Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
68/18.3JELSB-A.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: INQUÉRITO
COMPETÊNCIA
MINISTÉRIO PÚBLICO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A garantia constitucional do acesso a um processo justo e equitativo consagrada no artº 20º nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, densifica-se em várias regras de que se destacam o direito à igualdade de armas e de tratamento, no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias, a proibição da indefesa e a garantia do direito ao contraditório, o direito à fundamentação das decisões, o direito à decisão em prazo razoável, o direito de conhecimento dos dados do processo, o direito à prova e o direito a um processo orientado para a prossecução da justiça material.
Neste equilíbrio nem sempre fácil de conseguir, parece que a melhor solução para o assegurar será o de considerar que, enquanto durar o inquérito, tanto o Ministério Público, como o Juiz de instrução criminal têm competência para declarar nulidades ou irregularidades de actos processuais, desde que estes se integrem, nas respetivas esferas de competências.
Assim, quando estejam em causa, actos da competência reservada do Juiz de instrução criminal – os que devam ser por ele praticados, previstos no art. 268º do CPP e os que devam ser por ele autorizados, enumerados no art. 269º do CPP, a arguição de nulidades ou irregularidades carece da apreciação e decisão judiciais.
Fora, deste contexto, o juiz de instrução criminal não é hierarquicamente competente para anular despachos do MP, embora tenha o poder/dever de aferir se as questões que vão sendo suscitadas no decurso do inquérito colidem ou não com direitos fundamentais dos sujeitos processuais envolvidos, atento o seu papel garantístico e a circunstância de a enumeração de actos da sua competência exclusiva contida nos citados arts. 268º e 269º do CPP não ser taxativa, não ficando, pois, vinculado a qualquer juízo que haja sido feito pelo Mº. Pº. nessa matéria.
Em contrapartida, tratando-se de acto respeitante ao inquérito, cuja direção cabe exclusivamente ao Mº Público (artº 219º da CRP), fora do âmbito das competências acometidas ao JIC, terá de ser o Mº. Pº., a decidir se, no decurso desta fase, um acto processual é ou não é inexistente, nulo ou irregular, e desse despacho caberá então reclamação para o respetivo superior hierárquico que decidirá de forma definitiva, para a fase do inquérito, mas sem prejuízo da sua reapreciação judicial, nas fases seguintes do processo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO 
Por despacho proferido em 28 de Abril de 2021, no inquérito nº 68/18.3JELSB no Tribunal Central de Instrução Criminal, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi decidido não conhecer da nulidade invocada por DGD _____ do indeferimento da consulta do inquérito em causa, decidido pelo Mº. Pº.
DGD _____ interpôs recurso desta decisão, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
1. O recorrente, nos termos do nº 1 do artigo 90º do CPP, solicitou a consulta dos presentes autos, justificando o porquê de entender ser parte com interesse legítimo.
2. O Mº. Pº., ainda assim, indeferiu por entender não haver interesse legítimo.
3. O recorrente arguiu a nulidade perante o JIC, que entendeu não conhecê-la por ser competência do superior hierárquico do MP.
 4. Se é certo que no decurso de inquérito, a autoridade competente que promove e detém a acção penal é o MP, não menos certo é que, em matéria de direitos fundamentais do arguido o JIC tem competência para sobre tal decidir.
5. Neste sentido, o recente Acórdão do TC nº 121/2021, entre outros, como o Acórdão do TRL no Processo 333/14.9TELSB-3.
6. Entenda-se, aqui é importante aferir se estão em causa direitos fundamentais ou não e, por isso, paralelamente, dever-se-á ter isso em consideração.
7. É nosso profundo entendimento de que em causa estão direitos fundamentais do arguido, constitucionalmente consagrados, e, por isso, deverá um JIC avaliar a legalidade dos actos do MP.
8. Quando o arguido pediu acesso aos presentes autos, fê-lo com conhecimento próprio e convicção plena de que há elementos que estão ligados ao processo à ordem do qual está preso.
9. O arguido encontra-se privado da liberdade e tem efectivamente conhecimento que nos presentes autos há elementos importantes à sua defesa, independentemente de o arguido ter sido, ou não, visado na investigação.
10. Factos esses que têm uma implicação e importância no processo ao qual se encontra privado da liberdade, sendo essa consulta uma pedra basilar para a sua defesa, elementos esses que são necessários e imprescindíveis para se defender.
11. E o direito à defesa é um direito constitucionalmente consagrado no artigo 32º n.º 5 da CRP. 
12. O artigo 90º nº 1 do CPP, exige um interesse legítimo que é inevitavelmente subjectivo, no caso, sendo que a motivação que entendemos haver pode não ser sufragada pelo Ministério Público mas em nada abala a nossa motivação, não lhe cabendo essa injusta aferição.
13. É óbvio que estamos perante um direito fundamental do arguido, estando a limitar-se e a comprimir de forma cabal e intolerável este direito fundamental, motivo pelo qual deverá o JIC conhecer acerca da nulidade invocada.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou a sua resposta, na qual concluiu:  1.0 recorrente DGD___   não foi constituído arguido nestes autos e o seu nome em lado algum é mencionado no processo. 
2. O recorrente não invocou ao Ministério Público os motivos porque alegadamente teria interesse legítimo na consulta do processo, limitando-se a afirmar, sem mais, e sua existência por se mostrar em estreita ligação com o processo onde foi condenado.
3. A pretensa ligação entre o presente processo e o processo no qual foi constituído arguido e condenado em pena de prisão não existe, pelo que o MP só poderia indeferir a consulta dos autos, requerida ao abrigo do disposto no art.° 90.°, n.° 1 do CPP, por não se verificar interesse legítimo na consulta.
4. O indeferimento da consulta do processo não viola quaisquer direitos de defesa do ora recorrente, pois este não é (foi) arguido nos presentes autos, mas sim noutro processo, no qual foi condenado em pena de prisão já transitada em julgado.
5. Se pretende defender-se, deveria fazê-lo no processo onde foi julgado e condenado, onde pode exercer todos os seus direitos, e não num processo que em nada lhe diz respeito.
6. Entende o MP que o recorrente não tem o direito, só porque sim, de consultar processo-crime que não o visou como suspeito, nem, por essa via, de saber que pessoas foram ali investigadas e que meios de prova foram ali obtidos.
7. E também por isso defende o MP que a não permissão para consulta dos autos não contende com qualquer das faculdades integrantes dos direitos de liberdade constitucionalmente consagrados.
8. Bem andou o Mm.° JIC, no despacho recorrido, em não conhecer da pretensão do recorrente por esta dever ser apreciada pelo superior hierárquico do magistrado do MP que indeferiu a requerida consulta.
9. O JIC não está habilitado à prática do acto pretendido pelo recorrente (a consulta do inquérito), porque é um acto da competência exclusiva do MP, entidade que, como se refere no n.° 1 do art.° 90.° do CPP, decide o pedido, por ser a autoridade judiciária que preside à fase em que se encontra o processo e nele proferiu a última decisão.
10. Os limites funcionais dos actos do MP foram balizados com a atribuição de alguns actos à competência reservada do JIC, na sua qualidade de juiz das liberdades, ali não se incluindo a autorização para consulta do inquérito.
11. Aliás, em nenhum local do CPP se encontra prevista como competência reservada do JIC a questão das invalidades processuais em sede de inquérito. Só lhe competem as que se relacionam com os actos da sua competência reservada em sede de inquérito.
12. A apreciação sobre a validade do decidido pelo MP no inquérito mostra-se desenquadrada da atividade legalmente atribuída ao juiz de instrução criminal nesta fase processual.
13. E se compete ao MP apreciar e declarar a nulidade dos actos praticados no inquérito, consequentemente é ao MP que compete apreciar da pretensa nulidade do indeferimento da consulta do inquérito.
14. Por isso se defende que a arguição de nulidades do inquérito deve ser suscitada perante o Ministério Público, entidade que preside a essa fase processual, com eventual reclamação para o superior hierárquico. Do despacho do Ministério Público (seja do inicial, seja do despacho do superior hierárquico) não cabe reclamação para o juiz, nem recurso para o tribunal superior.
15. Assim, a intervenção jurisdicional na fase de inquérito é contida, funcionando o JIC como um juiz das liberdades e não como um fiscal da legalidade dos actos da estrita competência do MP, agindo como uma instância de recurso que não é.
16. Sobre a questão colocada pelo recorrente (e não apreciada no citado Acórdão do Tribunal Constitucional) já se respondeu anteriormente, no sentido de se defender que não está em causa um acto em concreto que afecte direitos fundamentais do arguido neste processo (onde nem sequer o recorrente é arguido) e que, mesmo em relação aos actos determinados pelo MP no inquérito que afectem direitos, liberdades e garantias dos visados/suspeitos/arguidos, o JIC apenas deverá intervir nos casos expressamente previstos no CPP, o que não é o caso da situação em apreciação.
17. O Código de Processo Penal é "verdadeiro direito constitucional aplicado", sendo que a concreta regulamentação de singulares problemas processuais deve ser conformada jurídico-constitucionalmente e a indeferida consulta dos autos pelo MP não configura qualquer nulidade expressamente prevista no CPP.
18. Nenhuma violação legal foi cometida pelo Mm.° JIC ao proferir o despacho recorrido, contrariamente ao sustentado pelo recorrente.
Razões pelas quais se entende que o recurso não merece provimento, devendo ser julgado totalmente improcedente, por não ter sido violada qualquer norma legal imperativa que possa ter como efeito a revogação do douto despacho recorrido.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso e consequente confirmação da decisão recorrida, aderindo à reposta apresentada pelo Mº.Pº.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, o recorrente manteve toda a argumentação e as conclusões expostas no recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, nos termos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.        
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objecto do recurso e identificação das questões a decidir:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de  apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, a única questão que compete apreciar é saber se o Mmo. Juiz de Instrução Criminal devia ter apreciado a nulidade suscitada pelo recorrente, contra a decisão do Mº. Pº. que lhe indeferiu o pedido de consulta do processo.
2.2. Fundamentação de Facto
Junto do DCIAP, o ora requerente, que é arguido em um outro processo, 89/18.6JELSB, que correu termos no Juízo Central Criminal de Lisboa - J24, nos termos do nºs 1 do artigo 90º do Código de Processo Penal, requereu, em 1 de Março de 2021 ao Mº. Pº. a consulta dos presentes autos, com o seguinte teor:
Exmo. Senhor Procurador junto do DCIAP
DGD___   , arguido no processo 89/18.6JELSB, que correu termos no Juízo Central Criminal de Lisboa - J 24, parte com Interesse legítimo nos presentes autos, por se mostrarem ambos os processos com estreita ligação entre si, vem, respeitosa mente, requerer a V, Exa., nos termos do nº 1 do artigo 90º do Código de Processo Penal, a consulta do mesmo.
O Magistrado do Mº. Pº. titular do inquérito, pronunciou-se sobre este requerimento, nos seguintes termos:
Requerimento de fls. 525:
DGD _____ , arguido no processo nº 89/18.6JELSB, invocando ter interesse legítimo nos presentes autos, por se mostrarem ambos os processos com estreita ligação entre si, vem requerer a consulta dos mesmos, ao abrigo do disposto no art. 90º, nº 1 do CPP.
Consultados os autos, que se encontram arquivados, verifica-se que não existe qualquer referência ao referido arguido DGD _____ , o qual não foi, assim, visado na investigação.
Ou seja, não existe, ao contrário do alegado no requerimento, ligação entre os factos aqui investigados e os que foram investigados no referido processo nº 89/18.6JELSB.
É do conhecimento do signatário que apenas no âmbito da Acção Encoberta (AE) com o NUIPC 91/18.8TELSB se fazia referência à actuação criminosa em Portugal do referido DGD _____ , mas todos os elementos em causa foram remetidos ao processo nº 89/18.6JELSB aquando da realização da audiência de julgamento nos juízos centrais criminais de Lisboa, após solicitação nesse sentido, sendo que a situação em causa, logo que detectada na AE, deu origem à instauração desse processo autónomo porque a mesma em nada se relacionava com a investigada que decorria neste processo nº 68/18.3JELSB.
Pelo que, atento o supra exposto, indefiro a requerida consulta.
Notifique.
Nessa sequência, o recorrente arguiu uma nulidade perante o Exmo. Sr. Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, o que o fez nos seguintes termos:
Por estar em causa a violação de direitos fundamentais do arguido, argui-se a nulidade do referido despacho do Ministério Público perante um Juiz de Direito, por violação directa de normas de natureza constitucional, com aplicação directa - artigos 18º nº 1 e 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
Estão em causa os direitos de defesa do arguido, nomeadamente o princípio do contraditório, previsto no artigo 32º nº 5da Constituição da República Portuguesa.
O arguido encontra-se preso à ordem do Processo nº 89/18.6JELSB e tem efectivamente conhecimento que nos presentes autos há elementos que estão ligados àquele processo, independentemente de o arguido ter sido, ou não, visado na investigação.
Algum tipo de ligação factual não implica necessariamente que haja envolvimento directo do arguido mas pode, sim, implicar importância no cômputo dos factos implícitos no processo - que é o caso.
Elementos esses que o arguido entende serem necessários à sua defesa, e por isso imprescindíveis, o que leva à necessidade da consulta dos presentes autos, conforme se referiu no requerimento de consulta.
É facto que o único critério para aferir da pretensão de terceiros para aceder à consulta de processo, nos termos o artigo 90º nº 1 do Código de Processo Penal, é o da existência de interesse legítimo por parte do requerente, que o deve alegar e provar.
E, assim, o interesse legítimo é inevitavelmente subjectivo, sendo que a motivação que entendemos haver pode não ser sufragada por quem aprecia, e não obstante isso, não deixar de nos assistir razão.
O que entendemos ser o caso.
Pode entender o Ministério Público não haver interesse legítimo mas, atente-se, o facto de ser o próprio a admitir ter conhecimento sobre haver mais que um processo envolvido nos factos em causa que envolve, nomeadamente, Acções Encobertas, é ao arguido que cabe saber que factos entende serem pertinentes e essenciais à sua defesa.
Não é ao Ministério Público que cabe tal aferição.
Não lhe sendo concedido acesso aos presentes autos, está a limitar-se e a comprimir de forma cabal e intolerável o direito de defesa e contraditório do arguido ora requerente.
Assim, o despacho em causa está ferido de nulidade por incumprimento do princípio do contraditório, com aplicação directa, nos termos dos artigo 18º nºs 1 e 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
Foi sobre este requerimento que se pronunciou a decisão recorrida, a qual tem o seguinte conteúdo:
Fls. 534 a 535, com referência a fls. 531 a 533 - Veio DGD___   , a douto punho, arguir a nulidade do despacho proferido pelo M.° P.° a fls. 527 a 528, nos termos e com os fundamentos constantes do seu requerimento, que aqui se dá por reproduzido, por mera economia processual.
O detentor da acção penal pronunciou-se nos seguintes termos:
«Uma vez que vem dirigido ao Mm.° JIC junto do TCIC, remeta os autos a este Tribunal para apreciação do requerido a fls. 531/533.
Por requerimento a fls. 525 DGD _____ , arguido no processo n° 89/18.6JELSB, invocando ter interesse legítimo nos presentes autos e alegando que ambos os processos revelam estreita ligação entre si, veio requerer a consulta dos mesmos, ao abrigo do disposto no art. 90°, n° 1 do CPP.
O presente processo foi arquivado por despacho de fls. 379ss.
O requerente não provou o referido interesse legítimo, limitando-se a alegá-lo.
Por despacho do Ministério Público de fls. 527, que, por ser a autoridade judiciária que preside à fase em que se encontra o processo (cfr. parte final do n° 1 do referido art.° 90°), apreciou aquele requerimento, foi decidido, por nestes autos não existir qualquer referência ao referido arguido DGD _____ , que não foi, assim, visado na investigação, e, ao contrário do alegado no requerimento, não existir ligação entre os factos aqui investigados e os que foram investigados no referido processo n° 89/18.6JELSB, indeferir a requerida consulta.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque in "Comentário do Código de Processo Penal" - art.° 90°, "O despacho do Ministério Público de rejeição de acesso aos autos não pode ser sindicado pelo juiz (como pretende o requerente), pois este não tem o poder de direcção do inquérito (...). O requerente só pode reagir contra a rejeição do requerimento pelo Ministério Público, submetendo a questão ao superior hierárquico do magistrado do Ministério Público, por intermédio de reclamação hierárquica".
Pelo que, o presente requerimento de fls. 531/533, dirigido ao Mm° JIC do TCIC, não deve ser apreciado por este.
De todo o modo, sempre se dirá que não existe qualquer violação dos invocados preceitos constitucionais, pois, como sabemos, o Código de Processo Penal é "verdadeiro direito constitucional aplicado", sendo que a concreta regulamentação de singulares problemas processuais deve ser conformada jurídico-constitucionalmente (ver, entre outros, Maria João Antunes, "Direito penal, direito processual penal e direito da execução das sanções privativas da liberdade e jurisprudência constitucional" in Revista Julgar, n° 21), e a indeferida consulta dos autos pelo MP não configura qualquer nulidade expressamente prevista no CPP.» (sic).
Cumpre apreciar e decidir:
Veio o ora requerente DGD___   , reagir contra o despacho do titular da acção penal que indeferiu o seu pedido de acesso aos autos, arguindo a nulidade de tal despacho.
Porém, corrobora-se o entendimento sancionado pelo detentor da acção penal de que o requerente deveria e só poderia ter reagido contra a rejeição do requerimento pelo Ministério Público, submetendo a questão ao superior hierárquico do magistrado do Ministério Público, por intermédio de reclamação hierárquica, aliás como ensina Paulo Pinto de Albuquerque in "Comentário do Código de Processo Penal" - art.° 90°, já supra citado.
Pelo que, concordando, com o doutamente promovido pelo detentor da acção penal supra transcrito, decide-se não conhecer das nulidades invocadas.
Notifique.
D.N.
Após, devolva os autos ao DCIAP.
2.3. Apreciação do Mérito do Recurso
Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 53º nº 2 al. b), 262º nº 1 e 267º do CPP, o inquérito é uma fase preliminar do processo, que tem por finalidades a investigação da ocorrência de factos que constituam crimes, o apuramento da identidade dos seus autores e da sua responsabilidade, bem como descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
É ao Mº. Pº. que compete a respectiva direcção e a decisão sobre a acusação ou o arquivamento, com autonomia, nos termos do art. 263º do CPP e do art. 219º da CRP.
A actividade de recolha da prova e apuramento dos factos que é desenvolvida durante o inquérito e certos actos com ela conexionados apenas requer a intervenção de um Juiz de instrução criminal quanto estejam em causa, direitos, liberdades e garantias dos sujeitos processuais, ou outros actos que envolvam a aplicação de critérios estritamente jurisdicionais, como é o caso da admissão da constituição de alguém como assistente ou do juízo de concordância ou discordância em tema de suspensão provisória do processo.
Com efeito, o art. 17º do CPP atribui ao juiz de instrução criminal a competência para praticar todos os actos que consubstanciem o exercício de funções jurisdicionais relativas ao inquérito (artigo 17º do Código de Processo Penal).
Esses actos encontram-se enumerados, de forma geral nos artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal), além de outros, previstos em outras normas do CPP, como é o caso das insertas nos arts. 68º nº 4 ou artigo 281º nº 1.
A direcção do inquérito com autonomia atribuída ao Mº. Pº., mas balanceada com o controle jurisdicional a cargo do juiz de instrução criminal, para determinados efeitos, durante essa fase preliminar não é mais, nem menos, do que uma das manifestações da estrutura acusatória do processo e um corolário do princípio constitucional do processo justo e equitativo.
 A estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente consagrada no art. 32º nº 5 da CRP, envolve a proibição da realização de julgamento pela prática de crime sem precedência de acusação por esse crime, a exigência de que a acusação seja deduzida por órgão distinto do julgador e a atribuição à acusação das funções de condição e limite do julgamento, concretamente, a fixação do objecto do processo e a definição vinculativa do âmbito dos poderes de cognição e decisão do tribunal (Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, p. 522 e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora Lda., 1984 – reimpressão -, pp. 136, 137 e 144). 
Em complemento, o princípio constitucional da plenitude das garantias de defesa, a que se refere o art. 32º n.º 1 da Constituição, postula a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos cuja autoria lhe é atribuída, para que os possa rebater, apresentado provas, prestando declarações, em suma, organizando a sua defesa.
Mas o contraditório não é um princípio absoluto:
E, no confronto com o inquisitório que vigora, no decurso do inquérito, implica que as garantias de defesa do arguido, o direito a contraditar as provas, não significa acompanhar em tempo real a investigação, pois não é Mº. Pº., nem OPC. De resto, nem sequer tem direitos de ingerência nessa investigação, ou de colocar em crise a relevância das diligências probatórias efectuadas ou a importância dos resultados das mesmas, enquanto dura o inquérito, pois para isso é que serve a instrução.
O princípio acusatório e o reconhecimento do direito de contraditoriedade tem, pois, o sentido de assegurar ao arguido a possibilidade de, nas fases ulteriores do processo, contrabater as razões e as provas que tenham sido contra ele coligidas e tomar também iniciativas instrutórias e de realização de prova que considerar pertinentes.
Simplesmente, esse direito ao contraditório só existe em relação às provas em que se alicerça a acusação, pois também só são essas as que podem ser analisadas pelo juiz de instrução, para efeito de emitir o despacho de pronúncia, e levadas a julgamento, sendo só nelas que se pode fundar a condenação do réu, se as mesmas se produzirem com a mesma amplitude e conteúdo que trazem da fase anterior. 
É só em relação a essas provas – e não a quaisquer outras que o Mº. Pº e o OPC tenham considerado irrelevantes ou não tenham, por qualquer outra razão, indicado na acusação -, que o arguido poderá responder, alegando as razões que fragilizam os resultados probatórios ou indicando outras provas que possam pôr em dúvida ou infirmar o sentido da prova indicada pelo Mº. Pº.
É o exercício desse direito, nas fases processuais subsequentes à investigação, que permite justamente equilibrar a posição jurídica da defesa em relação à acusação e dar cumprimento ao princípio da igualdade das armas. E esse é que é o sentido do princípio do acusatório que decorre do disposto no artigo 32º nº 5 da Constituição.
A garantia constitucional do acesso a um processo justo e equitativo consagrada no art. 20º nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, densifica-se em várias regras de que se destacam o direito à igualdade de armas e de tratamento, no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; a proibição da indefesa e o direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras e, em geral, em condições de igualdade e ao longo de todo o processo, influenciarem as decisões a proferir, quanto aos factos e quanto à aplicação do direito, por forma a que nenhuma decisão seja tomada pelo tribunal sem prévia possibilidade de os intervenientes no processo a discutirem, contestarem e valorarem, o direito a prazos razoáveis de acção e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiado exíguos; o direito à fundamentação das decisões; o direito à decisão em prazo razoável; o direito de conhecimento dos dados do processo; o direito à prova e o direito a um processo orientado para a prossecução da justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 415 e 416, do vol. I, da 4.ª edição, da Coimbra Editora. No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, «A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito processual civil», XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2008, p. 72; Guilherme Fonseca, «A defesa dos direitos - princípio geral da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais», Boletim do Ministério da Justiça, n.º 344, 1985, p. 38; Lopes do Rego, «Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil», Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, p. 835 e Lopes do Rego, «Acesso ao direito e aos tribunais», Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas, 1993, p. 44; id., «O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil», Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. i, pp. 745 e 747; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 353/2008, 301/2009, 286/2011, 350/2012, 90/2013, 778/2014, 510/2015, 193/2016, 251/2017 e 675/2018, in https://www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, neste equilíbrio nem sempre fácil de conseguir, parece que a melhor solução para o assegurar será o de considerar que, enquanto durar o inquérito, tanto o Ministério Público, como o Juiz de instrução criminal têm competência para declarar nulidades ou irregularidades de actos processuais, desde que estes se integrem, nas respectivas esferas de competências.
Assim, quando estejam em causa, actos da competência reservada do Juiz de instrução criminal – os que devam ser por ele praticados, previstos no art. 268º do CPP e os que devam ser por ele autorizados, enumerados no art. 269º do CPP, a arguição de nulidades ou irregularidades carece da apreciação e decisão judiciais.
Fora, deste contexto, o juiz de instrução criminal não é hierarquicamente competente para anular despachos do MP, embora tenha o poder/dever de aferir se as questões que vão sendo suscitadas no decurso do inquérito colidem ou não com direitos fundamentais dos sujeitos processuais envolvidos, atento o seu papel garantístico e a circunstância de a enumeração de actos da sua competência exclusiva contida nos citados arts. 268º e 269º do CPP não ser taxativa, não ficando, pois, vinculado a qualquer juízo que haja sido feito pelo Mº. Pº. nessa matéria.
Em contrapartida, tratando-se de acto respeitante ao inquérito, cuja direção cabe exclusivamente ao Mº Público (art. 219º da CRP), fora do âmbito das competências acometidas ao JIC, terá de ser o Mº. Pº., a decidir se, no decurso desta fase, um acto processual é ou não é inexistente, nulo ou irregular, e desse despacho caberá então reclamação para o respetivo superior hierárquico que decidirá de forma definitiva, para a fase do inquérito, mas sem prejuízo da sua reapreciação judicial, nas fases seguintes do processo.
«(…) Durante o inquérito o MP e o juiz de instrução têm ambos competência para declarar um acto processual inexistente, nulo ou irregular ou uma prova proibida. Esta solução é imposta pela conjugação de dois princípios estruturantes do processo penal: o princípio da legalidade e o princípio da estrutura acusatória do processo penal (…) Contudo, esta concorrência concorrente tem limites e eles resultam da estrutura acusatória do processo penal. Esta estrutura implica uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito. Assim, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade dos actos da sua competência e o magistrado do MP só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência, nestes se incluindo actos investigatórios» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edª., anotação 5 ao artº 118º, pág. 299).
«(…) A metodologia funcional da Constituição da República Portuguesa não acolheu tal conceito material de jurisdição. Portanto ao MP compete conhecer e apreciar as nulidades em fase de Inquérito, (…) contudo esta decisão do MP, sendo definitiva na sequência procedimental do Inquérito, não vincula o órgão judicial que tiver de intervir nas subsequentes fases processuais (…) o MP detém um poder de cognoscibilidade que, contudo, não forma caso decidido, (…) existindo ainda um poder judicial de controlo dessas invalidades, em sede de incidentes judiciais em que se revelem os actos inválidos ou no decurso de fases dirigidas judicialmente» (Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, pág. 309. No mesmo sentido, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 11ª Edição, 2007, pág. 313 e os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15.02.2012, proc. 36/09.6TAVNH.P1, de 26.02.2014, proc. 9585/11.5TDPRT.P1, e de 2.11.2015, proc. 0541293; o acórdão da Relação de Guimarães de 20.09.2010, proc. 89/09.7GCGMR.G1, de 05.02.2018, proc. 683/16.0PBGMR.G1 e de 25.05.2020, processo 95/19.3JAPRT-C.G1; e os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.05.2011, proc. 1566/08.2TACSC.L1.5, de 22.11.2017, proc. 684/14.2T9SXL.L2-3, de 06.06.2017, proc. 2018/13.9TELSB.GL1-5, de 21.02.2017, proc. 2/15.2IFLSB-D.L1-5); de 15.03.2021, proc. 2413/11.3TAFAR-A.L1-9, in http://www.dgsi.pt).
Outra solução parece comprometer a necessidade de separação orgânica e funcional entre as duas Magistraturas, desvirtuando, por essa via, quer os princípios do acusatório, quer o da autonomia do Mº. Pº., na investigação e acção penais, porquanto o controle jurisdicional permanente dos actos praticados pelo Mº. Pº. fora da esfera de competência reservada ao JIC subalternizaria o Mº. Pº., materializando-se numa quase permanente sindicância do processo pelo Juiz em fase de inquérito, ficando este em condições de apreciar tudo o quanto o MP fizesse, desde as constituições de arguidos, a buscas não domiciliárias, apreensões de documentos ou mesmo inquirições de testemunhas, na medida em que todas estas diligências implicam com direitos fundamentais em maior ou menor medida, o que também comprometeria uma das vertentes do processo justo e equitativo, que é o da celeridade e eficácia da investigação.
Ora, no caso sub judice a mera consulta ou acesso a peças do processo, durante a fase da investigação, pedida por quem não tem nele qualquer intervenção, não é suspeito, nem foi constituído arguido, não envolve quaisquer direitos, liberdades ou garantias que careçam de controle jurisdicional, sendo certo que a autorização para consulta ou obtenção de cópias ou certidões de peças do processo, se trata de acto a praticar pela autoridade judiciária que for a competente, consoante a fase em que o processo se encontrar, nos termos do art. 90º nº 1 do CPP.
O Mº. Pº. indeferiu o pedido e o que o recorrente deveria ter feito, era reclamar de tal decisão para o respectivo superior hierárquico e não invocar a nulidade, até porque nenhuma se verificou, à luz do princípio da taxatividade das nulidades processuais elencadas nos arts. 118º e 119º do CPP, nem qualquer irregularidade, dado que o Mº. Pº. actuou no pleno exercício da sua actividade e competências em matéria de direcção do inquérito.
A decisão recorrida mais não fez do que declarar isso mesmo, pelo que, dado o seu acerto, será confirmada.

III – DISPOSITIVO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente fixando a Taxa de Justiça em 3 UCs – art. 521º do CPP.
Notifique.
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelo Mmo. Juiz Adjunto.

Tribunal da Relação de Lisboa, 6 de Outubro de 2021
Cristina Almeida e Sousa
Alfredo Costa