Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1709/20.8YRLSB-8
Relator: RUI VOUGA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO ESTÁVEL
ESCRITURA DECLARATÓRIA
FALTA DE CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/26/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: INDEFERIDA
Sumário: - A declaração da existência duma união estável entre  ambos os Requerentes promana das declarações negociais de vontade emitidas pelos próprios  putativos companheiros no contexto duma escritura pública celebrada num cartório notarial, em que o notário se limita a certificar que os outorgantes declararam "que «convivem em União Estável, desde …., convivência esta pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família, nos termos dos artigos n9 1.723º e seguintes do Código Civil";
- A ausência de qualquer decisão, seja de natureza judicial, seja doutra qualquer natureza (administrativa ou religiosa), passível de formar caso julgado e, portanto, susceptível de ser revista e confirmada por esta Relação, no quadro do processo especial cuja tramitação está prevista nos citt. arts. 978° e segs. do CPC de 2013, implica a inexistência de causa de pedir.
- Ora  a falta de causa de pedir constitui causa de ineptidão da petição inicial, nos termos do art. 186º, n° 2, al. a), do CPC de 2013, acarretando a nulidade de todo o processo (n° 1 do mesmo art. 1869, a qual conduz à absolvição do réu da instância, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 278°, n° 1, al. b). 576°, n° 2, e 577°, al. b), todos do citado CPC de 2013.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível da Relação de Lisboa:

M … (de nacionalidade portuguesa , viúvo, natural da cidade de … ) e D … (brasileira, … ), ambos residentes e domiciliados na Rua das Perdizes 95, Barra Funda, na cidade de São Paulo, no Estado de São Paulo, Brasil, propuseram ambos uma acção especial de revisão de sentença estrangeira, pedindo que seja revista e confirmada a Escritura Pública de União Estável lavrada pelo le Tabelião de Notas de S. Paulo, no dia 27 de Janeiro de 2020, e registada no Livro 4680, Página 335, na qual os respectivos outorgantes (os ora Autores) declararam que «convivem em União Estável, desde o dia 01 de Outubro de 2013, convivência esta pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família, nos termos dos artigos ns 1.7233 e seguintes do Código Civil [Brasileiro]» e pela qual estabeleceram que, quanto às regras concernentes ao regime de bens a vigorar durante a sua união, aplicar-se-á o da Comunhão Parcial de Bens, excluindo-se da comunhão os bens que cada convivente possuía até ao início da união, e os que lhe sobrevierem, na constância daquela, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar, bem como os adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a cada um dos conviventes em sub-rogação dos bens particulares.
Observado o disposto no art. 9822, n2 1, do CPC de 2013, tanto o MINISTÉRIO PÚBLICO como os Requerentes apresentaram alegações, nas quais sustentam, em resumo, inexistirem dúvidas quanto à autenticidade do documento de que consta a decisão a rever, não se vislumbrar a ausência de qualquer dos requisitos aludidos nas alíneas b) a e) do art. 9802 do CPC de 2013 (cuja verificação, aliás, se presume, nos termos do art. 9842 do mesmo diploma) e ser a decisão confirmanda conforme aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, estando, portanto, reunidos todos os pressupostos necessários à confirmação da decisão revidenda.
Cumpre apreciar e decidir.

O Tribunal é competente (art. 979Q do CPC de 2013)[1].
Não ocorrem nulidades, excepções ou questões prévias obstativas do conhecimento do mérito da causa de que cumpra conhecer oficiosamente.
FACTOS RELEVANTES
1) O 1Q Requerente é viúvo (cfr. o documento junto à PI sob o n[2] 2, a fls. 9-10);
2) A 2- Requerente é divorciada (cfr. o documento junto à PI sob on- 2,a fls. 9-10);
3) Por Escritura Pública de União Estável lavrada pelo le Tabelião de Notas de S. Paulo, no dia 27 de Janeiro de 2020, e registada no Livro 4680, Página 335, os respectivos outorgantes (os ora Requerentes) declararam que «convivem em União Estável, desde o dia 01 de Outubro de 2013, convivência esta pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família, nos termos dos artigos nB 1.7232 e seguintes do Código Civil [Brasileiro]» e estabeleceram que, quanto às regras concernentes ao regime de bens a vigorar durante a sua união, aplicar-se-á o da Comunhão Parcial de Bens, excluindo-se da comunhão os bens que cada convivente possuía até ao início da união, e os que lhe sobrevierem, na constância daquela, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar, bem como os adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a cada um dos conviventes em sub-rogação dos bens particulares, (cfr. o documento junto à petição inicial como documento nQ 2, a fls. 9-10).
O MÉRITO DA CAUSA
«Confirmar uma sentença estrangeira, após ter procedido à sua revisão, é reconhecer-lhe, no Estado do foro, os efeitos que lhe cabem no Estado de origem, como acto jurisdicional, segundo a lei desse mesmo Estado»2.
«Esses efeitos são o efeito de caso julgado e o efeito de título executivo, embora se possa falar ainda de efeitos constitutivos, de efeitos secundários ou laterais e de efeitos da sentença estrangeira como simples meio de prova, os quais, por vezes, se produzem independentemente da necessidade de qualquer reconhecimento»2 [3] [4] [5] [6].
Enquanto «o efeito de caso julgado [quer se trate do efeito positivo do caso julgado (invocação pelo autor da sentença estrangeira como fundamento de uma pretensão] quer se trate do efeito negativo (excepção de caso julgado invocada pelo réu)] depende da revisão (cf. o artigo 9782, n2 1, do CPC de 2013), bem como o efeito executivo (cf. os artigos 7062, n2 1; 902; 7292 do actual CPC) e os efeitos constitutivos, extintivos ou modificativos em matéria de estado das pessoas (cf. o artigo 72, n2s 1 e 2, do Código de Registo Civil); [já] os efeitos da sentença como simples meio de prova produzir-se-ão independentemente de revisão (artigo 9782, n2 2, do actual CPC)»4 5 6.
Entre nós, o reconhecimento das sentenças estrangeiras dá-se por via do exequatur, controlo ou revisão, o qual não é de mérito - caso em que haveria um controlo da aplicação do direito[7] ou até uma reapreciação da matéria de facto[8] -, mas simplesmente formal[9].
A menos que exista tratado ou lei especial que estabeleça outra coisa, é, em princípio, necessária a revisão para uma sentença judicial ou arbitrai estrangeira sobre direitos privados ser confirmada (art. 9782, n2 1, do CPC de 2013).
«Por sentença estrangeira, há-de entender-se aqui tão-somente a decisão revestida de força de caso julgado, que recaia sobre "direitos privados", isto é, sobre matéria civil e comercial qualquer que seja a natureza do órgão que a proferiu e a sua designação, bem como a sentença que tiver sido proferida, sobre a mesma matéria, "por árbitros no estrangeiro" (artigo 1094B, nB 1, do CPC [de 1961 - disposição equivalente ao art. 978-, ne 1, do actual CPC de 2013])»[10].
Segundo ALBERTO DOS REIS[11], «a frase "sobre direitos privados" [utilizada no cit. art. 10949-1 do CPC de 1961 e no correspondente art. 978Q-1 do actual CPC de 2013] foi empregada precisamente para significar que, ou verse sobre relações jurídicas de natureza civil, ou sobre relações jurídicas de natureza comercial, a sentença estrangeira pode ser executada em Portugal, desde que esteja revista e confirmada».
«Por outro lado, da fórmula referida se conclui que não são susceptíveis de revisão as sentenças estrangeiras sobre direitos públicos, políticos ou não políticos, e designadamente as sentenças criminais»[12] [13] [14].
Quanto à natureza do tribunal que proferiu a sentença a rever, é consensual o entendimento segundo o qual a natureza do tribunal é irrelevante: «o que importa é o objecto da decisão, e não a natureza do tribunal»1214. «Que este seja comum ou especial, é indiferente» [15]. «Assim, as condenações cíveis proferidas por tribunais criminais que, como é o caso dos portugueses, se podem ocupar da indemnização por prejuízos causados pela conduta criminosa, são susceptíveis de reconhecimento ao abrigo deste regime; e não são reconhecíveis ao abrigo deste regime as decisões proferidas em processos cíveis na parte em que apliquem sanções penais ou contra-ordenacionais»[16].
Quanto ao carácter da decisão a rever, ALBERTO DOS REIS[17] acentua que a substituição (na disposição do CPC de 1939 [artigo 11009] equivalente ao actual art. 9789-l do CPC de 2013) da palavra "sentenças" (que se empregava no art. 10872 do velho Código de Processo Civil de 1876) pela palavra "decisões" visou abranger tanto as sentenças propriamente ditas, como os acórdãos proferidos pelos tribunais colectivos e também os simples despachos [18].
Segundo LUÍS DE LIMA PINHEIRO[19], «por "decisão" entende-se qualquer acto público que segundo a ordem jurídica do Estado de origem tenha força de caso julgado». Isto porque «os actos públicos que não produzem efeito de caso julgado segundo o Direito do Estado de origem não colocam um problema de reconhecimento de efeitos enquanto acto jurisdicional»[20]. «Por isso o processo de revisão é em primeira linha pensado para decisões com força de caso julgado»[21].
Dito isto, «é no entanto concebível que possa ser pretendida a execução, em Portugal, de decisões jurisdicionais estrangeiras que não formam caso julgado material na ordem jurídica do Estado de origem»[22]. «Neste caso deve entender-se que é aplicável analogicamente o disposto nos arts. 1094B e segs. do CPC [de 1961] »[23].
Quanto às decisões proferidas em processos de jurisdição voluntária, por
exemplo a decisão de regulação do poder paternal ou que decreta o divórcio por mútuo consentimento, embora a actividade desenvolvida neste caso pelo tribunal não corresponda ao exercício da função jurisdicional e só por razões de política legislativa ela não tenha sido confiada a um notário, conservador ou outra entidade administrativa, tem prevalecido, na jurisprudência, o entendimento, preconizado por ALBERTO DOS REIS[24], segundo o qual estas decisões estão igualmente sujeitas ao processo de revisão.
Segundo LUÍS DE LIMA PINHEIRO[25], à face do Direito português, há que distinguir.
Assim, «se a decisão estrangeira, apesar de proferida em processo de jurisdição voluntária, forma caso julgado material - posto que atenuado, como sucede entre nós - no Direito do Estado de origem, deve entender-se que o reconhecimento dos seus efeitos enquanto acto jurisdicional depende de revisão e confirmação»[26]. Todavia, «já parece que o disposto nos arts. 1094Q e segs. do CPC [de 1961] não será directamente aplicável ao reconhecimento da decisão que não forme caso julgado material»[27]. «No entanto, nos casos pouco frequentes em que seja necessário executar o acto, parece defensável uma aplicação analógica deste regime e, por conseguinte, a necessidade de revisão e confirmação»[28].
«As sentenças homologatórias de confissão ou transacção também estão submetidas ao processo de revisão, podendo a sua especificidade exigir a introdução de ajustamentos às condições de confirmação»[29].
Muito embora, «em princípio, só estejam sujeitas a revisão as decisões proferidas por um órgão jurisdicional», «este regime de reconhecimento deve ser aplicado analogicamente às decisões de autoridades administrativas estrangeiras que, em Portugal, são da competência dos tribunais 30 31.
«Enquanto o divórcio em Portugal só podia ser decretado peio tribunal, entendeu-se que os divórcios por mútuo consentimento proferidos por conservadores do registo civil estrangeiro estavam sujeitos a este regime»32 33 34.
A partir do momento em que, entre nós, o divórcio por mútuo consentimento passou a poder ser requerido na Conservatória do Registo Civil [o que ocorre sempre que não haja filhos menores ou, havendo-os, quando o exercício das respectivas responsabilidades parentais já estiver judicialmente regulado: cfr. o artigo 1773[30] [31], na 2, do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei n2 163/95, de 13-7], põe-se a questão de saber se o reconhecimento dos divórcios por mútuo consentimento decretados por conservadores do registo civil estrangeiro continua a estar dependente do regime de reconhecimento e revisão consagrado nos arts. 1094[32] [33] [34] e segs. do CPC.
LUÍS DE LIMA PINHEIRO[35] entende que a resposta a esta questão deve ser
afirmativa «quando a decisão da autoridade administrativa estrangeira tiver os mesmos efeitos que uma decisão judicial» - como justamente ocorre no Direito português actualmente vigente Ccfr. o artigo 17762, n2 3, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n2 61/2008, de 31-X).
Isto porque, «em última instância o que importa não é a natureza do órgão que profere a decisão mas os efeitos que ela produz segundo o Direito do Estado de origem»[36].
Assim, «por exemplo, o disposto nos arts. 1094Q e segs. [do] CPC [de 1961] deve ser aplicado analogicamente aos actos praticados pelas autoridades administrativas dinamarquesas em matéria de obrigações de alimentos»[37].
Na jurisprudência, também se tem entendido que, «apesar de a nossa lei já prever que o divórcio por mútuo consentimento, não havendo filhos menores ou, havendo-os, o exercício do poder paternal esteja judicialmente regulado, possa ser requerido na Conservatória do Registo Civil, para que a decisão de autoridade estrangeira competente que tenha decretado o divórcio por mútuo consentimento se torne eficaz no nosso ordenamento interno continua a exigir-se que ela seja revista e confirmada»[38].
De igual modo «também estão sujeitas a revisão as decisões de tribunais e autoridades religiosas em que [algumas] ordens jurídicas estrangeiras delegam poderes de autoridade»[39] - o que se verifica, designadamente, em matéria de divórcio e de separação. Na verdade - segundo LIMA PINHEIRO[40] -, «os actos constitutivos de autoridades administrativas ou religiosas que formem caso julgado são susceptíveis de revisão, desde que sejam eficazes segundo o direito competente».
Porém, no caso dos autos, está em causa a declaração da existência entre ambos os Autores duma situação de união de facto, à qual a lei interna brasileira (os arts 17232 a 17272 do actual Código Civil, aprovado pela Lei n.2 10.406, de 10.1.2002),) reconhece um estatuto equiparável ao casamento. Na verdade, o cit. art. 17232 do actual Código Civil brasileiro estabelece que: «É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.».
Tanto assim é que o art. 17242 do mesmo Código sujeita as relações pessoais entre os membros duma «união estável» aos «deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos». E, por sua vez, o art. 17252 do mesmo Código manda aplicar às relações patrimoniais entre os membros duma «união estável», salvo convenção escrita em contrário, «o regime da comunhão parcial de bens».
Desta disposição legal resulta, pois, que os conviventes podem estipular regras patrimoniais específicas para gerir os efeitos patrimoniais da relação, através de um contrato escrito, derrogando assim o regime de comunhão parcial de bens supletivamente determinado por lei. Este negócio jurídico denomina-se contrato de convivência ou contrato particular de convívio conjugal
O modo como o direito interno brasileiro configura e regulamenta esta união estável entre um homem e uma mulher revela que se trata duma modalidade de estado civil que não se confunde com o casamento (o qual está exaustivamente regulamentado nos arts. 15 ll2 a 15822 do Código Civil Brasileiro], mas comporta para os membros da união deveres em tudo semelhantes aos que decorrem do casamento (cfr. o art. 15662 do Código Civil Brasileiro) e produz efeitos patrimoniais entre os membros da união (sujeitando as relações patrimoniais entre eles às regras próprias do regime da comunhão parcial de bens, salvo convenção escrita em contrário entre os "companheiros”) que são moldados precisamente sobre um dos vários regimes de bens que podem existir entre os cônjuges no direito matrimonial brasileiro.
Ora, aquilo que se pretende seja reconhecido por esta Relação, através do processo de revisão e confirmação regulado nos artigos 9782 e segs. do actual CPC, não é nenhuma decisão judicial proferida por um Tribunal Brasileiro, que porventura tivesse declarado existir entre os Autores uma situação de união de facto, com as características exigidas pelo cit. artigo 17232 do Código Civil Brasileiro (uma união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de famíliaf nem sequer uma decisão pronunciada por uma qualquer autoridade administrativa ou religiosa a quem, porventura, a ordem jurídica brasileira tivesse conferido poderes de autoridade para certificar a existência da tal entidade familiar reconhecida pelo mesmo art. 17232, consubstanciada numa convivência pública, contínua e duradoura, entre um homem e uma mulher e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Efectivamente, neste caso, a declaração da existência duma união estável entre ambos os Requerentes promana das declarações negociais de vontade emitidas pelos próprios putativos companheiros, no contexto duma escritura pública celebrada num cartório notarial, em que o notário se limita a certificar que os outorgantes declararam "que «convivem em União Estável, desde o dia 01 de Outubro de 2013, convivência esta pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família, nos termos dos artigos n- 1.7232 e seguintes do Código Civil" (cfr. o documento junto à petição inicial como documento ne 2, afls. 9-10).
A ausência de qualquer decisão, seja de natureza judicial, seja doutra qualquer natureza (administrativa ou religiosa), passível de formar caso julgado e, portanto, susceptível de ser revista e confirmada por esta Relação, no quadro do processo especial cuja tramitação está prevista nos citt. arts. 9782 e segs. do CPC de 2013, implica a inexistência de causa de pedir.
Na verdade, «a acção de revisão de sentença estrangeira é uma acção de simples apreciação destinada a verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir efeitos como acto jurisdicional na ordem jurídica portuguesa»4142.
Por isso, se não existe qualquer decisão estrangeira, seja ela judicial, administrativa ou religiosa, em condicões de produzir efeitos como acto jurisdicional na ordem jurídica portuguesa, falta, pura e simplesmente, a causa de pedir.
Ora - como se sabe -, a falta de causa de pedir constitui causa de ineptidão da petição inicial, nos termos do art. 186a, na 2, al. a], do CPC de 2013, acarretando a nulidade de todo o processo (na 1 do mesmo art. 186a), a qual conduz à absolvição do réu da instância, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 278a, na 1, al. b). 576a, na 2, e 577a, al. b), todos do citado CPC de 2013.

DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em:
a) julgar inepta a petição inicial, por falta de causa de pedir (art. 186a, na 2, al. a), do actual CPC de 2013), no que concerne ao pedido de revisão e confirmação da Escritura Pública de União Estável lavrada pelo Ia Tabelião de Notas de S. Paulo, no dia 27 de Janeiro de 2020, e registada no Livro 4680, Página 335, na qual os respectivos outorgantes (os ora Autores) declararam que «convivem em União Estável, desde o dia 01 de Outubro de 2013, convivência esta pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família, nos termos dos artigos nQ 1.723B e seguintes do Código Civil [Brasileiro]»;
b) e, consequentemente, indeferir a petição inicial (nos termos do na 1 do art. 590a do actual CPC), declarar nulo todo o processo (nos termos do na 1 do cit. art. 186a do mesmo diploma) e extinta a instância.
Custas a cargo dos Requerentes, em partes iguais (arts. 527a, nas 1 e 2, e 528a, na 1, do actual CPC).

Lisboa, 26/11/2020
Rui Torres Vouga (Relator por Vencimento)
Isoleta Almeida Costa

Voto de vencimento
Não subscrevemos a decisão, pelas seguintes razões, em síntese:
— o processo especial de revisão de sentença estrangeira destina-se apenas a verificar se a decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro ou entidade equiparada para este efeito, está em condições de produzir os seus efeitos em Portugal.
Tal passa apenas pela avaliação dos pressupostos que o legislador elenca nas várias alíneas do art.° 980.° do CPC, só podendo ser impugnado o pedido com fundamento na falta de qualquer dos requisitos previstos neste artigo, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas al. a), c) e g) do art.° 696.°, conforme dispõe o art.° 983.° do CPC.
Estamos neste caso perante um sistema de revisão formal ou delibação, que abstrai dos fundamentos da decisão e se centra nas condições de regularidade em que a mesma foi proferida - neste sentido, e apenas a título de exemplo.
Na situação em presença, não se nos oferece dúvidas, em razão dos factos apurados que resultam dos documentos juntos ao processo, que estão verificados os diversos requisitos previstos nas al. a) a f) do art.° 980.° do CPC.
Na verdade, não surgem dúvidas sobre a autenticidade do documento que constitui a escritura pública apresentada, nem sobre o seu conteúdo que respeita a uma declaração de existência de uma união estável; a escritura provém de autoridade oficial estrangeira competente que corresponde à nacionalidade das partes; não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, de acordo com o disposto no art.° 63.° do CPC; não existe qualquer indício de litispendência ou caso julgado que obste à revisão e confirmação requerida; ambos os interessados aqui requerentes tiveram intervenção na escritura sob revisão; a mesma não contém decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, sendo que o nosso ordenamento jurídico contempla uma figura semelhante ao da União Estável Brasileira, aqui denominada União de Facto, prevista na Lei 7/ 2001 de 11 de maio e à qual o legislador nacional também atribui determinados efeitos jurídicos.
A certidão de escritura pública declara Lória de união estável é o documento emitido pelo Tabelionato de Notas que certifica e dá fé pública à Declaração de União Estável ora lavrada. Trata-se de um documento público declaratório firmado pelos conviventes no Tabelionato de Notas, que oficializa a união estável (cf. artigos 215.° a 218.° do Código Civil Brasileiro). É este documento que, nessa parte e medida, é equiparado a uma sentença, à semelhança do que acontece com a escritura pública de divórcio lavrada em Tabelionato de Notas brasileiro .Ainda que pela escritura pública declaratória de união estável os outorgantes também possam definir regras aplicáveis à sua relação, como regime de bens, cláusulas, pagamento de pensão, titularidade de bens [como aliás acontece com este nosso caso], isso não deve obstar à possibilidade da sua revisão e confirmação, à semelhança do que sucede, aliás, com as escrituras públicas de divórcio, que, para além do divórcio, também podem incidir sobre outros aspetos, designadamente a partilha dos bens do casal, sendo certo que a revisão destas últimas vem sendo concedida nos tribunais superiores portugueses, sem que tenhamos notícia de jurisprudência em contrário.
Termos em que não podemos deixar de concluir nos mesmos termos em que o fez o Acórdão
do STJ de 29/01/2019 no proc. 896/18.0YRLSB.S1 in www.dgsi.pt: “A escritura pública, lavrada em Cartório do Registo Civil situado no Brasil, que reconhece a "união estável e de endereço comum" entre uma pessoa com nacionalidade brasileira e outra com nacionalidade portuguesa, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença.
II - Verificados os requisitos previstos no art. 980.° do CPC, e não relevando saber se a referida escritura é suficiente para atribuir nacionalidade portuguesa ao membro com nacionalidade brasileira, como pretendido, deve a mesma ser revista e confirmada por tribunal português.”
Assim, verifica-se estarem reunidos todos os requisitos necessários à revisão e confirmação da escritura pública declaratória da união estável brasileira nos termos requeridos, de modo a que a mesma possa produzir efeitos em Portugal.
(...).»
**
Lisboa, 26 de Novembro de 2020
Teresa Prazeres Pais
_______________________________________________________
[1] Efectivamente, como ambos os Requerentes têm residência em país estrangeiro (in casu, no Brasil), mercê do disposto no art. 80°, n° 3, 3a parte, do CPC de 2013 (aqui aplicável por remissão do art. 979° do mesmo diploma), a competência territorial para a revisão e confirmação está deferida ao Tribunal da Relação de Lisboa.
[2]ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS in “Revisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997 (Alterações ao Regime Anterior)”, publicado inAspectos do Novo Processo CiviC, Lisboa, 1997, p. 105.
[3]  ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, ibidem.
[4]ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS inRevisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997...” cit., p. 148.
[5]     Cfr., também no sentido de que, embora a letra do n° 1 do art. 1094° (disposição equivalente, no CPC de 1961, ao art. 978° do actual CPC de 2013) pareça subordinar à revisão e confirmação todos os modos de relevância das sentenças estrangeiras, ressalvados os tratados e leis especiais, o n° 2 do mesmo preceito esclarece que não é necessária revisão para que a sentença estrangeira possa ser invocada como meio de prova sujeito à apreciação do juiz, LUÍS
LIMA PINHEIRO in “Regime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras”, publicado in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 61, vol. II, Abril de 2001, pp. 561 a 628.
[6] Segundo o Assento do STJ de 16/12/1988 (publicado in Diário da República, I Série, n° 50/89, de 1/3/1989 e também in BMJ n° 382, p. 187), «A sentença estrangeira não revista nem confirmada, pode ser invocada em processo pendente em tribunal português como simples meio de prova, cujo valor é livremente apreciado pelo julgador ».
[7]  O que apenas acontece no caso previsto no art. 983°, n° 2, do CPC de 2013.
[8]     É o que acontece no caso previsto no art. 696°, al. c), do actual CPC, por força do disposto no art. 983°, n° 1, do mesmo diploma.
[9]     «Com efeito, os actuais requisitos que são necessários pura a confirmação das sentenças estrangeiras que constam do artigo 1096° do CPC [de 1961, disposição correspondente ao art. 980° do actual CPC de 2013] têm pralieamente todos carácter extrínseco ou formal e não há nenhum deles que implique qualquer controle do direito material que foi aplicado pelo tribunal scntencíador ou da apreciação da matéria de Tacto» (ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS in "Revisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997.. ” cit., p. 149).
[10]ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, inRevisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997..." cit., pp. 105-106.
[11]  In “Processos Especiais”, Vol. II, 1982, p. 144.
[12] ALBERTO DOS REIS, ibidem.
[13]  ALBERTO DOS REIS in ob. e vol. citt., pp. 144/145.
[14] Cfr., no mesmo sentido, ISABEL MAGALHÃES COLAÇO (inRevisão de sentenças estrangeiras. Apontamentos de alunos”, 1963, p. 25), FERRER CORREIA (inLições de Direito Internacional Privado P\ 2000, p. 455) e LUÍS LIMA PINHEIRO (inRegime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras” cit., loc. cit. p. 588).
[15]  ALBERTO DOS REIS in ob. e vol. citt., p. 145.
[16] LUÍS LIMA PINHEIRO (inRegime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras” cit.,
loc. cit. p. 588).
[17]  In ob. e vol. citt., p. 145.
[18]«A palavra sentenças tanto compreende decisões definitivas, como decisões interlocutórias» (ALBERTO DOS REIS in ob. e vol. citt., p. 145). Dito isto, como «as decisões interlocutórias, assim como os despachos, têm alcance
meramente instrumental», isto é, «versam unicamente sobre a relação jurídica processual», «é claro que [elas] não podem ser executadas em Portugal, nem a execução [das mesmas] tem interesse» (ALBERTO DOS REIS in ob. e vol. citt., pp. 145/146). Também para LUÍS DE LIMA PINHEIRO (inRegime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras” cit., loc. cit. p. 589), «não são reconhecíveis as decisões que recaiam unicamente sobre a relação processual nem os actos de execução». «Mas se o despacho ou a sentença interlocutória reconhecer direitos substanciais de carácter privado e tiver transitado em julgado, é exequível em território português, exactamente como uma sentença final» (ALBERTO DOS REIS, ibidem).
|q Ibidem.
[20]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[21]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[22]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[23]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[24]  In ob. e vol. citt., pp. 156 a 158.
[25]  In “Regime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras” cit., loc. cit. p. 590.
[26]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
"7 LUÍS DE LIMA PINHEIRO, inRegime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras” cit., loc. cit. p. 591.
[28]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[29]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[30]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[31]  Cfr., igualmente no sentido da aplicação directa do regime de reconhecimento às decisões de autoridades a
quem tenha sido concedido o poder jurisdicional, FERRER CORRE1A inLições de Direito Internacional Privado2000,
p. 455 e segs.
[32]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[33]   Cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ de 16 de Dezembro de 1999 (revista n°55/99) e os Acórdãos da Relação do Porto de 12 de Julho de 1983 (na Col.Jur., 1983,IV,221), da Relação de Lisboa de 10 de Julho de 1984 (no BMJ n° 346, p. 304, da Relação de Lisboa de 3 de Junho de 1993 (in BMJ n° 428, p. 671) e da mesma Relação de 28 de Janeiro de 1999 (in Colectânea de. Jurisprudência, 1999, tomo 1, p. 99).
[34]   Cfr., igualmente no sentido de que «o processo regulado nos artigos 1094.° e seguintes do Código de Processo Civil é aplicável à dissolução do casamento por mútuo consentimento, realizada em sede administrativa», o Acórdão do STJ de 12/7/2005 (Proc. n° 05B1880; Relator - MOITINHO DE ALMEIDA), acessível (o texto integral) no sítio da internet www.dgsi.pt.
[35]  In “Regime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras” cit., loc. cit. p. 592.
[36]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[37]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[38]   Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/12/1999 (Proc. n° 99B085; Relator - DUARTE SOARES), cujo sumário está acessível na Base de dados do 1TIJ, no sítio www.dgsi.pt.
[39]  LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ibidem.
[40]  In “Regime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras” cit., loc. cit. p. 593.
41 LUÍS DE LIMA PINHEIRO in “Regime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras” cit., loc. cit., p. 595.
42 Cff., no mesmo sentido, ALBERTO DOS REIS in ob. e vol. citt., p. 204.