Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2370/09.6TBSXL-A.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -O fundamento do caso julgado reside no prestígio dos Tribunais e numa razão de certeza ou segurança jurídica.
-Assim, ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO:


M... e A... deduziram oposição à execução para pagamento de quantia certa, com processo comum, que lhe move a Administração Conjunta da AUGI Ff-45 e Ff-46, alegando em síntese:

-A taxa de justiça devida pelo requerimento executivo não se mostra paga;
- A exequente encontra-se indevidamente representada em juízo, por a procuração não obedecer aos termos estipulados na alínea g), nº 1 do artigo 15º da Lei nº 91/95, de 2 de setembro, com as alterações subsequentes;
-A ata da assembleia e respetivo mapa não constitui título executivo;
- A existência de uma causa pendente a correr termos no processo nº 5969/07.1TBSXL em que pede que seja declarado não dever as quantias peticionadas nesta execução;
-A desconformidade dos juros peticionados com o nº 2 do artigo 16º-C da Lei nº 91/95 de 2 de setembro.

Notificada para tanto, a exequente contestou.

Foi proferido despacho que declarou suspensa a instância até que seja proferida sentença com trânsito em julgado na ação declarativa nº 5969/07.1TBSXL por nesta se discutir a existência de dívida dos executados relacionada com a reconversão da Augi FF-45 e FF-46 cujo pagamento o exequente pretende obter através da execução apensa.

Mostra-se junta aos autos certidão da sentença proferida no aludido processo, pelo que o Tribunal a quo entendeu ser possível conhecer do mérito da oposição, o que fez, julgando procedente a oposição e julgando extinta a execução.
           
Inconformada com a sentença proferida veio a ADMINISTRAÇÃO CONJUNTA DA AUGI FF-45 e FF-46 interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1-De acordo com a douta sentença proferida, foi julgada procedente a oposição deduzida pelos Recorridos, com o único fundamento no facto de ter transitado em julgado a acção declarativa, onde se declara que os executados entre outros, nada devem à Associação de Moradores ....
2-Suporta o Tribunal a quo a sua decisão no raciocínio de que as despesas de comparticipação relacionadas com a reconversão da AUGI FF-45 e FF-46, foram fixadas pela Associação de Moradores ..., à data a entidade gestora das obras, cuja cobrança passou a incumbir à AUGI, no sentido de que se não devem à Associação, nada devem também à AUGI.
3-A douta decisão recorrida, ofende o caso julgado, pois encontra-se transitada em julgado decisão que contraria por completo o sentido da sentença que ora se recorre.
4-O douto Tribunal a quo com a sentença proferida ofende o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado quanto a esta matéria fundamental de direito.
5-Assim, pretende a Recorrente que o douto Tribunal da Relação de Lisboa revogue a decisão da primeira instância por esta ofender o caso julgado.
6-A decisão recorrida vem contrariar o Acórdão proferido pela 6ª Secção no âmbito do processo 3990/13.0TBSXL, do Tribunal da Relação de Lisboa.
7-Por Acórdão transitado em julgado considera-se que a decisão obtida na acção de simples apreciação (Procº nº 5969/07.1TBSXL.1) e que a sentença recorrida se socorre não vincula o sucessor, neste caso a ora Exequente/Recorrente.
8-No fundo reconhece que a Recorrente constituiu-se no ano de 2003, sucedendo à sua antecessora “ Associação de Moradores”, logo, a partir daí, desde a ocorrência da sucessão é a AUGI FF-45 e FF-46 a titular dos direitos e relações jurídicas que cabiam à Associação de Moradores.
9-Reconhece-se ainda que a decisão proferida na acção de simples apreciação não vincula a Recorrente nem dentro nem fora do processo ao ponto de impedir de exercer o seu direito de ser ressarcida pelas dívidas existentes por parte dos comproprietários, nomeadamente, os ora Recorridos.
10-Assim, não pode o douto Tribunal a quo, vir dizer que necessariamente tem que se concluir pela inexistência da dívida que a AUGI FF-45 e FF-46, visa cobrar.
11-Entre a decisão da presente acção e a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo 3990/13.0TBSXL verifica-se a ofensa de caso julgado.
12-É o artº 581º do CPC que faculta as definições legais que permitem decidir se estamos ou não perante uma causa idêntica à outra, verificando-se a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
13-Verifica-se identidade de sujeitos em ambos os processos, pois na presente acção figura como exequente a Recorrente, sendo que no Processo 3990/13.0TBSXL, figura como Autora, quanto aos sujeitos passivos numa e noutra acção não são os mesmos, porém sob o aspecto jurídico são detentores de um idêntico interesse, pois todos são comproprietários da AUGI FF-45 e FF-46, sendo reclamadas em ambas as acções o dever de reconversão a que estão obrigados os comproprietários.
14-Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.05.2013 (com texto integral acessível in www.dgsi.pt – Processo nº 1042/10.TBCHV.P1), que terá que se considerar que as partes são as mesmas, sob o aspecto jurídico, desde que sejam detentoras de um idêntico interesse substancial, não tendo que existir coincidência física e sendo indiferente a posição que assumam em ambos os processos.
15-Também quanto à causa de pedir, em ambas as pretensões invocadas têm subjacente a existência/inexistência dos encargos com a operação de reconversão.
16-Os pedidos são os mesmos, na medida em que os efeitos jurídicos pretendidos em ambas as acções coincidem, pretende-se a condenação ao pagamento do dever de reconversão, sendo o mesmo resultado que se visa alcançar.
17-A sentença recorrida ofende directamente a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
18-Entendendo-se que não se verifica a ofensa de caso julgado, por não existir uma tríplice identidade, o que não se concede, terá contudo, que subsistir a autoridade do caso julgado, verificando-se consequentemente a sua ofensa.
19-A autoridade do caso julgado, enquanto vertente positiva do caso julgado impede o tribunal de proferir decisão contrária a outra anterior sobre a mesma questão, em violação da autoridade que emana da anterior decisão judicial.
20-A decisão recorrida ofende a posição do douto Tribunal da Relação de Lisboa, pois este tribunal evidencia que a Recorrente não foi demandada na acção declarativa de simples apreciação negativa, não exerceu o direito a contradizer, nesse sentido, não se pode afirmar que nada lhe é devido também a si.
21-Face ao supra exposto deve ser dado provimento ao presente recurso, devendo Vossas Excelências Senhores Juízes Desembargadores revogar a douta sentença proferida, por esta ofender o caso julgado, devendo assim prosseguir a execução os seus termos até final.        
     
Não foram apresentadas contra- alegações.

Cumpre apreciar e decidir:
           
III-OS FACTOS.

Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1)-O exequente intentou a execução apensa contra os executados, com base na ata da assembleia geral da Administração Conjunta da AUGI FF-45 e FF-46, realizada em 26.02.2006, junta a fls. 78 e ss. que se dá por integralmente reproduzida.
2)-Na referida ata sob o ponto quatro “apresentação do mapa de comparticipações dos lotes faltosos”, foi aprovado por “unanimidade o mapa de comparticipações, bem como a sua junção à ata da assembleia como anexo, passando assim a fazer parte integrante desta”, tendo por base “os valores aprovados no decurso da urbanização ao longo dos vários anos da sua existência”.
3)-O exequente anexou ao requerimento executivo um mapa, a fls. 7, no valor de €3.618,66, sendo peticionado na execução o valor de €2.074,36, constando do requerimento executivo que estão em causa “despesas de reconversão, que foram fixadas pela Associação de Moradores ..., que à época era a entidade gestora das obras, deveriam ser pagas por todos os comproprietários. Com o resultado de duas auditorias chegou-se à conclusão de quais os comproprietários não tinham efetuado os respetivos pagamentos. Os executados por força da quota indivisa de que são proprietários são responsáveis pelas comparticipações respeitantes aos “lotes 256 e 257” da respetiva Augi. Os referidos lotes 256 e 257 tem como encargos com a reconversão o valor total de €2.074,36.”.
4)-Os ora executados, juntamente com outros proprietários, intentaram ação de simples apreciação negativa contra a Associação de Moradores ..., pedindo que seja declarado que nada devem a título de comparticipações pela reconversão da Augi, reportando-se à dívida exequenda, tendo sido proferida sentença transitada em julgado em que foi declarado que os autores (entre os quais os ora executados) não são devedores de qualquer quantia a este título.

III-O DIREITO.

Tendo em conta as conclusões de recurso que, como é sabido, delimitam o âmbito de cognição deste Tribunal, a questão que importa apreciar consiste em saber se a decisão recorrida configura uma violação do caso julgado ou está em causa a autoridade do caso julgado.

Vejamos, para melhor esclarecimento, o teor da decisão recorrida:

“Nos termos do artigo 284º, nº 2 do anterior Código de Processo Civil (aplicável “ex vi” do disposto no artigo 6º, nº 4 da Lei nº 41/2013, de 26 de junho, que “Se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou razão de ser da causa que estiver suspensa, é esta julgada improcedente.”.

Na presente execução visa-se a cobrança de uma alegada dívida dos executados referente a despesas de comparticipação relacionadas com a reconversão da AUGI FF-45 e AUGI FF-46, fixadas pela Associação de Moradores ..., à data a entidade gestora das obras, cuja cobrança passou a incumbir à AUGI, conforme resulta do requerimento executivo.

Sucede que foi proferida decisão transitada em julgado a declarar que os executados nada devem à Associação de Moradores ... no que toca a despesas de comparticipação atinentes ao processo de reconversão da AUGI, precisamente as peticionadas nos presentes autos de execução.

Nestas circunstâncias, atendendo a que a AUGI FF-45 e AUGI FF-46 reconhece no seu requerimento executivo que se encontra a cobrar uma dívida gerada junto da Associação de Moradores ... relacionada com as despesas de comparticipação na reconversão da AUGI, tendo ficado demonstrado que os executados nada devem a esta entidade a este título, terá necessariamente de se concluir pela inexistência da dívida que a AUGI FF-45 e AUGI FF-46 visa cobrar, pelo que importa determinar a extinção da execução, sendo, pois, procedente a oposição.”

Dos autos resulta que foi instaurada uma acção de simples apreciação negativa  que seguiu termos sob o n.º 5969/07.1TBSXL em que figuraram como Autores A... e Outros e como Ré Associação de Moradores ....

Nessa acção foi julgado que os Autores, entre os quais os ora executados, não são devedores à Ré de qualquer quantia a título de despesas de comparticipação na reconversão da AUGI.

Porém, dos autos resulta igualmente que AUGI Ff-45 e Ff46 demandou J..., M..., M... e M..., na qualidade de comproprietários, em acção que correu termos sob o n.º 3990/13.0TBSXL.L1.

Nesse processo foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que entendeu a decisão obtida no processo n.º 5969/07.1TBSXL não vincula o sucessor (AUGI FF-45 e FF-46), “já que este não foi demandado, como podia e devia, o que deixou impedido de exercer, por si próprio, o contraditório nessa acção intentada após a sucessão na titularidade da invocada relação jurídica creditícia”. Mais, entendeu-se ainda que aquela acção foi intentada em 2007, logo, muito após a constituição AUGI, que ocorreu em 2003. Por isso, era a AUGI, desde então, a titular da relação jurídica aludida, em vez da sua antecessora, e se foi esta última a (única) demandada naquela acção, deixando-se de fora da causa a então/nova titular (sucessora), claro se torna que a ali R. não representava aquela que lhe sucedera, não a vinculando no processo ou fora dele. O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, pois, que não tendo a AUGI sido parte nessa causa instaurada em 2007 (Proc. 5969/07.1TBSXL.L1), a respectiva decisão  não tem, sobre ela, força vinculativa. Com efeito, nessa acção reconheceu-se que os comproprietários nada deviam, perante a Associação de Moradores da Flor da Mata I, mas como ficou referido supra, essa decisão não pode vincular a AUGI Ff-45 e Ff-46, que tinha sucedido à primeira, em 2003, sendo que a acção foi interposta em 2007.
           
Importa analisar se, perante este acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito do Processo 3990/13.0TBSXL.L1, o Tribunal recorrido estava vinculado pela força do caso julgado.
           
São essencialmente duas as realidades que se nos deparam no tratamento jurídico das consequências ou efeitos do caso julgado:
a)A excepção dilatória do caso julgado
b)A autoridade do caso julgado.

Na verdade, é manifesto que não se verifica, no caso em apreço, a violação do caso julgado, enquanto excepção dilatória, dado que não existe identidade de sujeitos.

Efectivamente, no Processo n.º 3990/13 são Réus “J..., M..., M... e M...”; enquanto que, na presente acção, os demandados são “M... e A...”.

Importa, porém, averiguar se se verificou ofensa à autoridade de caso julgado, que não se confunde com a excepção dilatória de caso julgado.

Como ensina Manuel de Andrade[1], “com o brilho e o apurado sentido das realidades que todos lhe reconhecemos, mesmo em gerações posteriores às que tiveram o privilégio de escutar as suas palavras”[2] o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais (considerando que «tal prestígio seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente») e numa razão de certeza ou segurança jurídicasem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa – fonte perene de injustiças e paralisadora  de todas as inicitivas»).

“Assim, ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta”.[3]

Será o caso, na situação que ora apreciamos? Cremos que sim.
           
Como referido, embora os sujeitos passivos numa e noutra acção, não sejam os mesmos, a verdade é que são detentores de um idêntico interesse substancial, pois todos são comproprietários da AUGI FF-45 e FF -46, sendo reclamadas, em ambas as acções, o pagamento do mesmo tipo de prestações que vinculam todos os comproprietários. Portanto, seria profundamente atentatório do prestígio dos tribunais e da segurança  jurídica que, numa mesma situação jurídica, que abrange vários titulares, o Tribunal desse uma resposta diferente, para uns e para outros.

Impõe-se, pois, concluir, como concluiu a Apelante que a decisão recorrida decidindo como decidiu ofende a autoridade do caso julgado.

A decisão recorrida, tem necessariamente de ser revogada com este fundamento, devendo a oposição à execução prosseguir seus termos, de molde a ser apreciada a questão suscitada da existência ou inexistência da dívida para com a AUGI.

III-DECISÃO:

Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogando a decisão recorrida, determinar que os autos de oposição à execução, prossigam seus termos.
Custas pela parte vencida a final.



Lisboa, 9 de Fevereiro de 2017


Maria de Deus Correia
Nuno Sampaio
Maria Teresa Pardal



[1]Noções elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 1979, p.306.
[2]Fazendo nossas as palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2013, Processo 3210/07.6TCLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3]Acórdão do STJ, supra referido.

Decisão Texto Integral: