Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1467/11.7IDLSB.L1-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDENAÇÃO EM PENA SUSPENSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – No domínio dos crimes tributários, o período de suspensão da pena de prisão, tal como acontece no Código Penal, tem uma duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.
II – O artigo 14.º, n.º 1, do RGIT deve ser interpretado conjugadamente com o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal, do que resulta que nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só pode ser imposto o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I – RELATÓRIO
1 – Os arguidos «B. ..., Lda.» e LM... foram julgados no 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Vedras e aí condenados, por sentença de 11 de Julho de 2013, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, conduta p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4, 5 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com referência aos artigos 27.º, n.º 1, e 41.º, n.º 1, alínea b), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, nas penas, respectivamente, de 500 dias de multa à taxa diária de 5 € e de 1 ano e 8 meses de prisão suspensa por igual período sob a condição de o arguido pagar no mesmo prazo as prestações em dívida e legais acréscimos.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:

1. A sociedade arguida B..., Lda. é uma sociedade comercial por quotas, cujo objecto social é o fabrico, produção, exportação, importação, comercialização, aluguer, reparação, manutenção de material de entretenimento e animação, bem como todas as actividades complementares e acessórias e a animação visual, a qual tem a sua sede na comarca de Torres Vedras, onde se encontra registada junto da Conservatória do Registo Comercial, com a matrícula n.º ... e com o capital social de 9.975,97 €.

2. As quotas da sociedade arguida pertencem ao arguido LM..., a JM... e à esposa deste último e mãe do primeiro, MM....

3. Desde a sua constituição e até à declaração de insolvência que a gerência da sociedade arguida foi exercida pelo arguido LM....

4. Enquanto gerente da sociedade arguida, competia ao arguido a prática dos actos adequados e necessários à administração da sociedade, nomeadamente assegurar a liquidação dos impostos devidos ao Estado.

5. A sociedade arguida, em termos de fiscalidade, está sujeita a IVA, no regime da apresentação de declarações com periodicidade mensal.

6. Assim, no âmbito da sua actividade comercial, a sociedade arguida cobrava, recebia e retinha o IVA das transacções comerciais que realizava com os seus diversos clientes, competindo-lhe, posteriormente, declarar e reembolsar, pontualmente, as quantias recebidas nos competentes Serviços de Finanças.

7. Efectivamente a sociedade arguida remeteu aos Serviços de Finanças as Declarações Periódicas do IVA, respeitante ao período relativo aos meses de Dezembro de 2009, Março, Abril, Maio, Junho e Setembro de 2010, reportando nas mesmas os valores apurados relativos a este tributo:

Período TributávelIVA apurado e exigível
Dezembro de 200935.682,68 €
Março de 201065.504,50 €
Abril de 201021.000,55 €
Maio de 20109.887,91 €
Junho de 201045.576,49 €
Setembro de 201018.139,09 €
Total199.791,22 €

8. Não obstante, a arguida não fez acompanhar as declarações acima referidas de qualquer meio de pagamento do imposto liquidado, não procedeu ao seu pagamento até ao 15.º dia do 2.º mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitam as operações sobre que incidiu esse imposto, como era sua obrigação, nem no prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legalmente estipulado para a entrega das prestações tributárias, referente ao período acima referido, e não liquidou o montante em falta, nem os respectivos juros, no prazo de 30 dias após a notificação efectuada para o efeito.

9. Os arguidos retiveram a quantia supra mencionada não desconhecendo que tal conduta lhes era proibida por lei e que, dessa forma, prejudicava o Estado, no valor exacto dos montantes não entregues.

10. Os arguidos agiram com o propósito concretizado de se apossarem dos montantes globais acima indicados, em proveito da sociedade e em cujo interesse e nome o arguido agia, não ignorando que os mesmos não lhes pertenciam e que a sua posição era a de assegurar, enquanto mera depositária, a sua detenção para ulterior entrega às Finanças, lesando, pois, dessa forma, patrimonialmente, o Estado.

11. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

12. Em sede de execução fiscal os arguidos procederam ao pagamento do valor global de 27.098,94 € (2.973,56 € relativo ao mês de Dezembro de 2009 e 24.125,38 € relativo ao mês de Março de 2010), pelo que o valor actualmente devido é de 172.692,28 €.

13. Para o auxiliar na gestão da sociedade arguida, o arguido contratou NC....

14. O arguido dedicava-se mais à parte criativa da sociedade.

15. O arguido não entregou as quantias à Fazenda Nacional devido a dificuldades económicas e financeiras da sociedade.

16. A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença de 21.05.2012, transitada em julgado, proferida no processo n.º 457/12.7TBTVD do 1.º Juízo deste Tribunal.

17. O arguido é escultor e aufere cerca de 500,00 €.

18. Vive sozinho.

19. O arguido tem dois filhos, com 13 anos, que vivem com a mãe.

20. O arguido encontra-se obrigado a pagar pensão de alimentos aos filhos no montante de 200,00 € para cada um.

21. O arguido não paga a pensão de alimentos há cerca de 5 meses.

22. Vive em casa arrendada, pagando 300,00 € de renda.

23. O arguido tem de habilitações literárias o 9.º ano.

24. Os arguidos foi julgado no Processo n.º 1223/09.2IDLSB, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal da Comarca de Torres Vedras, pela prática em 2009, do crime de abuso de confiança fiscal, tendo o arguido sido condenado, por sentença transitada em julgado em 2.07.2012, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na execução por igual período subordinado a regime de prova e a sociedade arguida na pena de 400 dias de multa, à taxa diária de 10,00 €, no total de 4.000,00 €.

2 – O arguido LM... interpôs recurso dessa sentença.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

1. Ora, com o devido respeito, achamos que o fundamento da sentença ora recorrida na parte da justificação do tempo concedido para a suspensão da pena de prisão – um ano e oito meses – subordinada ao pagamento da quantia em causa – 172.692,28€ assenta desde logo num erro, ou pelo menos numa especulação pouco credível quando falamos de "juízo de prognose".
2. Apesar de ter sido referido o juízo de prognose na douta sentença recorrida, este mesmo foi mal aplicado, pois não se teve em conta todos os encargos dados como provados que o recorrente tem de fazer face. Ora sustentou o Tribunal "a quo" a conclusão de:
3. "é certo que os rendimentos actuais do arguido dificilmente lhe permitirão o pagamento integral do montante em dívida. No entanto, não podemos ignorar a possibilidade da situação económica do arguido melhorar, permitindo-lhe efectuar o pagamento em causa".

4. Com todo o respeito, não nos parece ser isto um "juízo de prognose"...

5. Para o que aqui releva – juízo de prognose – não é que apenas que se refira o conteúdo do Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,
6. Mas que se faça efectivamente o mencionado juízo com "razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura"
7. Não nos parece que tenha sido feito... qual é a razoabilidade de afirmar que um Homem que aufere 500,00 € mensais, cuja empresa onde laborava anteriormente foi declarada insolvente, que paga renda de casa e alimentação, que tem dois filhos menores e que está há pelo menos cinco meses em falta com a pensão de alimentos dos filhos, consiga no espaço de um ano e oito meses, melhorar tanto que possa ser razoável efectuar à Administração Tributária o pagamento de 172.692,28€...

8. Atendendo à situação económica do arguido – devidamente provada nos autos e também à situação económica actual que vivemos na nossa sociedade,

9. Forçoso será dizer que é uma condição praticamente impossível de cumprir.

10. O arguido não conseguirá cumprir esta condição. E o Tribunal "a quo" bem sabe disso.

11. Mais, poder-se-á dizer que o artigo 14.º, n.º 2, do RGIT, acautela situações da falta desse mesmo pagamento,
12. Porém o perigo aqui é inverter o raciocínio, o que o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nos diz é que o juízo de prognose – sério – deverá ser feito na altura da aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, e não descansar porque ainda existe o n.º 2 do artigo 14.º do RGIT para eventualmente funcionar para uma ou outra situação mais complexa.
13. Uma circunstância não obsta à outra.

14. Nestes termos o ora recorrente não tem condições económicas – nem será seriamente expectável que tenha no futuro condições económica que lhe permitam amealhar 172.692,28€ num período de um ano e oito meses.

15. Com honestidade intelectual saberemos que estamos perante uma condição impossível de cumprir.

16. Assim sendo, não se fez a nosso entender a correcta interpretação do Douto Acórdão, pois que ele visa precisamente que se encontre um equilíbrio entre o cumprimento da pena com uma adequação às condições do agente, de forma a tornar justamente exequível a medida imposta no tempo de suspensão.

17. É que sendo certo que não se pode negar que as motivações essencialmente económicas que estão por detrás da prática destas infracções, aliadas ao tipo de agentes que as praticam e à natureza das próprias sanções e do sacrifício que visam impor não pode significar um violar dos interesses de defesa de direitos fundamentais, sob pena de o Estado se revelar totalmente desrespeitador do citado princípio da proporcionalidade.

18. Assim sendo, executando um justo "juízo de prognose" ao caso em concreto aliado ao disposto no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT deveria o Tribunal "a quo" ter concedido um prazo maior da suspensão da execução da pena de prisão, sob condição de proceder ao pagamento da quantia de € 172.692,28 à Administração Tributária, pelo período máximo de cinco anos.
19. Estes factos foram, na perspectiva do recorrente, incorrectamente julgados,
20. Os mesmos correctamente valorados impunham decisão diferente, face, inclusivamente à baliza estabelecida pelo próprio artigo 14.º, n.º 1, do RGIT.
21. Estamos perante uma condição quase impossível de alcançar.

22. O que é manifestamente desproporcional face à dicotomia funções da pena/direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados,

23. Violando assim o disposto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP e máxime artigo 25.º, n.º 1, da CRP.

Nestes termos, e pelo mui douto suprimento de V.s Excelências:

Deverá a douta decisão judicial ora recorrida ser substituída por uma outra que aplique a suspensão da execução da pena de prisão pelo período de cinco anos, sob condição de proceder ao pagamento da quantia de €172.692,28 à Administração Tributária, atendendo a um juízo de prognose justo e exequível face à situação económica do recorrente e do meio económico onde se encontra inserido.

3 – Este recurso foi admitido pelo despacho de fls. 653.

4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a procedência do recurso (fls. 660 a 663).

II – FUNDAMENTAÇÃO
5 – O recurso interposto de uma sentença abrange, em princípio, toda a decisão – artigo 402.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Admite, porém, a lei que o recorrente limite o recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas – artigo 403.º, n.º 1, do mesmo diploma.
No caso, o arguido restringiu o recurso que interpôs à questão da escolha e determinação da sanção, o que é legalmente admissível – alínea d) do n.º 2 do citado artigo 403.º do Código.
Por isso, os poderes de cognição deste tribunal encontram-se limitados a essa parte da decisão, a qual constituirá o exclusivo objecto da apreciação que a seguir se fará.

6 – O arguido, como se disse, foi condenado na pena de 1 ano e 8 meses de prisão suspensa por igual período, tendo-lhe sido imposto o dever de, no prazo da suspensão, pagar ao Estado Português o remanescente da quantia que oportunamente não entregou, num total de 172.692,28 €, e legais acréscimos.
Pretende o recorrente que este tribunal fixe o prazo da suspensão da pena e o do cumprimento da obrigação imposta em 5 anos uma vez que afirma não ter qualquer possibilidade de cumprir essa obrigação no prazo estabelecido.
Para a apreciação dessa pretensão, importa, antes do mais, saber se ela é admitida pela lei actual.

7 – O Código Penal, na redacção vigente na data da entrada em vigor do RGIT[i], aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, admitia que a pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos fosse suspensa por um período de 1 a 5 anos a contar da data do trânsito em julgado da decisão se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, fosse de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, do Código Penal.
Essa suspensão podia ficar subordinada ao cumprimento de deveres, à observância de regras de conduta ou a regime de prova – n.º 2 do mesmo preceito legal.
Entre os deveres que podiam ser impostos contava-se o de pagar dentro de certo prazo, no todo ou em parte, a indemnização devida ao lesado – alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º do Código Penal –, não podendo os deveres impostos representar, em caso algum, obrigações cujo cumprimento não fosse razoável exigir ao condenado.
O RGIT, ao qual era aplicável subsidiariamente o Código Penal – alínea a) do artigo 3.º –, continha, no seu artigo 14.º, disposições especiais quanto à suspensão da execução da pena de prisão. Aí se previa que essa suspensão fosse sempre condicionada, sendo esse o caso, ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária em dívida e dos acréscimos legais. Também previa as consequências do não pagamento dessas quantias, entre as quais se contava a revogação da suspensão da pena de prisão.

8 – Acontece que, posteriormente à entrada em vigor do RGIT, a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, introduziu significativas alterações nas disposições legais que regulavam o instituto da suspensão da pena de prisão sem que tenha alterado simultaneamente as disposições que se encontravam previstas naquele outro diploma.
O tribunal passou a poder suspender a execução de penas de prisão até 5 anos e o concreto período de suspensão passou a ter uma duração pré-estabelecida legalmente – artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, da nova redacção do Código Penal –, sendo esta igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano. O prazo de suspensão continuou, portanto, a variar entre 1 e 5 anos mas a sua duração concreta deixou de ser fixada autonomamente pelo juiz, passando a resultar da medida da prisão imposta.

9 – Traçado este breve panorama dos normativos legais aplicáveis ao caso, importa resolver as questões que ele suscita, sendo certo que, dado tratar-se de um recurso interposto exclusivamente pelo arguido, nunca a solução final poderá ser a da agravação da pena imposta pela 1.ª instância[ii].
A primeira questão que se coloca é a de saber se, no domínio dos crimes tributários, a suspensão da pena de prisão tem necessariamente uma duração igual à da pena privativa de liberdade determinada na sentença, como ocorre no direito penal comum, ou se pode o período da suspensão ser fixado sem que exista coincidência com a duração da prisão imposta, como acontecia antes das alterações do Código Penal introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
Temos para nós que, também nos crimes tributários, a suspensão da pena de prisão tem necessariamente uma duração igual à da pena privativa de liberdade determinada na sentença. Esta conclusão deriva da seguinte ordem de razões:
- O RGIT não contém qualquer norma que estabeleça o prazo de suspensão da pena de prisão, limitando-se a prever, no seu artigo 14.º, um prazo de pagamento da prestação tributária e dos acréscimos legais devidos;
- O Código Penal aplica-se subsidiariamente aos crimes tributários – artigo 3.º, alínea a), do RGIT;
- A partir da entrada em vigor da redacção dada ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o período de suspensão tem uma duração igual à da pena de prisão determinada na sentença – artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal –, tendo deixado de vigorar qualquer norma geral que preveja que a suspensão pode ser fixada sem que o prazo concreto esteja directamente dependente da medida da pena imposta;
- Não existe qualquer conflito entre o prazo de pagamento da prestação tributária e dos acréscimos legais – até 5 anos – e o prazo previsto no Código Penal para a suspensão da pena – entre 1 e 5 anos –, podendo aquele ser fixado até ao termo da suspensão da pena.
Por isso, entendemos que também no domínio dos crimes tributários «o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão».
Significa isto, a nosso ver, que, contrariamente à pretensão do recorrente, o prazo de suspensão da pena de 1 ano e 8 meses de prisão não pode ser de 5 anos.

10 – A segunda questão que importa apreciar e resolver é a de saber se essa suspensão tem de ser condicionada ao pagamento nesse prazo da mencionada quantia ao Estado Português, como à primeira vista parece resultar do n.º 1 do artigo 14.º do RGIT.
A este propósito é bom lembrar que o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão n.º 8/2012, fixou jurisprudência no sentido de que «[n]o processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia».
Ora, da formulação de um tal juízo de prognose[iii] pode resultar a conclusão de que o arguido não tem qualquer possibilidade de, no prazo estabelecido legalmente, cumprir o dever que lhe é imposto por não ter, nem ter expectativas de vir a ter, meios financeiros que o permitam[iv].
Nessa situação, a imposição de um tal dever representaria para o condenado uma obrigação cujo cumprimento não seria razoavelmente de exigir, o que contrariaria o disposto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal[v].
Daí que, a nosso ver, se deva interpretar conjugadamente o mencionado artigo 14.º, n.º 1, do RGIT e o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal, do que resulta que nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só pode ser imposto o dever de pagamento quando do juízo de prognose realizado resulte existirem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.
No caso em apreço, tendo em conta o montante da dívida, a profissão do arguido, o valor da sua remuneração, o montante dos seus encargos fixos e o facto de não ser conhecida a titularidade de qualquer bem de fortuna, não se pode exigir que o recorrente pague no prazo para o efeito estabelecido a quantia em dívida e os legais acréscimos ou mesmo uma pequena parte dela.
Daí que se conclua que, neste caso, a suspensão da execução da pena não deve ficar condicionada ao pagamento dos montantes em dívida à Fazenda Nacional.
Isto não significa obviamente que a Administração Tributária não possa e não deva, se vierem a ser conhecidos bens susceptíveis de penhora, instaurar execução contra este devedor para obter dele o pagamento das quantias em dívida.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido LM..., deixando a pena de prisão suspensa que lhe foi imposta de estar sujeita ao cumprimento do dever de pagamento da quantia em dívida à Fazenda Nacional e dos acréscimos legais e mantendo, em tudo o mais, a decisão recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2014
Carlos Rodrigues de Almeida
 Vasco de Freitas


[i] No dia 5 de Julho de 2001, o Código Penal tinha a redacção que lhe tinha sido conferida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, alterado pelas Leis n.ºs 65/98, de 2 de Setembro, e 7/2000, de 27 de Maio.
[ii] Uma vez que se violaria a proibição de “reformatio in pejus” estabelecida pelo artigo 409.º do Código de Processo Penal.
[iii] Que, a nosso ver, a 1.ª instância fez, embora não tenha extraído dela as conclusões que se impunham.
[iv] E não é essa conclusão que pode alterar o juízo que se fez no momento em que, nos termos do artigo 70.º do Código Penal, se ponderou sobre a aplicação das penas privativa ou não privativa da liberdade e se entendeu que só a primeira realizava de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
[v] Note-se que o incumprimento de uma obrigação eventualmente imposta, por não ser nesse caso culposo, nunca poderia conduzir ao reforço das obrigações anteriormente estabelecidas e, muito menos, poderia justificar a revogação da suspensão da pena de prisão. Tratar-se-ia da imposição de uma obrigação mais aparente do que real.