora tenham invocado a natureza privilegiada do seu crédito, se dos elementos constantes no processo se colher que o imóvel em causa estava afetado à atividade empresarial da insolvente, existindo por conseguinte e em princípio uma ligação funcional entre o mesmo e o trabalhador, enquanto elementos da mesma organização produtiva.
II. É de presumir, se nada for alegado ou demonstrado em contrário, que os trabalhadores reclamantes exerciam a sua atividade no único imóvel apreendido à insolvente, se no dito imóvel estava instalada a sede da devedora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
No apenso de reclamação de créditos respeitante ao processo de insolvência de R, Lda, inconformado com a sentença de graduação de créditos proferida em 13.4.2016 pelo Juiz 4 da 2.ª Secção de Comércio da Instância Central do Barreiro, da Comarca de Lisboa, que graduou em primeiro lugar, com base em privilégio imobiliário especial, os créditos laborais reconhecidos, dela apelou o credor hipotecário Banco, S.A., tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
I – Ao Banco (…), S.A. foi reconhecido um crédito garantido por hipoteca voluntária constituída [sobre] o imóvel apreendido para a Massa Insolvente.
II – O Tribunal a quo efectuou apenas uma graduação para o bem imóvel onerado com garantia real de que se compõe a Massa Insolvente.
III – Nessa única graduação, os créditos reclamados pelos trabalhadores foram graduados com prevalência sobre os reclamados pelo Banco apelante, dotados de garantia real de hipoteca.
IV – Aos créditos dos trabalhadores não pode ser reconhecido privilégio imobiliário especial porquanto a respectiva atribuição carece de ser alegada e comprovado que os trabalhadores exerceram actividade no imóvel sobre o qual é atribuído o privilégio.
V – Ao que acresce que na lista elaborada pela Administradora de Insolvência ao abrigo do disposto no art. 129.º do CIRE, os créditos dos trabalhadores foram reconhecidos apenas como privilégios, não especificando o Sr. Administrador de insolvência qual o tipo de privilégio aí reconhecido.
VI – Pelo que se conclui que estes créditos seriam insusceptíveis de graduação anterior à do crédito reclamado pelo Banco ora Apelante no que diz respeito ao imóvel apreendido para a Massa Insolvente.
VII – Pretendendo então o ora Apelante que a decisão em crise seja substituída por outra na qual, em sede de graduação específica do imóvel apreendido para a Massa Insolvente, o crédito hipotecário do Banco credor, seja graduado com prevalência sobre os créditos dos trabalhadores.
O apelante terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada e ordenada a sua substituição por outra em conformidade.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão que se suscita neste recurso é se os créditos reconhecidos no processo aos trabalhadores da insolvente estão garantidos com privilégio imobiliário especial sobre o imóvel hipotecado em benefício do apelante.
Resulta destes autos a seguinte
Matéria de facto
1. A sociedade R, Lda foi declarada insolvente por sentença proferida em 01.02.2016, transitada em julgado em 22.02.2016.
2. A sociedade insolvente tinha a sua sede num imóvel sito na Rua (…), Almada.
3. A propriedade do dito imóvel encontra-se registada a favor da insolvente na Conservatória do Registo Predial de Almada.
4. Sobre o dito imóvel encontra-se registada hipoteca voluntária a favor da ora apelante, para garantia de empréstimo.
5. O dito imóvel foi o único bem apreendido no âmbito do processo de insolvência.
6. O Sr. administrador de insolvência elaborou o mapa de créditos reconhecidos constante a fls 3 verso destes autos, no qual identifica, além do mais, créditos laborais de sete pessoas, que indica serem “privilegiados”.
7. Nas reclamações de créditos apresentadas, os trabalhadores da insolvente alegaram as funções exercidas sob a direção e fiscalização da insolvente, invocaram as quantias remuneratórias e compensatórias a que entendiam ter direito em virtude da execução do contrato de trabalho e da sua cessação e ainda que o seu crédito tinha “natureza privilegiada nos termos do artigo 47.º n.º 4 alínea a) do CIRE”.
8. Não houve impugnação da lista de credores reconhecidos.
Na sentença de verificação e graduação dos créditos o tribunal a quo deu como provado que os trabalhadores prestaram a sua atividade no aludido bem imóvel do empregador.
O Direito
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores” – n.º 1 do art.º 1.º do CIRE.
A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” – n.º 1 do art.º 46.º do CIRE.
Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio” – n.º 1 do art.º 47.º do CIRE.
Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são:
a) «Garantidos» e «privilegiados» os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes;
b) «Subordinados» os créditos enumerados no artigo seguinte, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência;
c) «Comuns» os demais créditos” – n.º 4 do art.º 47.º do CIRE.
Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem:
a) A sua proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros;
b) As condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas;
c) A sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável;
d) A existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes;
e) A taxa de juros moratórios aplicável” – n.º 1 do art.º 128.º do CIRE.
1 - Nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, ambas por ordem alfabética, relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento.
2 - Da lista dos credores reconhecidos consta a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante de capital e juros à data do termo do prazo das reclamações, as garantias pessoais e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável e as eventuais condições suspensivas ou resolutivas” – art.º 129.º do CIRE.
3 - Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos” – art.º 130.º do CIRE.
“2 - A graduação é geral para os bens da massa insolvente e é especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia e privilégios creditórios” – art.º 140.º do CIRE.
Sob a epígrafe “privilégios creditórios”, estipula-se no art.º 333.º do Código do Trabalho de 2009:
1 - Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.
2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747º do Código Civil;
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.”
O art.º 751.º do Código Civil, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 38/2003, de 8.3, sob a epígrafe “privilégio imobiliário especial e direitos de terceiro”, dispõe o seguinte:
Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.”
O STJ pronunciou-se bem recentemente acerca da temática do privilégio imobiliário especial de que gozam os trabalhadores sobre os “bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade” (embora à luz do art.º 377.º do Código do Trabalho de 2003, cuja redação é, nesta parte, essencialmente idêntica à do correspondente preceito do atual Código do Trabalho – art.º 333.º): acórdão de 23.02.2016, de uniformização de jurisprudência, proferido no processo 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1-A, publicado no D.R., 1.ª série, n.º 74, de 15.04.2016, páginas 1284 – 1306.
Nesse acórdão, após se salientar a razão de ser desta garantia, que é a essencialidade do salário na satisfação das necessidades básicas do trabalhador e da sua família, motivador de proteção constitucional (art.º 59.º n.º 1, alínea a), n.º 2 alínea a) e n.º 3 da CRP), o STJ debruçou-se, primeiro, sobre a questão geral do objeto deste privilégio especial: que imóveis são abrangidos pelo privilégio? Todos os imóveis afetos à atividade do empregador? Apenas aqueles imóveis em que o trabalhador tenha exercido efetivamente a sua atividade? Passando depois a apreciar um problema suplementar específico, levantado pelo setor da construção civil, que constituía o objeto da pretendida uniformização de jurisprudência, que era o de saber se os imóveis construídos para venda, no âmbito da atividade da empresa, são igualmente abrangidos pelo privilégio imobiliário.
Sobre a aludida questão geral, o STJ enunciou as teses em presença, uma restritiva e outra mais ampla: segundo a tese restritiva, o trabalhador só goza de privilégio especial sobre o imóvel concreto em que preste, ou tenha prestado, de facto, a sua atividade. Releva a especial ligação entre o imóvel e a atividade do trabalhador, pelo que esse imóvel deve constituir o local onde o trabalhador exerce ou exerceu efetivamente a sua atividade. Assim, ficarão excluídos dessa garantia os trabalhadores que não exerçam ou não tenham exercido funções no ou nos imóveis da entidade empregadora que venham a ser apreendidos, seja porque trabalhavam no exterior, seja porque o faziam, v.g., em instalações arrendadas a terceiro, restringindo-se a garantia, no caso de multiplicidade de prédios apreendidos, àquele ou aqueles em que o trabalhador efetivamente exercera a sua atividade.
Na interpretação mais ampla, propugna-se que todos os trabalhadores podem beneficiar do privilégio sobre todos os imóveis próprios da empresa, que o empregador afete à sua atividade empresarial. Basta, pois, que os imóveis integrem a organização produtiva da empresa a que pertencem os trabalhadores, numa ligação que não tem de ser naturalística – isto é, não tem necessariamente a ver com a localização física do posto de trabalho de cada um deles –, mas meramente funcional.
Apesar desta maior amplitude do privilégio, entende-se que continua a existir a conexão que lhe é típica e necessária – a especial relação que intercede entre o crédito e a coisa garante –, ou seja, entre a atividade do trabalhador, que é fonte do crédito, e os imóveis do empregador afetos à atividade económica por este prosseguida.
Por outro lado, mesmo com esse âmbito, este privilégio não se identifica com o privilégio imobiliário geral que se pretendeu abolir, ficando excluídos, designadamente, os imóveis utilizados noutra atividade (por ex., arrendados a terceiros) ou destinados à fruição pessoal do empregador (tratando-se de pessoa singular).
Neste acórdão, subscrito pelos Exmos Conselheiros das Secções Cíveis do STJ, o STJ considerou ser de adotar a conceção ampla supra exposta, tida como “mais consentânea com a razão de ser da atribuição do privilégio creditório aos créditos laborais, que é, como se referiu, a especial protecção que devem merecer esses créditos, em atenção à sua relevância económica e social, que não se concilia com um injustificado tratamento diferenciado dos trabalhadores de uma mesma empresa, em função da actividade profissional de cada um e do local onde a exercem.”
Neste aresto notou-se que o local específico onde cada trabalhador presta funções constitui mero elemento acidental da relação laboral, não sendo elemento diferenciador dos direitos dos trabalhadores. Todos os trabalhadores contribuem para a prossecução da atividade global da empresa, integrando a organização empresarial e estão, todos eles, funcionalmente ligados aos imóveis que, constituindo património da empresa, servem de suporte físico a essa atividade.
Já quanto à extensão do aludido privilégio aos prédios edificados pelas empresas de construção civil no exercício da sua atividade, o STJ optou, maioritariamente, pela exclusão, fixando jurisprudência no sentido de que os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003.”
Transportando para este caso a jurisprudência supra exposta, que se sufraga, dela resulta que um trabalhador goza de privilégio imobiliário especial pelo seu crédito perante a entidade empregadora sobre o ou os imóveis pertencentes ao empregador que façam parte da estrutura estável da sua organização produtiva, independentemente da localização efetiva do posto de trabalho do trabalhador. Por outro lado, sendo o imóvel apreendido a sede da sociedade insolvente, dúvidas não haverá de que integra a estrutura estável da empregadora, que faz parte da sua organização produtiva, pelo que, salvo situação excecional (não invocada na primeira instância), existirá entre ele e os trabalhadores a supra referida ligação funcional que o aludido privilégio imobiliário especial pressupõe (vide, v.g., acórdão do STJ, de 13.11.2014, processo 1315/11.8TJVNF-A.P1.S1).
Diz o apelante que os trabalhadores não alegaram nem comprovaram que exerceram atividade no imóvel sobre o qual o tribunal lhes atribuiu o privilégio. E diz também que na lista de créditos reconhecidos o administrador da insolvência indicou os créditos dos trabalhadores como “privilégios”, sem especificar qual o tipo de privilégio aí reconhecido.
Quanto à alegação, na reclamação de créditos, dos factos concretizadores da aludida garantia, afigura-se-nos ser de sufragar uma visão menos formalista do que a propugnada pelo apelante, enveredando-se, antes, na linha do defendido pelo STJ, v.g., nos acórdãos proferidos em 23.01.2014 (processo 1938/06.7TBCTB-E.C1.S1) e em 10.12.2015 (processo 836/12.0TBSTS-A.P1.S1), por uma visão alargada do princípio do inquisitório consagrado no art.º 11.º do CIRE, iluminada pela abertura do processo à introdução de factos complementares ou concretizadores do núcleo essencial da causa de pedir invocada pelo credor (art.º 5.º do CPC e 17.º do CIRE). In casu, tendo os credores invocado o caráter laboral dos seus créditos e bem assim a sua natureza privilegiada, e verificando-se nos autos que o único bem apreendido era o imóvel onde a devedora tinha a sua sede, livre estava o tribunal a quo de, levando este último facto em consideração e aplicando o direito aos factos (art.º 5.º n.º 3 do CPC), reconhecer aos trabalhadores reclamantes o privilégio imobiliário especial ora sob escrutínio.
Quanto à alegada falta de explicitação, na lista elaborada pelo administrador de insolvência, do privilégio atribuído, nada impede o juiz de a suprir, se dispuser dos elementos bastantes, podendo previamente pedir esclarecimentos às partes ou ao administrador de insolvência, se assim o considerar necessário (aliás vide, quanto ao administrador de insolvência, o disposto no art.º 58.º do CIRE). E poderá fazê-lo mesmo que não exista impugnação dessa lista, como decorre do disposto no n.º 3 do art.º 130.º do CIRE, supra transcrito, que admite e até impõe ao juiz que se abstenha de homologar a dita lista se ela enfermar de erro manifesto, conceito este que deve ser interpretado de forma ampla (vide o já referido acórdão do STJ, de 10.12.2015), abrangendo a mera incompletude.
Daí que nada tenhamos a opor à decisão recorrida quando, em sede de matéria de facto, deu como demonstrado que os trabalhadores reclamantes prestaram a sua atividade no aludido imóvel da insolvente.
Constatação essa que assegura aos trabalhadores o reconhecido privilégio imobiliário especial.
Sendo certo que a graduação de créditos teve em vista tão só o aludido imóvel, porque este foi o único bem apreendido no processo.
Conclui-se, assim, que a sentença recorrida não merece censura.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a sentença recorrida.
As custas da apelação são a cargo do apelante, que nela decaiu.
Lisboa, 07.7.2016

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Lúcia Sousa