Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1591/19.8T8VFX-F.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PRAZO DE ARGUIÇÃO
NULIDADE DE VENDA EM INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Não é nula por omissão de pronúncia a decisão que não apreciou dos fundamentos de pedido que por aquela foi julgado extemporâneo.
2. Não é nula por falta de fundamentação a decisão que não cite as disposições legais em que se funda, mas que argumenta fundamentos que se reconduzem a conteúdo jurídico-legal positivado, preenchido com valorações ou qualificações jurídicas.
3. Na ausência de disposição especial que no CIRE ou no CPC regule ou preveja prazo especial aplicável, é de dez dias o prazo para, a partir do seu conhecimento, os interessados arguirem a nulidade da venda em processo de insolvência, seja suportada em fundamento de natureza processual (nulidade processual), seja de natureza substancial (nulidade material).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as juízas da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I - Relatório
1. Declarada a insolvência de JM e IM por sentença proferida em 24.06.2019, o Sr. administrador da insolvência (AI) juntou auto de apreensão datado de 16.09.2019 com descrição de uma verba correspondente a prédio rústico, com área total de 18035m2 situado …, inscrito na respetiva matriz rustica sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de …., que avaliou em €5.000,00.
2. Em 09 e 11.12.2019 o AI juntou documento datado de 28.11.2019 e epigrafado de ‘ANUNCIO//Liquidação Ativo, com o seguinte teor:
1- Venda por negociação particular, mediante a apresentação de propostas em sobrescrito fechado, cuja abertura se efetuará no domicílio profissional do Sr. Administrador Judicial e em sede de comissão de credores.
2- Valor Mínimo de Venda: 631.620,00€
Verba n.º 1 – Imóvel Rústico, com uma área total de …., inscrito na Matriz Predial Rústica sob o Artigo …e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ….
Condições gerais de venda;
3- As propostas para a compra dos bens acima descritos deverão ser entregues ou rececionadas até ao dia 23-12-2019, no Largo …, durante o horário de expediente - 9.00h/13.00h e 14.00/17.30h -, ou por carta registada para a mesma morada.
4- A abertura dos sobrescritos e a leitura das propostas serão efetuadas no dia 24-12-2019, pelas 10.00 horas, no domicílio profissional do Sr. Administrador Judicial acima descrito; Tel ….;
5- O sobrescrito deverá mencionar o nome, o endereço completo e o número da identificação fiscal do proponente, assim como a frase “CONTÉM PROPOSTA PARA O PROCESSOº n.º 1591/19.8T8VFX do TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA NORTE, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira – Juiz 4”
6- A proposta deverá indicar o nome, o endereço completo e o número da identificação fiscal do proponente, a identificação do processo, bem como indicar claramente a que se propõe.
7- Os ofertantes deverão juntar à sua proposta, como caução, um cheque visado e/ou bancário, à ordem de MASSA INSOLVENTE DE JM E IM”, no montante correspondente a 20% do valor mínimo da venda dos bens, ou garantia bancária no mesmo valor.
8- Os proponentes, não havendo nada a opor, podem presenciar a abertura e a leitura das propostas;
9- Os bens serão vendidos no estado em que se encontram e tal como estão descritos no auto de apreensão;
10- O Administrador Judicial reserva-se na faculdade de não aceitar ou rejeitar quaisquer propostas que considere não se adequar aos interesses da massa insolvente.
11- O Administrador Judicial reserva-se na faculdade de não aceitar ou de aceitar a proposta cujo valor, ainda que não respeite o valor mínimo de venda, entenda ser o maior valor que a massa realizará em sede de liquidação.
12- O proponente cuja proposta for aceite, será notificado para que no prazo máximo de quinze dias, a contar da data da notificação, pagar a totalidade do valor da adjudicação dos bens;
13- No mesmo lapso de tempo, depois de comprovada a boa cobrança do pagamento do preço, os bens serão entregues ao adjudicatário.
14- Nesse prazo deverão ser liquidados, pelo adjudicatário os impostos que sejam devidos;
15- A mostra do imóvel realizar-se-á no dia 19-12-2019, no período compreendido entre as 15.00h/16.00h na ….
3. Em 14 e 18.08.2020 os insolventes apresentaram requerimento para junção de procuração forense no apenso de liquidação.
4. Em 17.09.2020 o AI relatou nos autos que, por indicação do credor hipotecário, recebeu uma proposta da sociedade P…, SA para aquisição do imóvel apreendido nos autos, pelo valor de €500.000,00, que esta efetuou o pagamento de 20% do valor mínimo da venda e a liquidação e pagamento dos impostos devidos, e que aguarda seja agendada e realizada a escritura de compra e venda do imóvel para que o ativo da massa insolvente se encontre todo vendido.
5. Por requerimento de 20.01.2021 P…, SA alegou ter adquirido o imóvel por escritura de compra e venda realizada em 15.10.2020, que quando se deslocou à morada do imóvel deparou-se com três imóveis construídos no terreno cuja existência não conhecia nem podia conhecer porque no registo o imóvel consta descrito como rústico e não existiu comunicação do AI naquele sentido, e verificou que dois dos imóveis encontram-se ocupados e habitados por pessoas cuja identidade desconhece.
Requereu a tomada de posse efetiva dos referidos bens e se necessário com auxílio da força pública e a notificação do AI e dos insolventes para esclarecer e prestar informação sobre o que expôs.
Juntou certidão da escritura de compra e venda, certidões permanentes do imóvel extraídas em 23.10.2019 e 25.11.2020, e certidão matricial.
 6. Em 26.01.2021 o Sr. administrador da insolvência (AI) informou que o ativo da massa insolvente se encontra todo vendido e que deve ser encerrada a liquidação do ativo da massa insolvente, devendo o processo seguir os seus ulteriores termos.
Juntou escritura de compra e venda celebrada em 15.10.2020 entre a massa insolvente, representada pelo AI, e P…, SA, pela qual e pelo preço de €500.000,00 pago por transferências bancárias de 11.08 e 23.09.2020, aquele declarou vender e esta declarou comprar o imóvel objeto de apreensão, descrito na escritura como prédio rústico composto de mato, cultura arvense e oliveira, sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de …, e inscrito na respetiva matriz rustica sob o artigo …, com o valor patrimonial de €136,27, inscrito a favor dos insolventes por inscrição de 02.01.2019.
7. Em resposta ao requerimento da P… SA, em 10.03.2021 o AI alegou que da avaliação do imóvel realizada pelo credor C…SA consta o que o compõe, que no dia indicado no anuncio para abertura de propostas de compra foi apresentada uma proposta de compra no valor de € 20.000,00, que comunicou a dita proposta à C…SA e nessa sequência esta apresentou proposta para aquisição do imóvel por terceiro nos termos do art.º 164º, nº 3 do CIRE, que o crédito da C…SA foi vendido a P… SA, e que não entende o alegado desconhecimento do objeto da venda já que foi pela mão da mandataria da C…SA que aquela apresentou proposta de €500.00,00 para aquisição do prédio, valor que não é plausível para um prédio rustico com mato, cultura arvoense e oliveira. Mais alegou que os insolventes lhe haviam transmitido que pretendiam recomprar o imóvel através do filho, que em face da legislação Covid ficou vedada a entrega do imóvel por estar em causa a casa de morada de família, e que a requerimento da P…SA e de acordo com o art.º 174º do CIRE, do valor depositado (€500.000,00) aquela já recebeu €420.000,00. Juntou relatório de avaliação em papel identificado com logotipo da C…SA, no qual constam descritas e retratadas três casas de habitação no imóvel, duas construídas e uma em construção, proposta de compra do imóvel que lhe foi dirigida em nome de P…SA, e comprovativo da transferência bancária de €420.000,00 em 24.11.2020 contendo referência a ‘rateio parcial’.
8. Em resposta à resposta do AI, por requerimento de 19.03.2021 a P…SA alegou que “não corresponde à verdade que foi a P…SA que adquiriu o imóvel em apreço.”, que foi o AI quem fixou o valor base e mínimo e a modalidade de venda do imóvel, que após a cessão de créditos que celebrou com a C…SA e comunicações que encetou com o AI foi por este informada que iria proceder à aceitação de uma proposta de aquisição do imóvel no valor de €20.000,00, que, por isso e atenta a avaliação feita pela C…SA, avançou com uma proposta no valor de €500.000,00 por ser este o valor real do imóvel, que lhe foi vendido por esse mesmo montante, que a Lei nº 4-B/2021 de 01.02 não se aplica ao caso porque o imóvel não está registado como urbano ou misto e por isso não pode ser classificado como habitação própria e permanente, que não está a por em causa o valor do imóvel adquirido, apenas pretende a sua tomada de posse. Concluiu requerendo a admissão da tomada de posse do imóvel, a fim de se evitar que a mesma sofra inúmeros e sérios prejuízos por não conseguir ter acesso ao bem que é da sua única e exclusiva propriedade.
9. Ordenada a notificação dos descritos requerimentos aos insolventes e cumprida por expediente de 10.03.2021, em 25.03.2021 estes vieram declarar opor-se à proposta de encerramento e liquidação do ativo da massa insolvente alegando que no dia da abertura indicada no anúncio de venda, JS e DS entregaram ao AI cheque bancário no valor de €20.000,00 e datado de 20.12.2019 a título de sinal para aquisição do imóvel, que isso lhes foi solicitado como necessário para a proposta de compra, que aqueles interessados iriam arrendar o imóvel aos insolventes para estes nele continuarem a residir, e que foi criada essa expectativa jurídica aos proponentes e aos insolventes por sociedade comercial que estava encarregue do processo (S…, Ldª), e que posteriormente vieram a ter conhecimento da aquisição do imóvel pela sociedade P…SA, na sequência do que JS e DS solicitaram ao AI a devolução do cheque, que foi entregue à mandatária dos insolventes. Mais alegaram que a proposta do atual proprietário não podia ter sido aceite porque dela resulta que foi feita fora de prazo e concluíram requerendo “deverá o referido imóvel voltar à esfera jurídica da massa insolvente de IM e JM, com todas as consequências jurídicas, não se procedendo pelo exposto ao encerramento da liquidação do ativo da massa insolvente.
10. Em resposta à resposta dos insolventes, a adquirente P…SA alegou que a sua proposta de aquisição foi apresentada no âmbito do procedimento previsto pelo art.º 164º do CIRE, que o AI cumpriu, e que não está a colocar em causa a composição do imóvel mas unicamente a requerer que seja ordenada a tomada de posse do mesmo.
11. Ordenada a notificação dos requerimentos ao AI, por requerimento de 09.06.2021 este relembrou a publicação do anúncio de venda e a realização da venda nos termos descritos pelo credor hipotecário e em cumprimento do art.º 164º do CIRE. Alegou que foi a mandatária dos insolventes quem se deslocou ao seu escritório e entregou cheque de €20.000,00 e cópia do cartão de cidadão dos proponentes num envelope aberto e sem quaisquer dizeres, que nas compras judiciais não existe a figura e sinal mas sim cheque caução para efeito de custas nos termos do anuncio e da lei, que não conhece os alegados proponentes porque sequer o contactaram por qualquer via nem a proposta apresentada deles tem qualquer contacto, que a devolução do cheque foi solicitada e o seu levantamento efetuado pela mandatária dos insolventes, também mandatada pelos proponentes, que aquela proposta não foi aceite por falta de cumprimento das regras do anúncio, que com o decretamento do fim do estado de emergência regulamentado no Decreto Lei nº 6-A/2021 de 15.04 cessou a proibição automática da entrega judicial de imóveis dos executados e dos insolventes e, por isso, pretende retomar a posse do imóvel apreendido e vendido à P…SA nos termos dos art.ºs 149º e 150º do CIRE e 828º do CPC ex vi art.º 17º do CIRE.
12. Ordenada a notificação do requerimento descrito em 11., que foi cumprida na pessoa dos mandatários dos insolventes e da adquirente P…SA, pronunciou-se apenas a adquirente P…SA aderindo ao seu teor.
13. Em 23.07.2021, invocando a falta de pronúncia em tempo útil, o AI requereu a prolação de despacho a requisitar o auxílio da força publica para entrega do imóvel ao credor hipotecário, seu atual proprietário, nos termos dos art.ºs 828º, 861º, nº 3, ex vi art.ºs 17º do CIRE e art.º 150º, nº 4. Alegou oposição e resistência ‘ostensiva’ dos insolventes à entrega.
14. Em 01.09.2021 foi proferido o seguinte despacho:
Atenta a ausência de oposição aos argumentos esgrimidos pelo AI, tem-se a venda como válida e regular.
Notifique os Insolventes para procederem à entrega voluntária do imóvel ao AI em 60 dias, sob pena de se proceder a entrega coerciva, nos termos requeridos em anterior requerimento.
15. Por requerimento de 20.09.2021 os insolventes alegaram que não responderam à resposta do AI precisamente por ser resposta a resposta a reiterar o que já tinha sido alegado. Mais invocaram a providência cautelar que eles e outros requereram por apenso aos autos de insolvência, e requereram se aguarde a decisão naquela a proferir e seja dado sem efeito o prazo de 60 dias para a entrega do imóvel, sobre o que incidiu despacho de 29.10.2021, proferido nos seguintes termos: Aguarde-se decisão na providência cautelar.
16. Em 29.04.2021 os insolventes e JS e DS, intentaram providência cautelar contra a massa insolvente dos primeiros como incidente de ação de anulação de negócio jurídico de venda de imóvel pela massa a terceiro (apenso E) alegando em fundamento o que alegaram no requerimento de 25.03.2021 acima aludido (9.), e mais invocando “o direito de requererem a anulação do negócio jurídico celebrado, ou seja, a venda do imóvel descrito em 4.º, encontrando-se preenchidos os requisitos necessários para ser decretado o presente procedimento cautelar, como preliminar da ação de anulação do negócio jurídico celebrado com terceiro, (ainda que de boa fé), sem necessidade de alegação ou prova de justo receio de extravio ou dissipação de bens, uma vez que tal se presume.
17. Por decisão de 07.03.2022 proferida naqueles autos de procedimento cautelar a requerida foi absolvida da instância com fundamento na “nulidade de todo o processo por ineptidão da petição e ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo”, decisão que transitou em julgado.
18. Por requerimento de 11.04.2022 os insolventes requereram que o tribunal:
1) Declare a nulidade da venda do imóvel objeto dos presentes autos, devendo a venda ser reiniciada pelo princípio, sem qualquer vício e com a necessária publicidade;
2) Cumulativamente e em qualquer dos casos, que emita despacho em que autoriza os insolventes a continuarem a viver na sua casa de morada de família por mais um ano e ao abrigo das disposições constitucionais que protegem o domicílio e a habitação, até que possam arranjar novo domicílio condigno.
Em fundamento do pedido de nulidade, indicaram as datas de apresentação e síntese do alegado nos requerimentos acima descritos sob os pontos 2, 4, 5, 6, 7, 8 e 13, alegaram que a venda realizada violou os art.ºs 164º, nº 1 do CIRE, e 811º, 871º e 832º do CPC e os princípios da publicidade, transparência e segurança jurídicas que devem presidir aos processos de insolvência, alegação que suportou, em síntese, na ausência de justificação do AI para a não realização da venda por leilão eletrónico, na mistura pelo AI de elementos de duas ‘figuras’ distintas de venda (por negociação particular e por apresentação de propostas em subscrito fechado), no desconhecimento do local onde foi colocado ou publicado o anúncio de venda, e por não justificar a aceitação de uma proposta inferior em €130.000,00 ao valor mínimo indicado no anúncio, em violação do art.º 161º, nº 3 ou em fraude à lei. Qualificaram de estranho o facto de ter sido a adquirente a informar nos autos a aquisição do imóvel de que o AI só informou seis dias depois, e os argumentos dos requerimentos de 10 e 19.03.2021 trocados entre a adquirente e o AI, e alegaram que a instância do apenso de liquidação é inválida por violação do princípio da publicidade previsto pelo art.º 163º do CPC.
Em fundamento do pedido de autorização de permanência na habitação por mais um ano alegaram que durante o processo de insolvência mantiveram a expectativa, que lhes foi criada por pessoas dentro e fora do processo, de manterem o terreno, sobretudo a casa que é a respetiva casa de morada de família há 25 anos e tem proteção constitucional (art.ºs 34º e 65º da Constituição), e não detêm rendimentos para no momento conseguirem habitação alternativa.
19. O credor e adquirente P…SA respondeu alegando que as questões suscitadas pelos insolventes foram já apreciadas nestes e nos autos de providência cautelar, e tanto impede a sua reapreciação, e requereu a condenação em multa dos insolventes como litigantes de má fé por atuarem sem fundamento sério com o único propósito de evitar a entrega do imóvel. Oposição que os insolventes vieram refutar alegando que a validade ou invalidade da venda judicial não foi discutida porque no requerimento de 25.03.2021 apenas se fala em violação de expectativa jurídica e não são indicadas as concretas normas jurídicas violadas, e na providência cautelar a questão de mérito não foi apreciada.
20. Ordenada e cumprida a notificação daqueles requerimentos, em 26.09.2022 foi proferida a seguinte decisão:
“Foram os Insolventes notificados, por notificação de 10/3/21, que se considera efetuada a 15/3/21 (segunda-feira) do teor da escritura de venda do imóvel a P…, SA.
Em 25/3/21, dentro do prazo supletivo de 10 dias, vieram os Insolventes requerer que o imóvel volte à esfera jurídica da massa. Alegaram em suma que houve entrega de sinal por terceiros no valor de €20.000 no dia de abertura de propostas.
Em 11/4/22 viram os Insolventes requerer, através de distinto I. Advogado, anulação da venda. Ora, o prazo de 10 dias para solicitar anulação do ato de venda já havia há muito expirado. Os Insolventes poderiam ter apresentado outros fundamentos e vícios no requerimento de 25/3/21. Termos em que os fundamentos do requerimento de 11/4/22, por extemporaneidade, não se apreciarão.”
21. Ato contínuo, na mesma data, 26.09.2022 mais foi proferida a seguinte decisão:
“Veio o AI esclarecer que o credor hipotecário veio indicar a compradora, fazendo uso da prerrogativa decorrente do art.º 164/3 do CIRE, apresentando proposta de valor superior à anterior.
Alegou a P…SA que “… a entrega de um cheque como caução não pressupõe que a proposta esteja efetivamente aceite pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência.//Constitui sim, um requisito obrigatório de eficácia da proposta apresentada, uma vez que, nos termos e ao abrigo do artigo 164.º do CIRE: “ 4 - A proposta (…) só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 20 % do montante da proposta (…)”.//Ainda nos termos do n.º 3 do referido artigo: 3 - Se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.//Pelo que, tendo o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência notificado a Credora Hipotecária da proposta no valor de € 20.000,00, e tendo a mesma considerado que tal valor não era próximo do valor real do imóvel, foi apresentada proposta superior no valor de € 500.000,00 (quinhentos mil euros) pela ora Adquirente.//Desta forma, bem atuou o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência, que cumpriu com os pressupostos exigidos pelo artigo 164.º do CIRE.”
Cumpre apreciar.
No caso concreto, apesar de ter havido uma proposta e apresentação do cheque-caução de €20.000, como requisito da proposta e não sinal, ao abrigo do artigo 164-3 do CIRE, o credor hipotecário veio indicar outro adquirente para o imóvel por valor superior ao de tal proposta.
Pelo que inexiste qualquer vício no procedimento adotado, seguindo-se o regime previsto no art.º 164.º do CIRE. Termos que em se indefere o regresso do imóvel à esfera jurídica da massa.
Indefere-se o pedido de litigância por má-fé, considerando-se inexistir consciência da falta de fundamento e extemporaneidade do requerimento apresentado.
Não subsistindo o impedimento à desocupação de imóvel casa-de-família que vigorou em períodos de pandemia, notifique os Insolventes para entregarem o imóvel devoluto no prazo de 15 dias.”
22. É deste despacho que vem apresentado o presente recurso, requerendo os insolventes-recorrentes que “a decisão recorrida seja revogada, por ilegal, contendo os vícios da falta de fundamentação – artigos 154º e 615º, nº 1, al. b), e da omissão de pronúncia – artigo 615º, nº 1, al. d) todos do CPC, nos termos acima expostos.
23. Notificados para aperfeiçoamento das conclusões de recurso (por corresponderem a reprodução da motivação do recurso), em resposta apresentaram as seguintes conclusões:
I – Relativas à nulidade da venda judicial do imóvel – casa de habitação dos insolventes
1) Essencial para o presente recurso é o requerimento dos insolventes datado de 11 de abril de 2022, ref.ª Citius 12204724, e a decisão que se lhe seguiu do Tribunal a quo de 3 de outubro de 2022,ref. Citius 154198079, de que agora se recorre.
2) Nesse requerimento foram invocados vários fatos anómalos, não constantes do processo e incoerentes.
3) Por exemplo: Requerimento Inicial de 9 de dezembro de 2019, onde se diz “anúncio” e se diz publicitar uma venda por “negociação particular” e pelo “valor mínimo” de €631.620,00 (seiscentos e trinta e um mil, seiscentos e vinte euros).
4) Outro exemplo: A 17 de dezembro de 2020, em informação prestada ao processo pelo Senhor A. I., que recebeu por indicação do credor hipotecário uma proposta de terceiro no valor de quinhentos mil euros – portanto cerca de cento e trinta e um mil euros abaixo do que foi considerado valor mínimo de venda.
5) Igualmente estranho e anómalo é que o “dito” terceiro adquirente (P…, S.A) a 20 de janeiro de 2021, ter introduzido requerimento nos autos, alegando já ser a proprietária do imóvel em liquidação e juntando cópia de escritura pública.
6) Muito estranho, também, foi o relato efetuado pelo Senhor A.I. (de 10 de março de 2021), informando da proposta transmitida por 3º, através do credor hipotecário e por ele aceite, mas confessando ter existido antes uma proposta de compra por vinte mil euros no dia da abertura indicada no anúncio (19 de dezembro de 2019).
7) Essa comunicação não consta dos autos, como deveria, pois, que é uma comunicação efetuada ao abrigo do artigo 164º do CIRE.
8) Adicionalmente, o A.I. vem demonstrar, estranhamente, grandes reservas e ceticismo quando a essa proposta: - Para o signatário e para uma qualquer pessoa de senso comum, mediano, esta situação não é plausível, a P…SA faz uma proposta de € 500.000,00 para comprar um prédio rustico com mato, cultura arvorense e oliveira? “ibidem doc n.º 2”. - Acresce que, as mandatárias da C…SA e da P…SA são do mesmo escritório, aliás, presentemente até é a mesma mandatária que representa as duas entidades – Ex.ma Srª F… - daí o signatário não entender o suposto desconhecimento do objeto de venda nos autos.
9) Também será de importância extrema recordar o requerimento da P…SA (terceira adquirente) – parágrafo 7º que reza: veio o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência informar que iria proceder à aceitação de uma proposta de aquisição do imóvel no valor € 20.000,00 (vinte mil euros);
10) Ou seja, a própria terceira adquirente ficou convicta que o imóvel foi vendido ao proponente dos vinte mil euros, em face das “resistências” do A. I.
11) Continuaram-se, tanto no requerimento de 11 de abril, como na presente Alegação de recurso, a relatar contradições e fatos atípicos, como o ocorrido a 23 de julho de 2021, no qual Senhor A.I., depois de estar totalmente em desacordo com o preço oferecido pela terceira adquirente, agora vem já alinhar, em novo requerimento, pela posição desta, defendendo o abandono imediato do terreno por parte dos insolventes.
12) Sublinha-se, mais uma vez, que muitos destes fatos e acontecimentos nem estão refletidos nos autos, pelo menos no CITIUS.
13) Assim e recuperando o que já foi dito em sede de alegação nesta matéria, o Senhor A. I. ao proceder como procedeu nos fatos relatados, violou várias normas jurídicas e Princípios de Direito.
14) O 164º, n.º 1, do CIRE, pois os bens são preferencialmente alienados através de venda em leilão eletrónico e que isso não aconteceu, podendo o A.I. optar por outra forma de alienação, desde que o faça de forma justificada, o que não ocorreu de todo nos autos.
15) O referido “anúncio de venda”, não só não justifica o afastamento do leilão eletrónico, como exige a lei, como, também, acaba por misturar, nele próprio, elementos de duas figuras diferentes de venda, como demonstrado na Alegação, violando as disposições atinente dessas vendas.
16) Como também, atrás sublinhado, o A.I. nunca justificou na lei porque está a aceitar (?) uma compra de valor inferior ao mínimo constante do “anúncio”, em valor na ordem dos €130.000 (cento e trinta mil euros), pois que não estamos (como está na letra da disposição - n.º 3 do artigo 161º do CIRE) perante preço superior ao da alienação projetada, mas em €130.000 inferior,
17) Todas estas omissões e “desconhecimentos”, todo este apenso de liquidação sofre de uma insuficiência incompreensível, não se tendo dado nem publicidade, nem conhecimento, de inúmeras vicissitudes e ocorrências essenciais para a marcha do processo, com o que se viola o princípio da publicidade inserto no artigo 163º do Código de Processo Civil.
II – Relativas à falta de fundamentação e à omissão de pronúncia do despacho/sentença recorrido
18) Olhemos para o despacho/sentença judicial que dispõe:
Foram os Insolventes notificados, por notificação de 10/3/21, que se considera efetuada a 15/3/21 (segunda-feira) do teor da escritura de venda do imóvel a P… SA. Em 25/3/21, dentro do prazo supletivo de 10 dias, vieram os Insolventes requerer que o imóvel volte à esfera jurídica da massa.
19) E um pouco adiante:
Alegaram em suma que houve entrega de sinal por terceiros no valor de €20.000 no dia de abertura de propostas. Em 11/4/22 viram os Insolventes requerer, através de distinto I. Advogado, a anulação da venda.
20) E, também:
Ora, o prazo de 10 dias para solicitar anulação do ato de venda já havia há muito expirado.
21) Logo aqui, e com a devida vénia, são, em nosso entender, merecidos os seguintes reparos:
a) Afirma o Tribunal a quo que existe um prazo supletivo de 10 dias, mas não diz qual e para que fins ou cuja norma acolhe esse prazo.
b) Vem estatuir que os Recorrentes, neste último articulado/requerimento vêm requerer a anulação da venda, sendo que os Recorrentes requerem, não a anulação, mas a declaração de nulidade da venda.
22) Aliás, e s.m.o., tendo os recorrentes invocado a nulidade da venda em processo judicial de insolvência (que não a anulabilidade), o Tribunal a quo nem sequer aplicou (nem explicou porque o não fez), de forma fundamentada, o regime geral sobre as nulidades processuais, constante do artigo 199º do CPC, onde não veem os Recorrentes nenhum impedimento para que a nulidade seja invocada agora.
23) Por isso e assim, a extemporaneidade apontada pela decisão recorrida padece totalmente de fundamentação.
24) Por outro lado, ao, no despacho/sentença, ter-se feito uma longa citação o Tribunal a quo, verdadeiramente só se pronunciou, vaga e brevemente, sobre as duas propostas que aparecem nos autos, tendo feito “tábua rasa” de tudo o que foi relatado e está documentado no processo sobre a conduta ilegal – em nossa opinião - do Senhor A.I., apenas discorrendo e aplicando uma única disposição - o artigo 164º, n.º 3, do CIRE;
25) Assim é patente que a decisão recorrida não se pronunciou sobre partes essenciais do requerimento de 11 de abril 2022 dos insolventes:
a) Violação do Artigo 164º, n.º 1, do CIRE, por desrespeito das regras da modalidade de venda (que conduz à nulidade e não à mera anulabilidade – artigo 220º do Código Civil;
b) Violação dos artigos 811º, al. a) e d) do Código do Processo Civil e artigos 817º e 832º do mesmo Código, pelo fato do A.I. ter mesclado, na venda, dois tipos diferentes plasmados na lei, violando-a (e conduzindo a uma nulidade – forma da venda)).
c)- Os princípios da publicidade - artigo 163º do CPC - que tem de nortear estas vendas, da transparência e da segurança jurídica (bastas vezes trazidos à colação pelos Tribunais Superiores em processos de insolvência);
d) Artigo 161º, n.º 3, do CIRE, ou, alternativamente, venda em fraude à lei (que também conduz a uma nulidade);
24. A credora adquirente do imóvel contra-alegou pedindo a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida nos termos em que foi exarada. Formulou conclusões que não se transcrevem por corresponderem à quase reprodução das alegações, mas que, em síntese, e sem prejuízo de o objeto do recurso resultar delimitado pelas conclusões dos recorrentes, se resumem às seguintes questões:
- extemporaneidade do recurso por referência ao pedido de ‘regresso do imóvel à esfera jurídica da massa insolvente’ que os recorrentes deduziram em 25.03.2021 e decisão de 11.04.2022[1], já transitada, que sobre o mesmo incidiu;
- o pedido de declaração de nulidade da venda é extemporâneo por apresentado para além do prazo de 10 dias a contar do seu conhecimento, nos termos e ao abrigo dos artigos 199.º e 149.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 17.º CIRE, e porque os recorrentes aceitaram os pressupostos em que a venda estaria a ocorrer, nomeadamente quanto à modalidade de venda;
-  a venda foi cumprida e realizada pelo AI em conformidade com o procedimento legal previsto pelo art.º 164º do CIRE, inexistindo fundamento para a sua nulidade;
-  não cabe às entidades privadas assegurar o direito à habitação, mas sim ao próprio Estado através dos institutos públicos que asseguram o cumprimento desse direito;
- não ocorre omissão de pronúncia sobre o pedido de nulidade da venda e fundamentos do mesmo apresentados por requerimento de 22.04.2022 dos recorrentes na medida em que o tribunal o julgou extemporâneo;
- o tribunal pronunciou-se igualmente pela ausência de razão para a suspensão de entrega do imóvel.

II – Objeto do Recurso
Nos termos dos art.ºs 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo, tal qual como o mesmo surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a analisar e a criar soluções sobre questões que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de novos fundamentos de sustentação do pedido ou da defesa. Tal como o Juiz da 1ª instância, e sob pena de omissão ou de excesso de pronuncia, em sede de recurso o tribunal ad quem está positiva e negativamente limitado pelo pedido e seus fundamentos, motivo pelo qual está impedido de conhecer de questões que não foram oportunamente submetidas a apreciação, da mesma forma que está vinculado a conhecer/decidir de todas as que lhe são submetidas, salvo as que resultem prejudicadas pela solução das questões que logicamente as precedem. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto.
Assim, considerando o teor da decisão recorrida e das conclusões apresentadas, sem prejuízo de outras que sejam de conhecimento oficioso, conforme conclusões enunciadas pelos recorrentes, pela ordem lógica do seu conhecimento são as seguintes as questões por elas submetidas a apreciação, todas circunscritas ao pedido de nulidade da venda deduzido sob o ponto 1 do requerimento de 11.04.2022:
A) Da nulidade da decisão por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia.
B) Da tempestividade do pedido de declaração de nulidade da venda apresentado pelos recorrentes em 11.04.2022.
Caso não resulte prejudicada pela solução dada à questão B),
C) Da nulidade da venda (por referência ao art.º 164º, nº 1 do CIRE, aos procedimentos e vicissitudes da venda, e ao valor da venda aceite pelo AI).

III – Fundamentação de Facto
Os factos relevantes para a apreciação do recurso correspondem aos descritos no relatório, para o qual se remete.

IV – Fundamentos do recurso
A) Nulidade da sentença
1. Sob a epígrafe Causas de nulidade da sentença dispõe o art.º 615º, nº 1 do CPC que É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
É consensual na doutrina e na jurisprudência que as nulidades taxativamente previstas pelo art.º 615º do CPC reportam à violação de regras de estrutura, conteúdo e limites do poder-dever de pronúncia do julgador, consubstanciando defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, vícios formais da sentença ou vícios relativos à extensão ou limites (negativo e positivo) do poder jurisdicional por referência ao caso submetido a apreciação e decisão. Vícios que não contendem com o mérito da decisão e, por isso, não consubstanciam nem se confundem com um qualquer erro de julgamento, quer na apreciação da matéria de facto quer na atividade silogística de aplicação do direito[2]. Os primeiros – vícios formais ou de limites, previstos pelo art.º 615º, nº 1 do CPC - dão lugar à anulação da sentença. Os segundos – vícios materiais ou de julgamento -, passíveis apenas de censura por via de recurso, determinam a revogação/alteração da decisão.
Os recorrentes imputam à decisão os vícios da falta de fundamentação e da omissão de pronúncia respetivamente previstos pelas citadas als. b) e d). Por facilidade de exposição, aborda-se o vício da omissão de pronúncia em primeiro lugar.
2. O vício de omissão de pronúncia corresponde a vício de limite, por não conter o que devia conter por referência ao caso delineado na ação ou incidente. Vício que encontra fundamento legal positivo no art.º 608º do CPC que, sob a epígrafe Questões a resolver - Ordem do julgamento, no seu nº 1 prevê que “a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.” e, no nº 2, que O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…). Das normas citadas decorre que a sentença só é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. A referência legal a questões assume aqui um sentido amplo, no sentido de abranger a resolução, conclusão ou solução do concreto pedido deduzido pelas partes por referência à causa de pedir que o suporta, e no sentido de o objeto da decisão coincidir com o objeto do processo ou do incidente, correspondendo este ao efeito prático-jurídico tal qual como surge configurado pelas pretensões deduzidas pelas partes. As ‘questões’ submetidas a apreciação pelas partes não se confundem assim com os argumentos jurídicos por elas invocados e esgrimidos para convencer da bondade da sua pretensão (ou exceção); conforme já referido, o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos jurídicos alegados pelas partes, apenas das questões de facto ou de direito, pelo que não integra aquele vício [a] omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado.[3] Premissa que encontra suporte no facto de, cfr. art.º 5º, nº 1 e 3 do CPC, o juiz não estar sujeito/limitado às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas, pelo que, enveredando fundamentadamente por uma orientação, as restantes, ainda que alegadas, não têm de ser analisadas como questões jurídicas autónomas se tratassem, que o não são[4].  
Alegam os recorrentes que a decisão recorrida é nula porque não se pronunciou sobre os fundamentos e o pedido de nulidade da venda que deduziram por requerimento de 22.04.2022.
Com relevância para apreciação da imputada omissão de pronúncia importa relembrar que, conforme consta expressamente indicado no requerimento de recurso e resulta evidente do teor das alegações, o recurso incide sobre o despacho proferido em 26.09.2022. Porém, contrariamente à delimitação do objeto do recurso que pretendem seja considerado nos termos do primeiro parágrafo[5] das suas alegações e do primeiro ponto das conclusões - de que “tem relevância primacial para este recurso o requerimento dos insolventes datado de 11 de abril de 2022” -, o que o teor literal do despacho recorrido revela é que só os primeiro e terceiro parágrafos incidem sobre aquele requerimento de 11.04.2022, que o tribunal recorrido julgou e declarou extemporâneo e, com esse fundamento, rejeitou a apreciação dos respetivos fundamentos e pedido. O que demais foi ali apreciado e decidido reporta, não aos fundamentos e pedido do requerimento de 11.04.2022, mas ao requerimento que surge enunciado ou relatado no primeiro parágrafo do despacho, correspondente ao que os insolventes apresentaram em 25.03.2021 e pelo qual requereram “deverá o referido imóvel voltar à esfera jurídica da massa insolvente de IM e JM, com todas as consequências jurídicas”. Foi por referência aos fundamentos e pedido desse requerimento (de 25.03.2021) que o tribunal a quo prosseguiu na apreciação e que, em manifesta e literal resposta ao pedido ali deduzido, concluiu “Termos que em se indefere o regresso do imóvel à esfera jurídica da massa.
Daqui resulta que o despacho recorrido emitiu pronúncia sobre o requerimento de 11.04.2022, rejeitando-o com fundamento na intempestividade da sua apresentação, mas não emitiu nem tinha que emitir pronúncia sobre os fundamentos e pedido por ele aduzidos, precisamente, porque a sua apreciação e decisão quedou prejudicada pela decisão que o declarou extemporâneo. Dito de outra forma, obedecendo à ordem lógica de conhecimento das questões prevista pelo art.º 608º, nº 1 do CPC, o julgamento positivo da extemporaneidade do direito processual pretendido exercer pelos recorrentes, pela respetiva natureza, extintiva do direito de arguir e requerer a declaração de nulidade da venda (cfr. art.º 139º, nº 3 do CPC), prejudicou a apreciação e conhecimento da bondade do pedido que por aquele requerimento deduziram e, consequentemente, a apreciação dos fundamentos em que vinha suportado.
Com o que se conclui pela ausência de nulidade da sentença com fundamento em omissão de pronúncia.
3. O vício da falta de fundamentação, de facto ou de direito, corresponde a vício formal e estriba-se no princípio geral do dever de fundamentação previsto pelo art.º 154º, nº 1 do CPC, nos termos do qual “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.” Princípio que a lei concretiza e apura em sede de elaboração de sentença, prevendo o nºs 2 e 3 do art.º 607º do CPC que, após a identificação das partes, do objeto do litígio e das questões que cumpre solucionar, o juiz deve fundamentar a sentença através da discriminação dos factos que considera provados e da indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis, concluindo pela decisão final. O conteúdo ou intensidade da fundamentação, que não se mede pela sua extensão métrica, será a ajustada à maior ou menor complexidade das questões objeto de apreciação e decisão, ou da sua maior ou menor discussão na doutrina ou na jurisprudência[6]. Conforme doutrina e jurisprudência unânimes, cabe ainda distinguir entre a falta de fundamentação e a fundamentação deficiente, insuficiente ou errada, posto que o que a lei sanciona com o vício da nulidade é tão só a falta absoluta de motivação, a ausência total de fundamentos de facto e/ou de direito relativamente a cada uma das questões objeto de apreciação. A deficiente ou medíocre motivação afeta apenas o valor doutrinal ou de capacidade de convencimento da decisão, tornando-a ‘defeituosa’, mas não nula, com o risco de em recurso vir a ser revogada e substituída por outra que conclua em sentido divergente.[7]
Da mesma forma, não é nula a sentença que não cite as disposições legais em que se funda, mas que argumenta fundamentos que se reconduzem a conteúdo jurídico-legal positivado, preenchido com valorações ou qualificações jurídicas. Pelo que respeita aos fundamentos de direito, não é forçoso que o juiz cite os textos de lei que abonam o seu julgado; baste que aponte a doutrina legal ou os princípios jurídicos em que se baseou.[8] Nesse sentido, acórdão da Relação de Coimbra de 14.11.2017 (processo nº 3309/16.8T8VIS-A.C1) e, mais recentemente, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.05.2019 (processo n.º 835/15.0T8LRA.C3.S1),  no qual se consignou que A sentença ou o acórdão pode ser mais prolixo ou mais sintético. Mister é que contenha os elementos de facto e de direito necessários e suficientes para fundamentar a decisão.
Alegam os recorrentes que a decisão recorrida, na parte em que declarou a extemporaneidade do requerimento de 11.04.2022, é nula por falta de fundamentação, o que suportam na ausência de indicação da norma que prevê o prazo supletivo de 10 dias por ela considerado, e para que fins o prevê, e mais aduzindo que, tendo os recorrentes invocado a nulidade da venda em processo judicial de insolvência, o Tribunal a quo não aplicou nem explicou porque não aplicou o regime geral sobre as nulidades processuais, constante do artigo 199º do CPC, para concluírem que nenhum impedimento existe para a arguição da nulidade da venda neste ponto do processo.
Apreciando, a decisão que declarou extemporâneo o requerimento de 11.04.2022 surge fundamentada nos seguintes termos:
Foram os Insolventes notificados, por notificação de 10/3/21, que se considera efetuada a 15/3/21 (segunda-feira) do teor da escritura de venda do imóvel a P…, SA.
Em 25/3/21, dentro do prazo supletivo de 10 dias, vieram os Insolventes requerer que o imóvel volte à esfera jurídica da massa. Alegaram em suma que houve entrega de sinal por terceiros no valor de €20.000 no dia de abertura de propostas.
Em 11/4/22 viram os Insolventes requerer, através de distinto I. Advogado, anulação da venda. Ora, o prazo de 10 dias para solicitar anulação do ato de venda já havia há muito expirado. Os Insolventes poderiam ter apresentado outros fundamentos e vícios no requerimento de 25/3/21. Termos em que os fundamentos do requerimento de 11/4/22, por extemporaneidade, não se apreciarão.
Constata-se que a decisão surge factualmente fundamentada por referência à data em que os insolventes tiveram comprovado conhecimento da realização da venda - quando lhes foi notificada por comunicação de 10.03.2021. Mais se constata que o tribunal considerou que, a partir de 15.03.2021, data em que os recorrentes se consideram notificados da venda, dispunham do prazo de 10 dias para arguir a nulidade da venda. Desse enquadramento jurídico-processual e por efeito da mera e inequívoca contagem de tempo, o tribunal a quo concluiu que em 11.04.2022 aquele prazo de 10 dias há muito havia decorrido e, em consonância, decidiu pela sua rejeição, por extemporâneo.
É facto que a decisão não indica o fundamento legal em que suporta o invocado prazo de 10 dias, mas qualificou-o como supletivo pelo que, estando os insolventes representados nos autos por mandatário forense, ao qual são dirigidas as notificações realizadas aos insolventes, logo daí não tinham como não saber - por corresponder a dado básico conhecido por qualquer jurista -, que o prazo de 10 dias referido no despacho corresponde ao previsto pelo art.º 149º, nº 1 do CPC que, precisamente prevê que “Na falta de disposição especial, é de 10 dias o prazo para as partes requererem qualquer ato ou diligência, arguirem nulidades, deduzirem incidentes ou exercerem qualquer outro poder processual; e também é de 10 dias o prazo para a parte responder ao que for deduzido pela parte contrária.
Por outro lado, ainda que parca e deficitária na exposição do regime jurídico legal aplicável, a constatação da aludida fundamentação basta para concluir que a decisão de direito surge factualmente suportada e legalmente fundamentada no facto e no prazo que o tribunal recorrido entendeu relevante e aplicável ao caso.
De resto, o que se constata é que os recorrentes divergem da decisão recorrida quanto aos pressupostos em que assenta a declarada extemporaneidade do requerimento, porém, tanto não contende ou interfere com qualquer vício formal de construção ou de limites da sentença - ainda que parca na construção e exposição dos fundamentos, mostra-se coerentemente elaborada num raciocínio silogístico conforme com a premissa jurídica que expõe e pela qual envereda e conclui em conformidade -, mas sim com o direito processual aplicado e bondade do julgamento da extemporaneidade do requerimento, o que nos remete para a apreciação da segunda questão do recurso, a tempestividade do pedido apresentado em 11.04.2022, de declaração de nulidade da venda do imóvel celebrada pelo AI no cumprimento da liquidação da massa insolvente.
Com o que se conclui pela ausência da nulidade de sentença com fundamento em falta de fundamentação.

B) Da tempestividade da arguição de nulidade da venda apresentada em 11.04.2022
1. Consubstanciando pedido de sindicância da legalidade/validade de ato realizado pelo AI no âmbito da atividade de liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente – mais, concretamente, de venda do imóvel -, a questão remete antes de mais para normas especialmente previstas pelo CIRE reguladoras da atividade de liquidação, lato senso e, na falta ou insuficiência destas, nos termos do art.º 17º deste diploma, subsidiariamente remete para as disposições aplicáveis do CPC, quer gerais, quer as do processo executivo por este regulado face à idêntica natureza executiva do processo de insolvência que, em relação àquela acrescenta o cariz universal da liquidação do ativo e do passivo do devedor. Com efeito, não obstante a complexidade do processo de insolvência, repartido por fases e procedimentos declarativos e executivos, teleológica e processualmente a insolvência liquidatária assume-se como uma ação executiva para pagamento de quantia certa, coletiva (em contraposição com a execução singular) e genérica ou total (porque abrange todos os bens do devedor), prosseguida através de um processo especial (o processo de insolvência, entendido em termos amplos, abrangendo processo principal e apensos) que visa a satisfação de direitos de crédito sobre o património do devedor com prévia adoção de medidas cautelares (correspondentes à imediata apreensão dos bens nos termos do art.º 149º do CIRE) e, em sede de pagamentos, obedecendo a uma ordem especialmente prevista para a insolvência, designadamente, ao nível da qualificação dos créditos, com influência na ordem do seu pagamento.
Assim sendo, se no processo executivo o pedido de anulação ou de ineficácia da venda executiva surge processualmente configurado como incidente (cfr. art.ºs 838º e 839º do CPC), o mesmo se impõe aplicar à venda realizada no âmbito da insolvência.
Constituindo o incidente um procedimento deduzido por dependência de uma ação (por apenso ou nela enxertados, cfr. art.º 91º, n 1, 292º e 304º, nº 1 do CPC), aplicam-se antes de mais as regras do processo especial a que respeitam e, na falta de regulamentação especial, nos termos do art.º 292º do CPC (ex vi art.º 17º do CIRE), as disposições gerais previstas pelos art.ºs 149º, nº 1 e 293º a 295º do CPC. Assim, na ausência de disposição especial que no CIRE ou no CPC regule ou preveja prazo especial aplicável, nos termos do já citado art.º 149º do CPC, é de dez dias o prazo para os interessados arguirem a nulidade da venda a partir da data do seu conhecimento, aplicável ao incidente de nulidade da venda em processo de insolvência independentemente do fundamento em que o mesmo vem suportado, seja de natureza processual (nulidade processual), seja de natureza substancial (nulidade material).
2. Numa outra perspetiva da questão, o pedido de nulidade da venda realizada em sede de liquidação da massa insolvente não pode ser alheado da relação jurídica de que emerge e do contexto processual falimentar em que esta se insere, no qual os recorrentes, na qualidade de insolventes, e a credora hipotecária, na qualidade de outorgante na compra e venda, figuram como partes. Conforme se disse, a insolvência liquidatária assume-se como ação executiva para pagamento de quantia certa, na qual a liquidação/venda dos bens da massa insolvente integra atividade e objetivo cujo cumprimento a lei comete ao AI para proceder ao pagamento dos créditos reconhecidos sobre a insolvência (cfr. art.ºs 46º, nº 1, 55º, nº 1, al. a) e 172º do CIRE, depois de satisfeitas as dívidas da massa). Sem prejuízo do poder dever de fiscalização do Juiz, é ao órgão da insolvência AI que compete decidir de acordo com critérios objetivos de oportunidade e de racionalidade o que entender por conveniente no que respeita à liquidação dos bens apreendidos, incluindo se se justifica ou não diligenciar pela venda dos mesmos em função do proveito (ou saldo) que de tais diligências e/ou venda possa ou não resultar para a massa insolvente (designadamente, no confronto entre o produto previsível da venda e o montante das despesas que previsivelmente decorram das diligências dessa mesma venda). Considerando que, não obstante a diferença de ‘escala’, o processo de execução e o processo de insolvência liquidatária comungam do mesmo objetivo (satisfação de créditos à custa do ativo do devedor ou do património do garante), a venda realizada num ou outro processo não podem deixar de comungar da mesma natureza: executiva. Sem entrar na controvérsia sobre a natureza da venda executiva, por discussão desnecessária ao caso, conforme se considerou e concluiu no acórdão da RG de 14.06.2018, [n]ão pode deixar de ser considerada como um “fenómeno essencialmente processual.[9], ou, conforme consta do acórdão da RP de 10.11.2005, como [a]ctos do processo executivo”, (…) “como um procedimento jurisdicional”, com os efeitos de direito substantivo do negócio típico da compra e venda. Em suma, a ideia de que a venda (assim como a penhora que a precede, e o pagamento que lhe sucede) corresponde a medida usada pelo Estado, que se traduz [n]a atuação do órgão jurisdicional, no exercício da sua função executiva, que visa satisfazer não um interesse próprio, mas sim um interesse alheio, o interesse do credor.[10]
3. Do exposto se extrai que, independentemente de a nulidade da venda vir ou não estribada no incumprimento de normas ou deveres de natureza estritamente processual, deve considerar-se aplicável o prazo de dez dias supletivamente previsto para a dedução de incidentes, no caso, a contar do conhecimento da realização da venda objeto do imputado vício da nulidade, à semelhança da regra geral prevista pelo art.º 199º do CPC. Considerando que os recorrentes tomaram conhecimento da realização da venda do imóvel em causa quando dela foram notificados, em 15.03.2021, daí se conclui que, quando em 11.04.2022 deduziram (novamente) incidente de nulidade da venda, já havia decorrido o prazo legal para o efeito, pelo que o mesmo se revela intempestivo, impondo a sua rejeição e o não conhecimento do pedido por ele deduzido, conforme concluiu e decidiu o tribunal a quo, com consequente acerto da decisão recorrida e improcedência do recurso.
4. Ainda que assim não fosse, sempre obstaria à apreciação do requerimento de 11.04.2022 a exceção de caso julgado.
Anota-se neste propósito que nas alegações de recurso os recorrentes, expressa e conscientemente, fazem exclusiva referência ao requerimento de 11.04.2022, omitindo e obliterando o requerimento que apresentaram em 25.03.21 já que, por referência ao incidente por este suscitado, confrontavam-se e denunciavam claramente a questão do caso julgado que relativamente ao pedido por ele deduzido foi formado com o despacho de 01.09.2021 que, na sequência dos vários requerimentos apresentados pela adquirente do imóvel, pelo AI, e pelos insolventes (estes, em 25.03.2021), declarou válida a venda, sendo certo que só pelos insolventes vinha requerida a destruição do efeito translativo da venda[11], no que juridicamente se consubstancia o pedido de regresso do imóvel dele objeto à massa insolvente.
Com efeito, é nessa situação de caso julgado que se enquadra o requerimento apresentado pelos recorrentes em 11.04.2022 na precisa medida em que, aceitando que o imóvel já havia sido transmitido pela massa insolvente a terceiro, dos termos em que formularam o pedido que por ele deduziram – regresso do imóvel à massa insolvente – é patente que visavam a declaração da invalidade da venda posto que, independentemente de não terem alegado a qualificação jurídica de qualquer vício fundamento da mesma[12], aquele pedido de regresso do imóvel à massa insolvente corresponde a efeito jurídico da invalidade da venda. Por outro lado, o despacho recorrido viola a exceção do caso julgado porque incide novamente sobre o requerimento de 25.03.2021, já decidido por despacho de 01.09.2021.
As decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recurso e transitam em julgado logo que não sejam suscetíveis de recurso ordinário ou de reclamação, produzindo um efeito de preclusão definitiva de novo e ulterior conhecimento judicial sobre a mesma questão (cfr. art.ºs 627º, nº 1 e 628º do CPC). Quando assim sucede, prevê o art.º 619º, nº 1 do CPC que Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º. Os art.ºs 619º, nº 1 e 620º, nº 1 distinguem o caso julgado material do caso julgado formal, correspondendo este ao que incide sobre As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual, e que passam a ter força obrigatória dentro do processo.
O caso julgado forma-se diretamente sobre o pedido ou efeito jurídico pretendido pelo autor, traduz a força obrigatória da estabilidade das sentenças ou dos despachos que recaiam sobre a relação controvertida objeto da ação ou incidente ou sobre a relação processual, e tem como finalidade imediata evitar que, em novo processo – por referência ao caso julgado material - ou no mesmo processo – por referência ao caso julgado formal -, o juiz possa validamente apreciar e decidir, de modo diverso, o direito, situação ou posição jurídicas já concretamente definidas por anterior decisão, vinculando o juiz à decisão proferida em primeira instância ou em via de recurso. Pressupõe assim a repetição de uma decisão sobre uma mesma questão (de índole substantiva ou processual) e visa obstar a decisões concretamente incompatíveis, produzindo um efeito de preclusão definitiva de novo e ulterior conhecimento judicial sobre a mesma questão (cfr. art.º 580º, nº 2 do CPC).
É questão consensual que os limites da exceção do caso julgado são traçados pela coexistência da tríplice identidade dos elementos identificadores da relação ou situação jurídica, processual ou material, definida pela decisão: sujeitos, objeto ou pedido, e fonte, título constitutivo ou causa de pedir.  Nos termos do art.º 581º, nºs 2, 3 e 4 do CPC há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico, e há identidade de causa de pedir quando os factos jurídicos que fundamentam a pretensão são os mesmos. Conforme comentário de Miguel Teixeira de Sousa ao acórdão da Relação de Évora de 11.05.2017[13], o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos, e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.
Nas palavras de Alberto dos Reis, causa de pedir «é o acto ou facto jurídico de que procede a pretensão dos autores. Mais rigorosamente: é o acto ou o facto jurídico em que o autor se baseia para formular o pedido»; ou nas palavras de Manuel de Andrade «é a acção ou o facto jurídico de onde emerge o direito que o autor pretende fazer valer»; definindo-a o art.º 581º, nº 4 do Código de Processo Civil como «os factos jurídicos que procede a pretensão deduzida como representação da alegação dos factos integradores do efeito jurídico pretendido», reportando-se, assim, ao conjunto de factos que preenchem a previsão da norma, concretizadora da teoria da substanciação (cfr. art.º 5º, n.º 1 do CPC). Conforme anotam A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa[14], A identidade de causas de pedir verifica-se quando as pretensões deduzidas nas ações derivam do mesmo facto jurídico, analisado à luz da substanciação consagrada no nº 4 [do art.º 581º do CPC]. Citando Mariana França Gouveia (A causa de Pedir na Ação Declarativa), acrescentam que [p]ara efeitos de exceção de caso julgado, a causa de pedir será definida “através do conjunto de todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas no conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada.” (p. 497), daqui derivando que um mesmo acontecimento histórico possa ser reapreciado com base noutra norma jurídica quando algum dos factos que permitem a aplicação dessa norma não tenha sido apreciado pelo juiz. Mais citam acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.09.2018, revista nº 21852/15, pelo qual se entendeu [q]ue, para delimitar determinada causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela pretendida.
Ora, resultando inequívoca a identidade ou coincidência jurídica entre os pedidos deduzidos pelos recorrentes nos requerimentos de 25.03.2021 e de 11.04.2022 – de declaração de invalidade da venda/destruição dos efeitos da venda/regresso do imóvel à esfera jurídica do imóvel -, dúvida também não há na determinação da causa de pedir ou núcleo essencial de factos em que o fundamentam, por referência ao procedimento de venda que o AI adotou e que, na perspetiva dos insolventes, deveria ter adotado, independentemente de qual o regime jurídico pelo qual se perspetivasse e considerasse aplicável ao caso (CIRE, CPC, ou ambos).
Sob a epígrafe Casos julgados contraditórios prevê o art.º 625º, nº 1 do CPC que Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar. Acrescenta o nº 2 que É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
Nesta conformidade, a apreciação e decisão de mérito sobre o pedido de invalidade da venda apresentado por requerimento de 11.04.2022 sempre reconduziria o caso a situação de violação de caso julgado formal e, com esse fundamento, sempre imporia a sua revogação e o consequente não conhecimento de mérito da pretensão recursória que na sua esteira viesse, como veio, deduzida.

De todo o exposto mais não resta que concluir pela improcedência da pretensão dos recorrentes.

V - Decisão
Em conformidade com o exposto, as juízas desta secção acordam em julgar a apelação improcedente, com consequente manutenção da venda realizada em sede de liquidação.
           
Na qualidade de vencidos, as custas da apelação recaem sobre os recorrentes (art.ºs 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
 
Em 07.03.2023
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
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[1] A recorrida terá pretendida dizer decisão de 01.09.2021, que incidiu sobre o requerimento de 25.03.2021.
[2]  Vd., entre outros, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Ed., 2ª ed., p. 684 e ss.
[3] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. II, 4ª ed., p. 737.
[4] Nesse sentido, entre outros, acórdão do STJ de 03.10.2017.
[5] Anota-se que só por manifesto lapso material ali também indicaram 03.10.2022 como a data da decisão recorrida.
[6] A. Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Sousa, CPC Anotado (GPS) Vol. I, p. 199.
[7] A. Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Sousa, CPC Anotado (GPS) Vol. I, Almedina, 2ª ed., p. 140, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, p. 140, e acórdão do STJ de 03.03.2021, proc. 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível na página da dgsi, como os demais que aqui se citam sem outra indicação.
[8] Alberto dos Reis, ob. cit., p. 141.
[9] Proc. nº 483/03.7TBCMN-B.G1, disponível no site da dgsi.
[10] Telma Marisa de Paiva Coelho, Venda Executiva: Alguns Problemas, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º ciclo de Estudos em Direito, conducente ao grau de Mestre, na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, Julho/2017. Com interesse na matéria, cita acórdão do STJ de 30 de abril de 2003, Processo n.º 03B996, relator Araújo Barros, disponível em dgsi.
[11] Independentemente da factualidade que alegou em fundamento, a adquirente/recorrida limitou-se a requerer a sua investidura na posse do imóvel objeto da venda, sendo que foi na sequência do incidente por esta suscitado que em 25.03.2021 os recorrentes vieram suscitar o incidente de nulidade da venda, no que se consubstancia o pedido de regresso do imóvel à esfera jurídica da massa insolvente.
[12] O que para o em apreço não releva posto que, não estando vinculado à qualificação jurídica dada pelas partes (cfr. art.º 5º, nº 3 do CPC), ao tribunal sempre caberia qualificar os fundamentos do pedido como condição para apreciação da bondade jurídica do efeito que dos mesmos os insolventes visavam extrair – regresso do imóvel à esfera jurídica da massa que, reitera-se, juridicamente só poderia suceder com a destruição dos efeitos da venda celebrada entre a massa insolvente e a adquirente PRMT.
[13] Disponível em https://blogippc.blogspot.com/
[14] CPC Anotado, GPS, 2ª ed., Vol. I, p. 687.