Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1590/06.0TBFUN.L2-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO
EXPROPRIAÇÃO TOTAL
DIREITO DE PREFERÊNCIA
COMUNICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 55.º n.º 6 do Código das Expropriações aos interessados, titulares do direito de preferência, à semelhança do que ocorre noutras situações legalmente previstas de direito legal de preferência – designadamente nos artigos 1409.º, 1555.º n.º2 e 1380 n.º 4 do Código Civil que remetem para o disposto no artigo 416.º, do mesmo diploma -, deve ser comunicado o facto donde o mesmo decorre, ou seja, a decisão de expropriação total.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
Nos presentes autos de expropriação em que é Expropriante REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA e é Expropriada B , foi proferido o seguinte despacho:
“(…)
B.
A decisão de fls. 813 que decretou a expropriação total e determinou que a entidade expropriante depositasse a quantia arbitrada no acórdão arbitral mostra-se transitada em julgado.
 Em face do supra referido, salvo melhor opinião, tendo o tribunal decidido expressamente que “defiro o pedido de expropriação total requerido a fls 194, que desde já decreto”, mostra-se, por decisão judicial, entretanto transitada em julgado, já adjudicada a parcela sobrante à entidade expropriante, não havendo que proferir qualquer decisão de adjudicação, ao contrário do que sustenta a expropriante no ponto 18. do seu requerimento de 23.03.2017 (cfr. fls 1521). Na verdade, como poderia o tribunal agora proferir uma decisão sobre a adjudicação, se como é manifesto, não poderia decidir não adjudicar, nem poderia tal decisão ser objecto de recurso, por já estar tal questão decidida? Não procede assim o requerido pela entidade expropriante.
C.
Decorre da decisão supra referida e transitada em julgado que o tribunal considerou já que o valor arbitralmente fixado para a parcela sobrante é o de 237.258 euros, não havendo que realizar nova arbitragem. Acresce que, salvo melhor opinião, o recurso da decisão arbitral apresentado pela entidade expropriante não abrangeu o valor relativo à parcela sobrante, sendo que, caso a entidade expropriante pretendesse discordar de tal valor teria de o fazer através de um recurso deduzido no incidente de expropriação total após ser notificado da decisão adjudicatória consubstanciada no deferimento da expropriação total, o que não sucedeu. Entendimento esse que já resultava do despacho de 15.07.2013 em que o tribunal esclareceu que não havia mais actos a praticar quanto à expropriação total que não fosse o próprio pagamento (e mesmo do despacho de 23.11.2010 que fixou o objecto da avaliação pericial).
Aliás já foi elaborado relatório pericial que consta de fls 1149 dos autos e prestados esclarecimentos a fls 1187, devendo naturalmente, em face do trânsito em julgado da decisão sobre a expropriação total, desconsiderar o valor proposto pelos Srs. Peritos quanto à “depreciação da parcela remanescente”.
Neste contexto, carece de fundamento legal o requerido pela entidade expropriante no ponto 4. do seu requerimento de 06.03.2017 a fls 1520, pois a avaliação pericial competente e necessária já foi realizada e com um objecto nunca colocado em causa até à presente data.
Assim sendo, indefere-se o requerido.
D.
Também no que concerne ao requerido pela entidade expropriante nos pontos 2. e 3. do requerimento supra referido, no sentido de serem notificados os “preferentes” nos termos do artigo 55º, nº 6 do C.E., tal requerimento carece de fundamento legal, salvo melhor opinião, desde logo porque, tendo já sido adjudicada a parcela sobrante à entidade expropriante, mostra-se esgotada a possibilidade de preferir; por outro lado, na esteira do que defende Salvador da Costa em Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores, 2010, pag. 346 “ os referidos direitos de preferência e de execução especifica devem ser exercidos pelos interessados no próprio incidente de expropriação total, no confronto com o expropriado e da entidade expropriante beneficiária da expropriação, por via do incidente de oposição espontânea”, sendo que no caso concreto, ninguém se apresentou espontaneamente a exercer tais direitos.
Improcede assim o requerido pela entidade expropriante.
E.
Vem a expropriada, se bem compreendemos através do requerimento de fls 1524 e seguintes, requerer o pagamento de juros moratórios no valor de 167.383,20 euros, em requerimento que o tribunal considera ininteligível relativamente aos fundamentos, taxas e formas de cálculo, sendo necessário que a expropriada apresente requerimento esclarecendo o supra referido.
Requer ainda que lhe seja já entregue o remanescente da quantia arbitrada relativamente à parcela “principal”, a quantia arbitrada quanto à parcela sobrante e os tais juros alegadamente devidos.
Ora, no que concerne ao remanescente do valor arbitrado para a “parcela principal”, conforme o tribunal já esclareceu anteriormente, a expropriada só podia receber a quantia sobre a qual havia acordo, pois que ainda não está decidido o recurso interposto da decisão arbitral e que será decidido por este tribunal. A expropriada já recebeu a quantia sobre a qual há acordo, pelo que carece de fundamento legal o pedido ora deduzido a este propósito.
Já quanto a à indemnização complementar relativa à parcela sobrante no valor de 237.258 euros, assiste agora sim, em face do trânsito em julgado da decisão de fls 813, direito ao seu recebimento.
Assim sendo, decide-se:
- determinar a notificação da expropriada para esclarecer a sua pretensão quanto aos juros alegadamente devidos, apresentando os cálculos, taxas de juro, datas e valores de capital parciais considerados apresentando ainda fundamento legal para tal.
Prazo: 15 dias.
- notificar a Expropriante para, no prazo de 10 dias, depositar a quantia de 237.258 euros, nos termos já ordenados pela decisão de fls 813, já transitada em julgado;
 - ordenar a comunicação à C.R.P. da decisão de fls 813 com nota de trânsito em julgado para efeitos de registo da adjudicação da parcela sobrante.
 Mais se determina, a fim de proceder ao agendamento de diligências instrutórias no âmbito do recurso da decisão arbitral, que se notifique a entidade expropriante para esclarecer se mantém o requerimento de realização de 2ª perícia que havia formulado no ponto 9. do requerimento de 05.12.2011. e sobre o qual, em face das vicissitudes processuais, ainda não recaiu decisão.
Prazo: 15 dias.”

A Expropriante REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA, inconformada com o despacho, maxime no que se refere à não notificação dos preferentes, veio interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1.De harmonia com o artº 55º, nº 6 do Código das Expropriações, os proprietários confinantes, (a seguir aos preferentes legais, se os houver), têm o direito de aquisição da parcela sobrante, objecto de expropriação total, pelo valor que for fixado no respectivo processo de expropriação, disposição que a decisão recorrida violou.
2. Só após ter sido decidida a expropriação total, podem (e devem) os proprietários confinantes ser devidamente consultados, nos termos previstos nos artºs 416º e segs. do CCivil, disposições que o despacho recorrido violou.
3. O despacho recorrido confundiu o cumprimento desta obrigação, com o posterior exercício de tal direito, por via de incidente de intervenção espontânea, por parte dos confinantes consultados, se assim o entenderem.
4. Sem despacho a determinar a expropriação total, não se coloca a questão da consulta dos proprietários confinantes, pelo que tal despacho, mesmo entendido também como de adjudicação da propriedade da parcela expropriada à expropriante, fica condicionado e não impede tal consulta, antes impõe a obrigação de o fazer.
5. A expropriante requereu e advertiu, sistemática e repetidamente, o Tribunal, para proceder à consulta dos proprietários confinantes.
6. O despacho recorrido enferma de erro manifesto, tendo violado, entre outras disposições legais, o artº 55º, nº 6., do Código das Expropriações e os artºs 416º e segs., do CCivil.
Termos em que dever-se-á considerar procedente o presente recurso,  revogando-se o douto despacho recorrido.
Nas suas contra alegações, a Expropriada pronuncia-se pela inadmissibilidade do recurso por entender que foi a Expropriante foi condenada a fazer a expropriação total do prédio a que os autos se referem, entrando assim na sua esfera jurídica, a totalidade do prédio expropriado pelo que, no seu entender, “não faz qualquer sentido a questão que a Recorrente ora apresenta quanto ao hipotético direito de terceiros que se hipoteticamente existisse, tais terceiros teriam de exercer o seu direito perante a expropriante – proprietária do prédio em face da expropriação total ordenada por decisão transitada em julgado”. Mais refere que “A questão a que se refere o nº 6 do art.º 55.º do CE é prévia à decisão judicial que ordenou a expropriação total”. Esta transitou em julgado. Logo, “o recurso que a expropriante apresentou não é admissível”.
Cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
Os elementos que relevam para a decisão constam do relatório, sendo a questão a apreciar exclusivamente de Direito.
III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas, as questões a apreciar são as seguintes:
1-Admissibilidade do recurso
2-Saber se devem ser notificados os preferentes para adquirir a parcela sobrante.
1- Quanto à primeira questão importa referir apenas que o recurso é admissível, pois em nada colide com o trânsito em julgado da decisão que determinou a expropriação total. A decisão que está em causa neste recurso prende-se com a notificação dos preferentes na aquisição da parcela sobrante. Ora, este direito de preferência pressupõe precisamente tal decisão. É porque se determinou a expropriação total que se suscita a questão da notificação dos preferentes. Por conseguinte, impõe-se concluir pela improcedência da argumentação da Apelada quanto à inadmissibilidade do recurso.
2-Apreciando agora a questão de fundo:
A divergência entre o decidido e a Apelante reside no facto de este pretender que seja dado cumprimento ao disposto no art.º 55.º n.º 6 do Código das Expropriações, ou seja, se proceda à notificação dos preferentes para, querendo, exercerem o seu direito de preferência, sendo certo que o Tribunal indeferiu tal pretensão, com fundamento no trânsito em julgado da decisão que decretou a expropriação total, estando já adjudicada a parcela sobrante à Expropriante.
Quid juris?
Como já foi aflorado supra, aquando da apreciação da admissibilidade do recurso, cremos que a decisão recorrida incorre num mal - entendido que consiste precisamente em partir do princípio que a notificação dos preferentes contraria a decisão já transitada em julgado. Ora, cremos que tal não sucede.  
Pelo contrário, antes a pressupõe. O direito a ser exercido pelos preferentes só tem cabimento se estiver decidida a expropriação total, pois que esse direito de preferência exerce-se justamente em relação à parcela sobrante. Logicamente, a questão só se coloca no caso de estar já decidida a expropriação igualmente dessa parcela sobrante.
Estabelece o art.º 55.º n.º6 do Código das Expropriações: “na hipótese prevista neste artigo [ pedido de expropriação total ], podem adquirir a parte do prédio que não seja necessária ao fim da expropriação as pessoas que gozem de preferência legal na respectiva alienação e os proprietários de terrenos confiantes, por esta ordem, gozando os segundos do direito de execução específica.”
Coloca-se a questão de saber qual o momento e o meio processual adequado para os preferentes exercerem o seu direito.
A verdade é que a lei não o declara expressamente.
O despacho recorrido baseia-se no defendido por Salvador da Costa[1], quando escreve“ os referidos direitos de preferência e de execução específica devem ser exercidos pelos interessados no próprio incidente de expropriação total, no confronto com o expropriado e da entidade expropriante beneficiária da expropriação, por via do incidente de oposição espontânea”. E conclui-se no despacho recorrido: “ sendo que no caso concreto, ninguém se apresentou espontaneamente a exercer tais direitos”. Ora, por um lado, cremos que o defendido pelo citado autor não constitui fundamento bastante para o indeferimento da pretensão da Apelante. Em primeiro lugar porque em nada contraria a pretensão deste. Por outro lado, não se vê como possam os interessados  exercer os seus direitos, se não lhes for dado conhecimento de que existe uma decisão de expropriação total, pressuposto desse exercício. Cremos que aos interessados, titulares do direito de preferência, à semelhança do que ocorre noutras situações legalmente previstas de direito legal de preferência – designadamente nos artigos 1409.º, 1555.º n.º2 e 1380 n.º 4 do Código Civil que remetem para o disposto no artigo 416.º, do mesmo diploma -, deve ser comunicado o facto donde o mesmo decorre, ou seja, a decisão de expropriação total. Pois só depois da prolacção desta, nasce na sua esfera jurídica o referido direito.
Tal como conclui a Apelante “sem despacho a determinar a expropriação total, não se coloca a questão da consulta dos proprietários confinantes, pelo que tal despacho, mesmo entendido também como de adjudicação da propriedade da parcela expropriada à expropriante, fica condicionado e não impede tal consulta, antes impõe a obrigação de o fazer.”
Procedem, pois, as conclusões de recurso, devendo, portanto o recurso ser julgado procedente e em consequência, revogada a decisão recorrida.
IV-DECISÃO
Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o recurso e, consequentemente revogar a decisão recorrida, na parte em que indefere a requerida notificação dos possíveis interessados, nos termos do art.º 55.º n.º 6 do Código das Expropriações, bem como os segmentos da decisão dependentes daquela, ou seja, que mandam:
“ - notificar a Expropriante para, no prazo de 10 dias, depositar a quantia de 237.258 euros,”  e “comunicar C.R.P. da decisão de fls 813 com nota de trânsito em julgado para efeitos de registo da adjudicação da parcela sobrante”.
A decisão recorrida deve ser substituída por outra que ordene a notificação dos interessados nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 55.º n.º6 do Código das Expropriações.
Custas pela Apelada.
Lisboa, 24 de Janeiro de 2019

Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Carlos Marinho


[1] Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores, 2010, p. 346.