Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
362/17.0T8TVD-A.L1-4
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: REMISSÃO ABDICATIVA
RECONVENÇÃO
ACESSO AO DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1– Findos os articulados, se o processo contiver já todos os elementos necessários e a simplicidade da causa o permitir, pode o juiz julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer, ou decidir do mérito da causa.
2– Revela-se fundado o conhecimento da exceção de remissão abdicativa, não se impondo a necessidade de o relegar para momento processual distinto, se, invocada uma declaração para efeitos de remissão abdicativa, a parte não alega a celebração de um acordo de vontades, a natureza dos créditos sobre os quais se emite a declaração, nem o respetivo valor, limitando-se à invocação de uma declaração vaga com celebração na pendência da relação laboral.
3– Não existe contradição na decisão que, não obstante admitida a reconvenção à luz da lei processual laboral, vem a considerar que, em presença do princípio da adesão decorrente do processo penal, o pedido apenas ali pode ser formulado.
4– Uma tal decisão não viola o princípio constitucional de acesso ao direito.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


AAA, LDA, Ré no processo supra indicado, não se conformando com o teor do Despacho Saneador, vem interpor o respetivo RECURSO DE APELAÇÃO, na parte em que considera improcedente a exceção perentória inominada – absolvição parcial do pedido proveniente do facto do Autor ter assinado uma remissão abdicativa na pendência da sua relação de trabalho e procedente a exceção dilatória inominada julgando verificada exceção dilatória inominada que absolveu o Autor da instância no que concerne ao pedido reconvencional.

Pede a revogação do despacho.

Assenta nas seguintes conclusões:
A.– O Autor instaurou uma Ação declarativa com Processo Comum pedido a condenação da Ré, ora Recorrente, no pagamento de uma série de pretensos créditos laborais.
B.– Realizou-se a audiência de partes, verificando-se a frustração da tentativa de conciliação.
C.– Na Contestação/Reconvenção apresentada pela Ré, esta pugnou pela existência de uma EXCEPÇÃO PERENTÓRIA INOMINADA, que implicaria a ser reconhecida a sua ABSOLVIÇÃO PARCIAL DO PEDIDO, baseando-se no facto de o Autor, ainda na vigência da relação de trabalho, é certo, ter assinado uma Remissão abdicativa através da qual declarou que a Ré nada lhe devia.
D.– Nessa mesma Resposta à Reconvenção, entre outras exceções, o Autor aduziu a existência, no que tange à Reconvenção da exceção de incompetência material do Juízo do Trabalho, alegando, sucintamente, que uma vez que a Ré peticiona a sua condenação no pagamento de uma quantia alegadamente devida pela utilização abusiva dos veículos da Ré, referindo que apresentará queixa crime contra o Autor com base nos referidos factos, a reparação dos danos provocados por alegado cometimento de crime, não poderá ser conhecida por este Tribunal, que é materialmente incompetente para o conhecimento desta matéria.
E.– No douto despacho saneador, o Juiz a quo entendeu que «Assim sendo, e face ao entendimento vertido nos acórdãos supra referidos, que aqui secundo, a referida declaração, por redigida de forma absolutamente genérica e indeterminada, sem fazer qualquer referência ao valor, ao período temporal e à própria natureza dos créditos alegadamente pagos, e por ter sido lavrada na pendência da relação contratual momento em que a retribuição configurava um direito indisponível do trabalhador, não tem qualquer valor como remissão abdicativa nem faz prova do pagamento de qualquer quantia concretamente determinada, nomeadamente dos créditos reclamados pelo Autor na presente ação» julgando improcedente a supracitada exceção.
F.– E quando ao pedido reconvencional julgou verificada a exceção, absolvendo o Autor da Instância.
G.– No que concerne à remissão abdicativa emitida na pendência da relação de trabalho, considerou o Ac. do STJ proferido no Processo: 274/07.6TTBRR.S1 que «Este tipo de declaração é normalmente emitido aquando do acerto de contas após a cessação do contrato: o empregador paga determinada importância, exigindo em troca a emissão daquela declaração, a fim de evitar futuros litígios e, por sua vez, o trabalhador aceita passar essa declaração em troca da quantia que recebe, evidenciando-se, assim, um verdadeiro acordo negocial, com interesse para ambas as partes.

IV– É entendimento deste Supremo Tribunal que o contrato de “remissão abdicativa” tem plena aplicação no domínio das relações laborais, designadamente quando as partes se dispõem a negociar a cessação do vínculo pois, nessa fase, já não colhe o princípio da indisponibilidade dos créditos laborais, que se circunscreve ao período de vigência do contrato de trabalho, o que não exclui que tal contrato não possa ser tido como inválido, sempre que concorra um vício na declaração da vontade, seja ele intrínseco ao agente ou motivado por terceiros.»
H.– Ora, a verdade é o princípio ínsito ao acórdão fundamentador da posição do Tribunal a quo não é absoluto. Não basta partir do princípio que o trabalhador foi coagido, é preciso prová-lo, o que salvo melhor opinião só se poderá fazer na audiência de discussão e julgamento.
I.– É que no caso concreto, houve vários trabalhadores que se recusaram a assinar tal remissão, sem que nada lhes tenha acontecido, mantendo-se até à data a trabalhar na Empresa, ora recorrente.
J.– Ou seja, a presunção de que na pendência da relação de trabalho, o trabalhador tem dificuldade em obstar ao poder da entidade empregadora, designadamente impondo a assinatura de uma remissão abdicativa – o que se compreende – pode ser ilidida pelos factos que forem carreados para o processo e a sua prova.
K.– Ao decidir em sentido contrário, em pleno despacho saneador, o Juiz a quo negou a possibilidade ao ora recorrente de demonstrar em sede de audiência de discussão e julgamento a inexistência de qualquer coação e a forma consciente como a remissão abdicativa foi assinada.
L.– Nesse sentido, nesta parte, o Despacho saneador é nulo por se encontrar ferido de ilegalidade, devendo ser substituído por outro que remeta para final a decisão sobre esta matéria.
M.– No que concerne à parte do Despacho saneador que julgou verificada a exceção de incompetência do Tribunal, absolvendo o Autor da Instância no pedido reconvencional, ela não só se encontra ferida de nulidade, como é contraditória com outra passagem do referido despacho.
N.– O fundamento do pedido reconvencional não deixa de traduzir uma questão entre os dois sujeitos de uma relação de trabalho (Autor e Ré) e que tem conexão com a relação de trabalho pois funda-se na alegada utilização abusiva da viatura (da Ré) de serviço profissional por parte do Autor.
Por conseguinte, e uma vez que o valor da causa excede a alçada do tribunal, considera-se admissível a reconvenção.» Ou seja, o Tribunal a quo considerou, no fundo que esta matéria se encontra sobre a alçada dos Tribunais de Trabalho, em razão de matéria.
O.– Mas imediatamente a seguir veio absolver o Recorrido da Instância no que concerne ao pedido reconvencional, remetendo eventual pagamento indemnizatório para o foro criminal.
P.– Não tem razão o Juiz a quo, podendo em última análise o seu despacho configurar ou provocar uma violação do Artigo 20.º da CRP, nos termos do qual «1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. 4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável».
Q.– E porquê? - Pacífico é, até para o Juiz a quo, que o Tribunal de trabalho tem competência em razão de matéria para julgar o pedido reconvencional; - No entanto, considera que por ter existido queixa-crime e a Recorrente se ter constituído assistente (o que aconteceu, diga-se, após a entrega da Contestação/Reconvenção), a existir um pedido indemnizatório terá que ser neste concretizado. Ora se assim for e na hipótese de não haver acusação ou pronúncia, o que só por mera hipótese académica se coloca, deixará de poder existir pedido de indemnização civil. Sendo o Tribunal de Trabalho materialmente competente, o pedido de indemnização também deixaria de ser possível atentas as regras de prescrição.
R.– Ou seja, o resultado seria só um – a violação do art.º 20 da CRP, impossibilitando-se o julgamento de uma questão levantada em tempo e que por ação da própria justiça, a esta seria removida.
S.– Face ao supra expendido, é manifesto que o Despacho da Juiz a quo, na parte em que absolveu o Autor da Instância no pedido reconvencional é nulo.
T.– E, em consequência, ser o pedido reconvencional julgado pelo Juiz a quo.
BBBB, A. no processo à margem referido, tendo sido notificado da junção aos autos do requerimento de interposição de recurso pela R. e para apresentar a sua alegação, vem fazê-lo pugnando pela manutenção do despacho.

O MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu parecer do qual decorre que a invocada nulidade, por extemporânea, não pode ser conhecida, e que o saneador é isento de reparo.
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As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.

Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
1ª– O despacho saneador, na parte em que conhece da remissão abdicativa, é nulo por se encontrar ferido de ilegalidade?
2ª– O despacho saneador, na parte em que conhece da exceção de incompetência, está ferido de nulidade, sendo também a decisão contraditória?

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APRECIAÇÃO:

O presente recurso incide sobre duas concretas decisões proferidas em sede de saneador: Por um lado o juízo de não verificação de uma exceção inominada que levou à respetiva improcedência; por outro, o juízo incidente sobre a incompetência material do Tribunal para conhecer da reconvenção.
Para contextualizarmos a questão atentemos nas próprias conclusões: instaurada a presente ação declarativa onde é peticionada a condenação da Ré (ora Recorrente) no pagamento de uma quantia, a mesma apresentou Contestação/Reconvenção. Naquela pugnou pela existência de uma exceção perentória inominada, baseando-se no facto de o Autor, ainda na vigência da relação de trabalho, ter assinado uma remissão abdicativa através da qual declarou que a Ré nada lhe devia. Por sua vez, na sua resposta à reconvenção o Autor aduziu a existência, no que tange à Reconvenção, da exceção de incompetência material do Juízo do Trabalho.

Centremo-nos, então, na 1ª questão acima enunciada: O despacho saneador, na parte em que conhece da remissão abdicativa, é nulo por se encontrar ferido de ilegalidade?
A questão assim colocada configura-se como algo confusa.
Na verdade, as causas de nulidade dos despachos são apenas e tão só as enunciadas no Artº 615º/1 do CPC, aplicável ex vi Artº 613º/3 do mesmo diploma, nenhuma delas se prefigurando.
A prefigurar-se alguma, a arguição da nulidade teria, por força do disposto no Artº 77º do CPT, como bem salienta o Ministério Público, que efetuar-se expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso, o que não ocorre. Tal omissão redundaria na extemporaneidade da respetiva arguição, impossibilitando o conhecimento. 
A alegação da Recrte., não obstante a forma menos feliz como concluiu, vai, contudo, no sentido de o juízo efetuado estar ferido de ilegalidade, o que nos remete para a invocação de erro de julgamento do qual passaremos a conhecer.

Consignou-se no despacho impugnado o seguinte:
Na contestação veio a Ré alegar que não deve ao Autor os créditos vencidos até 27 de outubro de 2015, no valor de € 33.173,22, integrados no do pedido, em virtude do Autor, nessa data e na decorrência de uma intervenção da ACT, ter declarado expressamente – por escrito, cfr. declaração junta como doc. 1 da contestação - que a Ré nada lhe devia por força do Contrato de trabalho, o que tem como clara consequência a absolvição parcial do pedido.
O Autor alegou ser falso que em algum momento tenha declarado livre e conscientemente que a Ré nada lhe devia por força do contrato de trabalho e que a declaração foi por si assinada por exigência da Ré e depois de lhe ter transmitido que o que nela se referia dizia unicamente respeito à retribuição, o que estava justamente em discussão no processo da ACT e, atendendo à dependência existente entre Autor e Ré, e ao facto de se tratar de uma intervenção da ACT sempre se compreenderia que tivesse assinado a declaração com receio de represálias e até porque estava em causa o seu posto de trabalho, devendo a exceção ser julgada improcedente.

…analisada a declaração junta como doc. 1 da contestação constata-se na mesma a seguinte declaração do Autor:declaro que me encontro pago de todas e quaisquer quantias que me são devidas por força do contrato de trabalho, nada me sendo devido até à presente data, conforme foi acordado com a entidade patronal, AAA Lda, NIPC ….”.
Por outro lado, a própria Ré alega que aquela declaração foi emitida em 27.04.2015, portanto ainda na pendência da relação laboral, que a própria Ré alega ter perdurado pelo menos até Março de 2016.
Assim sendo, e face ao entendimento vertido nos acórdãos supra referidos, que aqui secundo, a referida declaração, por redigida de forma absolutamente genérica e indeterminada, sem fazer qualquer referência ao valor, ao período temporal e à própria natureza dos créditos alegadamente pagos, e por ter sido lavrada na pendência da relação contratual momento em que a retribuição configurava um direito indisponível do trabalhador, não tem qualquer valor como remissão abdicativa nem faz prova do pagamento de qualquer quantia concretamente determinada, nomeadamente dos créditos reclamados pelo Autor na presente ação.

Pretende a Apelante que lhe foi negada a possibilidade de demonstrar em sede de audiência de discussão e julgamento a inexistência de qualquer coação e a forma consciente como a remissão abdicativa foi assinada.

Compulsados os autos verificamos que o A. alega na sua petição inicial que a relação laboral cessou em 19/04/2016, reclamando quantias devidas por trabalho suplementar realizado desde 2012, bem como as correspondentes diferenças nos subsídios de férias e de Natal.

A R. contestou afirmando que em 27/04/2015 o A. declarou, na decorrência de uma intervenção da ACT, que a R. nada lhe devia por força do contrato de trabalho (Artº 5º) e que ao assinar aquela declaração o A. reconhecia que a R. nada lhe devia (Artº 7º).

Respondeu o A. que é falso que tenha declarado livre e conscientemente que a R. nada lhe devia (Artº 23º) e que lhe foi transmitido que o que nela se referia dizia unicamente respeito a retribuição (Artº 24º).

Consta da mencionada declaração, datada de 27/04/2015, a afirmação de “que me encontro pago de todas e quaisquer quantias que me são devidas por força do contrato de trabalho…”
Dispõe-se no Artº 61º/2 do CPT que, findos os articulados, se o processo contiver já todos os elementos necessários e a simplicidade da causa o permitir, pode o juiz… julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer, ou decidir do mérito da causa.

Os argumentos expendidos na decisão recorrida para afastar o efeito remitivo da declaração em causa, revelam-se corretos.

Efetivamente, como, aliás, emerge das decisões jurisprudenciais citadas na respetiva fundamentação, é constante a afirmação jurisprudencial de que as declarações redigidas de forma genérica e indeterminada, sem fazer qualquer referência ao valor, ao período temporal e à própria natureza dos créditos alegadamente pagos, e ademais lavradas na pendência da relação contratual, quando a retribuição se configurava como indisponível, não tem qualquer valor como remissão abdicativa.

Dispõe-se no Artº 863º/1 do CC que o credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor.

Trata-se de um acordo de vontades cuja alegação e prova compete a quem o invocar.

Não consta da declaração submetida a juízo nem a natureza dos créditos sobre os quais se emite a declaração, nem o respetivo valor e, muito menos, algum encontro de vontades como é apanágio de qualquer contrato.

Ora, querendo a Recrte. valer-se de um tal documento teria que ter alegado (para subsequentemente provar) o que é que efetivamente pôs à disposição do trabalhador e o acordo realmente celebrado.

Ocorre ainda que a declaração está datada de 27/04/2015, ou seja, foi proferida na vigência da relação laboral, quando, como acima já referimos, o direito à retribuição não está na livre disponibilidade do trabalhador. Durante a pendência do contrato de trabalho o trabalhador está sujeito aos constrangimentos decorrentes da subordinação.

Razões que justificam a confirmação da decisão em recurso, não se configurando como possível a futura prova da inexistência de qualquer coação, aliás, não alegada, e revelando-se inútil a demonstração da forma consciente como a remissão abdicativa foi assinada na medida em que a matéria alegada conjugada com o conteúdo vago da declaração tornam inviável a conclusão acerca da celebração do contrato de remissão.

Improcede, pois, nesta parte, a apelação.

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A 2ª questão que importa dirimir prende-se com a exceção de incompetência, alegadamente julgada procedente.

O despacho saneador, na parte em que conhece da exceção de incompetência, estará ferido de nulidade, sendo também a decisão contraditória?

Aplicam-se aqui – exceto quanto à invocada contradição – os mesmos considerandos acima já expendidos a propósito da invocada nulidade.

Mas, comecemos, pela contradição.

Pretende a Apelante que tendo-se consignado no despacho a admissibilidade da reconvenção, não pode, depois, decidir-se pela verificação da exceção de incompetência material.

Em presença da alegação efetuada pelo A. da inadmissibilidade da reconvenção porquanto o pedido da Ré não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação, nem se verifica a conexão referida na alínea o) do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, considerou-se que fundamentando a R. o pedido reconvencional na alegação de que o Autor, à sua revelia e às suas custas, utilizou uma viatura sua para realizar percursos, causando-lhe danos, factos pelos quais também apresentou participação criminal ao M.P., vindo o Autor peticionar o pagamento de quantias devidas a título de diferenças nos subsídios de Férias e Natal e pela realização de trabalho suplementar, não existem dúvidas de que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação. Contudo, o fundamento do pedido reconvencional não deixa de traduzir uma questão entre os dois sujeitos de uma relação de trabalho (Autor e Ré) e que tem conexão com a relação de trabalho, pois funda-se na alegada utilização abusiva da viatura (da Ré) de serviço profissional por parte do Autor. Daí que, considerando que o valor da causa excede a alçada do tribunal, se considerasse admissível a reconvenção.

Apreciando-se, após, a questão da incompetência material, o Tribunal recorrido ponderou:
Como já se referiu a Ré fundamenta o pedido reconvencional na alegação de que o Autor, à sua revelia e às suas custas, utilizou uma viatura da Ré para realizar percursos que a Ré desconhece, causando-lhe danos, factos que considera constituírem também crime, tendo inclusivamente junto aos autos (com o requerimento de 01.06.2017) a cópia da participação criminal na qual, entre outros, participa esses factos e pede por eles a responsabilização criminal do Autor.
Estabelece o artigo 71º do Código de Processo Penal que "o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei".
Aí se consagra o denominado princípio da adesão da responsabilidade civil à responsabilidade criminal que foi adotado como regime regra…

Resulta assim que, no plano processual existe uma interdependência entre a ação cível e a ação penal, uma adesão obrigatória do mecanismo civil ao penal, nos termos do que a indemnização cível decorrente da prática de um ilícito criminal tem, por regra, de ser conhecida e decidida no processo penal.
As exceções ao princípio da adesão estão enunciadas no n.º 1 do artigo 72º do Código de Processo Penal e, genericamente, traduzem-se em vicissitudes no normal desenvolvimento do processo-crime. Aquele preceito enumera os casos em que o pedido civil pode ser deduzido em separado, ou seja, “quando:
a)- O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;
b)- O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;
c)- O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;
d)- Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;
e)- A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do artigo 82º, nº3;
f)- For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas sido provocada, nessa ação, a intervenção principal do arguido;
g)- O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal coletivo, devendo o processo penal correr perante o tribunal singular;
h)- O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;
i)- O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos dos artigos 75º, nº1 e 77º, nº 2”.
A alegação e demonstração dos factos que corporizam as ditas exceções impõe-se ao lesado que demanda o lesante criminalmente responsável no foro civil, na medida em que se trata de um requisito que lhe autoriza o exercício do direito de ação nesses termos, i.e. em contravenção à regra decorrente do princípio da adesão (cfr. n.º 1 do artigo 342º do Código Civil – neste sentido, v. o Acórdão da Relação de Lisboa de 15 de Março de 2007, proferido no processo n.º 1412/07-2 e acessível em www.dgsi.pt) e ainda os seguintes arestos:
- Acórdão desta Relação, de 24/04/2007, Processo n.º 6135/05,6TBLRA.C1, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrc: “Dada a obrigatoriedade da adesão do processo civil ao penal, em matéria de indemnização civil fundada em ilícito penal, estando a sua dedução em separado e perante outro foro, condicionada à existência de uma das exceções previstas a tal regra, logo ao deduzir a ação, o lesado que beneficie de tal exceção deverá alegar os factos em que a mesma (exceção) se fundamenta”.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-02-2013 - Processo: 193/11.1TBPST.L1-6: “1. O artigo 71ºdo CPP impõe que o pedido de indemnização cível fundado na prática de um crime seja deduzido no processo penal e o artigo 72º do mesmo código prevê exceções a este princípio, cabendo ao lesado, autor na ação cível em separado, o ónus de alegar e provar os factos que são pressuposto de alguma dessas exceções.”.
No caso em apreço, a Ré não só não invocou qualquer das exceções com a reconvenção como também não o fez na resposta à exceção de incompetência material invocada pelo Autor.
Não obstante se constatar que vários arestos configuram a violação do princípio supra enunciado como uma situação de incompetência material (veja-se, exemplificativamente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-02-2015 - Processo: 9083/11.7 TBCSC.L1-6) temos por mais correto que se configure a mesma como uma exceção dilatória inominada[1] que, pela sua natureza, é insuscetível de sanação e cuja consequência processual (que é a mesma caso se entendesse ser um caso de incompetência material) é a absolvição do Autor da instância (reconvencional), cfr. alínea e) do n.º 1 do artigo 278º, n.º 1 e n.º 2 do artigo 576º, corpo do artigo 577º e artigo 578º, todos do Código de Processo Civil.
Face ao exposto, julgando verificada exceção dilatória inominada, absolvo o Autor da instância (reconvencional).

Transcrevemos, na íntegra, o texto antecedente porquanto dele emerge claramente que o Tribunal não se declarou incompetente, ao mesmo tempo que, concatenado o mesmo com a decisão precedente, facilmente se compreende que nenhuma contradição se perspetiva.

A contradição subjacente à nulidade dos despachos, decorrente de quanto se dispõe no Artº 615º/1-c) do CPC, pressupõe que os fundamentos estejam em oposição com a decisão, isto é, que exista um vício que contradiz a lógica do raciocínio expendido.

Não é o que ocorre.

De um lado, em presença da lei processual laboral, declarou-se a admissibilidade da reconvenção enquanto tal. Por outro, considerando o concreto circunstancialismo evidenciado, o Tribunal entendeu que o princípio da adesão se sobrepõe, o que implica não a inadmissibilidade da reconvenção, mas sim o não conhecimento, em sede laboral, do pedido conexo com o processo criminal.

Nenhuma censura se nos oferece fazer incidir sobre a decisão no que tange a esta matéria.

Pendente que está a questão criminal, o já mencionado princípio da adesão importa a tramitação do pedido cível no âmbito do processo criminal. A não ser deduzida acusação ou pronúncia, rege o disposto no Artº 72º acima já referido que permite, nesse circunstancialismo, a formulação do pedido indemnizatório em separado. Com o que não se viola qualquer direito do lesado no acesso à Justiça.

Termos em que a questão em apreciação claudica.

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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar os despachos recorridos.
Custas pela Apelante.
Notifique.
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Lisboa, 2017-12-06



MANUELA BENTO FIALHO
SÉRGIO ALMEIDA
FRANCISCA MENDES


[1] Sublinhado nosso