Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
392/11.6TBLNH.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: 1. Há lugar à rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto quando nas conclusões do recurso não vêm especificados os pontos concretos da decisão que estarão incorrectamente jugados, bem como quando falta igualmente a especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados, a par da falta de indicação exacta das passagens da gravação em que se funda a impugnação.
2. Tendo presente o disposto no nº 1 do art.º 805º do Código Civil, as consequências do atraso na restituição de coisa móvel determinada, originada pela extinção do direito da R. à detenção da mesma, apuram-se com referência à data em que a R. foi interpelada pela A. para efectuar tal restituição, e não apenas com referência à data em que tal atraso foi reconhecido e declarado por decisão judicial (ainda que cautelar).
3. Estando em causa a obrigação de restituição de coisa móvel determinada, por estar a mesma na detenção ilegítima do obrigado, e na sequência da interpelação que lhe foi feita pelo proprietário da mesma, a prestação correspondente deve ser efectuada no local onde este proprietário possa voltar a exercer os seus poderes de facto sobre a mesma coisa, dela dispondo nessa qualidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Em 30/5/2011 H., BV propôs contra S., S.A. acção declarativa com processo ordinário, pedindo a condenação da R.:
a) Na entrega definitiva de dois reboques;
b) No pagamento de indemnização pelos prejuízos decorrentes de não poder alugar os reboques a terceiros, contabilizada em € 7.055,00 por cada um deles, à data da propositura da acção, e a liquidar posteriormente, quanto aos prejuízos da mesma natureza desde a propositura da acção até entrega efectiva;
c) No pagamento das despesas em que a A. tenha de incorrer com a deslocação de pessoal a Portugal para examinar o estado dos reboques e levá-los para a Holanda, em valor a liquidar posteriormente;
d) No pagamento das despesas em que a A. tenha de incorrer com a deslocação a Portugal de dois camiões para levar os ditos reboques para a Holanda, a liquidar posteriormente;
e) No pagamento do valor correspondente à desvalorização e depreciação que os reboques apresentem na altura da sua devolução à A., a liquidar posteriormente;
f) No pagamento do valor total que os reboques teriam, caso a R. os abandone e estes se percam.
Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese, que:
- No âmbito da sua actividade alugou à “R. BV” por 60 meses, com opção de compra a final mediante o pagamento do valor residual, dois reboques;
- Antes do termo daqueles contratos a referida sociedade subalugou à R. os ditos reboques, sem autorização da A. e em violação dos contratos com esta celebrados;
- Tendo a R. BV sido declarada insolvente e havendo rendas em dívida à A., esta dirigiu-se ao administrador da insolvência daquela reclamando o valor das rendas em dívida, resolveu os contratos, e solicitou-lhe a restituição dos reboques locados, uma vez que, entretanto conhecedora da sublocação ilegal à R., já lhe havia solicitado a restituição e a R. recusou-se a fazê-lo;
- O administrador da insolvência da R. BV reconheceu que os reboques são propriedade da A. e que o seu direito de propriedade não podia ser posto em causa e, por outro lado, revelou que a R. não pagou à R. BV valores que a esta seriam devidos e veio a resolver os contratos entre ambas celebrados, os quais, de todo o modo, são inoponíveis à A.;
- Apesar dos contactos estabelecidos entre A. e R., esta não procedeu à restituição dos reboques, embora reconheça que os mesmos não lhe pertencem, condicionando a sua entrega ao pagamento de uma quantia que entendeu ser-lhe devida pelo respectivo parqueamento e que a A. recusou pagar-lhe por a entender indevida, o que culminou com a R. a sugerir que se os reboques estivessem na rua em vez de nas suas instalações estariam à mercê de roubos e vandalismo, o que a A. receia possa vir a acontecer;
- A conduta da R., para além de impedir a A. de usar os reboques de sua propriedade, os quais poderia alugar a € 415,00 por semana (cada um), importará para a A. as despesas relacionadas com o transporte dos reboques de Portugal para a Holanda e a inerente deslocação de camiões e de pessoal para tal fim, com os associados custos de viagem (dos camiões e do pessoal), alojamento e alimentação;
- Para além disso, o simples decurso do tempo importa desvalorização dos reboques, usualmente à razão de € 10.000,00 ou de 15% do seu valor em cada ano;
- Previamente à propositura da acção a A. promoveu procedimento cautelar contra a R., com vista a ver garantida a imediata devolução dos reboques, o qual veio a ser julgado procedente e a R. condenada à sua imediata entrega à A.
A R. apresentou contestação com reconvenção, alegando, em síntese, que:
- Estabeleceu uma parceria com a R. BV para fazerem transportes em conjunto, no âmbito da qual esta cedeu à R. os dois reboques, a R. pagava-lhe o aluguer e no fim pagaria o valor residual e ficaria com a propriedade dos mesmos, tendo a R. BV informado a R. de que, apesar de os reboques não serem de sua propriedade, tinha autorização do respectivo dono para os disponibilizar como entendesse conveniente, fazendo parte daquela parceria a possibilidade de a R. subalugar ou ceder gratuitamente a terceiros os ditos reboques;
- Nesses moldes a R. passou a utilizar os reboques até que foi contactada pela A., exigindo-lhe a entrega dos mesmos, o que a R. não fez por precisar dos reboques para transportes já ajustados com clientes seus, por entender ser legítima a forma como tomou posse deles e por ter tido despesas de manutenção com os reboques e vir velando pela sua segurança em parque com os inerentes custos, assim tendo os reboques há meses em Espanha;
- A. e R. efectuaram negociações com vista à devolução dos reboques e ao pagamento dos valores suportados pela R., sem que tenham chegado a acordo;
- A R. entregou à R. BV € 21.546,00, que esta terá entregue à A., por conta da utilização e do preço dos reboques, despendeu com reparações e manutenções € 7.978,45 acrescido de IVA, e em parqueamento e segurança despendeu já € 5.000,00, valores que lhe são devidos pela A.
Conclui pela sua absolvição do pedido e pela condenação da A. no pagamento dos valores em questão, acrescidos de juros de mora e das demais quantias que tiver de pagar a título de reparação, manutenção, segurança e parqueamento dos reboques, a liquidar posteriormente.
Mais pede a intervenção acessória da massa insolvente da identificada R. BV, sustentando que, no caso de ser condenada na presente acção, poderá exercer direito de regresso contra aquela sociedade.
Em réplica a A. alega, em síntese, que:
- É totalmente alheia ao negócio e relações estabelecidas entre a R. e a R. BV, não tendo qualquer conhecimento e/ou intervenção nas relações e combinações entre a R. e a R. BV;
- Não autorizou a R. BV a disponibilizar os reboques a outrem, nomeadamente à R., para que esta os pudesse, por sua vez, subalugar ou ceder a terceiros;
- No que respeita aos custos em que a R. terá incorrido, os mesmos são alheios à A. e foram por aquela feitos por sua conta e risco e para seu benefício, pois vem usando, ainda que abusivamente, os reboques, e se entende continuar a suportar manutenção, reparações, parqueamento e segurança é simplesmente porque não os devolve à A.;
- Apenas estabeleceu conversações com a R. com o objectivo da rápida recuperação dos reboques de sua propriedade.
Conclui como na P.I. e pela improcedência das excepções invocadas e da reconvenção, mais declarando não se opor à requerida intervenção acessória.
Por despacho de 19/3/2013 foi admitida a requerida intervenção acessória.
Iniciadas diligências com vista à citação da chamada, e tendo sido constatada a extinção da mesma, por despacho de 28/10/2015 foi o incidente de intervenção de terceiros considerado findo.
Em audiência prévia realizada em 9/3/2016 foi proferido despacho saneador, aí se sendo julgada inadmissível a reconvenção. Mais foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sem reclamações.
Por requerimento de 26/4/2016 a A. veio liquidar e ampliar o pedido, tendo sido exercido o contraditório pela R.
O requerimento em questão foi conhecido por despacho de 15/3/2020, aí tendo sido admitida a liquidação, com aditamento dos consequentes temas da prova, relativamente ao valor de cada um dos reboques quando a R. os começou a utilizar, ao estado dos mesmos quando foram recuperados pela A. em concretização da providência cautelar decretada, ao custo do transporte dos mesmos para a Holanda, ao valor pelo qual a A. conseguiu vender cada um dos mesmos, e ao tempo em que esteve privada de tirar rendimento dos mesmos.
Teve lugar a realização da audiência final (em três sessões), finda a qual foi proferida sentença, em 26/3/2021, com o seguinte dispositivo:
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, o Tribunal julga a acção procedente, e, em consequência condena a R. a pagar à A. a quantia global de € 114.976,92 [sendo € 47.200,00 de lucros cessantes, e € 4.998,00 e € 62.778,92 de danos emergentes], a que acrescerão juros à taxa legal desde o trânsito em julgado.
Custas pela R.”.
A R. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem integralmente:
a) Tendo o Douto Tribunal recorrido decidido condenar a R. a pagar à A. a quantia global de € 114.976,92, e mantendo a ora Recorrente a profunda convicção que existem nos autos fundamentos, de facto e de direito que impunham, no caso concreto decisão em sentido diverso, vem desta recorrer.
b) Ora, a sociedade R. BV e a Recorrente, tinham uma parceria, em que a R. BV cedeu a posição que tinha nos dois reboques em causa nos autos, à Recorrente, e esta pagava o valor da renda/prestação do leasing e no fim o valor residual, passando os reboques, afinal, para a propriedade da Recorrente.
c) A Recorrente nunca teve uma relação comercial com a Recorrida, mas sim com a sociedade R. BV, a quem pagou 21.546,00 €, pelo uso dos reboques, assim como prestou ainda serviços por conta do preço/renda dos reboques.
d) Nos presentes autos, a Recorrida alegou que o valor de cada veículo à data da celebração do contrato com a R. BV, seria de 74.500,00 €, o que a Meritíssima Juiz a quo aceitou, sem considerar a restante prova. – Cfr. Facto provado 30.
e) No entanto, aqueles reboques valiam cerca de 53.000,00 € e, em segunda mão, à data, não mais de 20.000€ ou 25.000€, cada viatura, conforme demonstrado na prova junta aos autos.
f) Olvida o Tribunal a quo que a Recorrente quando recebeu os veículos, os mesmos não valiam mais de 15.000,00€ cada, atendendo à desvalorização, conforme facto provado, da sentença, n.º 26.
g) E que, a Recorrente durante o contrato com a R. BV despendeu milhares de euros, cerca de 7.978,45€, com manutenções e diversas reparações. – Cfr. Depoimento das Testemunhas Carlos M. e Eliana M.
h) Quanto, às despesas tidas com o custo do transporte dos veículos, invocado pela Recorrida, e aceite mais uma vez pela Meritíssima Juiz a quo, a mesma é inaceitável,
i) porquanto, no âmbito da Providência Cautelar, a decisão do tribunal foi a entrega das viaturas em território nacional, não resultando para a Recorrente a entrega das viaturas na Holanda. – Cfr. sentença transitada em julgado.
j) Pelo que, não poderia o tribunal a quo decidir como decidiu quanto à prova apresentada pela Recorrida, nomeadamente facturas com a deslocação dos reboques para a Holanda, facturas da empresa “TLS” emitidas aquela, pois, não resulta poderem ser imputáveis à Recorrente.
k) Pois, as facturas apresentadas pela Recorrida referem-se à “Recolha do Reboque Porto Alto - Portugal - Roosendaal-“, cujo teor e conteúdo, foi impugnado, porquanto a Recorrente desconhecia e não tinha como conhecer, se tal serviço havia sido efectuado pela Recorrida, ou a seu pedido por uma terceira entidade, e se tal factura foi, efectivamente, paga.
l) Resultou, ainda, provado – facto provado 31 – que a Recorrida vendeu os veículos a terceiros, pelo montante, cada, de 7.500,00€, a 21 de Março de 2012.
m) No entanto, repita-se, os reboques tinham o valor de mercado, usados, de 15.000,00€/cada.
n) Aliás, a Recorrente sente-se enganada, pois estava a pagar um valor mensal, convicta que as viaturas no final do contrato iriam passar a ser da sua propriedade.
o) E, a Douta Decisão ora em crise permite e obriga a Recorrente a pagar, novamente, sem relevar o valor pago durante anos à sociedade R. BV, o que não se aceita.
p) Mais, decidiu a Meritíssima Juiz a quo que a Recorrida esteve privada de obter proventos da sua actividade com aqueles reboques durante 59 semanas, o que à razão de 400,00€/semana/reboque – facto provado 24 -, totaliza € 47.200,00.
q) Esquecendo que, face à prova junta aos autos, a Recorrente pagou durante anos, prestações mensais à R. BV e no final à massa insolvente, ficando sem os veículos e sem a possibilidade de os vir a adquirir, findo o contrato que havia celebrado.
r) Ora, não pode a Recorrente ser responsável pela demora no levantamento das viaturas, assim como, pela demora na venda das mesmas, que já se encontravam na posse da Recorrida.
s) A pretensão da Recorrida era a devolução dos reboques, o que aconteceu, dando a Recorrente cumprimento à decisão da providência cautelar.
t) Sendo que, o trânsito em julgado da decisão para entrega dos reboques foi a 14 de Dezembro de 2011.
u) A Recorrida age em abuso de direito, pois, beneficiou da insolvência da R. BV e do acordo desta com a Recorrente, para ter os reboques guardados, reparados, com manutenção assegurada ao longo de vários meses, ao mesmo tempo que via a dívida da R. BV para consigo diminuir, face as rendas mensais suportadas pela Recorrente.
v) E, a Recorrida não pode omitir que celebrou um contrato com a R. BV, em 2006, data em que lhe entregou os reboques.
w) Os reboques foram usados e utilizados pela R. BV desde 2006 a 2010, provocando desvalorização e desgaste pelo seu normal uso.
x) E, em 2010 esta, subalugou à Recorrente os referidos reboques, já usados, facto de que a Recorrida era conhecedora.
y) Pelo que, não faz sentido a fundamentação da decisão do Tribunal a quo quando imputa os prejuízos e o desgaste à Recorrente, designadamente, nos anos em que os reboques estiveram na posse da R. BV.
z) E, anda mal o Tribunal a quo quando desvaloriza a prova, nomeadamente, no que concerne às interpelações datadas de 3 de Fevereiro de 2011, no qual o administrador de insolvência da R. BV informa ora Recorrente que o contrato de sublocação se mantem em vigor e que as rendas deverão ser pagas à massa insolvente.
aa) Nesse sentido, a Recorrente aguardou decisão judicial, na providência cautelar, para definitivamente saber se continuava a pagar as rendas ao administrador de insolvência ou entregar os reboques à Recorrida.
bb) O Tribunal a quo andou mal quando não relevou a prova junta aos autos, na qual se demonstrou que a Recorrente sempre agiu como terceiro de boa fé, pois, cumpriu, escrupulosamente, o contrato celebrado com a R. BV, utilizando os reboques que pagava mensalmente.
cc) E, se a decisão judicial da providência cautelar transitou em julgado no dia 14 de Dezembro de 2011, é nesta data que surge para a Recorrente, a obrigação da entrega dos reboques à Recorrida, conforme sucedeu.
dd) Andou mal a Meritíssima Juiz a quo, ao considerar que a Recorrente se constituiu em mora, no dia 2 de Fevereiro de 2011, sem qualquer fundamento, de facto ou de direito, ignorando assim a decisão judicial da providência cautelar.
ee) Não se entende como pode o Tribunal a quo ter tido aquele entendimento, porquanto naquela data, a Recorrente ainda aguardava por decisão judicial.
ff) A existir eventual mora na entrega dos reboques, o Tribunal a quo deveria ter tido como referência aquelas datas e não outras, cuja falta de fundamento desde já se argui.
gg) O Tribunal a quo faz uma interpretação errada quanto ao local de entrega dos reboques, pois a decisão judicial da providência cautelar limitou-se a condenar a ora Recorrente na entrega dos mesmos.
hh) Não fazendo qualquer sentido a fundamentação do Tribunal a quo quando imputa à Recorrente, sem fundamentar, os custos da deslocação dos reboques de Portugal para a Holanda.
ii) Pelo que, a sentença recorrida padece das nulidades previstas nos artigos 615.° n.º 1 al. b) e d) do C.P.C.
jj) Acresce que, após trânsito em julgado da providência cautelar a Recorrente, por não ter onde guardar os reboques, informou a Recorrida que os ia deixar em Porto Alto, local habitual onde são parqueados veículos pesados.
kk) E tal só sucedeu, conforme resulta dos autos, porque a Recorrida se recusou a aceitar quaisquer custos com o parqueamento dos veículos em local fechado.
ll) Ora, a nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1 al. b) do Cód. Proc. Civil, constitui a sanção para o desrespeito ao disposto no art.º 607.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil, que manda que o juiz especifique os fundamentos de facto e de direito da sentença.
A A. apresentou alegação de resposta, aí concluindo pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, em cada um dos recursos, prendem‑se com:
- As nulidades da sentença recorrida;
- A decisão da matéria de facto;
- O cumprimento da obrigação da R. de restituição dos reboques no tempo e lugar devidos;
- O exercício abusivo do direito da A. a ser indemnizada pelos prejuízos sofridos com o incumprimento da obrigação de restituição dos reboques.
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Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto:
1. A A. é uma sociedade de direito holandês, sedeada na Holanda, que se dedica à actividade de aluguer de reboques e semi-reboques para transportes, com opção de compra pelo locatário no final do prazo de vigência dos contratos.
2. No exercício da sua actividade, em Outubro de 2006, a A. adquiriu ao respectivo fornecedor o (1) semi-reboque Chereau, com três eixos, matrícula (…), construído em 26-09-2006, carroçaria (…), com máquina frigorífica Thermoking Spectrum com o n.º de série (…), e o (2) semi-reboque Chereau, com três eixos, matrícula (…), construído em 26-09-2006, carroçaria (…), com máquina frigorífica Thermoking Spectrum com o nº de série (…).
3. E em 25/10/2006 e 31/10/2006, respectivamente, colocou-os à disposição da empresa R. BV, por meio de dois acordos de locação operacional, com opção de compra a final.
4. Esses acordos foram celebrados com a duração de 60 meses.
5. O valor residual (montante de aquisição a final) foi fixado em € 11.500,00 para cada um dos reboques.
6. Da cláusula 8.1 do clausulado geral dos contratos celebrados entre a A. e a R. BV expressamente consta a proibição de o locatário onerar, alugar, ou de outra forma ceder onerosamente a terceiro o objecto locado, salvo se tal for expressamente permitido no contrato individual.
7. Os contratos de locação individuais celebrados entre a A. e a R. BV não têm qualquer cláusula particular que disponha diversamente daquela cláusula geral.
8. Em 10 e 11 de Fevereiro de 2010 a R. BV, por sua vez, celebrou com a R. dois acordos denominados “Contrato de locação operacional”.
9. Os acordos indicados em 8. tiveram por objecto os reboques identificados em 2.
10. A R. BV foi declarada insolvente pelo organismo holandês competente.
11. Pelo menos em 27/1/2011 a A. tomou conhecimento de que a R. BV tinha sido declarada insolvente.
12. Na data indicada em 11. a R. BV tinha por liquidar à A. a quantia de € 2.640,00 relativa aos acordos de locação operacional indicados em 3.
13. Em 27/1/2011 a A. enviou carta ao administrador da insolvência da R. BV, pela qual reclamou aquele crédito, resolveu os contratos de locação que havia celebrado com a R. BV, e reclamou a entrega dos reboques identificados em 2.
14. Em 27/1/2011 a A., através do seu advogado, enviou carta à R. na qual solicitou a entrega dos reboques indicados em 2., no prazo de cinco dias a contar da data de tal carta.
15. A R. não procedeu à entrega dos reboques.
16. Por carta de 3/2/2011, que o administrador da insolvência da R. BV enviou à R., reclamou desta o pagamento do montante de € 8.712,00, em dívida à insolvente por rendas não pagas da locação dos dois reboques, sob pena de resolver os respectivos contratos, e assinalou que os reboques eram pertença da A. e que o seu direito de propriedade devia ser respeitado.
17. Em 27/4/2011 o administrador da insolvência da R. BV resolveu os contratos que esta celebrara com a R., sob invocação da falta de pagamento da quantia reclamada pela carta de 3/2/2011.
18. A R. é uma sociedade comercial que se dedica ao transporte internacional de mercadorias por conta de outrem, através de via rodoviária.
19. Aquando da celebração dos acordos indicados em 8. e 9. a R. tinha conhecimento de que a R. BV não era a proprietária dos reboques identificados em 2.
20. A R. facultou a utilização dos reboques a terceiros em Espanha e Marrocos.
21. A A. interpôs a providência cautelar que se mostra apensa, a qual foi julgada procedente e ordenada a entrega pela R. à A. dos reboques identificados em 2.
22. Após essa decisão a R. comunicou à A., em termos vagos e genéricos, que os veículos se encontravam no Porto Alto.
23. A A., após buscas nessa localidade por pessoas que disso encarregou, veio ali a localizar os reboques em 3/1/2012.
24. Se os tivesse em seu poder, a A. teria alugado cada um dos reboques pelo valor de aproximadamente € 400,00 por semana.
25. Entre a sede da A. e o Porto Alto distam cerca de 2.200 quilómetros.
26. Os veículos em geral e os de mercadorias em particular sofrem desvalorização, pelo simples decurso do tempo e pela sua utilização, em cerca de 15% ao ano.
27. Quando a A. localizou os reboques no Porto Alto, os mesmos encontravam-se sem motor de refrigeração, sem motor de frio exterior, sem porta-paletes, e tinham pneumáticos e jantes de tractor em vez de pneumáticos e de jantes próprios de reboque.
28. Aqueles componentes dos reboques são essenciais para a sua utilização e sem eles os reboques perdem totalmente o seu valor comercial porque são inaproveitáveis para o seu uso habitual.
29. A A. despendeu na deslocação dos veículos reboques do Porto Alto para a Holanda € 2.499,00 por cada um.
30. Os reboques em causa tinham em novos o valor de € 74.500,00 cada um.
31. Após a sua recuperação a A. conseguiu vender cada um dos veículos reboques a terceiros pelo valor de € 7.500,00, na semana de 21/3/2012.
32. Entre A. e R. foi, desde 1/12/2010 a 2/2/2011, trocada a correspondência que se encontra de fls. 208 a 249, cujos teores se dão por reproduzidos.
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Foi ainda considerado pelo tribunal recorrido inexistirem quaisquer factos não provados com interesse para a decisão da causa.
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Das nulidades da sentença recorrida
Segundo a al. b) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, uma sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
E segundo a al. d) do nº 1 do mesmo art.º 615º, uma sentença é nula quando deixar de ser conhecida questão que aí devia ser apreciada.
No que respeita à indicação da fundamentação de facto e de direito, a sentença com fundamentação escassa ou deficiente não é nula. É que, segundo Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221), “esta causa de nulidade verifica‑se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artº 208º nº 1 do CRP; artº 158º nº 1)”. E mais refere que “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”.
Já sobre a questão da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, refere Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume II): “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art 660º/2), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”.
Com efeito, decorre do art.º 608º do Código de Processo Civil que na sentença o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Ou seja, o tribunal só está obrigado a conhecer (para além daquelas que são de conhecimento oficioso) de todas e cada uma das questões suscitadas pela causa de pedir e pelas excepções invocadas, na medida em que o conhecimento de cada uma delas não esteja dependente do conhecimento de outra.
Por outro lado, e como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 737), existe “uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso”.
Revertendo tais considerações ao caso concreto dos autos, constata-se que o tribunal recorrido identificou correctamente a pretensão material apresentada pela A., afirmando corresponder a mesma ao direito desta a ser indemnizada pelos valores que deixou de auferir com a locação dos reboques da sua propriedade, desde que interpelou a R. para os restituir e até à restituição efectiva, bem como pela diferença de valor dos mesmos reboques entre esses dois momentos e pelas despesas com a sua restituição. E mais se constata que na sentença recorrida as questões assim delimitadas foram conhecidas e decididas, já que foi declarado o direito da A. às indemnizações em questão, estando as mesmas quantificadas nos termos peticionados e constando do dispositivo da sentença recorrida a condenação da R. no seu pagamento à A.
Do mesmo modo, ficou afirmado na sentença recorrida que as indemnizações em questão se destinam a ressarcir os danos sofridos pela A., em consequência da mora da R. no cumprimento da sua obrigação de restituição dos reboques, quer por resultar da factualidade apurada estar a R. obrigada a tal restituição (bem como o momento em que a mesma devia ser cumprida), quer por resultar da mesma factualidade apurada o volume dos danos sofridos e a expressão pecuniária dos mesmos.
Pode a R. não concordar com a fundamentação apresentada na sentença recorrida e que conduz ao juízo condenatório, designadamente por entender que a mesma devia ser distinta daquela aí exposta, tendo sido ignorada toda uma linha de argumentação (de facto e de direito) que conduzia a decisão distinta daquela que foi tomada.
Só que tal não corresponde à falta de fundamentação nem à omissão de pronúncia, mas apenas, e eventualmente, a uma fundamentação deficiente ou desconforme às normas aplicáveis, que terá conduzido a erro de julgamento.
Em consequência, improce­de a arguição das nulidades em questão.
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Da alteração da matéria de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes, (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas.
É que, face ao disposto no referido art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto apenas tem por objecto os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas, bem como os factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultam da instrução da causa (para além dos factos notórios e daqueles que o tribunal tem conhecimento em consequência do exercício das suas funções).
E como tais limites devem estar igualmente presentes na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso, mas igualmente decorram do confronto entre o elenco de factos provados e não provados, retirados dos factos alegados pelas partes, assim se respeitando o disposto no referido art.º 5º do Código de Processo Civil.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, constata-se desde logo que a R. não cuidou de cumprir o referido ónus de especificação a que alude o art.º 640º do Código de Processo Civil.
Com efeito, ao longo da motivação do recurso a R. vai fazendo referências a pontos de facto da sentença recorrida, do mesmo modo fazendo referências genéricas à “prova junta aos autos” (nº 5, 18, 30 e 63), aos “depoimentos das testemunhas” (nº 10 e 11), “à prova apresentada pela recorrida, nomeadamente facturas” (nº 17) ou mesmo à desvalorização da prova, “no que concerne às interpelações datadas de 3 de Fevereiro de 2011” (nº 45), mas sem identificar concretamente cada um dos meios de prova que constam dos autos e, no que à prova gravada respeita, indicando as passagens relevantes da gravação (ou procedendo à sua transcrição).
Do mesmo modo, nas conclusões da sua alegação a R. não afirma, em qualquer momento, que o recurso visa igualmente a impugnação da decisão de facto, do mesmo modo não individualizando qualquer um dos trinta e dois pontos de facto provados como estando incorrectamente decididos. E, do mesmo modo, nas referidas conclusões não individualiza a R. qualquer ponto de facto constante de algum dos articulados da acção que devesse ter sido objecto de apreciação pelo tribunal recorrido (não o tendo sido), ou que devesse merecer decisão distinta da que consta da sentença recorrida.
Pelo que o referido ónus de especificação, seja na sua vertente primária de delimitação do objecto do recurso (no que respeita à decisão de facto), seja na sua vertente secundária de indicação da decisão pretendida e de especificação dos meios de prova que sustentam a alteração da decisão, não se mostra minimamente cumprido.
Ou seja, a anunciada “profunda convicção que existem nos autos fundamentos, de facto (…) que impunham (…) decisão em sentido diverso” (constante da primeira conclusão da alegação de recurso), mesmo podendo significar uma declaração de vontade no sentido da impugnação da decisão de facto, não passa da “manifestação de inconsequente inconformismo” a que alude António Santos Abrantes Geraldes (nos termos acima citados), desde logo porque não se pode senão concluir que a R. não cumpriu o ónus de especificação acima identificado.
O que equivale a concluir pela rejeição imediata do recurso, nesta parte, com a consequente manutenção do elenco de factos provados constantes da sentença recorrida.
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Do cumprimento da obrigação de restituição da R.
Na sentença recorrida ficou afirmada a obrigação da R. de restituir à A. os dois reboques da propriedade desta última, mais sendo verificado o incumprimento dessa obrigação da R. e as consequências desse incumprimento, designadamente quanto às despesas que a A. teve de suportar para que a restituição se concretizasse e quanto aos montantes que a A. deixou de auferir por não ter os reboques em seu poder.
Em momento algum a R. coloca em crise o direito de propriedade da A. sobre os reboques em questão. Do mesmo modo, a R. não coloca em crise a sua obrigação de restituir à A. os mesmos, por não deter título válido para os deter.
Todavia, sustenta que o momento em que ficou obrigada à restituição em questão corresponde à data em que transitou em julgado a decisão que foi proferida no procedimento cautelar intentado como preliminar da acção. Do mesmo modo, sustenta que dessa decisão cautelar resulta não estar obrigada à restituição dos reboques à A. no país onde esta tem a sua sede, mas em Portugal, como sucedeu.
Na sentença recorrida foi considerado que “a R. estava obrigada a entregar à A. os reboques quando esta, que deles era proprietária, daquela os reclamou, uma vez que não tinha fundamento legal para recusar a sua entrega”, o que “significa que a R. deveria ter entregado os reboques até 01/02/2011 (inclusive)”, dado estar demonstrado que a solicitação da A. para a restituição “ocorreu pelo escrito de 27/01/2011, através do seu Advogado, concedendo-lhe para esse efeito o prazo de 5 dias a contar da data de tal carta”.
Mais foi considerado que a falta de fundamento para a R. recusar a restituição dos reboques decorre da circunstância desta ter conhecimento que a sociedade que lhe havia entregue os reboques (a R. BV) não tinha poderes bastantes para ceder o uso dos mesmos à R., do mesmo modo sabendo que a relação contratual de locação existente entre a A. e a referida sociedade, que legitimava a detenção dos reboques por esta, havia cessado, e não podendo a R. ignorar que, à face do disposto na al. i) do art.º 1038º do Código Civil, estava a mesma sociedade obrigada à restituição dos reboques locados.
Com efeito, resulta da factualidade apurada que a A., na sua qualidade de proprietária dos dois reboques em questão, havia cedido o uso temporário dos mesmos à sociedade R. BV, contra o pagamento da respectiva retribuição mensal, e com opção de compra no final de cada um dos contratos. O que é o mesmo que afirmar que entre as duas empresas em questão foram celebrados dois contratos de locação, daí emergindo o direito da locatária de ter na sua disponibilidade os dois reboques da propriedade da A., como sucedeu desde 25/10/2006 e de 31/10/2006, respectivamente.
Mas igualmente resulta provado que nos contratos de locação em questão ficou expressamente estipulada a proibição da locatária de onerar, alugar ou ceder onerosamente a terceiro os reboques, salvo autorização expressa da A., que não está demonstrado que tenha sido concedida.
Ou seja, quando em 10 e 11 de Fevereiro de 2010 a locatária em questão celebrou com a R. dois contratos de locação, tendo por objecto aqueles mesmos dois reboques, e no âmbito dos quais a R. passou a ter os reboques em seu poder, sempre seria de afirmar (mesmo desprezando a ineficácia desses acordos face à A., por não ter a locatária autorização expressa para sublocar os reboques) que o termo dos contratos celebrados entre a A. e a R. BV teria como consequência a caducidade daqueles contratos celebrados entre a R. BV e a R., por força do disposto na al. c) do art.º 1051º do Código Civil.
Assim, e se por falta de pagamento dos alugueres devidos pela R. BV a A. comunicou ao administrador da insolvência daquela, em 27/1/2011, a resolução dos contratos celebrados em 25/10/2006 e em 31/10/2006, operou desde logo a caducidade dos contratos celebrados entre a R. BV e a R. em 10 e 11 de Fevereiro de 2010. E dando a A. conhecimento à R. daquele facto determinante da referida caducidade (a resolução dos contratos celebrados entre a A. e a R. BV), na mesma data em que comunicou a resolução, podia desde logo interpelá-la para o cumprimento da sua obrigação de restituição dos reboques, no prazo razoável que lhe fixou.
Por outro lado, e tendo presente os efeitos da caducidade dos contratos celebrados em 10 e 11 de Fevereiro de 2010, a saber, a extinção do direito da R. à detenção dos reboques, deixou esta de ter qualquer legitimidade para recusar o cumprimento daquela obrigação de restituição dos reboques.
O que é o mesmo que dizer que, face à comunicação escrita dirigida pela A. à R., correspondente à carta que lhe enviou em 27/1/2011, constituiu-se a R. na obrigação de restituir os reboques à A. no indicado prazo de cinco dias (ou seja, até 1/2/2011).
E não tendo a R. dado cumprimento a essa sua obrigação de restituição, já que se manteve com os reboques na sua detenção após 1/2/2011, constituiu-se na obrigação de responder pelos prejuízos causados à A. em consequência desse seu incumprimento, como resulta do art.º 798º do Código Civil.
Aliás, e ainda que esse incumprimento não se apresente como definitivo (na medida em que a restituição ainda era possível após a data em questão), ainda assim continua a R. a ter de responder pelos danos causados à A. em consequência do mesmo, como resulta do art.º 804º do Código Civil.
Com efeito, sendo ainda possível a restituição em questão, mas não tendo a mesma sido efectuada no tempo devido (ou seja, até ao termo do prazo fixado pela A.), a R. só não seria responsável pelos danos causados pelo retardamento verificado se lograsse demonstrar que a falta de restituição atempada não lhe era imputável.
Por outro lado, e tendo presente o disposto no nº 1 do art.º 805º do Código Civil, as consequências do atraso na restituição dos reboques apuram-se com referência à data em que a R. foi interpelada pela A. para efectuar tal restituição, e não apenas com referência à data em que tal atraso foi reconhecido e declarado por decisão judicial (ainda que cautelar).
É que, face à referida carta de 27/1/2011, e tendo presente o disposto nos art.º 217º e 224º, ambos do Código Civil, a interpelação a que alude o referido nº 1 do art.º 805º do Código Civil tem-se por realizada através daquela declaração de vontade, por corresponder a uma forma válida e eficaz de interpelação extrajudicial.
Ou seja, não é pela circunstância de só em 18/11/2011 ter sido proferida (e notificada à R.) a decisão final no procedimento cautelar intentado pela A. (nos termos da qual foi ordenada a entrega dos dois reboques pela R. à A.), que se mostra legitimada a detenção dos reboques pela R. entre 2/2/2011 e tal data.
O que é o mesmo que dizer que os prejuízos sofridos pela A., em consequência de não ter a disponibilidade dos reboques nesse lapso temporal (e até à efectiva recuperação dos mesmos), são da responsabilidade da R., face à ilicitude da detenção dos reboques durante tal período.
Ainda a respeito da data em que se deve considerar a R. interpelada para restituir os reboques, sustenta esta que, como foi interpelada em 3/2/2011 pelo administrador da insolvência da R. BV, para efectuar o pagamento dos alugueres à massa insolvente, “criou a convicção e a expectativa que findo o pagamento do contrato de sublocação os reboques passariam a ser sua propriedade”. E, por isso, “aguardou decisão judicial, na providência cautelar, para definitivamente saber se continuava a pagar as rendas ao administrador de insolvência ou entregar os reboques” à A.
Ou seja, parece defender a R. que a ilicitude da detenção dos reboques não lhe pode ser imputada, por não decorrer da sua recusa em dar cumprimento à restituição solicitada pela A., mas antes à conduta da R. BV.
Sucede que a comunicação de 3/2/2011 que lhe foi dirigida pelo administrador da insolvência da R. BV se destinou a reclamar o pagamento dos montantes que estavam em dívida, mais a advertindo que tal falta de pagamento conduzia à resolução dos contratos celebrados entre ambas (em 10 e 11 de Fevereiro de 2010). E mais resulta provado que nessa comunicação o administrador da insolvência da R. BV afirmou igualmente à R. que os reboques eram da propriedade da A., interpelando-a para respeitar tal direito de propriedade.
Assim, conjugando tal comunicação com aquela que a A. havia dirigido à R. em 27/1/2011 (ou seja, sete dias antes), a teoria da impressão do destinatário que norteia a interpretação das declarações em questão faz concluir que não há qualquer forma de a R. poder concluir que a comunicação de 3/2/2011 “anulava” ou invalidava os efeitos da comunicação de 27/1/2011, designadamente no sentido de “reverter” a declaração resolutória da A. quanto aos contratos de locação celebrados com a R. BV, com a manutenção dos mesmo em vigor e com a consequente não verificação da caducidade dos contratos de sublocação celebrados em Fevereiro de 2010.
O que é o mesmo que afirmar que a factualidade constante do ponto 16. não merece a interpretação que a R. lhe pretende dar, do mesmo modo não tendo a virtualidade de fazer afirmar que a mesma não procedeu à entrega dos reboques à A. nos termos em que foi interpelada pela mesma, porque aquilo que lhe foi comunicado pelo administrador da insolvência da R. BV justificava essa omissão de entrega, através da criação da convicção de que carecia de aguardar por uma decisão judicial que lhe determinasse essa entrega.
O que equivale a concluir pela improcedência das conclusões do recurso da R., no que respeita à licitude da detenção dos reboques até à data em que a R. os colocou à disposição da A., na sequência do trânsito em julgado da referida decisão cautelar de 18/11/2011.
Abordando agora a questão do local onde a obrigação de restituição dos reboques devia ser cumprida, sustenta a R. que não é devedora à A. dos valores correspondentes aos custos da deslocação dos reboques de Portugal para o país onde se situa a sede da A. (Holanda), já que tal obrigação devia ser cumprida em território nacional.
Na sentença recorrida foi considerado que “devemos ter em conta que ao celebrar com a [R. BV] os contratos de locação daqueles reboques era expectável para a A. que decorrido o seu prazo de duração acontecesse uma de duas coisas: (1) a [R. BV] exercia a opção de compra, mediante o pagamento do valor residual acordado, ou (2) não exercendo essa faculdade contratual, estaria obrigada à entrega dos reboques à A.
E neste último caso, porque essa entrega decorreria de uma relação negocial entre elas estabelecida, a [R. BV] teria de proceder à entrega dos veículos no lugar onde eles se encontravam à data da conclusão do negócio (cfr. 773º nº 1 CCivil), ou seja, na Holanda; não se divisando porque ficaria a A. em pior posição no confronto com a R. quando a sua obrigação de entrega resulta da violação do direito de propriedade da A. e da legitima reivindicação desta do que lhe pertence.
Mas mais, estando a R. em mora relativamente àquela obrigação de entrega e recusando-se a cumpri-la, foi a mesma em sede de providência cautelar condenada à entrega imediata dos reboques à A., sendo assim inequívoco que por força desse dispositivo judicial a obrigação da R. consistia numa prestação que teria de ser levada por ela, devedora, ao poder da credora A.
Ora, o que se verificou foi que a Ré se limitou a comunicar à Autora, em termos vagos e genéricos, que os veículos se encontravam no Porto Alto, e a Autora, após buscas nessa localidade por pessoas que disso encarregou, veio ali a localizar os reboques em 03/01/2012 (factos provados 22 e 23) e custeou a sua deslocação para a Holanda (cfr. facto provado 29), sendo assim evidente que o custo da deslocação dos reboques de Portugal para a Holanda, no montante de € 2.499,00 por cada um, num total de € 4.998,00, constitui um dano emergente por cuja reparação a R. é responsável”.
É certo que do disposto no nº 1 do art.º 772º do Código Civil resulta que a prestação deve ser efectuada no lugar do domicílio do devedor, salvo disposição especial da lei. E um dos casos em que a lei dispõe especialmente sobre o lugar do cumprimento da prestação de entrega de coisa certa é o do art.º 1312º do Código Civil, onde se dispõe que a restituição da coisa esbulhada é feita no lugar do esbulho.
Ou seja, tendo presente que o esbulho, na acepção aqui utilizada, corresponde à privação dos poderes de facto do proprietário da coisa (que é o mesmo que afirmar a privação dos poderes de dispor e fruir materialmente da coisa), sempre que se trata da obrigação de restituição de coisa móvel esbulhada que emerge da prática de acto que consubstancia tal privação (e, nessa medida, se afirma como facto ilícito e culposo violador do direito de propriedade sobre essa coisa móvel determinada), o que passa a relevar, para o apuramento do lugar onde a obrigação de restituição deve ser cumprida, já não é o critério do domicílio do obrigado à restituição, mas antes o critério do local onde a coisa móvel deve ser colocada na plena disponibilidade do proprietário, assim se repondo a efectividade do exercício dos referidos poderes de disposição material da mesma.
Acresce, por outro lado, que a obrigação só se mostra cumprida quando o devedor realiza a prestação a que está vinculado, devendo para tanto proceder de boa fé, como lhe impõe o art.º 762º do Código Civil.
O que significa que, estando em causa a obrigação de restituição de coisa móvel determinada, por estar a mesma na detenção ilegítima do obrigado, e na sequência da interpelação que lhe foi feita pelo proprietário da mesma, a prestação correspondente deve ser efectuada no local onde este proprietário possa voltar a exercer os seus poderes de facto sobre a mesma coisa, dela dispondo nessa qualidade.
E o cumprimento dessa obrigação rege-se pelo “dever de agir com lisura e correcção”, sendo que o “dever de boa fé não se circunscreve ao simples acto da prestação, abrangendo ainda, na preparação e execução desta, todos os actos destinados a salvaguardar o interesse do credor na prestação (o fim da prestação) ou a prevenir prejuízos deste, perfeitamente evitáveis com o cuidado ou a diligência exigível do obrigado” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, 3ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1986, pág. 2-3).
Do mesmo modo, os referidos autores explicam e exemplificam que “o devedor não pode limitar-se a uma realização puramente literal ou farisaica da prestação a que se encontra vinculado: se, no local onde a mercadoria costuma ser entregue, o vendedor não encontra imprevistamente o guarda do armazém, não pode arremessar a mercadoria para o chão, em condições de ela facilmente se deteriorar (…). E assim por diante, quanto ao modo ou ao tempo do cumprimento”.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, logo se alcança que a R. não deu cumprimento perfeito à sua obrigação de restituição dos dois reboques à A., quanto ao local onde a prestação devia ser realizada.
Com efeito, a simples comunicação à A., após a decisão cautelar e em termos vagos e genéricos, que os reboques se encontravam no Porto Alto, não possibilitou à A. (ainda que procedendo com a mesma boa fé a que também estava obrigada, pelo referido art.º 762º do Código Civil) a recuperação imediata dos mesmos, não só atenta a distância entre aquela localidade e o local da sua sede na Holanda (cerca de 2.200 quilómetros), mas igualmente porque a A. teve de recorrer aos serviços de terceiros para localizar os reboques, o que só conseguiu em 3/1/2012, e em estado de conservação incompatível com o fim a que se destinavam.
Ou seja, de forma alguma se pode afirmar, como pretende a R., que a mesma cumpriu com a sua obrigação de restituição dos reboques no lugar onde a prestação devia ser realizada e segundo os ditames da boa fé a que estava obrigada.
Pelo contrário, a actuação da R. configura-se como inapta ao fim visado (o cumprimento da obrigação de restituição dos reboques), desde logo porque não resulta demonstrado qualquer cuidado posto pela R. na conservação do valor dos mesmos reboques enquanto a entrega não se materializasse, do mesmo modo que não resulta demonstrada qualquer preocupação na realização de contactos com a A. para acordar a efectivação da entrega em questão, ainda que fosse em território nacional, mas de modo a que a A. recebesse “das mãos” da R. (fosse no Porto Alto, na Lourinhã ou em qualquer outro local acordado) os reboques, passando os mesmo da detenção da R. para o domínio de facto efectivo e material da A.
Ou seja, também aqui há que concluir pela improcedência das conclusões do recurso da R., no que respeita à invocada perfeição do cumprimento da obrigação de restituição, quanto ao local da realização da prestação, e à consequente ausência de obrigação de indemnizar a A., quer pelos valores correspondentes aos custos suportados com a deslocação dos reboques de Portugal para a Holanda, quer pela desvalorização dos reboques entre o momento da referida comunicação vaga e genérica e o momento da efectiva recuperação dos mesmos pela A. (em consequência do estado de conservação que apresentavam), quer ainda pelas perdas sofridas pela A. por ter continuado a estar privada de utilizar os reboques após a mesma comunicação.
No mais, a discordância da R. quanto à determinação quantitativa da obrigação de indemnizar os prejuízos sofridos pela A. assenta num circunstancialismo de facto que não é aquele que emerge dos factos provados, tal como constam da sentença recorrida e aqui se mantêm, desde logo face à rejeição da impugnação da decisão de facto acima decidida.
Nesta medida, e porque fica por demonstrar a perfeição do cumprimento da obrigação de restituição dos reboques pela R., quer no que respeita ao momento em que a restituição devia ter ocorrido, quer quanto ao lugar em que a restituição devia ter ocorrido, não há que fazer qualquer censura à sentença recorrida, na parte em que determinou os prejuízos decorrentes do incumprimento em questão, com a consequente responsabilização da R. na reparação desses mesmos prejuízos, correspondentes, não só aos custos que suportou com a efectiva recuperação dos reboques, como igualmente aos valores que deixou de auferir por não ter os reboques na sua disponibilidade e à perda de valor dos mesmos, enquanto estiveram na detenção ilícita da R.
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Do exercício abusivo do direito da A.
Suscita ainda a R. a questão da actuação da A. em abuso de direito, já que aproveitou os benefícios que lhe advieram do acordo existente entre a R. e a R. BV, no que respeita ao recebimento dos valores que lhe eram devidos pela R. BV, ao mesmo tempo que utilizou a insolvência da R. BV em seu próprio beneficio, para obter a restituição dos reboques e para não ver repercutida na sua esfera patrimonial a natural desvalorização e desgaste dos mesmos, já que o valor dos mesmos foi conservado pela R., por força da forma como os guardou, os manteve e os reparou.
A A. objecta que é alheia à relação contratual mantida entre a R. e a R. BV, mais referenciando que aquela não lhe trouxe qualquer beneficio, até porque é a conduta de má fé da R., ao retardar a restituição dos reboques e ao abandonar os mesmos na via pública, que impossibilita os efeitos visados pela mesma.
Do art.º 334º do Código Civil resulta que é abusivo (ou ilegítimo) o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Podendo o abuso de direito apresentar várias modalidades, a respeito da modalidade de venire contra factum proprium (correspondente à invocada pela R., apesar de não a ter assim identificado) afirmou o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 12/11/2013 (relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt), que “são pressupostos desta modalidade de abuso do direito (…) os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, não se verifica qualquer boa fé da R. na sua actuação, quer contemporânea, quer subsequente à comunicação da A. de 27/1/2011, entendida a mesma como a formação da convicção da licitude da manutenção dos reboques em seu poder, em razão do anterior comportamento da A. que permitisse a criação da expectativa de confiança nessa licitude.
Com efeito, e se quando a R. BV sublocou à R. os dois reboques, em Fevereiro de 2010, a R. ainda podia ter formado a convicção (errónea, é certo) da existência da autorização da A. para que tal sublocação tivesse ocorrido, tal convicção já não se podia manter após 1/12/2010, tendo presente a troca de correspondência que manteve com a A., da qual resulta a apresentação recíproca de propostas com vista à celebração de contratos de locação entre ambas relativos aos dois reboques, em alternativa à entrega dos mesmos à A. Ou seja, a R. não podia deixar de saber que, quer por uma via (a da celebração dos contratos em negociação), quer por outra (a da entrega dos reboques), sempre tal significaria, por um lado, o fim dos acordos estabelecidos com a R. BV em Fevereiro de 2010 e, por outro lado, o fim da relação contratual existente entre a A. e a R. BV, única susceptível de legitimar aqueles acordos de Fevereiro de 2010.
Do mesmo modo, as comunicações de 27/1/2011 e de 3/2/2011 que foram dirigidas à R. pela A. e pelo administrador da insolvência da R. BV afastam qualquer possibilidade da R. perspectivar a possibilidade de manutenção dos reboques em seu poder, desde logo porque sabia que a A. já havia deixado de receber da R. BV a contrapartida pecuniária pela cedência dos reboques à mesma, também sabendo que não estava a entregar qualquer contrapartida pecuniária à R. BV por ter os reboques na sua disponibilidade, sabendo igualmente que a relação contratual entre a A. e a R. BV não mais se mantinha, atenta a declaração resolutória dirigida pela A. ao administrador da insolvência da R. BV, e mais sabendo que as negociações com a A. se haviam gorado, o que sempre dava lugar à entrega dos reboques à A.
Ou seja, por esta via não é possível afirmar que, face à conduta anterior da A., a R. criou a expectativa legítima da manutenção das relações contratuais em consequência das quais os reboques chegaram à sua detenção.
E quanto à invocada actuação tendente à conservação do valor dos reboques, na base da qual (se verificada tal actuação) se poderia concluir pela boa fé da R., nem a factualidade apurada permite verificar tal actuação, nem se verifica qualquer contributo da A. para que essa actuação pudesse ocorrer (e não resulta provado que tivesse ocorrido).
Com efeito, aquilo que a factualidade apurada demonstra é que o valor dos reboques sofreu um decréscimo superior ao que seria a normal desvalorização dos mesmos, decorrente do simples decurso do tempo e da sua utilização. E que tal decréscimo do valor dos reboques decorre da circunstância de aos mesmos faltarem componentes essenciais (como os motores de refrigeração e de frio exterior, ou as jantes e pneus) para a sua utilização habitual, sendo que a ausência desses componentes ocorre enquanto os reboques não estavam na dissipabilidade da A., mas na disponibilidade da R., e porque esta (pelo menos, aparentemente) não cuidou de os guardar e conservar convenientemente, facultando a sua utilização a terceiros em Espanha e em Marrocos e acabando por “abandoná-los” em lugar acessível a terceiros.
Assim, não se torna possível afirmar o invocado exercício ilegítimo do direito da A. a obter a reparação dos danos sofridos em consequência da mora da R. na restituição dos reboques, por força de uma qualquer conduta da A. que excedesse manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico daquele direito à reparação, desde logo porque é a forma como a R. actuou, violando o direito de propriedade da A. sobre os reboques em questão, que conduziu ao surgimento do direito à reparação na esfera jurídico-patrimonial da A., como forma de reintegração da dimensão económica do direito de propriedade que havia sido perdida, exclusivamente em consequência da conduta da R.
O que equivale a afirmar que, também quanto a esta questão, improcedem as conclusões do recurso da R., sendo de manter a sentença recorrida que reconhece e declara o direito da A. a ser indemnizada dos prejuízos sofridos em consequência da actuação da R., condenando esta no pagamento do montante indemnizatório correspondentemente apurado.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso da R., mantendo-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pela R.

7 de Outubro de 2021
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Lúcia Sousa