Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
21927/16.2T8LSB-A.L1-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: GARANTIA AUTÓNOMA "ON FIRST DEMAND"
CARACTERIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO
INSOLVÊNCIA DO MANDANTE-ORDENANTE
RECUSA DE CUMPRIMENTO
PRESSUPOSTOS EXIGÍVEIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A garantia autónoma “on first demand” cria uma situação jurídica por força da qual o garante terá de pagar a quantia garantida, logo que o benificiário o solicite, em razão do incumprimento ou cumprimento defeituoso do devedor/ordenante.

2. Inserindo-se a sua prestação numa estrutura negocial complexa, composta por um conjunto de contratos distintos e independentes, o garante, responsabiliza-se perante o credor beneficiário pelo pagamento de uma obrigação própria e não pelo cumprimento de uma dívida alheia (do garantido), sem subordinação à obrigação garantida.

3. A declaração de insolvência da ordenante da garantia bancária não implica, por isso, a caducidade da garantia. Em razão da autonomia e independência da garantia relativamente ao contrato base e ao contrato de mandato com o ordenante, não fica o banco garante autorizado a invocar a excepção da compensação, como causa extintiva do crédito garantido com um crédito da ordenante, que reclamou no processo de insolvência, posto que, o banco executado não detém qualquer crédito cruzado sobre a exequente, passível de compensação à luz do disposto nos artigos 847º e 851º do Código Civil.

4. Inquestionável que a autonomia da garantia autónoma não é de valor absoluto, não se sobrepõe na eventualidade de má fé ou abuso de direito por parte do beneficiário, caso implique violação e desrespeito aos princípios basilares da ordem jurídica portuguesa.

5. No ajuizamento dos pressupostos exigíveis nos casos de legítima recusa de cumprimento da garantia autónoma, acolhe-se um critério fortemente restritivo na sua delimitação, e em coerência, na evidência do abuso de direito, exige-se uma prova “líquida”, “inequívoca” ou “irrefutável” do abuso do direito, na execução da garantia autónoma.

6. De acordo com estes princípios e a configuração factual do caso em juízo, é de concluir, em segurança, que o exequente actua no exercício de um direito titulado, sendo que nenhuma prova foi feita de que a sua conduta se revele ofensiva da ideia de Justiça do cidadão médio, e de todo, não extrapola, excessivamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do seu direito.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I.RELATÓRIO:


1. Da Instância subjacente

Por apenso à acção executiva, sob a forma comum e para pagamento de quantia certa, instaurada por F…, S.A., contra o actualmente designado BNP Paribas, sucursal em Portugal, veio este deduzir oposição, pedindo a final a sua absolvição do pedido com a consequente extinção da execução.

O banco opoente impugnou parte da factualidade alegada no requerimento executivo, alegando, em suma, que tendo prestado a favor da exequente a garantia bancária autónoma à primeira solicitação, junta com o requerimento executivo, deverá admitir-se que pode recusar-se a efectuar o pagamento quando exista uma situação de fraude o abuso de direito. Acontece que, a ordenante das garantias bancárias nestes autos, a sociedade “S…”, foi declarada insolvente por sentença proferida em 11.07.2013; tal sociedade instaurou contra a exequente, beneficiária da garantia, uma acção de condenação para pagamento da quantia de 256.121,14 EUR e juros, quantia devida no âmbito dos trabalhos de construção civil das SCUT da ilha de São Miguel, eixo sul.

Recebida liminarmente a oposição, contestou a exequente, pugnando pela sua improcedência, invocando, em síntese, a vinculação do executado ao pagamento do valor reclamado, por força da garantia autónoma e à primeira solicitação que prestou a favor da exequente, crédito autónomo e independente do reclamado nos autos de insolvência da S…, mais requerendo a condenação do embargante como litigante de má-fé, atento uso reprovável do processo. 
  
Prosseguindo os autos a sua tramitação, realizada a audiência de discussão e julgamento, veio, a final, a ser proferida sentença que, julgou improcedente a oposição e ordenou o prosseguimento da execução. 

2. Do Recurso

Inconformado, o embargante interpôs recurso extraindo as conclusões que se transcrevem:
«i)- Na douta sentença não se dá como provado que a Apelada detém também um crédito sobre a ordenante insolvente, sendo tal facto essencial para decisão que foi proferida;
ii)-Não obstante, esse crédito foi reconhecido no processo de insolvência, como resulta do documento n.º 2 junto com a contestação, pelo valor de € 108.564,29;
iii)-Deste modo, resulta evidente que nos autos que existem créditos recíprocos entre a ordenante da garantia bancária e a Beneficiária e aqui Apelada: • A Apelada deve € 224.671,05 à ordenante; • A Apelada tem um crédito sobre a ordenante de € 108.564,29; • O crédito da Apelada é inferior à sua dívida.
iv)-Tais créditos são, face ao Art.º 99º do CIRE legitimamente compensáveis;
v)-A autonomia da garantia bancária significa, como se diz na douta sentença, que esta é independente do negócio celebrado entre a beneficiária e a garante, pois, o garante assume, dentro dos limites do seu texto, uma obrigação própria e autónoma face às que decorrem daquele negócio;
vi)-Não obstante, essa autonomia não pode ser considerada absoluta e, não tendo a garantia regulamentação própria, terão muitas vezes que aplicar-se-lhe, quando a analogia de situações assim o exija normas de outros institutos (nesse sentido, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, “Garantias de Cumprimento”, pág. 140);
vii)-Ora, em relação à fiança, determina o Art.º 642º do Código Civil, que o fiador pode recusar o cumprimento enquanto o direto de crédito do credor puder ser satisfeito por compensação com um crédito do devedor;
viii)-E a norma em questão, destinada a salvaguardar os direitos do garante, encontra plena aplicação por via da analogia em relação também às garantias bancárias, pese embora, a autonomia destas;
ix)-Nos autos, como é evidente, a compensação pode ser invocada pela Apelada, tendo, pois, o Apelante o direito de recusar o pagamento da garantia;
x)-A automaticidade da garantia não é também princípio, tendo vindo a ser admitido na doutrina e jurisprudência, que o garante possa recusar o pagamento quando tenha prova líquida e irrefutável de que o accionamento constitui fraude ou abuso de direito (vd. entre outros, Mónica Jardim, “A Garantia Autónoma”, págs. 288 e segs);
xi)-E os conceitos em questão deverão ser aferidos de acordo com o ordenamento jurídico a que se encontra sujeita a garantia bancária (nesse sentido Mónica Jardim, “A Garantia Autónoma”, pág. 302);
xii)-O abuso de direito, previsto pelo Art.º 334º do Código Civil, verifica-se quando se exerça um direito ou faculdade de modo inadmissível, por, entre outras situações, contrariar a finalidade desse direito;
xiii)-O exercício da compensação é uma faculdade, mas, o seu não exercício pela Apelada, perante a situação que decorre dos autos, não encontra qualquer justificação jurídica e apenas servirá para prejudicar o ora Apelante;
xiv)-Com efeito, a Apelada receberá dele o valor da garantia, e ao mesmo tempo terá que pagar o valor devido, na totalidade á ordenante, quando, se exercesse a compensação, apenas pagaria o saldo devido a essa ordenante e corresponde, por isso, de modo inequívoco a um abuso de direito, por esse não exercício ser contraditório com a finalidade dessa faculdade;
xv)-O Apelante tinha e tem prova líquida e irrefutável desse abuso de direito, razão pela qual, não se encontra vinculado a honrar a garantia prestada. Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença e julgando-se a oposição integralmente procedente e a reconvenção improcedente, como é de manifesta, JUSTIÇA.»

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Contra-alegando, defendeu a recorrida a manutenção do julgado.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

3.Objecto do recurso

São as conclusões que delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem- artigos 635º, nº3 a 5 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil -  salvo em sede da qualificação jurídica dos factos, ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, não podendo ainda conhecer de questões novas; o tribunal de recurso  não está igualmente adstrito à apreciação de todos os argumentos recursivos, debatendo  apenas os que se mostrem relevantes para o conhecimento do recurso, e não resultem prejudicados pela solução preconizada – artigos 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma.
Sob estas coordenadas, perante o conteúdo das conclusões do recorrente, são duas as questões que demandam apreciação e decisão por parte deste tribunal de recurso:
- Se da matéria de facto provada resulta que, a executada e opoente tem direito à compensação de crédito superior sobre a beneficiária, em razão da reclamação do crédito na insolvência da ordenante;
- Se na afirmativa, a exigência do pagamento da garantia constitui actuação em abuso direito, apta a paralisar o seu accionamento por via da execução.    
Desiderato que convoca a análise dos seguintes tópicos recursivos:
  • Caracterização e efeitos da prestação da garantia autónoma on first demand;
  • Os limites ao seu funcionamento no âmbito do abuso de direito e da fraude;  
  • A relação tripartida subjacente; independência e autonomia do crédito do beneficiário sobre a relação subjacente; a compensação de créditos.  

II.FUNDAMENTAÇÃO

A. Os Factos
A primeira instância teve por provados os seguintes factos, não impugnados pelo recorrente:
1.A Exequente é uma sociedade comercial com sede em Espanha e sucursal em Portugal, de representação permanente, com local de representação sita … Linda-a-Velha, concelho de Oeiras que, entre outras atividades, se dedica ao estudo, concessão, construção e exploração de todo o tipo de obras públicas ou privadas.
2.O Executado, actualmente designado "BNP Paribas - Sucursal em Portugal", por seu turno, é uma instituição financeira de crédito com sede em Bruxelas, Bélgica, e sucursal em Portugal, que tem como objeto social o exercício da atividade bancária nos termos permitidos por lei.
3.O “FORTIS BANK – SUCURSAL EM PORTUGAL”, por força da sua integração no Grupo Bancário “BNP PARIBAS”, alterou a sua denominação para “BNP Paribas Fortis”, em 15 de fevereiro de 2013.
4.Em 10 de Maio de 2013, esse Banco cedeu por trespasse ao “BNP Paribas – Sucursal em Portugal” toda a sua atividade bancária a nível nacional, tendo este assumido definitivamente e em exclusivo todo o conjunto de direitos e obrigações correspondentes às relações bancárias estabelecidas entre aquele e os seus clientes.
5.Mediante aquele trespasse, o “Fortis Bank” transferiu para o “BNP Paribas - Sucursal em Portugal” todos os elementos que caracterizam e integram a atividade do executado e, nomeadamente, “das posições contratuais em todos os contratos, acordos e protocolos, independentemente da sua natureza, quer sejam contas de depósito, de mútuos e de créditos bancários, de emissão de papel comercial e a respetivos programas, de empréstimos obrigacionistas, de emissão de garantias bancárias, de instrumentos financeiros, de serviços de cash pooling, de diversos serviços bancários e todos os instrumentos de pagamento, entre outros, celebrados entre o “Fortis Bank” e os seus clientes.
6.A relação entre a exequente e o “Fortis Bank” foi objeto do trespasse, pelo que o referido trespasse teve como resultado a transferência da integralidade da sua relação bancária para o “BNP Paribas – Sucursal em Portugal”.
7.No âmbito do seu objeto social, o Executado, por conta e a pedido da Sociedade S…. S.A., pessoa coletiva n.º 5......., com sede na Avenida da ..... ….. - Lisboa, com o capital social de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), como Subempreiteiro da Empreitada “Construção da SCUT dos Açores”, em substituição do depósito de garantia do valor equivalente a 10% do valor do Contrato de Subempreitada celebrado em 8 de Outubro de 2008, prestou a favor da Exequente, em 25 de Março de 2009, a garantia bancária n.º 2054/09 até ao valor de € 191.630,90 (cento e noventa mil, seiscentos e trinta euros e noventa cêntimos), titulada pelo documento de fls. 7 dos autos de execução, cujo teor se dá por reproduzido.
8.Nos termos da referida garantia bancária, o Executado expressamente confirmou que: a) Se responsabiliza, dentro da citada importância, por fazer a entrega de quaisquer quantias que se tornem necessárias, se o referido Empreiteiro faltar ao cumprimento do Contrato, ou de quaisquer compromissos assumidos em consequência do mesmo, ou com elas não entrar em devido tempo, de acordo com o critério da Beneficiária F.…S.A.; b) Reconhece expressamente que a obrigação assumida por via desta garantia é rigorosamente distinta e independente das obrigações que garante e nada poderá opor à Beneficiária F…., S.A., renunciando ao benefício de prévia excussão e ao direito de oposição com base em qualquer meio de defesa admitido à S…., S.A., logo que desta receba interpelação para pagamento; c) Pagará imediatamente as importâncias que lhe venham a ser solicitadas, ao primeiro pedido efetuado por escrito pela Beneficiária desta garantia, por meio de carta registada com aviso de receção, não tendo de cuidar da justeza ou conformidade com o disposto no citado Contrato, sem necessidade de qualquer procedimento judicial, administrativo ou de qualquer ordem; d) A garantia prestada só será cancelada quando a Beneficiária comunicar por escrito, que cessam todas as obrigações do Subempreiteiro, decorrentes do Contrato referido, o que será feito após a extinção daquelas obrigações.
9.Em 29 de Abril de 2015, a Exequente solicitou ao Executada o acionamento parcial da garantia bancária, pelo valor de € 143.038,53 (cento e quarenta e três mil e trinta e oito euros e cinquenta e três cêntimos), resultante do incumprimento contratual da Ordenante no âmbito da empreitada “Construção Scut dos Açores”, conforme documento de fls. 9 dos autos de execução cujo teor se dá por reproduzido.
10.Mais indicou a Exequente que a quantia deveria ser paga no prazo máximo de 2 (dois) dias a contar da receção da presente, através de transferência bancária para o IBAN PT50001................90 (Código .....: BB......XXX).
11.Informou ainda a Exequente, naquela missiva, que a mesma não fazia cessar quaisquer obrigações da ordenante, decorrentes do contrato de empreitada referido, pelo que a garantia bancária n.º 2054/09 se manteria ativa quanto ao remanescente.
12.Em resposta, a Executada recusou o pagamento da quantia peticionada pela Exequente, com os seguintes fundamentos: a) salientamos que, como é do V/ conhecimento, não só a sociedade S…, S.A. foi declarada insolvente, facto de que temos evidência; b) como também foi proferida sentença desfavorável a V. Exas. no âmbito do processo n.º 3034/12.9YIPRT que correu termos na 2.ª Secção Cível na Comarca de Lisboa referente à subempreitada da Construção das SCUTS dos Açores, facto este também evidente; c) Assim, consideramos não ser o presente acionamento atendível (cfr. documento de fls. 10 dos autos de execução, cujo teor se dá por reproduzido).
13.A ordenante da garantia bancária em causa nestes autos, a “S…”, foi declarada insolvente por sentença proferida em 11.07.2013, pelo então 3.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, no processo n.º 1243/13.2TYLSB (cfr. documento de fls. 12 e 13 cujo teor se dá por reproduzido).
14.A sociedade “S…”, ordenante da garantia bancária, instaurou contra a exequente, beneficiária dessa garantia, acção de condenação para pagamento da quantia de 256121,14 EUR e juros, quantia devida no âmbito dos trabalhos de construção civil (estacas moldadas) no âmbito das SCUT da ilha de São Miguel, eixo sul.
15.Essa acção correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, instância central, 2.ª Secção Cível, Juiz 4, com o número 3034/12.9YIPRT (cfr. documento de fls. 14 a 50 cujo teor se dá por reproduzido).
16.Na contestação deduzida pela exequente nessa acção, esta afirmou: a) Ter celebrado com a ordenante um contrato de subempreitada; b) Que essa subempreitada seria realizada em regime de série de preços fixos e não revisáveis, tendo os trabalhos o valor estimado de 1.916.309,00 EUR, acrescido de IVA; c) Que pagou todas as faturas apresentadas, com exceção daquela que era exigida pela ordenante, por não terem sido realizadas medições nem correspondente auto de medição; d) Que tendo elaborado auto de medição final, e tendo em conta os trabalhos realizados, os custos em que incorreu por via da realização deficiente desses trabalhos por parte da ordenante e as avarias e danos por ela provocados, tinha dela a haver 96.163,77 EUR.
17.A exequente pugnou, pois, pela improcedência da ação e deduziu reconvenção contra a ordenante pelo valor de 96.163,77 EUR.
18.Por sentença de 02.02.2015, foi a ação julgada parcialmente procedente e a exequente condenada a pagar à ordenante, então já insolvente, a quantia de 224.671,05 EUR acrescida de juros.
19.O pedido reconvencional foi julgado inútil por a exequente ter reclamado o Seu crédito no âmbito do processo de insolvência.
20.A sentença em questão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e Pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr. documentos de fls. 109 a 210, cujo teor se dá por reproduzido).
21.O crédito reclamado pela exequente no âmbito do processo de insolvência foi, em consequência, da ação que se referiu, impugnado por um credor.

B.Do mérito do Recurso
  
1.Sinopse do litígio
O tribunal recorrido decidiu que,  face ao conteúdo da garantia autónoma à primeira solicitação prestada, as vicissitudes ocorridas entre a exequente e o  ordenante, emergentes do incumprimento do contrato de subempreitada celebrado entre ambas, bem como o teor da decisão proferida na acção de condenação que correu termos com o número 3034/12.9YIPRT, não têm qualquer relevância quanto ao cumprimento da obrigação de garantia assumida pelo executado, concluindo não se verificar qualquer excepção que obste ao cumprimento, designadamente de fraude ou abuso de direito.
Vem o embargante pugnar pela revogação da sentença, advogando, em tese essencial, a aplicação no caso sub judice do abuso de direito, decorrente da verificada compensação de créditos, e, por conseguinte, da legitimidade da sua recusa no pagamento da garantia dada à execução.
A embargada, corroborando, além do mais, a autonomia da garantia on first demand, sustenta que o embargante não alegou, nem demonstrou, os elementos factuais de abuso de direito, evidente e inequívoco, oponível à beneficiária.

2.Caracterização da garantia autónoma-  on first demand
A garantia bancária em apreço, firmada através de documento particular datado de 25.03. 2009, embora anterior à vigência do actual CPC, constitui ainda assim título executivo, em razão da doutrina do  Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, publicado no DR, 1.ª série, n.º 201, de 14 de Outubro de 2015.[1] 
Por outro lado, resultou provado que, a garantia prestada pelo banco executado a favor da exequente configura a prestação de uma garantia autónoma, automática e à primeira solicitação (pontos 7.8. de II); qualificação que, de resto, não foi objecto de dissídio e assim foi considerada na sentença recorrida.
No contexto a resolver, na temática da garantia bancária autónoma, adiantemos algumas breves notas consensualizadas pela doutrina e pela jurisprudência, que no caso espécie, se prendem com a definição dos limites ao seu funcionamento.
A garantia bancária autónoma é na actualidade uma figura contratual muito difundida na actividade comercial e com grande densificação na doutrina e na jurisprudência nacionais.
Na prática bancária desenham-se duas modalidades de contrato de garantia bancária autónoma: a garantia bancária simples  e a garantia bancária automática à primeira solicitação -on first demand_ ; enquanto na primeira, o credor tem de provar para poder accionar a garantia o incumprimento da obrigação pelo devedor, nas garantias bancárias automáticas (on first demand), que apresentam um grau mais elevado de autonomia, os contraentes apõem a cláusula à primeira solicitação, significando que o beneficiário tem direito a receber do garante a quantia pecuniária convencionada, pelo simples facto de o interpelar. [2]
Ao que importa à situação sub iudice, estamos, pois, perante a emissão da denominada garantia à primeira vista ou “on first demand”, a qual cria uma situação jurídica por força da qual o garante, ao ser interpelado pelo credor, terá de pagar a quantia garantida sem poder contestar o pagamento do que lhe é exigido.

O contrato de garantia bancária - stricto sensu, sempre autónoma – não dispondo de regulamentação própria na lei nacional, configurando um negócio atípico ou inominado, assente no princípio da autonomia da vontade, na vertente da liberdade contratual, estabelecida no artigo 405º do Código Civil, é um contrato causal na perspectiva da sua função, isto é, da finalidade económico-social que desempenha, de garantia do risco da relação principal.
Emergente da prática bancária e do tráfego comercial complexo, especialmente em contratos internacionais, carente de garantias mais enérgicas do que a fiança ou aval, são as cláusulas contratuais inseridas no texto da convenção negocial e sua interpretação e contexto, que definirão a caracterização do contrato de garantia (artigos 236º e 238º do Código Civil).[3]
Vasta a doutrina sob esta figura contatual, reproduzimos, v.g., a definição do contrato de garantia que adianta José Maria Pires - “o contrato pelo qual um banco, por mandato do seu cliente, se obriga a pagar certa importância à outra parte (beneficiário), ficando esta com o direito potestativo de exigir a execução dessa garantia, sem que lhe possam ser opostos quaisquer meios de defesa baseados nas relações entre o banco e o ordenador ou entre este e o beneficiário.”[4]
Este tipo de garantia reforça o sentido da autonomia/independência da garantia bancária e acrescenta -lhe a característica da automaticidade, no sentido de que o banco garante fica obrigado a pagar imediatamente a quantia garantida, logo que o beneficiário lho solicite, sem que lhe seja permitido discutir as razões do pedido do pagamento, bastando tão somente ao beneficiário alegar o incumprimento da obrigação principal do devedor, ou seja, ao banco não assiste a faculdade de opor quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato em causa, mas tão só os decorrentes do próprio contrato de garantia.
A garantia on first demand ou à primeira solicitação deverá, pois, ser encarada, como a respectiva designação, como instrumento que, uma vez accionado pelo credor, permite obter do garante uma resposta imediata, a qual não poderá ser paralisada por alegações (mais ou menos fundadas) que digam respeito ao contrato subjacente ou ao relacionamento entre o beneficiário e o dador ou entre o beneficiário e a entidade que assumiu o compromisso traduzido na garantia autónoma.

Citando Galvão Telles, neste tipo de garantias: “O garante paga ao credor sem discutir; depois o devedor tem de reembolsar o garante, também sem discutir. E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a dívida não existisse e ele portanto não fosse, afinal, verdadeiro devedor".[5]

Na densificação da figura, pacífico se revela também que, a garantia bancária autónoma ou on first demand tem como característica essencial a autonomia, sendo independente do contrato base, i.e, o garante, perante o credor, responsabiliza-se pelo pagamento de uma obrigação própria e não pelo cumprimento de uma dívida alheia (do garantido), sem subordinação à obrigação garantida, propiciando aos interessados instrumentos negociais alternativos aos consagrados na lei , como sucede com a fiança.
Por fim, mostra-se desde há muito clarificado pela jurisprudência dos tribunais superiores, que não há que confundir a garantia autónoma com a figura da fiança, e da inaplicabilidade das regras da fiança, por falta de identidade dos seus pressupostos, lei expressa, utilidade e regime decorrente da autonomia privada. [6]

3.Os limites ao funcionamento da garantia autónoma
Sublinham Almeida e Costa e Pinto Monteiro que, estando em causa uma garantia autónoma à primeira solicitação, “(…) tudo se passa como se o banco, no momento em que se obrigou perante o beneficiário, tivesse depositado à ordem deste o montante estipulado na garantia. Esta funciona, assim, como um substituto de um depósito de dinheiro ou de valores à ordem do credor/beneficiário, sem os inconvenientes que a imobilização do dinheiro acarretaria, não podendo esta substituição, porém, prejudicar o credor” [7].

O garante não pode, por princípio, recusar a execução da garantia opondo excepções fundadas, seja na relação entre o credor (beneficiário) e o devedor (garantido) da relação principal, seja na relação (de mandato) entre o garante e aquele devedor.
Defendendo a doutrina, na generalidade, que a legitimidade da recusa de pagamento pelo garante, apenas se verificará  nos casos seguintes: manifesta má fé ou má fé patente, ou seja, que não oferece a menor dúvida, por decorrer com absoluta segurança de prova documental em poder do ordenante ou do garante; fraude manifesta (“exceptio doli”) ou abuso evidente por parte do beneficiário; ofensa da ordem pública ou dos bons costumes pelo contrato garantido; e  existência de prova irrefutável de que o contrato-base foi cumprido. [8]

Assim, v.g., Mónica Jardim - “A obrigação do garante de entregar uma determinada quantia pecuniária ao beneficiário depende exclusivamente da verificação das condições definidas no contrato de garantia.(..)” [9]; e, Menezes Cordeiro-  “(…) a função da garantia autónoma não é, tanto, assegurar o cumprimento dum determinado contrato. Ela visa, antes, assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no próprio texto da garantia, uma determinada quantia em dinheiro.”[10]

Para Pestana de Vasconcelos, a autonomia da garantia à 1ª solicitação “significa que, salvo casos excepcionais e de todo intoleráveis para o Direito, ela deve ser preservada (…) Por isso aqueles casos em que se admite que o garante pode e deve recusar o pagamento devem ser restritos. Tem que se tratar de casos de abuso do direito por parte do beneficiário ou de fraude por banda deste. (…).[11]

Na mesma linha, pontificam Almeida Costa e Pinto Monteiro, “(…)…é necessário que os casos de abuso ou de fraude sejam verdadeiramente “inequívocos” (…) para que o banco/garante deixe de pagar é necessário que seja colocada à sua disposição prova “líquida e inequívoca” da “má fé patente”, da “fraude evidente”, ao ponto de “entrar pelos olhos dentro”.[12]

De igual forma, no ajuizamento dos pressupostos exigíveis nos casos de legítima recusa de cumprimento da garantia autónoma, o Supremo Tribunal de Justiça vem acolhendo um critério fortemente restritivo na respectiva delimitação.
Em coerência com o mesmo critério na evidência do abuso, exige-se uma prova “líquida”, “inequívoca” ou “irrefutável” do abuso, na execução da garantia autónoma.
           
Conforme decorre da asserção lídima proferida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.03. 2012:  [13]
«O pagamento à 1ª solicitação (on first demand), assumido pelo garante, implica a sua obrigação de pagar ao beneficiário a indemnização objecto da garantia, não podendo opor-lhe quaisquer excepções reportadas à relação principal (contrato-base), a menos que haja evidentes e graves indícios de actuação de má fé, nela se incluindo a conduta abusiva do direito.»

4.A insolvência do mandante-ordenante
Vem-se manifestando incontroverso na doutrina e na jurisprudência dos tribunais superiores, que a declaração da falência do ordenante da garantia, com a consequência da exigibilidade da pluralidade das suas obrigações, não extingue a obrigação do garante no confronto com o beneficiário; não constando do texto do contrato a exclusão do risco da insolvência, tal significa que o banco garante o pagamento das faturas referidas no contrato de garantia, mesmo nesta hipótese.
Ou seja, não implicando a declaração de insolvência do ordenante a caducidade da garantia bancária, validamente constituída em momento anterior a essa declaração, apesar da referida declaração falimentar, deve o garante cumpri-la, logo que tal lhe seja exigido pelo beneficiário.[14]

No caso dos autos a exequente reclamou no processo de  insolvência  da S…, S.A. um crédito  no montante de € 108.564,29, não tendo ainda sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos;[15] crédito correspondente ao pedido reconvencional que deduzira na acção identificada nos pontos 14. a  19 de II.
Pois bem, da factualidade apurada não se retiram os efeitos jurídicos pretendidos pelo embargante recorrente, desde logo, porque a declaração de insolvência da ordenante da garantia bancária, não implica, como se referiu, a caducidade da garantia autónoma prestada a benefício da exequente. 

5.A relação negocial tripartida; a compensação de créditos  
Correndo o risco da repetição, a garantia autónoma consiste numa garantia pessoal prestada pelo garante a favor do credor-beneficiário, que assume a responsabilidade pelo pagamento de uma obrigação própria, sem possibilidade de invocar excepções decorrentes da relação jurídica garantida.
Garantia que se insere numa estrutura negocial complexa, composta por um conjunto de contratos distintos e independentes, mas com conexão entre si, que é composta por um esquema tradicional de três relações jurídicas.[16]

O recorrente sustenta que face à matéria provada sob os pontos 13 a 20 de II, a oposição ao pagamento da garantia à  beneficiária exequente deverá proceder .[17]
Sob o seu entendimento, uma vez que a exequente foi condenada a pagar à S…, então já insolvente, um crédito de 224.671,05 EUR, superior ao crédito que reclamou no processo de insolvência pelo valor de € 108.564,29, a execução da garantia de que é beneficiária constitui actuação em manifesto abuso de direito e por tal não pode proceder.
Antecipando e, salvo o devido respeito, a tese do recorrente não encontra respaldo no quadro substantivo e adjectivo da situação sub judice.

Aproximando.

Na arquitectura da relação jurídica complexa emergente na situação sub judice, temos inicialmente a relação contratual fundamental,( também  apelidada de contrato base ou por relação garantida) configurada no contrato de subempreitada celebrado entre a Sociedade S…, S.A., e a aqui exequente F… S.A .; a qual,  para cumprimento do contrato base, exigiu que a primeira (devedora) apresentasse  uma garantia autónoma a seu favor,  emitida por instituição bancária, no caso o executado BNP, por forma a ser compensada em caso de não cumprimento ou cumprimento defeituoso da relação base por parte do devedor.

Segue-se o contrato firmado entre a devedora/ordenante do contrato base e o garante (a segunda relação contratual), estabelecendo-se um contrato de mandato sem representação, no qual a instituição financeira, enquanto mandatária, acorda com o primeiro, o mandante, a prestação de uma garantia a favor do credor originário, mediante uma remuneração.

Finalmente, a terceira relação contratual estabelece-se entre o garante, aqui executado e o credor/beneficiário, aqui exequente, configurando um contrato de garantia autónoma à primeira solicitação, que se compromete a pagar ao segundo/credor e aqui exequente, logo que interpelado para tal e até ao limite estabelecido, em caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso do devedor/ordenante.

Vinculação contratual emergente de garantia autónoma à primeira solicitação que, como se enunciou, não autoriza o banco garante invocar os meios de defesa resultantes do contrato base ou do contrato de mandato, em razão da autonomia e independência da garantia relativamente ao contrato base e ao contrato de mandato com o ordenante, e no qual se inscreve afinal a excepção – compensação do crédito  garantido com um crédito da ordenante.[18]

Em concreto, qual a implicação da existência de compensação de créditos/ créditos cruzados entre a devedora e a credora no âmbito do contrato base, e, a relação estabelecida entre o credor /beneficiária de garantia autónoma à primeira solicitação e o banco garante?
Desde logo, o banco executado não detém qualquer crédito sobre a exequente, passível de compensação.
A compensação de créditos - artigo 847º do Código Civil-  enquanto causa  extintiva da obrigação, além do cumprimento,  compreende a situação jurídica de duas pessoas serem simultaneamente credor e devedor, prevendo a possibilidade de qualquer deles se livrar das suas obrigações por meio de compensação.[19]
Acerca da importância do requisito da reciprocidade de créditos (ou créditos cruzados) na compensação legal, determina o artigo 851º do Código Civil, que apenas pode abranger dívidas do declarante e que o devedor apenas pode livrar-se da obrigação utilizando créditos seus e não de terceiro.
Posto isto, tendo presente a relação tripartida contratual gerada entre os sujeitos envolvidos, e a matéria provada sob os pontos 13 a 20 de II, o exequente e o executado não detêm créditos recíprocos, e de qualquer modo, também o crédito reclamado pela exequente nos autos de insolvência da S…, atentos os elementos dos autos, não configura ainda crédito judicialmente exigível.

Em caso paralelo, invocando o banco garante a compensação de créditos(  embora  relativa à execução de uma garantia autónoma simples), decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no recente aresto de 14-01-2021:[20]
«No concreto em decisão, perante esta estatuição normativa verificamos que o (garante) embargante não é credor do exequente e, mesmo que o devedor/ordenante tenha créditos sobre o credor/beneficiário, tanto a relação jurídica de onde tenha resultado esse crédito como a possibilidade de discussão do mesmo, estão fora da órbitra de qualquer discussão possível que o embargante/garante possa opor à garantia. No contexto das relações entre os diversos sujeitos, a invocação de que o devedor/ordenante tem créditos compensáveis sobre o credor/beneficiário não pode obstar a que o banco, como garante, satisfaça o pagamento que é exigido porque os créditos que ele refere, como passíveis de compensação são autónomos e independentes, não só entre si (por isso é que a lei no art. 847 permite a sua compensação), mas também da obrigação creditícia da garantia. Assim, ofende a autonomia das garantias (autónomas) que o garante invoque meios de defesa resultantes do contrato base ou, mais ainda, de outros contratos celebrados entre o credor e o devedor, diferentes dos garantidos, aos quais o garante é alheio e que possam ser para este último (o devedor), e só para ele, objecto de compensação.»

Aqui chegados.
A recusa do pagamento pelo executado, mais não é então do que a pretensão de um diferimento da garantia que pessoalmente prestou, sob o alegado fundamento de que o crédito garantido (poder) beneficiar da invocada compensação entre credora e devedora, mas à qual, na verdade, é alheia a sua posição enquanto banco/garante.
O crédito que a exequente reclamou no processo de insolvência da devedora /ordenante diz respeito ao contrato base e à relação firmada com a S…, ali concorrendo ao acervo da massa insolvente, em igualdade com os demais credores comuns.
Os invocado crédito e contra-crédito reportam à relação contratual base –  a devedora e a credora no contrato de subempreitada -  e, a obrigação do executado, está assente na garantia autónoma prestada, autónoma e independente daquela outra.
Acresce que, não foi proferida qualquer decisão judicial que determinasse a extinção do crédito da exequente ou do título executivo-garantia; outrossim, no âmbito do processo nº 3034/12.9YIPRT, o pedido reconvencional que a ora exequente deduziu contra a S… foi declarado extinto por inutilidade superveniente da lide, face à declaração de insolvência e nos termos do CIRE, motivando a subsequente reclamação do crédito no processo de insolvência.
Por último, a circunstância de a exequente ter sido condenada no pagamento de determinada quantia à S…, SA, em consequência das vicissitudes do contrato base entre ambas celebrado, é questão distinta do crédito que é aqui devido à Exequente / Embargada, e independente do accionamento da garantia bancária autónoma.

6.O abuso de direito e a garantia bancária autónoma 
Em resultado das características específicas da autonomia e da automaticidade da garantia bancária on first demand, o  garante, por norma, um banco,  obriga-se a pagar ao terceiro beneficiário, verificado o incumprimento de um contrato-base por parte do mandante ou ordenante (devedor desse contrato), sem que o garante possa opor ao beneficiário (credor no contrato base) quaisquer exceções reportadas ao contrato fundamental, a menos que constem, expressamente, do próprio texto da garantia, ou, haja prova inequívoca e irrefutável de dolo, má fé, de abuso de direito ou de que o contrato-base foi cumprido, de que houve resolução do contrato-base por facto não imputável ao devedor ou incumprimento do beneficiário, quer por ter declarado que não está em condições de cumprir ou por ter modificado unilateralmente os termos do contrato.[21]

Mostra-se, ainda assim, inquestionável que a aludida autonomia da garantia on first demand não é de valor absoluto e, portanto, não se sobrepõe na eventualidade de má fé ou abuso de direito por parte do beneficiário da garantia, ao implicar violação e desrespeito aos princípios basilares da ordem jurídica portuguesa.

Tendo em vista a salvaguarda de uma “imunidade de exercício que se transformasse em absoluta”, a lei prevê limites intrínsecos ao exercício do direito, como seja o de que ao caso importa, a actuação das partes se deve pautar pelas regras da boa fé, sendo ilegítimo exercer um direito em manifesto desrespeito pelos “limites impostos pela boa fé, bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.” [22]

De acordo com o estatuído no artigo 334.º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico de um direito.

A expressão legal abrange o exercício de um direito subjectivo em sentido estrito, mas de igual, a dedução de uma pretensão ou a invocação de uma posição, que tenham relevância jurídica, considerando, que pode dar validade à opção pelo abuso de direito como modo de paralisar o exercício ilegítimo. [23]

Por outro lado, sendo o abuso do direito um instituto de ultima ratio, para situações de clamorosa injustiça, não basta, para que se verifique, que o titular do direito exceda os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, antes sendo necessário que esses limites sejam manifestamente excedidos, ou seja, que ofendam de forma clamorosa a consciência ética e jurídica da generalidade dos cidadãos.

O que aporta ao último aspecto da matéria recursiva, a da demonstração pelo garante, aqui opoente, de prova líquida do abuso de direito, previsto e sancionado no artigo 334º do Código Civil – a qual tem de ser evidente, clamorosa e manifesta, de tal forma que ignorá-la, em nome da autonomia da garantia, ofenderia princípios fundamentais da ordem jurídica.

Assim, alegando o garante uma situação de abuso de direito há-de estar em condições de oferecer prova líquida, uma prova qualificada, segura e inequívoca da conduta fraudulenta ou abusiva do credor, ou seja, da patente e manifesta falta de direito do ordenante a ser ressarcido.

Veja-se a propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.4.2010:[24]
«8.A fraude ostensiva, clamorosa e evidente do beneficiário (abuso de direito), resultante da ausência de direito do beneficiário, pode ser invocada pelo garante que dela tiver prova líquida (documental) para recusar o pagamento que lhe é exigido, mesmo tratando-se de uma garantia autónoma que deva ser satisfeita à primeira solicitação. 9.A disponibilidade, pelo garante, de prova líquida da fraude ou do abuso deve ser aferida por referência ao momento em que é solicitado o pagamento.»

Face a tais princípios é mister concluir que a factualidade provada não configura situação de abuso do direito por parte da exequente e recorrida.

A exequente demanda o banco ora recorrente, pretendendo o pagamento de montante relativo ao incumprimento do contrato de subempreitada firmado com a S…, através do accionamento da garantia bancária autónoma à primeira solicitação, emitida a seu favor, e cuja satisfação, conforme texto da garantia, o executado se obrigou a satisfazer, logo que interpelado pela benificiária.

A circunstância de a exequente ter sido condenada no pagamento de determinada quantia à S…, SA, é distinta da natureza do crédito que é aqui devido à exequente /recorrida. Por seu turno, o eventual crédito da exequente, que venha a ser reconhecido por sentença nos autos de insolvência da S..., e o eventual encontro/compensação de créditos, filia-se na órbitra estrita da relação entre a exequente e a S... (representada pelo administrador da insolvência), enquanto ordenante da garantia bancária, não constituindo motivo de recusa do pagamento reclamado pela exequente ao banco garante, demonstrado que não se verificou causa de extinção da sua obrigação. 

Actua, pois, no exercício de um direito titulado e não se revela que o faça além dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse mesmo direito, sendo que nenhuma prova foi feita de que a conduta do exequente e recorrido se revele ofensiva da ideia de Justiça do cidadão médio, e de todo, não extrapola, excessivamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do seu direito.

Em suma, soçobra o invocado abuso de direito no accionamento da garantia bancária autónoma pela exequente, inexistindo motivo legítimo na recusa do recorrente no pagamento da quantia exequenda, devendo honrar o compromisso contratual assumido, que vem procrastinando desde Abril de 2015, quando lhe foi solicitada pela exequente.    

III.DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, e em consequência, manter o julgado de primeira instância.  
As custas do recurso são a cargo do embargante que nele decaiu.



Lisboa, 11 de Janeiro de 2022



ISABEL SALGADO
CONCEIÇÃO SAAVEDRA
CRISTINA COELHO


[1]No qual foi declarada a inconstitucionalidade da norma que aplica o actual artigo 703.ºdo Código de Processo Civil, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil, e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.
[2]Cfr. Entre outros, Maria do Rosário Epifânio, in «Garantias Bancárias Autónomas. Breves Reflexões», Iuris et De Iure, nos 20 anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, Porto, 1998, pág. 334.
[3]Cfr. Acórdão do STJ de 20-03-2012 proc. 7279/08.8TBMAI.P1. e Acórdão do STJ de 25.11.2014, in www.dgsi.”
[4]In “Direito Bancário”, 2º vol., pág. 284.
[5]In Garantia Bancária Autónoma, in "O Direito", Ano 120º (1988), III/IV, pág. 283.
[6]Nessa assunção de um risco distinto do prevenido pela fiança, o banco garante pode acautelar, contratualmente, exigindo do cliente-ordenante garantias adicionais distintas das garantias pessoais.
[7]In “Garantias bancárias. O contrato de garantia à 1ª solicitação” - Col. Jurisprudência 1986 - 5º/17 e segs.
[8]Indicando-se os autores versados na temática e citados a propósito nos arestos dos tribunais superiores - Jorge Duarte Pinheiro, in “Garantia bancária autónoma”, na ROA, 52º, págs. 448; Manuel Castelo Branco, in “A garantia bancária autónoma no âmbito das garantias especiais das obrigações”, na ROA, 53º, págs. 80; José Maria Pires, in “Direito Bancário”, Vol. II, págs. 285/286; Miguel Brito Bastos, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Sérvulo Correia”, Vol. III, FDUL, 2010, págs. 533 a 555; Pedro Romano Martinez, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. I. Galvão Telles”, II Vol. Direito Bancário, Almedina, págs. 280 a 285; Cláudia Trindade, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. José Lebre de Freitas”, Vol. II, 1ª Ed., Coimbra Editora, págs. 68 a 76; e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in “Garantias das Obrigações”, 2012, 4ª Ed., Almedina, pág. 130.
[9]In A garantia autónoma, Coimbra, 2002, pág. 116
[10]In Manual de Direito Bancário, 3ª ed., Coimbra, 2006, pág. 643).
[11]In obra atrás citada, pág. 137/138.
[12]In “Garantias bancárias. O contrato de garantia à 1ª solicitação” - Col. Jurisprudência 1986 - 5º/17 e segs.
[13]No Proc. n.º 7279/08.8TBMAI.P1. S1; e, também no Acórdão do STJ de 27.05.2010 no proc. 25878/07.3YYLSB-A. L1. S1, e no Acórdão de 13.04.2011, no proc. 41342/04.0YYLB-A. L1. S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[14]Vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 19.10.2004 no proc 04B3470; e de 28.6.2018-proc 487/13.1TVPRT.P1. S1, in www.dgsi.pt. Na doutrina, v.g, .Pestana de Vasconcelos in  Direito das Garantias, 2ª ed., 2013, pág. 126/7: “Sendo a garantia prestada por um banco do seu Estado, o credor afasta o risco de incumprimento ou da insolvência da outra parte, de que ele em regra tem um conhecimento escasso…”(…) É, nessa medida, em particular na modalidade à primeira solicitação (on first demand), e este aspecto é de grande relevo, um catalisador das trocas e prestações de serviços, que de outra forma, sem o afastamento do risco de incumprimento e da insolvência do outro contraente, grande parte das vezes não seriam sequer realizadas, ou, então, eventualmente, sê-lo-iam em condições mais onerosas.”
[15]Constando dos autos, a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, elaborada pelo administrador da insolvência, nos termos do artigo 129º do CIRE (junta pelo exequente com a contestação dos embargos). 
[16]Cfr. Pedro Romano Martinez, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles - Volume II - Direito Bancário, Garantias Bancárias, Almedina, 2002, pág. 266; e, Luís Miguel Pestana Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, Coimbra, 2011, pág. 121.
[17]A ordenante da garantia bancária foi declarada insolvente em 11.07.2013 (ponto 13 dos factos provados); A ordenante instaurou contra a beneficiária da garantia, a aqui Apelada, uma acção de condenação para pagamento da quantia de € 256.121,14, tendo a Apelada, nessa acção deduzido reconvenção pelo valor de € 96.173,77 (pontos 14 a 17 dos factos provados);  Essa acção foi julgada procedente, sendo a Apelada, condenada a pagar à ordenante o valor de € 224.671,05 e juros, decisão que transitou em julgado (pontos 18 e 20 dos factos provados);  A reconvenção foi julgada inútil por a Apelada ter reclamado o seu crédito no âmbito do processo de insolvência (ponto 19 dos factos privados).
[18]Em alinhamento com o texto da garantia bancária no qual consta que o banco executado reconhece expressamente que a obrigação assumida por via desta garantia é rigorosamente distinta e independente das obrigações que garante e nada poderá opor à Beneficiária F…SA, renunciando ao benefício da prévia excussão e ao direito de oposição com base em qualquer meio de defesa admitido a S…, S.A., logo que receba interpelação para pagamento.
[19]Sublinham Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, 2ª edição, Vol. II, pág. 847, no lugar do cumprimento, como sub-rogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor, realizando o seu crédito, através de uma espécie de acção directa, ao mesmo tempo que se exonera da sua dívida, economizando-se dois actos de cumprimento autónomos.
[20]No proc.15265/14.2T8PRT-A. P1. S1, disponível in www.dgsi.pt.
[21]Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-06-2021, proc 15932/16.6T8LSB-A. L1. S1, disponível in www.dgsi.pt.
[22]Apud - Acórdão do STJ de 17.06.2021, indicado na nota de roda pé 20 - «…. Na lição de Vaz Serra, em ter presente que “os direitos podem ser concedidos pela lei apenas em vista de certos fins e, então, se são exercidos para fins diferentes desses, não pode dizer-se que se trata de verdadeiro exercício de um direito, mas de falta de direito.» – “Abuso do Direito (em Matéria de Responsabilidade Civil)”, BMJ n.º 85, Lisboa, Abril de 1959, pág. 253.»
[23]Segundo Menezes Cordeiro trata-se de uma perspectiva sistémica- «Um sistema jurídico postula um conjunto de normas e princípios de Direito, ordenado em função de um ou mais pontos de vista. Este conjunto projecta um sistema de acções jurídicas, portanto de comportamentos que, por se colocarem como actuações juridicamente permitidas ou impostas relevam para o sistema. O não acatamento das imposições e o ultrapassar do âmbito posto às permissões contraria o sistema: há disfunção.» in, Da boa-fé no direito Civil, 1984, II, pág.865.
[24]No proc. 458/09.2YFLSB, disponível in www.dgsi.pt.