Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3145/2007-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ARRESTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/10/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. O Julgado Mercantil de Madrid, onde corre termos o processo de insolvência da sociedade C, sociedade anónima, de direito espanhol e com sede em Madrid, não é competente para apreciar e julgar o procedimento cautelar de arresto, requerido e decretado em tribunal português e sobre bens situados em Portugal e em que é Requerida a sociedade B, sociedade de responsabilidade limitada, de direito português, com sede em Portugal, com fundamento em alegados actos ilícitos por esta praticados, apesar de a primeira ser detentora de 99,99% do capital social da segunda.
II. Não ocorre qualquer nulidade da decisão, quer por excesso de pronúncia, quer por alegadamente ter sido tomada de acordo com pressupostos que se não verificavam e com fundamentos que inexistiam, quando se verifica que foi realizada prova de factos invocados e susceptíveis de justificar a responsabilidade da Agravante com base em conduta ilícita, causadora de alegados danos patrimoniais e não patrimoniais.

III. Não tem relevância com vista ao decretamento do arresto que o crédito ainda não esteja vencido, nem que seja ilíquido, bastando que a sua existência se apresente como provável ou verosímil.

IV. No caso dos autos o crédito da Agravada, por danos patrimoniais decorrentes dos valores investidos por esta nos contratos com a sociedade C, por força das condutas ilícitas da Agravante, e por danos não patrimoniais por as condutas da Agravante terem causado à Agravada perturbações no seu bem-estar, por se encontrar ansiosa e inquieta, mostra-se com probabilidade bastante para o decretamento da providência.

V. Existe “periculum in mora”, se a Requerida deixou de exercer a sua actividade e de auferir quaisquer receitas que possam suportar os respectivos custos e se o seu capital social é detido maioritariamente por sociedade declarada falida.

VI. Não há lugar à aplicação da Ley Concursal espanhola - a Lei 22/2003, de 9 de Julho - assim como não é aplicável ao caso dos autos o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29.05.2000 - respeitante aos processos de insolvência, pois que o facto de se verificar a pendência do processo de insolvência (concursal) da sociedade C, que, corre os seus termos no Juzgado Mercantil de Madrid, não tem qualquer relevo no âmbito do presente processo, não havendo designadamente cabimento para que "os actos judiciais promovidos neste Tribunal devam ser suspensos, porquanto a legislação aplicável ao caso dos autos não é a concursal espanhola”.

(P.R.)

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I. OBJECTO DO RECURSO.

No Tribunal Cível da Comarca do Porto, Ana intentou os presentes autos de providência cautelar de Arresto contra a sociedade B, de responsabilidade Lda, pedindo o arresto de bens da requerida, que identifica nos autos, alegando a existência de um crédito sobre a mesma requerida bem como o receio de perda de garantia patrimonial fundado no comportamento daquela e na situação patrimonial em que a mesma se encontra.

Inquiridas as testemunhas arroladas, veio a ser decretado o arresto dos seguintes bens:

(…)

Decretado o arresto, a Requerida deduziu oposição suscitando as questões da sua ilegitimidade; do alegado crédito não se encontrar vencido e, portanto, não exigível e do excesso de pronúncia do arresto decretado.

Efectuadas as diligências de prova requeridas, veio a ser proferida douta decisão a julgar improcedente a oposição deduzida e a manter o arresto decretado.

Inconformada com a decisão, veio a Requerida interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:

A. É facto público, por ser do conhecimento público, que a sociedade anónima C, sociedade de direito espanhol que detém controle total sobre a Requerida, foi alvo de uma intervenção judicial cujos termos correm no Julgado Mercantil, n° 6 de Madrid. NIC …. B. Essa demanda é anterior aos presentes autos, sendo que aí discute-se uma questão de fundo sobre a natureza jurídica da actividade da Requerida, sendo aí, nessa sede, que estão a ser realizadas todas as diligências de instrução e prova quanto à questão central da actividade da empresa, bem como da avaliação e natureza dos seus activos, destino dos mesmos, insolvência, etc.

C. Nos termos do artigo 28° do Regulamento (CE) n° 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, existe uma conexão estreita entre as acções em causa, sendo manifesto que as mesmas, se julgadas em separado, podem produzir soluções jurídicas inconciliáveis.

D. O Tribunal recorrido deveria ter-se declarado incompetente nos termos do disposto no artigo 28°/2, ordenando a remessa dos autos para o Julgado Mercantil de Madrid a fim de permitir a apensação de todas as acções, como, aliás, acontece com todas as acções judiciais interpostas naquela jurisdição e, em qualquer caso, ordenando a remessa dos autos da acção definitiva.

E. A decisão de fls. é nula, por excesso de pronúncia, e violadora da lei, pois que os Requerentes da providência cautelar peticionaram o arresto até ao valor do seu alegado crédito, e a decisão decretou o arresto de todos os bens da Requerida... sem qualquer limite.

F. A questão não perdeu qualquer actualidade pois que a decisão, apesar de ter sido entretanto corrigida, é nula, pois como tal foi decretada, e foi tomada de acordo com pressupostos que se não verificavam e com fundamentos que inexistiam. Nessa medida, a nulidade inquinou-a, tendo a mesma que ser revogada e considerada nula.

G. A Requerente, muito embora tenha vagamente alicerçado o seu pedido numa questão de responsabilidade civil extra-contratual - actos ilícitos alegadamente praticados pela Requerida - a verdade é que estão documentalmente provados factos contraditórios com a decisão de facto.

H. Estando documentalmente provado, através dos respectivos contratos, que a Requerente adquiriu filatelia à sociedade C, tendo-se tornado sua proprietária, só com violação do artigo 393° do CC se pode declarar não terem sido ficado provados os factos constantes dos artigos 10 a 12 da oposição.

I. Sendo evidente que existiu essa aquisição, o crédito da Requerente decorre dos contratos e não de qualquer outra putativa acção, sendo, portanto, causa do direito reclamado actos da sociedade C.

L. Assim, o crédito da Requerente não tem nem a natureza jurídica nem o valor declarados na pi, nem se encontra vencido, nem é exigível, antes de decorrido o prazo contratual respectivo.

M. Por outro lado, é público e notório que a filatelia adquirida está à guarda do Administrador Judicial nomeado no âmbito daquele processo judicial a correr termos em Madrid e que apenas pela intervenção do Tribunal, facto alheio à sua vontade, está a sociedade C impedida de proceder à entrega, nas datas em que a tal esteja obrigada, dos lotes de filatelia que estão guardados e são propriedade da Requerente.

N. O património da empresa C nem sequer é transaccionável - e, portanto, nem se justifica a providência - porquanto os seus bens estão todos à guarda do Administrador Judicial, que naturalmente não lhes dará descaminho....e já estavam à data da sua decretação, não existindo, portanto, qualquer periculum in mora.

O. A sociedade C encontra-se em situação de concurso necessário declarada por um Tribunal do Comércio espanhol, motivo pelo qual, nos termos do art. 200 da Lei 22/2003, de 9 de Julho, “Concursal", e art. 3°, n° 1 do Regulamento C.E. n° 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio e à lei espanhola que compete determinar os pressupostos e efeitos dos concursos : declarados em Espanha, e, portanto, haverá que observar ao que quanto à matéria disponha a Lei Concursal espanhola.

P. É ao Reino de Espanha, o "Estado de abertura", e à legislação espanhola, designadamente a Lei 22/2003, de 9 de Julho, "Concursal", que compete reger os termos do processo.

Q. A Lei Concursal, prevê no seu art. 55º, n.° 1, que: "Declarado o concurso, não poderão iniciar-se execuções singulares, judiciais ou extrajudiciais, nem seguir-se coacções administrativas ou tributárias contra o património do devedor". Neste sentido, o n.° 2 determina que: "Os actos que se encontrem em execução serão suspensos desde a data da declaração do concurso, sem prejuízo do tratamento concursal que caiba promover aos respectivos créditos": e por último, no n° 3 dispõe-se que: "Os actos praticados em desrespeito ao estabelecido nos n°s 1 e 2 anteriores serão nulos de pleno direito."

R. Neste mesmo sentido, o art. 17°, n.° 1 do referido Regulamento CE determina que: "A decisão de abertura de um processo referido no n.° 1 do artigo 3º produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo, salvo disposição em contrário do presente Regulamento".

S. Por outro lado, existe impossibilidade de travar arrestos e executar bens por parte dos Órgãos judiciais de Estados distintos daquele em que foi declarado o concurso, com Andamento no interesse reiteradamente demonstrado pela legislação internacional de salvaguardar o princípio "par conditio creditorum", já que, se se permitisse tal possibilidade, os credores estrangeiros que exibissem tal interesse e o vissem reconhecido em virtude de um título judicial executivo, estariam autorizados a conseguir a cobrança dos seus créditos através da virtualidade de tais execuções, e os credores nacionais veriam frustradas a suas expectativas para efeitos do devido cumprimento da legislação concursal.

T. Em conclusão, portanto, à luz da legislação nacional e internacional, os actos judiciais removidos neste Tribunal deverão ser suspensos, porquanto a legislação vigente aplicável ao caso é a concursal espanhola.

Termos em que, deve ser revogada a decisão recorrida e ser proferida outra que dê provimento ao recurso, nos seus termos.

A Agravada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento do mesmo, cumpre decidir.

As questões a resolver são as de saber:

a) Se o tribunal recorrido deveria declarar-se incompetente nos termos do art. 28º/2 do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, ordenando a remessa dos autos para o Julgado Mercantil de Madrid;

b) Se a decisão que decretou o arresto é nula por excesso de pronúncia;

c) Se o crédito da Recorrida não tem a natureza jurídica, nem o valor declarados na p.i., nem se encontra vencido, nem é exigível e se não se verifica o “periculum in mora”;

d) Se ao caso se deve aplicar a lei espanhola por a sociedade C se encontrar em situação de concurso necessário declarado por um tribunal de comércio espanhol.

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II. FUNDAMENTOS DE FACTO.

A 1.ª instância considerou como provados os seguintes factos:

(…)

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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.

a) Coloca o Agravante a questão de saber se o tribunal recorrido deveria declarar-se incompetente nos termos do art. 28º/2 do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, ordenando a remessa dos autos para o Julgado Mercantil de Madrid.

Antes de mais importa se diga que a Agravante suscita questão nova, que não colocou à apreciação do tribunal recorrido, pelo que nem haveria que dela conhecer.

Com efeito, decorre dos arts. 676º, n.º 1 e 684º, n.º 3 do CPC, que os recursos constituem os meios de impugnação de decisões proferidas pelos tribunais inferiores, pelo que o seu âmbito, por regra, está objectivamente delimitado pelas questões já colocadas ao tribunal de que se recorre.
É neste sentido que a jurisprudência se tem manifestado, ou seja, de que com os recursos se visa a modificação de decisões impugnadas e não a produção de decisões sobre matéria nova, não sendo lícito, por isso, invocar nos recursos questões diferentes das que tenham sido objecto de apreciação nas decisões recorridas, nem devendo neles conhecer-se de questões que as partes não hajam suscitado no tribunal recorrido. A finalidade do recurso é essencialmente o reestudo por parte do tribunal superior de questões já vistas e apreciadas pelo tribunal inferior e não a pronúncia do tribunal superior sobre questões suscitadas de novo(1).
Obviamente que as “questões” a que nos reportamos são, essencialmente, as questões que se prendem com o mérito das pretensões formuladas pelas partes e que estas tiveram oportunidade de ter suscitado perante o tribunal recorrido, pois que, para além destas, outras há que podem ser apenas suscitadas ou conhecidas no tribunal superior, tais como as que são de conhecimento oficioso e aquelas que são inerentes a vícios, sobretudo de natureza processual, da sentença recorrida.
No caso vertente, a Agravante coloca a questão da incompetência do tribunal, pretendendo mostrar que a competência cabe ao tribunal espanhol, quando a podia ter colocado ao tribunal de 1.ª instância, não se descortinando razão para só agora o ter feito, pelo que, no rigor dos princípios seria de não se conhecer da mesma.
No entanto, porque está em causa questão que versa sobre alegada incompetência absoluta do tribunal que, a existir, sempre poderia ser conhecida oficiosamente e até ao trânsito em julgado proferido sobre o fundo da causa (art.s 101º e 102º/1 do CPC), sempre se dirá o que se segue.
Alega a Agravante que a sociedade, de direito espanhol, sociedade C, que detém controle total sobre a Requerida, foi alvo de uma intervenção judicial cujos termos correm no Julgado Mercantil n° 6 de Madrid, NIC (…), demanda que é anterior aos presentes autos, sendo que aí discute-se uma questão de fundo sobre a natureza jurídica da actividade da Requerida, sendo aí, nessa sede, que estão a ser realizadas todas as diligências de instrução e prova quanto à questão central da actividade da empresa, bem como da avaliação e natureza dos seus activos, destino dos mesmos, insolvência, etc. Assim, nos termos do artigo 28° do Regulamento (CE) n° 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, existe uma conexão estreita entre as acções em causa, sendo manifesto que as mesmas, se julgadas em separado, podem produzir soluções jurídicas inconciliáveis, pelo que o Tribunal recorrido deveria ter-se declarado incompetente nos termos do disposto no artigo 28°/2, ordenando a remessa dos autos para o Julgado Mercantil de Madrid a fim de permitir a apensação de todas as acções, como, aliás, acontece com todas as acções judiciais interpostas naquela jurisdição e, em qualquer caso, ordenando a remessa dos autos da acção definitiva.

Mas a Agravante carece de razão.

Com efeito, alegou a Agravante, e bem, no artigo segundo da oposição que deduziu à presente providência, que a sociedade de direito espanhol, sociedade C, “é uma empresa diferente da Requerida (sociedade B), com distinta personalidade jurídica, sede social, capital social, accionistas, etc.”.

De resto, nem a própria designação poderia conduzir a conclusão diferente de estarem em causa duas sociedades completamente distintas.

Se assim é, as obrigações e responsabilidades de uma não têm que confundir-se com as responsabilidades da outra. Como nem se confundem os respectivos patrimónios. E não é pelo facto de a sociedade C ser titular de uma quota representativa de 99,99% do capital social da Requerida, ora Agravada, que as obrigações desta passam a ser também obrigações daquela.

O arresto decretado nos autos veio a recair sobre património próprio da Requerida, a ora Recorrente, e não sobre o património da sociedade C, com fundamento em alegado e justificado crédito sobre a primeira.

O que nada parece ter a ver com o que se discutirá nos autos de concurso que, sob …, correm os seus termos no 6. ° Juzgado Mercantil de Madrid, onde está em causa a insolvência da sociedade C, S.A., e não a eventual insolvência da sociedade B, Lda., aqui Recorrente.

Como bem salienta a Agravada na sua douta contra-alegação, da mera leitura da petição de arresto resulta evidente que a Requerente do arresto, aqui Recorrida, alegou factos, de forma clara e inequívoca, que permitiram ao Tribunal de primeira instância não confundir a responsabilidade da sociedade C, S.A. - que não está directamente em causa nos presentes autos de arresto - com a responsabilidade extracontratual, por factos ilícitos, que a Requerente imputa à aqui Requerida, a sociedade B, Lda., para justificar o seu direito de crédito (à indemnização) perante esta última sociedade comercial.

Sendo assim, o 6.º Juzgado Mercantil de Madrid, onde corre termos o processo de insolvência da sociedade C, não é competente para apreciar e julgar este procedimento cautelar de arresto, nem a correspondente acção principal, em que é Requerida e Ré a sociedade B, sociedade de direito português, com sede em Portugal e que é terceira em relação aos referidos autos de insolvência.

Carece, pois, de razão de ser a arguida incompetência do tribunal recorrido.

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b) Coloca a Agravante a questão de saber se a decisão que decretou o arresto é nula por excesso de pronúncia.

Esta questão já a Agravante havia suscitado na oposição que oportunamente deduziu ao decretado arresto, alegando que a sentença ordenou o arresto de diversos bens da Requerida, designadamente dos saldos credores, depósitos a prazos e aplicações financeiras existentes nas contas bancárias junto do Banco, verificando-se que este Banco, em cumprimento do ordenado, efectuou o arresto de várias contas bancárias da Requerida no valor de € 7.603.237,00, ou seja, para garantia de um crédito de € 50.420,00 foram arrestados € 7.603.237,00 em dinheiro, para além de outros bens. Assim, existiria manifesta nulidade do arresto na parte em que o mesmo excedia o pedido.

Sucede que por despachos proferidos posteriormente à oposição deduzida, de fls. 364 e 375, a entidade bancária foi informada para manter o arresto das quantias depositadas apenas até ao limite de € 50.420,00, pelo que, a existir nulidade da decisão por tal motivo, a mesma tem de considerar-se sanada.

Mas insiste a Agravante por via do recurso que a questão não perdeu qualquer actualidade pois que a decisão, apesar de ter sido entretanto corrigida, é nula, pois como tal foi decretada, e foi tomada de acordo com pressupostos que se não verificavam e com fundamentos que inexistiam. Nessa medida, a nulidade inquinou-a, tendo a mesma que ser revogada e considerada nula.

Isto porque, em seu dizer, a Requerente, muito embora tenha vagamente alicerçado o seu pedido numa questão de responsabilidade civil extra-contratual - actos ilícitos alegadamente praticados pela Requerida - a verdade é que estão documentalmente provados factos contraditórios com a decisão de facto, designadamente estando documentalmente provado, através dos respectivos contratos, que a Requerente adquiriu filatelia à sociedade C, SA, tendo-se tornado sua proprietária. Assim, só com violação do artigo 393° do CC se pode declarar não terem sido ficado provados os factos constantes dos artigos 10 a 12 da oposição, ou seja, que “a Requerente da providência cautelar adquiriu valores filatélicos por intermédio da sociedade C (de valor e natureza decorrentes dos contratos celebrados), valores que são propriedade da Requerente, por os ter adquirido e que estão guardados, depositados e selados à guarda do Administrador Judicial nomeado no âmbito daquele processo judicial”.

Ora, antes de mais, estes factos alegados na oposição e que a Agravante diz que resultam dos contratos juntos aos autos, não decorrem efectivamente de tais documentos, sendo que sempre eram infirmáveis, ou colocáveis em dúvida, através do depoimento das testemunhas inquiridas, por serem documentos meramente particulares, pelo menos na parte que respeita à existência dos valores e da sua guarda e depósito à ordem do administrador judicial espanhol.

De todo o modo, este factualismo é irrelevante para o decretamento do arresto.

Isto porque o fundamento da providência é a responsabilidade civil extracontratual da Agravante e não a responsabilidade civil contratual da empresa espanhola sociedade C, SA.

E, na verdade, resultaram indiciariamente provados factos que apontam no sentido de tal responsabilidade se verificar.

Com efeito, está provado que a actividade exclusiva da ora Agravante consistia na captação de poupanças junto do público português, comercializando produtos equivalentes a depósitos a prazo, recebendo e promovendo a recepção pela sociedade C de dinheiro e outros fundos reembolsáveis do público.

Sucede que a Agravante ocultou da Agravada os traços distintivos do negócio da sociedade C e os riscos associados aos contratos, não informando a Agravada de modo claro, completo e adequado, levando a Agravada a crer no valor intrínseco dos activos subjacentes aos CIT (os selos) como garantia suficiente das suas aplicações financeiras.

Além disso a Agravante nas negociações e contactos que teve com a Agravada, supra descritos, sempre escondeu que a sociedade C., contraparte da Agravada nas aplicações financeiras comercializadas pela Agravante, apresentava um enorme défice patrimonial, o qual, em 2004, ou seja, antes da contratação dos CIT pela ora Requerente, já atingia, segundo estimativas da "Agencia Tributária" espanhola, € 1.105.916.800,00, não ignorando a Agravante tal situação ou, ao menos, não podendo ignorá-la.

Acresce que tanto quanto a Agravada sabe - e é do conhecimento público - a praticamente sócia única da aqui Agravante e sua "casa-mãe", sociedade C, com sede em Madrid, encontra-se insolvente e em situação de total e irrecuperável ruptura financeira. Sendo que esta situação económico-financeira da sociedade C, que a Agravante não podia nem devia ignorar, foi denunciada em Espanha pelo Ministério Fiscal, tendo culminado com a apresentação, no dia 21 de Abril de 2006, de "Querella" junto do "Juzgado Central de Instrucción Decano de 1.ª Audiência Nacional".

Ora, foi com fundamento nas condutas da Agravante que a Agravada veio alegar o seu crédito, por invocados danos patrimoniais e não patrimoniais, como decorre dos art.s 70º e ss. da p.i., ou seja, a Agravada fundamenta o seu direito a indemnização nas condutas ilícitas da Agravante, que as teria assumido bem sabendo que com elas iria causar prejuízos à Agravada.

Deste modo, não ocorre qualquer nulidade da decisão, quer por excesso de pronúncia, que a ter existido se mostra suprida, quer por alegadamente ter sido tomada de acordo com pressupostos que se não verificavam e com fundamentos que inexistiam, pois que, como se constata foi realizada prova de factos susceptíveis de justificar a responsabilidade da Agravante com base em conduta ilícita.

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c) Suscita a Agravante a questão de saber se o crédito da Agravada não tem a natureza jurídica, nem o valor declarados na p.i. se encontra vencido, nem é exigível e se não se verifica o “periculum in mora”.

Alega a Agravante que o crédito da Agravada decorre dos contratos e não de qualquer outra putativa acção, sendo, portanto, causa do direito reclamado actos da sociedade C, pelo que não tem nem a natureza jurídica nem o valor declarados na pi, nem se encontra vencido, nem é exigível, antes de decorrido o prazo contratual respectivo.

Acrescenta que, por outro lado, é público e notório que a filatelia adquirida está à guarda do Administrador Judicial nomeado no âmbito daquele processo judicial a correr termos em Madrid e que apenas pela intervenção do Tribunal, facto alheio à sua vontade, está a sociedade C impedida de proceder à entrega, nas datas em que a tal esteja obrigada, dos lotes de filatelia que estão guardados e são propriedade da Requerente.

Além de que, diz ainda, o património da empresa sociedade C nem sequer é transaccionável - e, portanto, nem se justifica a providência - porquanto os seus bens estão todos à guarda do Administrador Judicial, que naturalmente não lhes dará descaminho....e já estavam à data da sua decretação, não existindo, portanto, qualquer periculum in mora.

Ora, mais uma vez a Agravante, carece de razão.

Antes de mais e como decorre do que acima já se deixou expendido, o alegado crédito da Agravada não resulta directamente dos contratos firmados por esta com a sociedade C., mas sim das condutas ilícitas que a Agravada imputa à Agravante e de que efectuou prova indiciária bastante, condutas sem as quais aqueles contratos não teriam sido formalizados, nem teria havido a perda de valores para a Agravada.

Por outro lado, resulta do estatuído nos art.s 406º, n.º 1 e 407º, n.º 1, do Código de Processo Civil que o arresto deve ser decretado se, através do mecanismo sumário, próprio dos procedimentos cautelares, for de concluir pela probabilidade séria da existência do crédito e pelo receio da perda da garantia patrimonial.

Destina-se a providência de arresto a acautelar o “periculum in mora”, com vista à garantia de um crédito, que não necessita de ser certo e exigível, por declarado, mas tão-só que, a nível de uma indagação sumária, se verifique uma indiciária probabilidade ou verosimilhança da sua existência.

Para que seja legítimo o recurso a este meio conservatório da garantia patrimonial é necessário apenas que se verifique a aparência da existência de um direito e o perigo da insatisfação desse direito. Não é necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero “fumum boni juris”, ou seja, que o direito se apresente como verosímil. Também não é necessário que exista certeza de que a perda da garantia se vai tornar efectiva com a demora, bastando que se verifique um justo receio de tal perda vir a concretizar-se.

Deste modo, como se fez notar na decisão que recaiu sobre a oposição deduzida pela Agravante e tem sido entendimento pacífico, não tem relevância com vista ao decretamento do arresto que o crédito ainda não esteja vencido, nem que seja ilíquido, bastando que a sua existência se apresente como provável ou verosímil.

No caso dos autos o crédito da Agravada, por danos patrimoniais decorrentes dos valores investidos por esta nos contratos com a sociedade C, por força das condutas ilícitas da Agravante, e por danos não patrimoniais por as condutas da Agravante terem causado à Agravada perturbações no seu bem-estar, por se encontrar ansiosa e inquieta, mostra-se com probabilidade bastante para o decretamento da providência.

Por outro lado, é notório que existe o “periculum in mora”, pois que está provado que recentemente, a Agravante deixou de exercer a sua actividade e de auferir quaisquer receitas que possam suportar os respectivos custos, limitando-se a, quando solicitada, prestar informações, dando claramente a entender à aqui Agravada e demais clientes que os créditos decorrentes das respectivas aplicações financeiras não serão pagos.

Além disso, como bem salienta a Agravada, a sociedade C foi declarada insolvente e porque é sócia maioritária da Agravante pode a todo o momento deliberar a respectiva dissolução e liquidação, o que reforça a existência do “periculum in mora”.

Por isso, o arresto foi bem decretado e bem mantido após a oposição que a Agravante lhe moveu.

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d) Coloca, por último a Agravante, a questão de saber se ao caso se deve aplicar a lei espanhola, por a sociedade C se encontrar em situação de concurso necessário declarado por um tribunal de comércio espanhol.

Alega a Agravante que a sociedade C encontra-se em situação de concurso necessário declarada por um Tribunal do Comércio espanhol, motivo pelo qual, nos termos do art. 200 da Lei 22/2003, de 9 de Julho, “Concursal", e art. 3°, n° 1 do Regulamento C.E. n° 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio, é à lei espanhola que compete determinar os pressupostos e efeitos dos concursos declarados em Espanha, e, portanto, haverá que observar o que quanto à matéria disponha a Lei Concursal espanhola.

Também nesta parte a razão não está do lado da Agravante.

Como acima já ficou devidamente esclarecido, não há que confundir a responsabilidade da Agravante perante a Agravada pelas condutas que assumiu e que acima ficaram descritas com a responsabilidade da sociedade C, sociedade comercial de direito espanhol que não é parte nos presentes autos de arresto.

A Requerente destes autos, aqui Agravada, alegou factos que tornam provável a existência do seu crédito perante a Agravante, sociedade B, que é sociedade de responsabilidade limitada, de direito português, dotada de personalidade jurídica e, consequentemente, distinta da sociedade C, sociedade anónima de direito espanhol.

Assim sendo, e o contrário do que pretende a Agravante, não há lugar à aplicação da Ley Concursal espanhola - a Lei 22/2003, de 9 de Julho - assim como não é aplicável ao caso dos autos o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29.05.2000, respeitante aos processos de insolvência.

O facto de se verificar a pendência do processo de insolvência (concursal) da sociedade C, que, corre os seus termos no 6° Juzgado Mercantil de Madrid, não tem qualquer relevo no âmbito do presente processo, não havendo designadamente cabimento para que "os actos judiciais promovidos neste Tribunal devam ser suspensos, porquanto a legislação aplicável ao caso dos autos não é a concursal espanhola.

A lei aplicável ao caso dos autos, substantiva e processual, é a lei portuguesa e os tribunais competentes para dirimir o presente litígio são os tribunais portugueses, uma vez que o arresto decretado nos autos recai sobre o património da Agravante e não sobre o património da sociedade C.

Acresce que o princípio “par conditio creditorum”, invocado pela Agravante, que consagra o princípio do tratamento igualitário de todos os credores de um mesmo devedor, não tem aplicação ao caso dos autos, na medida em que o crédito invocado e garantido pelo presente procedimento cautelar de arresto é o crédito da Agravada sobre a Agravante e não o crédito da Agravada sobre a sociedade C, empresa declarada insolvente e com o seu património sujeito a concurso de credores.

Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.

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IV. DECISÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao agravo e confirma-se a decisão recorrida.

Custas nas instâncias pela Agravante.

Lisboa, 10 de Maio de 2007.

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES

FERNANDA ISABEL PEREIRA

MARIA MANUELA GOMES

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1Cf. Acs do STJ de 2.4.92, in BMJ 416/485; de 7.1.93, in BMJ 423/539 e de 25.2.93, in CJ, ACSTJ, 1993, I, 150.